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GT101 - Sistemas Alimentares e os debates antropológicos em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

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GT101 - Sistemas Alimentares e os debates antropológicos em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

“Isso é PANC?”: um estudo etnográfico envolvendo Plantas Alimentícias não Convencionais.

Renata Tomaz do Amaral Ribeiro, PGDR-UFRGS/Brasil, Renata Menasche, PPGAnt-UFPel, PGDR-UFRGS/Brasil.

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Introdução

Atualmente, a literatura especializada em torno das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC)1 se expandiu bastante, havendo estudos nas mais diversas áreas do conhecimento, como Biologia, Agronomia, Gastronomia e Nutrição. Além disso, a noção PANC vem ganhando espaço, e não apenas nas Universidades. Essas plantas têm recebido atenção da mídia, especialmente em programas de televisão que discutem saúde, alimentação e biodiversidade. Na capital gaúcha, ocorrem com frequência oficinas e caminhadas de identificação de PANC, promovidas por iniciativas populares, clínicas de nutrição, hortas comunitárias e organizações não governamentais.

Em razão do destaque que tem sido conferido às PANC, famílias rurais de diferentes territórios – no caso em estudo, Ipê e extremo sul de Porto Alegre – começaram a trazer algumas destas plantas, muitas de seu uso cotidiano e/ou tradicional, para comercializar nas Feiras da Redenção e do bairro Tristeza, em Porto Alegre. Ao levarem para as feiras algumas das PANC consumidas por eles, os agricultores e agricultoras contribuem para o fortalecimento deste novo nicho nas feiras ecológicas de Porto Alegre. Isso ocorre não apenas por perceberem a demanda e investirem na produção para o comércio, mas também porque, ao revelarem a forma como se relacionam com estas plantas — como costumam prepará-las e consumi-las em seus cotidianos —, contribuem para que determinadas PANC sejam percebidas como comida.

1 As PANC podem ser “raízes tuberosas, tubérculos, bulbos, rizomas, cormos, talos, folhas, brotos, flores, frutos e sementes ou ainda látex, resina e goma, ou indiretamente quando são usadas para obtenção de óleos e gorduras alimentícios. Inclui-se neste conceito também as especiarias, substâncias condimentares e aromáticas, assim como plantas que são utilizadas como substitutas do sal, como edulcorantes (adoçantes), amaciantes de carnes, corantes alimentícios e aquelas utilizadas no fabrico de bebidas, tonificante e infusões” (LORENZI ; KINUPP, 2014, p. 13).

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Segundo Appadurai (2008), apesar dos sujeitos humanos serem aqueles que qualificam as coisas, são as coisas em circulação que revelam o contexto social em que estão inseridas. É através da troca que os parâmetros são determinados, isto é, a utilidade da mercadoria e sua escassez. Desse modo, Appadurai propõe que devemos nos concentrar não apenas nas formas e funções da troca, mas fundamentalmente nas mercadorias que são trocadas, em sua movimentação. Logo, as mercadorias também possuem uma vida social. Desse modo, nas feiras ecológicas estudadas as PANC também possuem uma vida social, que é revelada através de sua inter-relação com os sujeitos humanos.

Metodologia

O termo “rural” não possui definição conceitual ou empírica exata (WIGGINS; PROCTOR, 2001). Na atualidade, os critérios mais frequentemente utilizados para a definição de “rural” referem-se ao tamanho da população e sua densidade, o que, para Kageyama (2008), é uma concepção reducionista. Assim, com Kageyama (2008), compreendemos que as áreas rurais são distintas entre si e, do mesmo modo, distintas em relação às urbanas, não apenas por questões demográficas, mas, inclusive, por aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. Explora-se neste estudo, portanto, o diálogo entre o rural e o urbano em termos de complementaridade, buscando assim ultrapassar a abordagem de antagonismo, tendo em vista que a produção e a comercialização de PANC que nos interessam acontecem tanto no meio rural quanto no urbano, tornando indispensáveis a observação e a reflexão a partir das dimensões simbólicas e sociais que se manifestam em ambos os contextos.

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É nessa perspectiva que, há aproximadamente dois anos, pesquisa etnográfica junto a agricultores e consumidores das feiras ecológicas antes mencionadas tem sido realizada. Conforme Roberto Cardoso de Oliveira (2006), o método etnográfico estrutura-se em um tripé: olhar, ouvir e escrever, na busca por compreender o outro (em sua alteridade). Consiste, portanto, em trabalho de campo, convívio prolongado em que é construída relação de proximidade e confiança, embasada em princípios éticos, entre a pesquisadora e seus interlocutores (VICTORA et al., 2000). A experiência etnográfica, desse modo, baseia-se não apenas na leitura da pesquisadora sobre o universo pesquisado, mas também em uma espécie de “contrato de interlocução”, um “jogo de reciprocidades” que se estabelece com o convívio durante a pesquisa (ECKERT; ROCHA, 2013, p. 137).

Além disso, este método está associado ao emprego de um contíguo de técnicas e de procedimentos de obtenção de dados, os quais têm sido explorados nesta pesquisa: observação participante, diários de campo, entrevistas abertas e uso de recursos audiovisuais. Segundo Victora et al. (2000), a combinação de técnicas, quando empregadas de maneira coerente, torna a obtenção de dados mais completa, pois tende a suprir possíveis lacunas. Entretanto, vale lembrar que, segundo Geertz (2008), não são simplesmente as técnicas que definem um estudo etnográfico, mas também, e fundamentalmente, o tipo de empenho intelectual necessário, isto é, o esforço e os riscos em torno de uma “descrição densa”. Além disso, é importante ter em mente que, nessa perspectiva, os trabalhos em Antropologia são entendidos como interpretações “de segunda mão”. Isso porque apenas aquele que é nativo, isto é, que vive a cultura local, pode e consegue fazer uma interpretação “em primeira mão” (GEERTZ, 2008, p. 11). Logo, em um estudo etnográfico, temos acesso apenas a uma pequena parte das informações; assim, o que é descrito não é o “discurso social bruto”, mas

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sim uma interpretação do “fluxo do discurso social” (GEERTZ, 2008, p.14).

As PANC entre os diversos grupos de agricultores estudados

Em Ipê2, onde é consumida tradicional e cotidianamente (respeitando a sazonalidade), a planta Taraxacum officinale é nomeada como pisacan, categoria êmica que emerge da variação geolinguística observada nas colônias italianas da Serra Gaúcha. Em Porto Alegre, conhecida popularmente como dente-de-leão, essa planta nasce de modo espontâneo, não raras vezes nas fendas de calçadas, em jardins e canteiros de cultivos convencionais. Com a visibilidade da noção PANC, esta planta logo se tornou paradigmática da categoria. Para as famílias rurais que vivem na colônia, em Ipê, é alimento cotidiano e tradicional, às vezes semeado, mas comumente nasce e se desenvolve de forma espontânea, no mato e em canteiros. Conforme trecho do diário de campo, escrito após ida a campo na Feira da Redenção, em maio de 2018:

Naquele espaço estreito, entre as caixas e a banca, apoiado em uma pilha de caixas cheias, o agricultor fala para uma cliente, sobre a planta que ela acabara de afirmar ser o dente-de-leão: “a gente lá na colônia chama de pisacan. É o que a gente mais come. Colhe no mato e quando vem no canteiro é só deixar, mas hoje a gente também planta. O sabor fica menos amarguento”. Enquanto o agricultor falava de sua experiência, a senhora prestava atenção, assim como outros clientes que também se posicionaram ao redor da banca, para ouvi-lo.

2 A formação social do município é marcada pela colonização de origem italiana, ocorrida no final do século XIX. Contudo, foi apenas em 1987, com a sua emancipação de Vacaria, que a região torna-se o município de Ipê. Mais recentemente, em 19 de maio de 2010, conforme publicação do diário oficial da União, a Lei Nº. 12.238 conferiu a Ipê o título de Capital Nacional da Agricultura Ecológica. O município é o percussor na produção de orgânicos e hoje conta com mais de cem famílias que vivem da agricultura ecológica. (www.ipe-rs.com.br de Ipê – Histórico).

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Para os consumidores das feiras ecológicas em estudo, essa planta é considerada PANC. Outras plantas tradicionais e/ou cotidianamente consumidas por essas famílias camponesas também passaram a ser levadas às feiras, estimuladas pelo interesse de consumidores com relação às PANC: batata crem (Tropaeolum

pentaphyllum), goiabinha serrana (Acca sellowiana), mastruço

(Coronopus didymus), caruru (Amaranthus viridis), quaresma (Annona

squamosa).

Os agricultores de Ipê possuem laços profundos com o território, são descendentes de imigrantes italianos, consideram-se colonos e conservam práticas e saberes tradicionais. Entre eles, não são raras as conversas em italiano. Em campo, foram muitas as ocasiões em que afirmaram, com orgulho, serem colonos ou viverem na colônia. Conforme Machado et al. (2015, p.116), “no sul do Brasil, reconhecem-se e são conhecidos como colonos os agricultores descendentes de imigrantes europeus para quem essa identidade se converte em símbolo de diferenciação étnica”. Nas feiras estudadas, muitos consumidores (oriundos da colônia e que hoje vivem em Porto Alegre) rememoram saudosamente, junto às famílias rurais de Ipê, pratos tradicionais que costumavam saborear em suas localidades de origem: polenta brustolada, radicci cotti, chimia de uva, massa caseira, vinho da colônia. Vale aqui recordar Da Matta (1987), que aponta que a comida permite experimentar e expressar identidades sociais. Entre as PANC, o pisacan, a goiabinha serrana e a batata crem protagonizam memórias que afloram nesse encontro entre colonos agricultores e consumidores, que, na feira, por meio desta troca intersubjetiva, buscam sentir um pouco da atmosfera da colônia.

Por outro lado, na região do Lami, no extremo sul de Porto Alegre, convivem famílias que possuem práticas tradicionais relacionadas ao território com outras que podemos chamar de neorrurais, pois somente

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nesta geração adotaram a vida no campo e a agricultura como prática profissional. As agricultoras e os agricultores que guardam práticas tradicionais são aquelas e aqueles que vivem no território em que seus antepassados também viveram, ou seja, que possuem uma relação de ancestralidade com o lugar, um vínculo que se fortalece através da transmissão de saberes e práticas relacionados ao território e a símbolos locais. Segundo Wanderley (2001, p. 89) o agricultor familiar “guarda laços profundos – de ordem social e simbólica – com a tradição ‘camponesa’ que recebeu de seus antepassados”.

Em contrapartida, as agricultoras e os agricultores aqui chamados de neorrurais escolheram viver no campo por diferentes motivos. “Uma vida mais saudável” e “saber o que se está comendo” são expressões comuns entre esses e representam bem as interlocuções quando a questão é “Por que ir morar na roça?”. Neste caso específico, o perfil das famílias neorrurais compreende uma maioria de sujeitos com formação de nível superior. Entre eles, agrônomos e engenheiros que, além de “uma vida mais saudável”, buscam colocar em prática conhecimentos adquiridos em sua formação acadêmica.

A partir da demanda de consumidores, em boa medida criada pela visibilidade da noção PANC, as famílias rurais das duas localidades, isto é, do município de Ipê e do extremo sul de Porto Alegre, passaram a trazer, para comercializar nas feiras, uma diversidade de PANC. As famílias de Ipê iniciaram a comercialização de plantas das quais já faziam uso, tanto tradicional como cotidianamente. De outra parte, as famílias que, no extremo sul da capital gaúcha, fazem uso tradicional do território também passaram a levar algumas das plantas comuns a eles, como ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata), beldroega (Portulaca oleracea), araçá (Psidium cattleyanum). Já as famílias neorrurais, também do extremo sul de Porto Alegre, adotaram, há aproximadamente dez anos, um cultivo bastante diversificado, hoje oferecendo a seus consumidores: hibiscus

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(Hibiscus sabdariffa), peixinho da horta (Stachys byzantina), capuchinha (Tropaeolum majus), ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata), tomate de árvore (Solanum betaceum), bem como geleias de frutas silvestres e nativas. Além de as cultivarem, passaram a consumir cotidianamente muitas dessas plantas. Atualmente, os agricultores que comercializam nas feiras estudadas dispõem de diferentes receitas com PANC.

Esses três grupos de agricultores são muito distintos; contudo, em todos os casos há estudo subjacente aos saberes e práticas associados ao consumo PANC. São, assim, distintas as formas como essas famílias rurais produzem e transmitem seus conhecimentos referentes às PANC. As de Ipê fazem uso tradicional e cotidiano (conforme sazonalidade) das PANC que costumam levar para as feiras. Neste caso, o conhecimento foi construído ao longo de gerações, transformando-se durante esse processo. Vale lembrar que “a tradição... não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constrói as possibilidades do futuro” (WOORTMANN, 1990, p. 17).

Já as famílias rurais do extremo sul de Porto Alegre, aqui consideradas tradicionais, passam a (re)descobrir muitas das plantas, outrora de uso cotidiano, tanto através de vizinhos neorrurais como por meio da visibilidade da noção PANC. As interlocuções destes sujeitos revelam memórias que resgatam antigas práticas e saberes sobre o consumo e preparo destas plantas que, em um passado não muito remoto, estavam presentes em seus cotidianos, mas que por muito tempo permaneceram ausentes das feiras. Segue trecho de diário realizado após ida a campo, em março de 2018:

Como de costume, cheguei às 6h, cumprimentei todos, abraços e risadas. Fui na direção da banca onde trabalho. As caixas ainda não haviam chegado; procurei e não avistei o agricultor. Achei bastante estranho! Soube, então, que a família com quem trabalho teve problemas com a sua van durante o trajeto na madrugada. Um outro agricultor foi então socorrê-lo para que a feira pudesse acontecer normalmente. Nesse meio tempo, enquanto esperava a carga chegar, fui bater um papo com os agricultores da zona sul, que tinham sobre a mesa

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ora-pro-nóbis e beldroega, além de cultivos convencionais. Uma cliente (jovem, 30-35 anos, branca e vestida com roupa preta ideal para prática de esportes) apontou para a ora-pro-nóbis e perguntou: “o que é?”. O agricultor [senhor de aproximadamente 60 anos, cabelos brancos e pele clara, mas bastante queimada do sol] respondeu que era a ora-pro-nóbis, uma PANC, e afirmou na sequência: “essa é a melhor planta, é ótima pra vegano”, deu uma risada discreta e completou “ajuda até a perder peso”. Na sequência, listou uma série de nutrientes que a planta oferecia, dos quais recordo o cálcio e o ferro. A moça se mostrou interessada, perguntou de onde vinham os produtos e se era ele quem cultivava a tal ora-pro-nóbis (da qual ela já tinha ouvido falar antes, mas que estava conhecendo naquele momento). O agricultor disse ser de Porto Alegre, do extremo sul, lá no Lami, e que sim, era ele quem cultivava tudo que estava sobre a mesa, inclusive a ora-pro-nóbis, mas que esta planta, na verdade, não precisava de muita atenção. Então, ele contou a seguinte história: a ora-pro-nóbis havia sido levada para o sítio pela sua sogra, que tinha gostado muito da flor e queria uma cerca viva com a planta. Conforme o agricultor, ele falou para a sogra que já havia comido aquela planta quando criança. Segundo ele, a sogra concordou e observou que também já havia comido a plantinha quando mais jovem. A pedido da sogra, ele plantou a muda, que virou uma cerca e por anos a família não comeu a planta, mesmo sabendo que ela era comestível. Um dia, um agrônomo, por meio dos vizinhos neorrurais, apareceu na propriedade, dizendo que a planta era maravilhosa e que tinha muito a oferecer. Conforme o agricultor, o agrônomo até mesmo cozinhou para eles naquele dia. Ele afirmou que a ora-pro-nóbis não sai mais do cardápio depois dessa redescoberta. Por outro lado, os neorrurais da zona sul fazem, atualmente, uso cotidiano de PANC, conforme a sazonalidade de cada planta. O conhecimento sobre plantas alimentícias não convencionais não foi, no caso, construído através de gerações, mas sim ao longo da última década, a partir de outros agricultores, livros de culinária e gastronomia, agrônomos, biólogos, internet e redes sociais.

De PANC a comida

Em meio a toda a multiplicidade observada em campo – singularidade de cada uma das feiras observadas, distintos grupos de

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agricultores que nelas comercializam PANC –, observa-se que, nas feiras, as agricultoras e agricultores são as mestras e os mestres, porque são elas e eles que constroem, no imaginário coletivo daqueles que as frequentam, a ideia de que determinada planta é considerada comida, não apenas como PANC. Logo, não é a noção/conceito que transforma as PANC em comida no imaginário citadino daqueles que circulam por essas feiras, mas sim as práticas e saberes em torno dos usos das plantas, expressos pelas agricultoras e pelos agricultores em “oficinas” informais que acontecem nas feiras. Como consta no trecho do diário de campo, desenvolvido após observação participante na Feira da Tristeza:

Atrás da banca e gesticulando muito, a Vani [senhora de 59 anos que vive em Ipê] conta, para um grupo de cinco clientes e para mim, como ela costuma fazer o pisacan em sua casa. Segundo ela, é muito simples: antes de mais nada, o importante é escaldar a planta. Assim, em uma panela de água, deve-se colocar o pisacan para ferver por dez minutos. Em seguida, deve-se dispensar a água quente e colocar água fria. Depois, é preciso pegar com as mãos a planta e esmagá-la para retirar a água. “Vai apertando, tirando a água, vai fazendo uma bola”, conforme relatou a interlocutora, mais de uma vez, enquanto gesticulava, mostrando que a bolinha vai ficando menor e mais compacta. Por fim, é só picar essa bola esmagadinha, como se fosse couve, e refogá-la, adicionando temperos. Nas palavras dela: “Eu ponho de um tudo: cebola, alho, azeite de oliva, pimenta e uma cebolinha verde no final”. A ocorrência de cenas como essa é bastante comum. Afinal, não são raras as vezes em que os consumidores, a respeito das mercadorias, perguntam: Isso é PANC? O que é isso? Como se faz? Faz bem para quê? Vani costuma repetir a receita de maneira bastante linear, trazendo um passo a passo de como proceder; entretanto, sincronicamente e após escolher o que é possível e interessante revelar em cada “oficina informal” protagonizada por ela e pelo pisacan, recorda detalhes (da receita, de sua trajetória de vida, de suas práticas). Vale aqui recordar Fischler (1995), ao apontar que o alimento cruza a fronteira entre o mundo e o corpo: somos o que comemos, tanto biológica como simbolicamente. Para esse autor, a incorporação funda a alteridade e a identidade coletiva, inserindo o

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comensal em um sistema culinário e, portanto, no interior de uma cultura, que possui suas próprias formas de ordenar o real.

Do mesmo modo, os agricultores do extremo sul de Porto Alegre contam, durante a feira, como determinadas PANC estão presentes em seus cotidianos, conforme podemos observar em trecho do diário de campo escrito após ida a campo em março de 2019, na Feira da Tristeza: São aproximadamente 7h30min. Me aproximo da jovem neorrural e, apontando para flores vermelhas, pergunto: “que flor é essa?” Ela diz ser flor de hibiscus, uma planta de fácil manejo e que produz bastante. Enquanto conversávamos sobre a flor, uma cliente [mulher branca de 40-45 anos] que ouvia nossa conversa aproximou-se com a filha de aproximadamente 12-13 anos, para escutar de perto. Logo depois já havia outra moça parada atrás de mim, ouvindo atentamente o que a agricultora falava. Segundo ela, é possível decorar bolos e saladas com as flores do hibiscus. Também é possível fazer chás e refrescos. Ela, então, mencionou que havia feito, dia desses, um bolo de cenoura com cobertura de chocolate e que, por cima, ela colocou hibiscus picado. “Dá um azedinho delicioso misturado com o doce!”.

Deste modo, no contexto de troca entre o rural e o urbano observado nas feiras ecológicas, as PANC revelam certa inversão de hierarquia, pois são as agricultoras e os agricultores que possuem domínio sobre os usos das plantas que trazem para as feiras, não os livros ou a ciência. São aqueles que consomem as plantas costumeiramente que podem contar sobre os processos que envolvem seu preparo e comensalidade. Por conseguinte, o que é PANC do ponto de vista da ciência não necessariamente será para estas famílias rurais. É o que podemos observar nos quadros abaixo.

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Quadro 1. Plantas classificadas como PANC, mas que para os agricultores de Ipê não o são

Nome científico Nome popular/ Local Comercialização

nas feiras ecológicas estudadas

Amaranthus viridis Amarantus / Caruru Não

Campomanesia xanthocarpa

Guabiroba / Guavirova Não

Myrcianthes

pungens Guabiju / Guaviju Não

Acca sellowiana Goiaba Serrana / Goiaba Serrana

Sim

Coronopus

didymus Mastrunço / Menstrus Sim

Eugenia uniflora Pitanga / Pitanga Sim

Psidium cattleianum

Araçá / Araçá Sim

Taraxacum

officinale Dente-de-leão / Pisacan Sim

Tropaeolum pentaphyllum

Batata Crem / Batata Crem Sim

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Quadro 2. Plantas classificadas como PANC, mas que para os agricultores neorrurais do extremos sul de Porto Alegre não o são

Nome científico Nome popular Comercialização

nas feiras ecológicas estudadas

Basella alba Bertalha Sim

Hibiscus sabdariffa Hibiscos Sim

Melothria cucumis Pepininho Sim

Pereskia aculeata Ora-pro-nóbis Sim

Physalis pubescens Físalis Sim

Solanum betaceum Tomate de árvore Sim

Solanum muricatum Melão de árvore Sim

Stachys byzantina Peixinho da horta Sim

Taraxacum officinale Dente-de-leão Sim

Tropaeolum majus Capuchinha Sim

Fonte: RIBEIRO, R. T. A. (2019). .

Por conseguinte, como aponta Fischler (1995) alimentação não tem haver apenas com aspectos nutricionais. O ser humano está submetido a uma angustia, o paradoxo da condição de onívoro: a tensão entre o familiar e o desconhecido. Uma ansiedade que é superada, pelo ser humano, não apenas por uma regulação biológica, mas também mental; isto é, que põe a cultura em prática.

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Considerações finais

Não é raro observar nas feiras ecológicas consumidores curiosos a respeito das PANC, ou mesmo em busca delas, especialmente após o destaque que têm recebido na mídia. Entretanto, as PANC correspondem a uma diversidade, considerando que compreendem todas as plantas e partes que são alimentícias, mas não são convencionalmente consumidas e comercializadas em mercados. Logo, torna-se comum escutar, nas feiras ecológicas, as seguintes perguntas: Isso é PANC? Como se faz? Como se usa? Faz bem para quê?

Nesse contexto, as agricultoras e agricultores de Ipê e do extremo sul de Porto Alegre revelam, em “oficinas informais”, como cultivam e consomem as PANC que costumam levar para as feiras. Ou seja, por meio de suas práticas e saberes cotidianos e/ou tradicionais, estes sujeitos constroem no imaginário coletivo daqueles que circulam nas feiras a ideia de que determinada PANC não é apenas uma planta, mas sim comida. Ao contarem como costumam preparar o pisacan cotti ou o Bolo com cobertura de hibiscos, ou ainda ao afirmarem a importância da planta ora-pro-nobis na dieta vegana, estes sujeitos contribuem para o fortalecimento da presença das PANC nas feiras ecológicas. Assim, tem-se que a noção PANC visibiliza uma série de plantas negligenciadas pelo grande mercado; contudo, são as agricultoras e os agricultores que justificam o uso destas como comida.

Referências

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Saberes e sabores da colônia: alimentação e cultura como abordagem

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Referências

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