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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Aquisição da virtude moral em Aristóteles Genival Carvalho Batista

SALVADOR-BA Julho/ 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Aquisição da virtude moral em Aristóteles

Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção de grau de licenciatura em Filosofia, sob orientação da Profa Dra Juliana Ortegosa Aggio.

SALVADRO-BA Julho/ 2014

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Agradecimentos

Agradeço inicialmente a minha família de modo especial meu pai Manoel e minha mãe Joana. A todo o corpo docente desta instituição – UFBA, especialmente a professora Juliana Ortegosa Aggio, por sua atenção e dedicação significante nos aconselhamentos em todo esse trabalho. A professora Carlota Ibertis e o professor Jarlee Salviano por aceitarem o convite de fazer parte da banca examinadora. Agradeço também a Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil da Ordem dos Frades Menores. Agradeço ao grupo de estudo de orientandos da professora Juliana que participo, juntamente com todos meus colegas e amigos. Enfim, agradeço a todos que compartilharam comigo a amizade e o conhecimento no decurso desta graduação.

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Resumo

Este trabalho procura ressaltar duas questões fundamentais e problemáticas no processo de aquisição da virtude moral segundo Aristóteles. A primeira é a seguinte: é possível naturalmente adquirirmos a virtude moral? A segunda questão é a seguinte: se possível, como se constitui esse processo de aquisição da virtude moral? Concernente à primeira questão, Aristóteles defende que ao contrário do que é dado por natureza, que não pode ser de outra maneira, como a da pedra que nunca se habituará ir para cima por si só, somos naturalmente capazes de adquirir a virtude moral e que a parte desiderativa da alma, mesmo que pertença à faculdade não-racional, pode ouvir o que a razão assevera como sendo bom; sendo assim, o elemento não cognitivo pode se harmonizar com a razão. A segunda questão, como a virtude pode ser adquirida, refere-se aos três elementos que engendra a virtude moral na natureza humana, a saber: bons hábitos, bons conselhos e leis justas. Há certa supremacia do hábito sobre os conselhos e leis, pois é pela prática constante de ações nobres e justas que se tornarão tais ações objeto de busca para o indivíduo e nisso ele sinta prazer. Nesse sentido, o processo de aquisição da virtude moral em Aristóteles consiste no agente moral não virtuoso para o propriamente virtuoso.

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SUMÁRIO

Introdução...06

CAPÍTULO 1 – A possibilidade natural de aquisição da virtude moral...09

1. – A natureza humana...09

1.1 – Capacidade natural de aquisição da virtude moral...11

1.2 – A faculdade desiderativa da alma...12

1.3 – Relação entre conhecimento e prazer...15

1.4 – Definição de virtude moral...19

CAPÍTULO 2 – Processo de aquisição da virtude moral...23

2. – Conhecimento e prática...23

2.1 – A razão persuade o desejo...25

2.2 – Educação para aquisição da virtude moral...26

2.3 – Realização da virtude moral...35

3 – Considerações Finais...39

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Introdução

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre duas questões centrais da ética Aristotélica, considerada como uma ética da virtude, a saber: a possibilidade natural de aquisição da virtude moral e o processo de aquisição de tal virtude para a formação ética do agente moral. Para pensar sobre a possibilidade e o processo de aquisição da virtude moral na ética de Aristóteles, investigaremos os fundamentos da ética aristotélica. Neste sentido, duas questões permearão o nosso texto: a primeira, a aquisição da virtude moral é possível? Por quê? A segunda questão, caso seja possível, como ocorre o processo da aquisição da virtude moral.

No primeiro capítulo, apresentaremos o primeiro problema, isto é, a possibilidade natural de aquisição da virtude moral e, deste modo, se tal problemática poderia ser explicada pelo paradigma conceitual aristotélico de

natureza para adquirirmos a virtude moral. Para responder a essa questão é

necessário compreender o pensamento de Aristóteles sobre o que é a natureza humana, uma vez que, a aquisição da virtude moral estaria vinculada, à realização desta mesma natureza. Neste sentido, a alma seria o suporte para esclarecer a possibilidade natural de aquisição da virtude moral e o processo de aquisição da virtude moral. Uma vez que a aquisição da virtude é, segundo Aristóteles, a própria realização da natureza humana, devemos começar fazendo uma análise sobre a alma.

Se, para compreender a natureza humana, devemos “olhar” para alma, no sentido de tentar entendê-la, é necessário saber de modo mais completo o que diz Aristóteles acerca da alma. Para ele, a alma é dividida em duas partes: racional e não-racional. Ademais, o filósofo defende que da parte não-racional, uma se mostra comum e vegetativa, pertencendo a todos os seres vivos, e refere-se ao alimentar-se e ao crescer; uma outra alimentar-se mostra não-racional, mas participa em certa medida da razão, tida em geral como desiderativa, que comporta os modos de desejar da alma: apetite, impulso e querer.

Na Ethica Nicomachea I 13, Aristóteles defende que, por mais que a faculdade desiderativa seja desprovida da faculdade racional, ela mostra-se por participação capaz de “ouvir” a razão; assim, por conseguinte, pode ser persuadida pela mesma. Ou seja, a faculdade desiderativa é capaz de seguir o que a razão lhe assevera como sendo o melhor bem. Logo, por que a razão deve intervir na

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orientação do desejo? Ainda, se ela deve intervir, devemos antes perguntar, se ela pode intervir. E, se ela pode como ocorreria este diálogo entre razão e desejo?

No que concerne à virtude, Aristóteles argumenta que, por um lado, a virtude não é engendrada em nós por natureza, por outro, não é contrária à nossa natureza, sendo que nada que ocorre por natureza pode formar um hábito contrário. Para explicar o que disse, o filósofo dá como exemplo a pedra que, por natureza, se move para baixo e o fogo que não pode se dirigir para baixo, de modo que, ambos os movimentos não poderiam ser de outro modo.

Então, se a virtude não é natural, e tampouco contrária à nossa natureza, Aristóteles defende que podemos adquirir a virtude, pois, ao contrário dos exemplos citados acima, somos por natureza capazes de recebermos a disposição virtuosa ou viciosa, isto é, por natureza somos capazes de adquirir a virtude ou o vício.

No segundo capítulo, tratar-se-á do processo de aquisição da virtude a partir de três elementos: o hábito, os conselhos e as leis. Os conselhos têm como característica certa particularidade, como o conselho de um amigo, as leis tem como função favorecer o bem comum e frear as paixões desgovernadas, todavia, tem-se o hábito como o ponto-chave que cumpre um papel relevante para a aquisição da virtude moral, pois, segundo Aristóteles, é pela prática que adquirimos a disposição moral. Desta forma, tendo em vista que os conselhos e as leis também são importantes, para ele, o hábito tem certa supremacia no processo de aquisição das virtudes. Reconhecendo no hábito o ponto-chave para a formação do caráter, então, é preciso aprender, na prática, a agir virtuosamente. Nesse sentido, a prática exerce uma função essencial, tanto no aprendizado das técnicas como na aquisição da virtude, pois, a virtude se engendra e se fortalece no indivíduo através da prática constante de boas ações; assim, adquirimos a virtude por tê-la efetivamente praticado. Tal como os construtores e citaristas, que se tornam bons construtores construindo e bons citaristas tocando a cítara, do mesmo modo, o filósofo defende que aprendemos a ser justos praticando atos justos, a ser temperante praticando atos temperantes e, do mesmo modo, a ser corajoso realizando atos de coragem. Assim sendo, a virtude é compreendida como uma disposição adquirida através do hábito.

Para Aristóteles, toda ação tende a um certo bem e essa ação é movida por um desejo. A razão deve educar o desejo para o melhor bem, educa-lo para agir virtuosamente, considera-se que a realização da virtude moral em Aristóteles não é

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desprovida de prazer, e tampouco poderia ocorrer sem uma operação racional prática. Assim, se tanto a razão quanto o desejo são próprios do ser humano, por conseguinte, pensar na aquisição da virtude implica pensar na relação entre desejo, prazer e razão, de modo que os três devam estar em harmonia. Para Aristóteles, a virtude não é desprovida de prazer, ao contrário, o prazer deve necessariamente acompanhar a ação virtuosa, de modo que o agente sinta prazer com o que é nobre e reconheça essa ação como boa em si mesma.

Aristóteles defende que agir de modo propriamente virtuoso significa dizer que o agente cumpre bem a sua função própria tão marcante na filosofia Aristotélica, ou seja, cada objeto tem como finalidade cumprir certas funções, no qual ele unicamente realiza ou que ele realiza da melhor forma, exemplo, se a função própria do cavalo é correr e portar bem o cavaleiro, o cavalo que correr e portar bem o cavaleiro será tido como virtuoso, assim, o objeto que cumprir bem sua função será tido como virtuoso. Deste modo, a virtude do homem consiste na plena realização da função que ele realiza e que o distingue dos outros animais inferiores, a razão. Sendo assim, o homem virtuoso realiza bem a sua natureza que lhe é intrínseca, a dimensão racional. Nesse sentido, a virtude é a perfeição da nossa própria natureza, e, a aquisição da virtude é a realização da natureza humana, pois aquela, a razão, se revela como o fundamento da causa final do homem.

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CAPÍTULO I

A possibilidade natural de aquisição da virtude moral

1. A natureza humana

O presente capítulo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a ética Aristotélica, considerada como uma ética da virtude. Diante de tal afirmação, a abordagem consistirá em compreender a noção de virtude a partir de duas indagações: a aquisição da virtude moral é possível? Por quê?

Ao expor tais questionamentos, a análise direciona-se para a seguinte questão, a saber: é possível que, através da natureza humana, possamos adquirir a virtude? Para responder esta questão é necessário buscarmos esclarecer o que é a natureza humana no pensamento de Aristóteles, uma vez que a aquisição da virtude é, segundo ele, o resultado de hábitos adquiridos na prática e que se tornam fundamentais para a construção da realização da natureza humana. Segundo o filósofo, a natureza humana, grosso modo, é a alma, com suas potências racional e não-racional.

Se para compreender a natureza humana devemos “olhar” para alma, no sentido de tentar entendê-la, é necessário saber de modo mais completo, o que Aristóteles diz a respeito da alma. Na Ethica Nicomachea, livro I, capítulo 13, o filósofo divide a alma em duas partes: uma racional e outra que se mostra não-racional EN I 13, 1102a27-281. Marco Zingano (2008, comentários, p. 85) interpreta que “a divisão da alma em parte racional e parte não-racional é expressamente atribuída a Platão” e que Platão corrigira a versão de Sócrates que anulava a parte não-racional da alma.

Zingano (2008, comentários, p. 85) complementa que “na linguagem antiga, não causa nenhum comprometimento falar em partes da alma; o que caracteriza uma ou outra posição é o modo como à alma é dividida em partes”, todavia, há algumas objeções sobre a divisão da alma por parte de alguns comentadores2. Por exemplo: é possível que a alma seja dividida em partes e ainda assim mantenha a

1

À abreviação EN diz respeito a Ethica Nicomachea e DA concerne ao De Anima ou Sobre a Alma.

2

Por exemplo: Dilmeier e Gauthier (ZINGANO, comentários, 2008, p. 90), Dilmeier propôs uma divisão em quatro partes, duas não-racionais e duas outras da racional, no entanto, Gauthier procurou mostrar que não há como distinguir a parte não-racional que obedece à razão por participação para a parte racional em si mesma.

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sua unidade? Antes de responder a esta pergunta, vejamos quais são as funções da alma segundo o filósofo.

No início do livro I do De Anima, a investigação procura identificar o que imprime o movimento nos seres vivos, de modo a se obter uma compreensão do que move o ser humano a realizar suas ações, uma vez que a nossa investigação consiste em entender o modo de agir humano, sobretudo, partindo do questionamento posto acima, por que é possível naturalmente adquirirmos a virtude moral. Afirma-se que “o movimento se dá por ação da alma” (DA I 4, 409b1-5) 3

, pois segundo Aristóteles, a alma tem a função de imprimir movimento ao corpo. Todavia, sobre tal movimento, há uma nítida distinção no que concerne ao movimento dos animais inferiores, e no que diz respeito ao movimento do homem.

Nesta perspectiva, as plantas “vivem manifestamente sem participar do movimento [da deslocação nem] da sensibilidade” (DA I5, 410b22-24). Elas possuem exclusivamente a parte vegetativa que se constitui especificamente no deslocamento de crescimento. Nas espécies de animais inferiores, o movimento de deslocamento é semelhante ao do homem, pois tais movimentos partem de um desejo constituído pela percepção, haja visto que tais animais inferiores não possuem o pensamento discursivo próprio da natureza humana. Deste modo, a alma, sendo a essência do ser animado, tem como finalidade realizar as potências características de cada ser, como as potências racional e não-racional, vegetativa, perceptiva, sensações, prazeres e dores, crescimento, perecimento e deslocamento, por exemplo. No entanto, no que diz respeito à natureza do homem, a alma realiza a potência que lhe é própria, a razão. Resta saber, no entanto, de que forma realizamos bem essa função que nos é própria.

Entender como o homem realiza bem sua função própria, diz respeito a apreender como o homem realiza bem sua faculdade racional, que é essencial na aquisição da virtude, como veremos mais adiante. Assim, segundo comenta Zingano (2008, comentários, p. 123) “cada coisa tem uma e uma única operação que lhe é própria ou a faz melhor do que qualquer coisa”, e, essa coisa ou função própria do homem é a razão. Zingano (2008, comentários, p. 123) ainda ressalta que “cada coisa que tiver uma função (operação), há uma virtude nela, a saber, fazer (operar)

3 Todas as traduções do DA serão citadas da obra: ARISTÓTELES, Sobre a alma. Trad. Ana Maria

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bem o que faz (opera)”. Está presente nesta abordagem, o conceito de teleologia que será mais bem explicitado a seguir. Assim, o indivíduo, para se tornar virtuoso, necessariamente deve realizar bem sua função própria. Por quê? Tal questão também ainda será abordada nesse capítulo.

1.1 Capacidade natural de aquisição da virtude moral

Assim, voltando ao questionamento apresentado inicialmente sobre a possibilidade dada por natureza de adquirirmos a virtude, Aristóteles argumenta que, por um lado, a virtude não é engendrada em nós por natureza, por outro, não é contrária à nossa natureza. Em suas palavras, “nenhuma das virtudes morais surgem em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza” (EN I 13, 1103a20)4

.

Para explicar o que disse, o filósofo dá como exemplo a pedra que, por natureza, se move para baixo e o fogo que não pode se dirigir para baixo, de modo que, ambos os movimentos não poderiam ser de outro modo.

Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza dirigir-se comporte de outra (EN II 1, 1103a20-25) 5.

Então, se a virtude não é natural, e tampouco contrária à nossa natureza, Aristóteles defende que podemos adquiri-la, pois, ao contrário dos exemplos citados acima, somos por natureza capazes de recebermos a disposição virtuosa ou viciosa: “não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito” 6

(EN II1, 1103a25-30). Aristóteles ainda afirma que

4 À abreviação EN diz respeito a Ethica Nicomachea que se trata da transliteração em latim que

significa Ética a Nicômaco, outra abreviação presente é DA que significa; De Anima.

5

A citação da Ethica Nicomachea é da tradução de Marco Zingano, assim como as demais citações presente no Tratado da virtude moral e comentários (I 13 - III 8). São Paulo: Odysseus, 2008.

6

Seguem-se os quatro pontos em que Aspásio entende por natureza (ZINGANO, 2008, p. 94-95): (i) o que sempre ocorre para algo, como o pesado, que se move sempre para baixo; (ii) o que não existe desde o inicio, mas que, com o tempo, ocorre nas mais das vezes, como o surgimento dos dentes; (iii) aquilo de que somos receptivos, como a saúde e a doença, contrários quanto ao corpo, e (iv) aquilo de que somos receptivos e para o qual temos uma propensão, como a saúde, em relação à qual a doença é contrária à natureza. A virtude não é natural, mas ao contrário daquilo que se

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“ademais, somos por natureza dotados de capacidade, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza” (EN II4, 1106a8-9). Deste modo, temos a capacidade natural de adquirirmos a virtude moral, o que é distinto de sermos naturalmente virtuosos ou viciosos.

Como diz Ross (1987, p. 198), a virtude “não é nem natural, nem inatural ao homem. Nascemos com uma capacidade para adquirir, mas esta capacidade deve ser desenvolvida pela prática”. Considerando que é possível que a virtude possa ser engendrada em nós, o hábito tem papel relevante, pois é necessária uma prática constante para que a virtude seja adquirida. Como argumenta Zingano (2008, comentários, p. 93), “Aristóteles reconheceria esta base natural, não da virtude moral, mas do hábito de onde provém a virtude”.

1.2 A faculdade desiderativa da alma

Partindo dos elementos acima tratados, para melhor compreender tal aquisição da virtude, far-se-á necessária uma reflexão sobre a abordagem do estagirita concernente à alma no livro I, capítulo 13, da Ethica Nicomachea, para tentar compreender os seguintes questionamentos: se a aquisição da virtude é possível, em qual parte da alma a razão pode operar sobre os desejos? E por que é necessário que a razão opere sobre os desejos?

Procuramos demonstrar que a parte em que a razão pode operar sobre os desejos concerne a faculdade desiderativa, que, mesmo pertencendo a parte não-racional da alma, mostra-se por participação capaz de “ouvir” a razão, assim, pode ser persuadida pela mesma para o melhor fim. Com isso, é relevante, uma análise sobre tal parte da alma.

A partir da análise da EN e do DA, a parte desiderativa comporta três modos fundamentais de desejar, a saber: impulso (thymos), apetite (epithumia) e querer (boulêsis). Por impulso entende-se “o que ocorre quando reagimos contra algo, particularmente contra uma injustiça” (ZINGANO, comentários, 2008, p. 88). O segundo é o desejo ligado ao que é agradável. O terceiro caso é tido como querer. Esse tipo de desejo, para Zingano, só ocorre em seres dotados de razão, por ser um

constitui como natural que tende sempre ser da mesma maneira, por outro lado por mais que não tenhamos a virtude constituída por natureza, temos a capacidade natural de adquiri-la.

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desejo que se engendra no homem envolvendo considerações e expectativas racionais, por exemplo, o desejo pela imortalidade.

É importante, como foi ressaltado, que no processo de aquisição da virtude a parte desiderativa participe de certo modo da razão. Mas, em que sentido a razão própria do homem participa da faculdade desiderativa? A razão está presente na faculdade desiderativa na medida em que concorda com o princípio racional, razão

prática da própria pessoa ou de outra pessoa e lhe obedece, como diz Aristóteles:

a apetitiva e, em geral, desiderativa participa de certo modo da razão, na medida que é acatadora e obediente, do modo como dizemos

prestar atenção à razão do pai e dos amigos, mas não do modo como

dizemos ter razão na matemática. A advertência e toda censura e exortação indicam que a parte não-racional é persuadida de certo modo pela razão. Se for preciso dizer esta parte é racional, será também dupla a parte racional: uma propriamente e em si racional, a outra como capaz de ouvir em certa medida o pai (EN I 13, 1102b31-32).

Nesta perspectiva, através da razão prática, a faculdade desiderativa participa da faculdade racional na medida em que é acatadora e obediente. A palavra grega

peitharkhikon em que Zingano traduz por obediência, concerne à ideia de “ouvir” a

outrem, todavia a parte não-racional se subdivide em duas, a vegetativa e a desiderativa, a parte racional que possui a razão em si mesma, também se subdivide em duas uma razão prática e outra teórica, assim a parte não-racional ouve a razão por participação, nesse sentido obediência significa prestar atenção a alguém em resposta aos seus conselhos7, ou seja, ser persuadido, sendo fundamental reconhecer por si mesmo que realmente se trata de algo bom e justo. Deste modo, se verdadeiramente condiz com algo moralmente bom e justo, nesse sentido a faculdade racional é necessária para que o que é dito bom seja apreendido como de fato algo bom.

Na citação anterior, Aristóteles faz uma distinção em prestar atenção à razão

do pai e dos amigos, com o modo como dizemos ter razão na matemática

(mathēmatikōn). Tal distinção se constitui no seguinte: o primeiro diz respeito a prestar atenção a outrem, a lhe obedecer, de modo que a obediência aqui tratada significa que o indivíduo é persuadido (peítho), não por que simplesmente as entendem, mas por estar convencido de que o que lhe é indicado é verdadeiramente

7 A abordagem sobre os conselhos se inicia na Ethica Nicomaqueia no livro VII e se estende até o

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um bem. Enquanto que a outra, a matemática, não reportar-se à persuasão, mas sim a demonstração, não se caracteriza pela obediência; mas, pelo entender, ou aprender intelectualmente um conceito.

No que concerne à razão do pai e dos amigos, trata-se de um discurso sobre as ações, e o que está envolvido nas ações nada tem de fixo. A respeito do discurso ético existe certa inexatidão, pois não há possibilidade de estabelecer um critério preciso como o do matemático, em sua área; ao contrário, é relevante determinar na circunstância da ação o que deve ser feito. A matemática visa o conhecimento teórico, independentemente das circunstâncias. Enquanto que a razão prática, mesmo necessitando da faculdade intelectiva própria do prudente, pertence às particularidades e circunstâncias das ações. Dessa forma, a ação moral se realiza numa esfera prática não definida, ao contrário da matemática que é uma ciência exata. Isto implica reconhecer que a faculdade desiderativa da alma mostra-se capaz de “ouvir” a razão, possibilitando que a virtude seja adquirida, ou seja, possa ser engendrada no indivíduo. Logo, a razão é capaz de persuadir o desejo. Para o filósofo, este processo receptivo comprovaria que o agente moral cumpre bem sua função própria.

A partir da Ethica Nicomachea livro I, capítulo 7, Aristóteles procura determinar se a felicidade é o melhor dos bens. Para tanto, ele argumenta ser desejável expor com mais claridade o que é a felicidade8. Deste modo, segundo ainda o Estagirita, para conseguir esclarecer o que é a felicidade, deve-se saber primeiro qual a função própria do homem. Saber qual é a função própria do homem é necessário para compreendermos de que forma o homem a realiza da melhor forma possível. Assim, Aristóteles argumenta que:

O viver, com efeito, parece também comum às plantas, e aqui buscamos o próprio. Devemos, pois, deixar de lado a vida de nutrição e crescimento. Seguiria depois a sensitiva, mas parece que também esta é comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, certa atividade própria do ser que tem razão. Que, por uma parte, obedece à razão, e por outra, a possui e pensa. (EN I 7, 1098a1-5)9.

8 Alguns tradutores como Devid Ross, traduz felicidade por “bem viver”. A definição de felicidade se

encontra na Ethica Nicomaqueia livro I, início do capitulo 13 “a felicidade é certa atividade da alma segundo perfeita virtude” (EN I 13, 1102a5). A felicidade é tida como algo perfeito e suficiente em si mesmo.

9

Esta citação é minha tradução da versão em espanhol: ARISTÓTELES, Ética Nicomáquea, Introducción por EMILIO LLEDÓ ÍÑIGO; Traducción y notas por JULIO PALLÍ BONET, Biblioteca clássica Gredos, 89; EDITORIAL GREDOS, S. A. Madrid, assim como, as demais citações, menos as

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A partir de tal passagem, Aristóteles distingue a função própria do homem, que diz respeito à razão. Para ele o viver é comum às plantas, a sensação é comum aos animais, no entanto, a capacidade de pensar é uma atividade própria do homem. A função racional é muito importante na possibilidade de se adquirir a virtude, uma vez que a razão tem a capacidade de orientar o desejo para o melhor bem. Na ação virtuosa, o agente moral deve necessariamente realizá-la bem.

O conceito de função própria expressa a concepção teleológica10 tão marcante na filosofia aristotélica. Tendo em vista que a função própria não se restringe propriamente ao termo moral, mas diz respeito ao objeto que de modo único realiza bem sua função, como diz Zingano (2008, comentários, p. 78):

os objetos cumprem certas funções, que são definidas como o que certo objeto unicamente realiza ou o que ele realiza do melhor modo; dentre os objetos de certo tipo, aos quais uma ou várias funções são atribuídas, aquele que exercer bem as funções que o caracterizam será tido um objeto virtuoso.

Aristóteles dá como exemplo o cavalo. A função do cavalo é correr e portar bem o cavaleiro. Deste modo, se houver tal cavalo que cumpre bem essa função, ele será tido como virtuoso. Nesta perspectiva teleológica, o agente tido como virtuoso necessariamente deve realizar bem sua função própria, a razão. Sendo, pois, a atividade racional própria do homem, a possibilidade de aquisição da virtude moral diz respeito ao homem realizar bem sua atividade própria que a distingue dos outros seres animados, a atividade racional, uma vez que a aquisição da virtude é a realização de sua própria natureza.

1.3 Relação entre conhecimento e prazer

Quanto à possibilidade de agir virtuosamente, o filósofo propõe que o desejo aprenda a desejar tal ação como um bem prazeroso. Conhecimento e prazer nas virtudes estão, em Aristóteles, extremamente ligados. Como diz Burnyeat (2010, p.165): “o aumento do prazer caminha de mãos dadas com a internalização do

traduções por Marco Zingano (2008), Tratado da virtude moral (I13 e III8), numeração, colunas e linhas da edição Bekker.

10

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conhecimento”, como cita por exemplo que ter a informação de que esquiar é prazeroso é totalmente diferente de experimentar por mim mesmo e nisso ter prazer.

Referente ao pensamento de Burnyeat na citação acima, ter simplesmente o conhecimento do que seja agir virtuosamente é distinto de obter o conhecimento de tal ação virtuosa e perceber por si mesmo na prática. Não basta somente à razão revelar o que seja bom, é necessária a prática, pois ela nos proporciona internalizar o desejo de que tal ação é boa através da própria ação, e conceber tal experiência por si mesmo é fundamental. Assim, saber o que é bom ou ser aconselhado por alguém para realizar o que é bom, praticá-lo e sentir prazer nisso, são essas as condições necessárias para o processo essencial de aquisição das virtudes. Para Aristóteles, concebemos o que é bom pelo uso adequado da razão.

Para Burnyeat (2010, p.167), no que concerne às ações virtuosas, trata-se de “aprender a praticar ações justas e nelas ter prazer em razão delas mesmas, isto é, por serem o que são, a saber, justas”. Nessa perspectiva de Burnyeat, o prazer se se torna uma questão relevante na ética Aristotélica.

Tendo em vista que a razão tem a capacidade de revelar o que é bom, é fundamental que o desejo possa ser persuadido por ela, pois o desejo segue somente em uma direção e, segundo o pensamento de Aristóteles, “nós naturalmente tendemos mais aos prazeres, por isso somos mais propensos à intemperança do que ao decoro” (EN II 8, 1109a15-16). Enquanto o desejo segue somente em direção do seu objeto de desejo, a razão está aberta aos contrários11, e, através da razão prática, própria do homem prudente. Essa faculdade tem a capacidade de determinar a mediania nas circunstâncias das ações, é um meio termo que entre a falta e o excesso na ação e na emoção.

Assim, é necessário que a razão opere sobre o desejo no sentido de engendrar a virtude do agente moral. Com efeito, o diálogo entre razão e desejo é fundamental para a aquisição da virtude moral, pois, enquanto o desejo se direciona a um fim, objeto desejável e segue somente nessa direção, a razão tem a finalidade de determinar os meios para atingir da melhor forma possível esse fim e avaliar se este fim é realmente um bem. A razão deve atuar sobre os desejos para que o desejo tenha como objeto de busca o que a razão revela como sendo bom, no

11 “as racionais, todas podem produzir elas mesmas os efeitos contrários, mas as irracionais se

(17)

entanto, procura-se a seguir qual o princípio da ação, o que imprime o movimento no agente moral.

É justamente no início do Livro I da Ethica Nicomaqueia, como também no De

Anima, que Aristóteles procura saber sobre o que imprime ao animal o movimento

de marcha, ou seja, o princípio do movimento. O filósofo argumenta que “este movimento, com efeito, dá-se sempre tendo em vista um fim, ocorrendo quer juntamente com a imaginação, quer com o desejo” (DA III 9, 432b15-16). Porém, não se sabe como o fim é estabelecido pela razão, e, como a razão pode aprender tal fim. Sabe-se apenas que o desejo move o agente em direção ao objeto desejado, e que a razão delibera sobre os meios tendo como finalidade realizar da melhor forma o objeto de desejo, nesse sentido o desejo se estabelece como principio da ação.

Concernente a tais questões, no início do Livro III, capítulo 10, do De Anima, Aristóteles argumenta que o desejo e o entendimento aparentam imprimir o movimento, deste modo, ambos são capazes de no mover espacialmente. O estagirita diz que “estas duas faculdades parecem ser, com boa razão, as que movem: o desejo e o pensamento discursivo prático” (DA III 10, 433a17-18), sendo que o objeto de desejo é o que move, e o pensamento discursivo, que delibera sobre os meios em vista do melhor fim, move por que seu princípio é o objeto de desejo.

Com isso, para o filósofo, o desejo tem grande importância, pois, no caso do virtuoso, deve-se desejar o que é bom, tendo em vista que o desejo é o princípio da ação. Todavia, antes de o agente ter uma atitude racional desenvolvida, é fundamental haver a educação dos desejos desde cedo para que a razão possa operar sobre os desejos e, nesta perspectiva, a virtude possa ser adquirida. Isso é possível através do hábito de ações nobres e justas como também com os conselhos e as leis, trata-se de educar o desejo a ter como objeto de busca o que a razão assevera como sendo bom.

Aristóteles argumenta que a prática de ações virtuosas desde cedo é bastante relevante no processo de aquisição: “não é coisa de somenos que desde a juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou melhor: tudo depende disso” (EN II 1, 1103b25). A esse respeito Burnyeat (2010, p. 156) afirma que

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uma vasta gama de desejos e sentimentos moldam padrões de motivação e resposta em uma pessoa muito antes de ela desenvolver uma atitude racional em sua vida, e certamente antes de ela integrar essa consciência reflexiva a seu comportamento efetivo.

Ainda segundo Burnyeat, Aristóteles enfatiza “a importância dos começos e do desenvolvimento gradual de bons hábitos de sentimento” (Burnyeat, 2010, p. 156). Com isso, o comentador estabelece duas dimensões fundamentais sobre a virtude: a dimensão cognitiva e a dimensão emotiva.

A essência do conflito moral se revela exatamente no desejo pelo, prazer, como é o caso do acrático que sabe o que é bom e age em sentido contrário. Ou seja, o problema da educação moral em Aristóteles consiste essencialmente em saber como a razão pode persuadir os desejos de tal sorte que o agente torne-se virtuoso. Nesta perspectiva, três elementos – hábito, conselhos e leis – são indispensáveis nesse processo de persuadir o desejo para a ação virtuosa, o que, em última instância caracteriza o processo de aquisição da virtude como veremos a seguir no próximo capítulo.

Tendo estabelecido que é possível adquirir a virtude moral, antes de tratar de sua definição, deter-nos-emos na explicação sobre o gênero da virtude moral. No início da EN II 4, Aristóteles delineia o caminho da sua investigação. O filósofo observa as partes dos estados que se geram na alma, a saber: as emoções, as capacidades e as disposições, de modo que possa obter uma resposta plausível sobre o gênero da virtude. (i) Para Aristóteles as emoções são sentimentos subjetivos, positivos ou negativos como: “apetite, cólera, medo, arrojo, inveja, alegria, amizade, ódio, anelo, emulação, piedade, em geral tudo a que se segue prazer e dor” (EN II 4, 1105b21-22). (ii) A capacidade é a concebida como “os estados em função dos quais dizemos que somos afetados pelas emoções: por exemplo, aqueles em função dos quais somos capazes de encolerizar-nos, afligir-nos ou apiedar-afligir-nos” (EN II 4, 1105b24-26). (iii) Já a disposição, concerne a “afligir-nos portamos bem ou mal com relação às emoções: por exemplo, com relação ao encolerizar-se, se nos encolerizamos forte ou fracamente, portamo-nos mal; se moderadamente, bem, e de modo semelhante com relação às outras emoções” (EN

(19)

Assim, as conclusões aristotélicas sobre o gênero da virtude parte do critério de eliminação. Se nem as virtudes nem os vícios são emoções, já que não se censura ou se elogia alguém em função das emoções, mas em função da ação virtuosa e viciosa, e, tampouco são capacidades, visto que, “nem nos dizemos bons nem maus pelo fato de sermos simplesmente capazes de ser afetados, nem elogiamos nem censuramos” (EN II 4, 1106b7-8). Deste modo, o filósofo conclui que o gênero da virtude é uma disposição (hexis) que por natureza é possível de ser adquirida. A disposição diz respeito ao caráter adquirido pelo hábito que dada a circunstância o agente moral pode agir de modo correto ou incorreto.

Concernente a tal gênero, Ross (1987, p. 200) afirma que:

A virtude não pode ser um sentimento semelhante ao apetite por prazer, à cólera, ao medo. Não consideramos os homens bons ou maus, não os censuramos ou elogiamos, por sentirem tais afecções; nem implicam escolha, nem são o manter de uma atitude, mas simples afecções passivas. Nem, por razões semelhantes, a virtude pode ser uma simples capacidade. Então, deve ser uma disposição resultante do desenvolvimento de uma capacidade, pelo exercício inerente a essa capacidade.

Ross também concorda que a virtude não pode ser nem um sentimento, nem certa capacidade, mas sim uma disposição e acrescenta que esta disposição tem íntima dependência com o resultado do exercício desta capacidade, mesmo que tenhamos a capacidade para tal virtude podemos adquiri-la somente pelo exercício.

1.4 Definição de virtude moral

Temos como finalidade desta pesquisa analisar o processo de aquisição da virtude moral, deve-se perguntar antes o que é a virtude e tentá-la compreender, pois acredita-se que não ficaria tão claro tratar de algo que não se tenha primeiro esclarecido o que ela é. Deste modo, faz-se necessário algumas considerações relativas à definição de virtude moral.

A definição de virtude moral dada por Aristóteles é a seguinte: “a virtude é, portanto, uma disposição de escolher por deliberação, consistindo em uma mediedade relativa a nós, disposição delimitada pela razão, isto é, como a delimitaria o prudente” (EN II 6, 1106b1107a1-2). Como veremos, a definição de

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virtude moral comporta cinco elementos fundamentais que expressam de forma sucinta o que é a virtude. Faremos uma breve exposição de cada um deles a seguir:

(i) Ela é uma disposição. E por disposição, entende-se o caráter que se engendra no agente moral em função do qual ele se porta bem com relação a suas emoções, ou pelo modo como ele sente prazer como e quando se deve. Afirma-se que a ação virtuosa é uma disposição, no entanto esta ação não se caracteriza apenas em escolher bem, mas escolher bem e agir bem conforme à boa escolha. Nesse sentido ser virtuoso diz respeito a escolher pelas razões corretas o ato virtuoso que se escolhe, escolher considerando o valor intrínseco da ação.

(ii) Ela é uma disposição que se constitui por meio de ações escolhidas por deliberação. Esse ponto diz respeito a algo relevante na ação virtuosa, sendo assim, a virtude é manifestamente voluntária12, pois o virtuoso consiste em fazer uma escolha em detrimento de outra, pelas razões corretas, ao contrário de quando somos coagidos a agir ou deixar de agir sem nosso consentimento. Como diz Pierre Aubenque (2008, p. 188) “A deliberação é, pois, condição sem a qual a ação humana não pode ser boa ação”. E Zingano menciona que (2008, comentários, p. 157), “a escolha deliberada é o que há de mais próprio ao valor moral de uma ação”, e, ressalta a intenção na ação, o fim (telos) pretendido.

O cerne da escolha deliberada evidência uma escolha com ponderações racionais. No entanto deliberamos, não sobre as coisas que ocorrem sempre do mesmo modo, mas que estão sujeitas às circunstâncias do momento, na particularidade da ação. A escolha deliberada refere-se às ações que ocorrem no mais das vezes, mas que não é possível prescrever como tal ação ocorrerá. A escolha deliberada é evidentemente o ato de pesar as razões desta escolha, e, consiste em um ato racional deliberativo.

Deste modo, deliberamos sobre os meios que possam ter como finalidade o melhor fim. Assim, a escolha deliberada concerne ao uso da razão, sendo que a escolha deliberada parte do fim estabelecido pelo desejo. Assim sendo, a escolha deliberada diz respeito aos meios que conduzem ao melhor fim. Ela concerne o que está em nosso poder, “por exemplo: queremos estar saudáveis; mas escolhemos deliberadamente que coisas nos tornarão saudáveis; queremos ser felizes e o

12

Há uma certa distinção entre escolha deliberada com o voluntário, Aristóteles cita que “as crianças e outros animais compartilham do voluntário, mas não da escolha deliberada” (EN III 4, 1111b8-9), isso por não ter a faculdade bem desenvolvida.

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declaramos, mas não é apropriado dizer que escolhemos deliberadamente sermos felizes” (EN III 4, 1111b27-30). Nesse sentido, deliberamos sobre as coisas que podem nos proporcionar a felicidade. A felicidade, como diz o filósofo na Ethica

Nicomachea Livro I, capítulo 13, trata-se do fim último.

Sobre a análise dos elementos (i) e (ii), temos que a virtude é uma disposição em escolher por deliberação, deste modo a questão é: Por que a disposição virtuosa é uma disposição de escolher deliberadamente? Entendemos que esta disposição virtuosa não provém apenas da prática de atos virtuosos, mas por escolher bem e agir bem segundo a boa escolha, ou seja, escolhidos deliberadamente, como diz Lucas Angioni (2009, p. 3) “a virtude é uma disposição não apenas para escolher bem, mas para escolher bem e agir bem conforme à boa escolha”.

(iii) A virtude moral é uma disposição que consiste em uma mediedade

relativa a nós, o meio termo se constitui no tocante à ação em que evita o excesso e

a falta. Assim, a mediania tem como característica a diferença específica entre o excesso e a falta. Uma vez que a mediania nas ações não consiste em uma medida quantitativa, pois deve ser considerada as circunstancias singular da ação que em nada tem de prescrito, diz respeito a um meio termo relativo a nós, e não concebido segundo uma proporção aritmética, deste modo Aristóteles diz: “se alguém comer dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinador prescreverá seis minas, pois isto talvez seja pouco ou muito para quem as receberá” (EN II 5, 1106a35-b5).

(iv) A disposição ou mediedade é delimitada pela razão, Sobre a abordagem do que se deve ser feito, considera-se que seja delimitado pela razão, se constitui o seguinte questionamento: por que a razão deve delimitar o que devemos escolher ou não, como se deve e quando? A razão tem a capacidade de analisar a circunstancia da ação, e encontrar a mediedade da ação, que se encontra na singularidade envolvida em cada contexto. Esta capacidade cabe ao homem prudente (phronesis), por isso passamos para o próximo ponto para tentar compreendê-lo, todavia, sobre isso Angioni (2009, p. 8) diz: “phronesis, o cômputo correto (orthos logos) de todos os fatores relevantes que devem ser considerados para realizar, em dada circunstância singular, o alvo certo e a intenção proposta pela virtude moral”.

(v) como a delimitaria o prudente, esse último ponto da definição da virtude, que concerne ao prudente, comporta uma singularidade na definição da virtude. O

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prudente possui certa sabedoria prática, tal sabedoria advém por ele aprender as razões de seu agir por sua própria capacidade racional. De acordo com Zingano (2008, comentários, p. 161) “Aristóteles analisa a racionalidade prática sobretudo como o ato de pesar razões rivais a partir de um fim posto (pela virtude moral)”. Considera-se nessa análise o ponto de vista do prudente que se constitui como um termômetro, que estabelece a medida, assim “o prudente é aquele que vê o que deve ser feito não só para si, mas também para outros” (Zingano, comentários, 2008, p. 161)13.

O papel do homem prudente é bastante enfatizado por Aristóteles na ação virtuosa, pois, para saber o que se deve ser feito, quando se deve, a quem se deve, como deve, em tais circunstâncias, deve-se, justamente adotar como critério a ação do homem prudente que pressupõe que perpassou pelo processo de aquisição da virtude de modo que está engendrado em sua natureza a virtude moral, tal disposição consiste em deliberar sobre os meios na circunstância em que a ação acontece que visam o melhor fim. O prudente possui a inteligência teórica como a sabedoria prática.

Assim, o prudente é definido da seguinte maneira: “que pesa razões rivais e, vendo a verdade nas circunstancias em que se produz a ação, decide-se por isto de preferência àquilo” (ZINGANO, comentários, 2008, p. 129).

Enfim, com este capítulo procurei fazer uma análise da ética aristotélica, realçando algo fundamental, a saber: a educação dos desejos constitui o processo de aquisição das virtudes, pois somos naturalmente capazes de adquirir a virtude, visto que o desejo é naturalmente capaz de ouvir o que a razão estabelece como sendo um certo bem. Também foi feita uma análise da definição de virtude moral, uma vez que será abordado o modo de aquisição da virtude moral no próximo capítulo. Assim, no próximo capítulo apresentarei uma investigação sobre como se constitui o processo de aquisição da virtude moral.

13

Esta análise evidencia que a ação ética de Aristóteles não se constitui por certo egoísmo, esta interpretação encontra-se também no pensamento de Dorothea Frede (2009, Richard Kraut e colaboradores). Esta questão é abordada no segundo capítulo, página 36.

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Capítulo II

Processo da aquisição da virtude moral

2. Conhecimento e Prática

Foi demonstrado, no capítulo anterior, que, por natureza, é possível adquirirmos a virtude moral, uma vez que esta, a virtude, não é natural nem contrária à nossa natureza. Ou seja, é possível que o desejo venha a ter como objeto de busca o que a razão assevera como sendo bom, de modo que desejo e razão estejam em harmonia. Neste capítulo, analisaremos a aquisição da virtude, tendo como objetivo responder à pergunta: como a virtude moral pode ser adquirida? Ou seja, quais os elementos que possibilitam que a virtude se engendre na natureza humana?

Ainda no capítulo anterior foi feito uma breve reflexão a respeito da relação entre conhecimento e prazer, e concluímos que ter o conhecimento do que seja agir virtuosamente é distinto de agir virtuosamente e perceber por si mesmo na prática que esta ação virtuosa realmente diz respeito a algo bom, com isso é relevante ao realizar essa ação virtuosa o conhecimento como também a prática, como veremos a seguir no processo de aquisição da virtude moral.

No entanto, para percebermos o caminho que iremos traçar nesse capítulo, far-se-á uma pequena análise no que diz respeito ao dilema que percorre todo o diálogo de Platão, Protágoras, em que Protágoras em diálogo com Sócrates, trata da seguinte questão, saber: a virtude pode ser ensinada? Que inicialmente no diálogo, para Protágoras a virtude pode ser ensinada, por outro lado para Sócrates a virtude não pode ser ensinada, ao percorrer mais adiante no diálogo percebe-se que ambos mudam de opiniões como veremos a seguir.

No início do diálogo, Protágoras, ao se dirigir a Hipócrates, defende que a virtude pode ser ensinada: “jovem, no caso de frequentares minhas aulas, desde o primeiro dia de conversação retornarás para casa melhor do que era, o mesmo acontecendo no dia seguinte e nos subsequentes” (PROTÁGORAS, 318a)14

. Protágoras afirma que ele pode tornar bons os cidadãos. Nesse sentido, um dos

14

Esta tradução é de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1970. A referência completa se encontra nas referências bibliográficas.

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pontos fundamentais, na visão de Protágoras quanto à educação é o conhecimento (PROTÁGORAS, 349a) e o fato de que a virtude pode ser ensinada. Mas, no decorrer do diálogo, contrapondo-se à sua primeira argumentação, Protágoras afirma que “o homem, embora conhecendo o bem, não se decide a praticá-lo, por encontrar-se dominado pelo prazer do momento” (PROTÁGORAS, 355a). Assim, somente o conhecimento não seria suficiente no que se diz respeito ao agir bem, uma vez que, quando arrastado pelo prazer, ele realiza algo contrário do que é tido como o bem.

No final do diálogo, tanto Sócrates quanto Protágoras parecem mudar de opiniões, pois Sócrates começa por negar a possibilidade de ensinar a virtude e por fim afirma que é possível e Protágoras, que de início defende que a virtude pode ser ensinada parece argumentar diferente do que tinha se comprometido inicialmente. Ao contrário de Sócrates, o que se pretende mostrar é que, segundo Aristóteles, a virtude não é ensinada, mas adquirida através do hábito, da prática de ações virtuosas, pois somente assim, a virtude se engendra na natureza do agente moral. O conhecimento do que é o bem é necessário, mas não suficiente.

Assim, neste capítulo, contrapondo-se ao intelectualismo de Sócrates, que defende que o conhecimento por si só é suficiente para o agente moral se tornar bom, demonstraremos que a aquisição da virtude a partir do pensamento aristotélico se constitui através do hábito, de uma prática constante de ações virtuosas, contando também com a contribuição dos bons conselhos e das leis nobres e justas. Aristóteles se coloca contrário ao intelectualismo socrático, mas ele não descarta a função do elemento racional. Pelo contrário, para o filósofo a razão é relevante na ação, pois ela tem a capacidade de revelar o que é bom, mas a mesma deve estar em harmonia com o desejo. Para ser atuante no direcionamento das ações.

Assim, a visão aristotélica sobre a aquisição da virtude decorre não do fato de saber o que é correto realizar, o que não deixa de ser importante no agir ético, mas tal aquisição resulta, sobretudo, do hábito de agir virtuosamente, do praticar atos justos e nobres. No processo de aquisição da virtude, a supremacia do hábito é relevante quanto aos conselhos e às leis que são importantes, porém em menor grau, veremos que é principalmente pelo hábito de ações virtuosas que a virtude se engendra no caráter do agente moral.

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2.1 A razão persuade o desejo

Para Aristóteles, o agente moral é movido por um desejo, sendo que tal desejo segue somente na direção do objeto de busca com o objetivo da realização do desejo. A razão, por sua vez por estar aberta aos contrários, no que diz respeito ao que é “bom” e “mau”, apreende os bons meios e fins para tal realização. Com isso, ao perguntar: Como a virtude moral pode ser adquirida? Procura-se investigar o seguinte: quais os elementos que favorecem a aquisição da virtude para que a razão possa operar sobre os desejos de tal modo que o desejo tenha em vista o que a razão lhe revela como bom? Saber que operações racionais podem operar sobre o desejo, nos fará retornar a abordagem feita no capítulo anterior, referente à parte desiderativa.

No processo de aquisição da virtude moral, a criança que não tem sua razão desenvolvida de modo que não pode deliberar sobre a ação correta, tende somente para seu objeto de desejo. Por isso, a criança necessita ser educada por uma razão externa, a dos pais, por exemplo. Isso para que ela não adquira uma disposição viciosa.

Se o agente moral procura seguir os seus desejos em busca de prazer, excluindo uma educação moral que o conduza a agir virtuosamente, ele pode se tornar um intemperante. Por isso, o indivíduo deve ser educado para que o desejo tenha como objeto de busca o bem e com isso tenha prazer. Para realizar esse processo de educação do desejo, é necessário uma razão que oriente o indivíduo para a boa ação, porém tal processo não é suficiente, pois não basta somente saber como se deve agir bem, é preciso também para que o indivíduo se torne virtuoso a prática constante da ação virtuosa mediante o hábito e nisso sinta prazer, pois através desta prática constante de ações nobres a disposição virtuosa é engendrado em sua natureza.

A partir desta linha de reflexão, considera-se que o prazer não é excluído da ação virtuosa, visto que o virtuoso necessariamente sentirá prazer ao realizar tal ação. No entanto, deve-se sentir prazer quando e como se deve, tal como o virtuoso sentiria.

Mas para que a razão opere sobre o desejo é necessário que através da razão, a parte desiderativa que é em si mesma não-racional, participe da faculdade racional, podendo lhe ser obediente ao seguir o que esta lhe revela como sendo o

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bem. Para isso, é necessário que ocorra um processo de aquisição da virtude que é perpassado por três elementos: o hábito, os conselhos e as leis, uma vez que os três elementos sejam considerados bons.

2.2 Educação para aquisição da virtude moral

Desejar o que a razão revela como sendo bom e deliberar sobre os melhores meios que visam esse fim concerne ao processo de aquisição de virtude em que o virtuoso escolhe a ação pelo seu valor intrínseco e nisso sente prazer. Para tanto, seguiremos primeiramente a análise sobre o tratado da virtude moral que se inicia no Livro I 13, sendo finalizada no Livro III 8, da Ethica Nicomachea, algumas reflexões do Livro V, como também do Livro X 9, em que Aristóteles argumenta sobre a lei que juntamente com o hábito e os conselhos, favorece a realização do processo de aquisição da virtude.

O estagirita classifica as virtudes em duas dimensões, a saber: uma que diz respeito à parte racional, as virtudes intelectuais (dianoéticas), que “tem gênese e aumento em grande parte pelo ensino” (EN II 1, 1103a14), e outra, concernente a parte não-racional, as virtudes morais, essas são engendradas no agente moral através do resultado do hábito de ações virtuosas.

Assim, a aquisição da virtude implica três elementos fundamentais: (i) hábito

(Ethos) de ações virtuosas constantes, (ii) bons conselhos (Boulê) e (iii) leis (Nomos). Estes elementos a partir dos quais podemos adquirir a virtude moral

constituem um processo a partir do qual a razão, que tem a capacidade de revelar o que é bom, possa persuadir o desejo para que este tenha como objeto o que é tido como bom e sinta prazer com isso; de modo que se estabeleça uma harmonia entre razão e desejo própria do virtuoso. Esse processo de aquisição das virtudes morais pode ser denominado como educação do desejo, ou seja, trata-se de educar o desejo para o verdadeiro bem. Façamos agora a análise dos três elementos citados a partir dos se estabelece tal processo.

(i) Quanto aos elementos citados acima, o hábito é o mais importante no que concerne o engendramento da virtude moral. Ele cumpre um papel relevante, pois, através dele, o desejo é educado para que tenha sempre em vista o que é bom/correto. Uma vez que o agente moral é movido pelo desejo, o hábito tem a função de estabelecer uma maneira de agir virtuosamente constante, de modo que

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tal agente crie uma disposição que consiste em ter prazer com o que se deve como se deve e quando se deve. O “como” e “quando” estão explicitamente ligados às circunstâncias das ações. Não há regras pressupostas de como e quando se deve agir moralmente, por isso é necessário o processo de aquisição da virtude moral, para que o agente adquira a disposição de deliberar sobre os meios que tendem ao melhor fim, como é próprio do homem prudente, todavia, para adquirir tal disposição o agente deve realizar uma prática constante de boas ações, o que exige tempo e experiência.

Assim, a virtude se estabelece em uma prática constante de boas ações. Adquirimos a virtude por tê-la efetivamente praticado, tal como os construtores e citaristas, que se tornam bons construtores construindo e bons citaristas tocando a cítara. Do mesmo modo, o filósofo defende que assim também se constitui com o modo de agir virtuosamente; aprendemos a ser justos praticando atos justos, a ser temperantes praticando atos temperantes e igualmente com a coragem:

os homens tornam-se construtores construindo casas e tornam-se citaristas tocando cítara. Assim também, praticando atos justos, tornamo-nos justos; praticando atos temperantes, temperantes; praticando atos corajosos, corajosos (EN II1, 1103a33-II1, 1103b1).

Com isso, Burnyeat (2010, p. 160) diz que, “em ética, o modo apropriado para ao menos alguns pontos de partida é a habituação” 15

, ou seja, para iniciar o processo de aquisição é necessário ter como ponto de partida o hábito de ações tidas como boas. Logo, ele completa que:

(...) aprendemos (passamos a ver) o que é nobre e justo não por experiência de uma série de instâncias ou indução a partir destas, nem por intuição (intelectual ou perceptiva), mas aprendendo a fazer coisas nobres e justas, habituando-nos a uma conduta nobre e justa (BURNYEAT, 2010, p. 160-161).

15 Para Burnyeat, trata-se da “nossa habilidade de internalizar, a partir de uma gama dispersa de

casos particulares, uma atitude avaliativa geral que não é redutível a regras e preceitos. É com esse processo em vista que ele enfatiza, em I 4, que os princípios ou pontos de partida necessários (que argumento serem as ideias corretas acerca de que ações são nobres e justas) não estarão disponíveis a qualquer pessoa que não tenha sido criada segundo os bons hábitos“ (BURNYEAT, 2010, p. 159).

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Essa prática de se habituar a realizar atos nobres e justos, citada, possui uma dimensão fundamental. Esta prática é essencial para a aquisição da virtude, que engendra no agente moral a disposição juntamente com a capacidade de escolher o melhor fim. Esta capacidade cognitiva acompanha todo o processo de aquisição no qual aprendemos o que é nobre e justo. Como cita Burnyeat (2009, p. 163): “o objetivo último da virtude a que visa a prática do iniciante é que se torne o tipo de pessoa que faz coisas virtuosas com pleno conhecimento daquilo que faz, escolhendo fazê-las em razão delas mesmas”. Nesse sentido, a prática proporciona ao agente moral uma maneira de agir em que ele perceba o valor intrínseco da virtude, por ser ela nobre e justa, proporcionando ao agente uma experiência e nisso sinta prazer.

Através da prática a virtude é engendrada no indivíduo, o que é evidente se compararmos com o exercício da percepção. Pois os sentidos são dados por natureza e exercendo ou não existem tais quais eles são: “não adquirimos as faculdades sensitivas por ver frequentemente, mas, inversamente, tendo-as, exercemo-las, e não: exercendo-as temo-las” (EN II 1, 1103a29-3). Ao contrário dos sentidos, as virtudes se adquirem pelo hábito, que exige experiência e tempo. O hábito é o ponto-chave de formação do caráter, pois, como argumenta Aristóteles, “o que é preciso aprender para fazer, isto aprendemos fazendo” (EN II 1, 1103a32-33). Nesse sentido, a prática cumpre uma função relevante, tanto no aprendizado das técnicas, quanto na aquisição da virtude, pois ela educa o agente moral a ter percepção e sensibilidade morais sobre o que é correto; deste modo, a prática constantes educa tanto a razão como o desejo. A razão para deliberar sobre os meios que visam o melhor fim e o desejo para ter como objeto de busca o que a razão revela ser bom.

Ademais, o filósofo afirma que tais “disposições originam-se das atividades similares” (EN II1, 1103b21-22). Nesse sentido, Aristóteles cita uma questão que nos parece em certo momento contraditória, “pode-se questionar em que sentido afirmamos que, para tornar-se justos, os agentes devem praticar ações justas e, para tornar-se temperantes, devem praticar ações temperantes, pois, se praticam ações justas e temperantes, são já justos e temperantes” (EN II 3, 1105a17-20 ), ou seja, como podemos agir virtuosamente se não somos naturalmente virtuosos?

(29)

A respeito de tal problema, o filósofo responde que a ação similar é como se fosse uma ação virtuosa (EN II 3, 1105b1-17), ou seja, “pode ser feito acidentalmente ou sob a instrução de outra pessoa” (ZINGANO, 2008, p. 111). Assim, a ação similar não é propriamente uma ação virtuosa, ela refere-se a uma ação que é tida como virtuosa, mas não nas condições de agir virtuosamente, a ação similar poder ser feita sem o agente moral entender o porque de agir de tal modo, como no caso das crianças. No que concerne ao agir virtuosamente, é razoável saber quais as condições de agir de tal modo, tendo em vista que não se trata de estabelecer preceitos, como se fosse um tipo de cartilha para agir bem, pois a ação moral diz respeito apenas ao contingente e à particularidade de cada ação.

Deste modo, Aristóteles argumenta na EN II 3, 1105a30-35 que agir virtuosamente pressupõe três condições (i) eàn eidos traduzido por “quando sabe”. Este saber proporciona ao agente moral conceber o valor intrínseco da ação em determinadas circunstâncias (ii) epeit’ eàn proairoumenos, kaì proairoumenos di’

auta, se traduz por “quando escolhe por deliberação, e escolhe por deliberação

pelas coisas mesmas”. (iii) eàn kaì bebaíōs kaì ametakinētōs ékhōn práttē, quando age portando-se firme e inalterável. Assim, segundo o filósofo, as condições pelas quais se constituem uma ação virtuosa são caracterizadas por estas três condições.

Há sobre a primeira condição que concerne ao termo eidos traduzido por saber certas divergências por parte de alguns comentadores ao interpretar em que tipo de saber se refere Aristóteles. Na reflexão de Zingano, a maioria dos comentadores supõe que se trata do conhecimento das circunstâncias; nesta perspectiva, entende-se que se trata de um “saber” prático, próprio do homem prudente que delibera bem sobre os meios que conduzem ao fim.

A segunda, a escolha deliberada, consiste em um ponto fundamental de ética Aristotélica, pois se estabelece em tal termo fazer um bom uso da razão, todavia, o agente moral deve escolher deliberadamente os meios que visam o melhor fim. O termo prohairésis, diz respeito à escolha deliberada pode ser traduzido por “escolha” e “decisão”.

A terceira condição, diz respeito a agir de modo firme e inalterável, nesta condição o filósofo enfatiza a estabilidade da disposição na qual é engendrada na natureza humana. Parece estabelecer certa inalterabilidade no que diz respeito a esta disposição que é engendrada na natureza humana, como se fosse uma segunda natureza, difícil de ser alterada.

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A ação similar, por mais que seja tida como virtuosa, o agente moral ainda não adquiriu a virtude. Uma criança pode agir virtuosamente, mas não deliberadamente com sua capacidade racional, uma vez que tal capacidade ainda não está desenvolvida, capacidade esta própria do homem adulto.

Todavia, nesse processo de aquisição, além do hábito, os conselhos e as leis, cumprem uma função efetiva do estado do agente ainda não virtuoso ao outro propriamente virtuoso.

(ii) Quantos, aos conselhos é preciso dizer o que se segue. O processo de aquisição da virtude moral é importante, principalmente quando diz respeito às crianças. Referimo-nos às crianças por dois motivos:

Primeiramente, por pressupor que elas não tenham sua capacidade racional desenvolvida, não possui ainda uma competência de deliberar sobre o que é o melhor dadas as circunstâncias, uma vez que os seus desejos seguem somente em uma direção, ao objeto de desejo, sendo necessária uma razão externa, como os conselhos dos mais velhos e adultos, por exemplo, que aconselham sobre o que se deve ou não fazer.

Em segundo lugar, por elas ainda não terem uma disposição virtuosa ou viciosa engendrada em sua natureza, por não terem a razão bem desenvolvida para escolher corretamente, é necessário aconselhá-las a realizar a ação tida como boa, de modo que ela sinta prazer com o que se deve e desgoste do que se deve, tendo em vista que elas possam em certo momento descobrir por si mesmas que se trata de algo realmente bom.

Com isso, a obediência16 da parte desiderativa à razão se constitui na medida em que ela é acatadora, ou seja, quando dá atenção ao que é tido como correto realizar. No caso da criança, que é orientada por uma razão externa, é importante ressaltar que em certo momento, ela pode reconhecer por si mesma que fato se trata de uma ação boa e prazerosa.

Ao defender que os conselhos possibilitam a aquisição da virtude moral, deve-se ter em vista que são bons conselhos. Nesta perspectiva, prestar atenção ao que é tido como bom é necessário, porém não é suficiente, pois o indivíduo necessita praticar a ação virtuosa e internalizá-la como sendo boa. Deve-se ouvir o

16 Segundo Zingano (2008, p. 90), os gregos ligam a obediência à capacidade de ser persuadido pela

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que se diz como sendo bom e praticar constantemente para que a virtude se engendre na natureza do agente moral.

No Livro I, capítulo 4, o filósofo cita o verso de Hesíodo, que diz o seguinte:

O melhor de todos os homens é o que por si mesmo com- [preende todas as coisas; É bom, também, o que faz caso ao que bem lhe aconselha; Mas o que nem compreende por si mesmo nem o que escuta a

[outro Retém em sua mente, este, em contrapartida, é um homem inútil. (EN I 4, 1095b10-14)

Esta citação é antecedida na Ethica Nicomachea com uma reflexão em que Aristóteles ressalta, compartilhando com Platão, que para ouvir as coisas boas e justas, e em suma, as coisas que dizem respeito à política, é necessário ser previamente bem educado por bons hábitos. Essa educação facilita a aquisição da virtude, pois tal agente terá um ponto de partida até que ele saiba o porquê de agir de tal maneira. Ter este porquê significa dizer que o agente moral possui certa familiaridade com a boa ação, uma vez que ele já tenha sido educado através delas. Com isso a educação em bons hábitos favorece para que ele tenha por si mesmo o conhecimento do que se deve fazer e a realize, ao contrário do intemperante ou acrático que sabe o que é correto e segue o contrário.

Aristóteles, para demonstrar a importância de ouvir o que é pronunciado, prestar atenção a alguém com experiência em agir conforme o que se deve ou não, cita o verso de Hesíodo, em que são expostos três atributos concernentes ao homem. O primeiro é descrito como o melhor de todos os homens, por ter adquirido uma capacidade que lhe proporcione compreender tudo a respeito das coisas. Neste caso, ele compreende por si mesmo, por possuir a experiência de saber o que é apropriado em cada momento. O segundo é tido como bom por ouvir ao que bem lhe aconselha, este presta atenção aos bons concelhos, pois não possui experiência suficiente para agir bem, mas reconhece tal deficiência e deixa-se guiar por aqueles que a têm. O último, por sua vez, não possui experiência do agir bem, no entanto, não reconhece que necessita de tais conselhos; assim, por não possuir tal experiência nem dar ouvido aos bons conselhos, esse é tido como inútil.

Sobre os homens que aconselham, considera-se que possuam experiência e prática, e saibam deliberar da melhor forma, visando o bem a que toda ação deveria

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