Pediatria
Anemia ferropriva
Julia Kelman
ANEMIA FERROPRIVA NA INFÂNCIA
INTRODUÇÃO E EPIDEMIOLOGIA
A anemia ferropriva não é uma doença exclusiva da infância, entretanto, esse e-book aborda as particularidades desse distúrbio carencial quando se trata da população pediátrica.
Vamos analisar alguns dados! Segundo a WHO (Worlds Health Organization), a prevalência
mundial de anemia em pré escolares é equivalente a 47,4%, enquanto em escolares corresponde a
25,4%. Essa alta prevalência se dá pelo fato de a anemia não ser identificada ou mesmo tratada
incorretamente, prejudicando o crescimento e desenvolvimento infantil.
Mesmo acometendo todos os grupos etários e níveis sociais, a anemia ferropriva ainda atinge prioritariamente as camadas socialmente menos favorecidas de menor renda e desenvolvimento. Por fim, a principal causa de anemia é a deficiência de ferro, estando associada a mais de 60% dos casos em todo o mundo!
REVISÃO: FERRO
O ferro participa de todas as fases da síntese proteica e dos sistemas respiratório, oxidativo e anti infeccioso do organismo. A maior parte do ferro é proveniente do próprio sistema de reciclagem das hemácias e apenas pequena parte é advinda da dieta.
CONCEITO E DIAGNÓSTICO LABORATORIAL
É considerado anemia quando se observa ao hemograma: • Redução da massa eritrocitária
• Dosagem de Hemoglobina (Hb) menor que -2 desvios padrão do esperado para a faixa
etária (diferente do adulto que possui um único valor de referência!), tornando-se
insuficiente para atender as necessidades fisiológicas exigidas de acordo com a idade, sexo, gestação e altitude.
Por que não usamos o hematócrito como critério diagnóstico? O hematócrito é susceptível a
variações de volume plasmático e poiquilocitose, que consiste na alteração morfológica das hemácias em virtude da distribuição da hemoglobina em seu interior.
Observe abaixo os valores de referência de acordo com a faixa etária, consulte essa tabela sempre que necessário:
Anemia ferropriva na infância e adolescência
Hb Hb VCM VCM
Idade Média Limite inferior Média Limite inferior
0-5 a 1,9 anos 12,5 11,0 77 70 2 a 4 anos 12,5 11,0 79 70 5 a 7 anos 13,0 11,5 81 75 8 a 11 anos 13,5 12,0 83 76 12 a 14 anos Feminino 13,5 12,0 85 78 12 a 14 anos Masculino 14,0 12,5 84 77 15 a 17 anos 14,0 12,0 87 79
Feminino 15 a 17 anos
Masculino
15,0 13,0 86 78
CLASSIFICAÇÃO
Sabemos que o VCM (Volume Corpuscular Médio) indica o tamanho da hemácia (microcítica, normocítica ou macrocítica, se aumentada) e, no caso da anemia ferropriva, este encontra-se
diminuído. Então, podemos concluir que se trata de uma anemia microcítica. Esse indicador será
um auxiliador no diagnóstico diferencial entre os diversos tipos existentes de anemia.
Outro parâmetro que deve ser analisado é o RDW, o qual indica o índice de anisocitose, isto é, a diferença de tamanhos em uma população de hemácias. A determinação do RDW permite a diferenciação entre talassemia, a qual possui todas as hemácias diminuídas, mas homogêneas, e
anemia ferropriva. Esta, devido a depleção do estoque de ferro, possui algumas hemácias em
tamanho normal e outras já diminuídas sendo liberadas para a periferia, constituindo então anisocitose (RDW aumentado).
Além disso, deve-se realizar o estudo da cinética do ferro, analisando o perfil de ferritina (estoque de ferro), ferro sérico e TBIC (indica a saturação, capacidade total de ligação com o ferro).
CURSO NATURAL DA DOENÇA
O curso natural da anemia ferropriva costuma iniciar com diminuição da ferritina, devido a depleção do ferro circulante. Na sequência, com a diminuição do estoque, o ferro sérico diminuí também e, por fim, a hemoglobina diminui e a anemia propriamente dita se instala.
Vamos esquematizar essa evolução? Tenha isso em mente para responder as questões de provas e
concursos!
↓ ferritina (depósitos de ferro no fígado, baco e medula óssea) → ↓ ferro sérico → ↑ RDW → anemia normocítica normocrômica → anemia microcítica hipocrômica (ferropriva)
Ademais, pode haver trombocitose associada à anemia porque o estímulo para produção de hemácias pode também estimular as plaquetas.
CAUSAS
A origem da anemia ferropriva é multifatorial, pode ser ocasionada pela deficiência de ferro e/ou diversos outros micronutrientes, por perdas sanguíneas, processos infecciosos e patológicos concomitantes, uso de medicações especificas que prejudicam a absorção do ferro.
A seguir, foram listadas as principais causas conforme a faixa etária. Nos lactentes:
• Bebês prematuros e PIG (Pequenos para a Idade Gestacional) porque não conseguiram formar um estoque de ferro adequado;
• Pico de crescimento acelerado no primeiro ano de vida pode predispor à anemia ferropriva; • Alergia alimentar, má absorção do ferro, microssangramentos;
• Introdução precoce (antes dos 24 meses de vida) ao leite de vaca, pobre em ferro e zinco. Sabe-se que o leite materno possui excelente biodisponibilidade de ferro, isto é, a criança consegue absorver com facilidade.
Segundo o Manual de Nutrologia da SBP, para cada mês de uso de leite de vaca a partir do 4º mês de vida ocorre queda de 0,2 g/dL nos níveis de Hb da criança.
Nos pré escolares e escolares:
• Verificar cuidadosamente a história alimentar, na maioria dos casos a criança possui uma alimentação boa quantitativamente (alimenta-se várias vezes ao dia) mas pobre
qualitativamente (carente na variedade dos grupamentos alimentares necessários para o
seu desenvolvimento);
• A verminose dificilmente é a causa da anemia, mas pode provocar sangramentos que implicam na mesma;
• Sangramentos gastrointestinais.
FATORES DE RISCO
• Dieta inadequada em ferro;
• Introdução tardia de alimentos ricos em ferro; • Desmame precoce;
• Sangramento perinatal; • Prematuridade ao nascer;
• Ligadura precoce do cordão umbilical;
• Abandono do aleitamento materno exclusivo; • Infecções;
• Falta de acesso aos serviços de saúde; • Precariedade das condições de saneamento; • Desnutrição energético proteica;
• Vegetarianismo e veganismo não suplementados adequadamente; • Refluxo gastro esofágico;
• Parasitoses intestinais.
CLÍNICA
De maneira geral, a clínica da anemia ferropriva cursa com os mesmos sinais e sintomas do adulto: • Astenia;
• Cefaleia; • Glossite;
• Queilite angular (lesões no ângulo da boca); • Coiloníquia (unhas em colher).
Todavia, a clínica nas crianças pode cursar com sintomas inespecíficos, como: • Irritabilidade;
• Taquicardia; • Anorexia;
• Alterações de comportamento.
A anemia causa efeito no crescimento e desenvolvimento cerebral desde o período pré natal até longo prazo, comprometendo o desenvolvimento de habilidades cognitivas, comportamentais, linguagem e capacidade motora das crianças. O impacto negativo pode permanecer mesmo após o tratamento!
A deficiência de ferro na infância também predispõe a caries dentárias, menor discriminação e identificação de odores, alterações na imunidade não específica, paladar e apetite, resposta alterada ao estresse metabólico e desenvolvimento audiovisual.
Por fim, a anemia materna exerce influência sobre os valores da Hb do lactente aos 6 meses de vida, mesmo em aleitamento materno exclusivo.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Apesar de pouco prevalentes, não devem ser desconsiderados: • Síndrome inflamatória intestinal;
• Doença celíaca;
• Cirurgias de ressecção gastrointestinal.
TRATAMENTO
Consiste basicamente na reposição do ferro elementar! De que maneira?
Administração de 3 a 5 mg/kg/dia de ferro elementar por no mínimo 3 meses (não basta tratar somente a anemia, deve-se repor o estoque de ferro também!) e máximo de 6 meses, oferecido conjuntamente com frutas cítricas e longe das refeições e leite ou mamadas.
Por que essas recomendações?
Lembre-se que o ferro pode ser encontrado sob duas formas: heme, boa disponibilidade (carnes e vísceras) e não heme, baixa disponibilidade (leguminosas, verduras de folhas verde escuras). Para melhorar a absorção do ferro não heme, deve-se introduzir os agentes facilitadores, como carnes e vitaminas C e evitar os agentes inibidores, como leite (cálcio e fosforo), refrigerantes, cafés e chás (tanino), fibras, fitatos (presente nos vegetais) e oxalatos (presente no espinafre e na beterraba).
Observação: A terapia venosa fica restrita aos casos especiais, principalmente quando se trata de
um caso de má absorção. Já a terapia intramuscular (IM) não é recomendada em crianças.
Observação: O uso de preparações líquidas pode ocasionar o escurecimento dos dentes e das fezes
e, portanto, deve-se orientar a família!
PREVENÇÃO
De acordo com as novas (2018) normativas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a profilaxia deve ser feita da seguinte forma:
A termo entre 3 e 12 meses em aleitamento materno exclusivo ou não
Administrar 1 mg/kg/dia de ferro elementar A termo com peso ao nascer < 2500 g e Pré termo com
peso ao nascer (< 2500 g) entre 1 e 12 meses (a partir de 30 dias de vida)
Administrar 2 mg/kg/dia de ferro elementar
Pré termo e peso de nascimento < 1500 g entre 1 e 12 meses (a partir de 30 dias de vida)
Administrar 3 mg/kg/dia de ferro elementar Pré termo e peso de nascimento < 1000 g entre 1 e 12
meses (a partir de 30 dias de vida)
Ademais, todos os pacientes (seja pré termo ou a termo) entre 12 e 24 meses de vida devem receber suplementação de 1 mg/kg/dia de ferro.
Entretanto, há uma exceção para aqueles pacientes que fazem uso de fórmula infantil (ao menos 500 mL por dia), a qual já possui ferro em sua composição e por esse motivo dispensa a
suplementação oral. Os que usam menos que 500 mL por dia devem ter a reposição de ferro conforme as crianças em aleitamento materno.
Além da prevenção medicamentosa da carência de ferro, deve-se estar atento para a oferta de
alimentos ricos ou fortificados com ferro (cereal, farinha e leite), lembrando que a partir de 2004,
as farinhas de trigo e de milho foram fortificadas, segundo resolução do Ministério da Saúde. Outra medida importante é a avaliação da anemia em lactentes de 12 meses de idade, com solicitação laboratorial de rotina de hemograma completo, ferritina e proteína C reativa (para descartar infecção e inflamação).
CONCLUSÃO
A anemia ferropriva não deve ser considerada uma simples anemia facilmente corrigida, mas sim combatida como uma doença sistêmica que afeta múltiplos órgãos! Como estratégias, têm-se: promoções de ações de saúde, como incentivo ao aleitamento materno exclusivo até os 6 meses de vida, imunização, suplementação de sais de ferro ou fortificação de alimentos nos grupos de risco.
REFERÊNCIAS
1. Pediatria – Nutrologia – Anemia ferropriva (Professora Kelly Monteso). Jaleko Acadêmico. Disponível em: <https://jaleko.com.br>.
2. Sociedade Brasileira de Pediatria - Departamento de Nutrologia - Manual de alimentação:
orientações para alimentação do lactente ao adolescente, na escola, na gestante, na prevenção de doenças e segurança alimentar. Disponível em: < Manual de Nutrologia (
Sociedade Brasileira de Pediatria) - caderneta alimentacao.pdf>.
3. Sociedade Brasileira de Pediatria - Departamento de Nutrologia e Hematologia –
Hemoterapia – Consenso sobre anemia ferropriva: mais que uma doença, uma urgência
médica! Disponível em: <
https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21019f-Diretrizes_Consenso_sobre_anemia_ferropriva-ok.pdf>.
4. BRAGA, J.A.P., VITALLE, M.S.S. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. Deficiência
de ferro na criança. Disponível em: <