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O Direito Civil Constitucional: proposições para a autenticidade, dignificação e ontologização do Direito Civil

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Academic year: 2021

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Cleyson de Moraes Mello1 RESUMO: A Constituição de 1988 representa uma mudança de paradigma no Direito

brasileiro. A partir dessa mudança de modelo, é necessário investigar a realização do Direito, a partir da tutela da dignidade da pessoa. O Direito, alinhado à hermenêutica filosófica, assume, pois, um viés transformador. Daí a necessidade de compreender o Direito a partir do sernomundo. O pensamento jurídico não pode ser concebido a partir de um predomínio causado pelos limites da razão e edificado com os poderes da racionalidade abstrata. É, nesse sentido, que, em face da flagrante inefetividade da hermenêutica clássica, originariamente metodológica, torna-se necessária a cons-trução de uma resistência teórica que aponte à conscons-trução das condições de possibi-lidade da compreensão do Direito, como modo de ser no mundo.

Palavras-chave: Direito, Dignidade humana, Ser no mundo, Dasein.

ABSTRACT: The Constitution of 1988 represents a change of paradigm in the

Bra-zilian law. From this change of model, it is necessary to investigate the performance of duty, from the protection of the dignity of the person. The Right aligned to the philosophical hermeneutics is therefore a bias processor. Hence the need to under-stand the law from being-in-the-world (In-der-Welt-Sein). The legal thought can not be designed from a predominance caused by the limits of reason and built with the power of abstract rationality. It is in this sense that, given the striking ineffectiveness of classical hermeneutics, methodological in its origin, it is necessary to construct a theoretical strength that points to the construction of the conditions of possibility of understanding the law, as a way of being-in-the-world.

Keywords: Right, Human dignity, being-in-the-world, Dasein.

1 Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; Professor de Direito Civil, Hermenêutica e Introdução ao Estudo do Direito (Pós-Graduação e Graduação) UNESA, UNISUAM e UNIPAC (Juiz de Fora-MG); Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.

O Direito Civil Constitucional: proposições para

a autenticidade, dignificação e ontologização do

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1. IntRODUçãO

No Brasil, a importância do Direito Civil-Constitucional despontou com um artigo de Maria Celina Bodin de Moraes, publicado em 1991, intitulado precisamente ‘A Caminho de um Direito Civil Constitucional’ (MORAES, 1991 apud NEGREIROS, 2002, p.63). Outro texto paradigmático é o artigo “Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil”, de Gustavo Tepedino (TE-PEDINO, 1999, p.1-22).

O Código Civil de 1916, fruto das doutri-nas individualistas e voluntaristas, tinha como seu valor fundamental o indivíduo (Código de Napoleão). Naquela época, as pessoas ti-nham por finalidade precípua desmantelar os privilégios feudais, ou seja, queriam negociar e manter relações jurídicas comerciais com maior grau de liberdade e autonomia. Daí que o Código Civil era tido como a Constituição do direito privado. Tal diploma legal era tido “como estatuto único e monopolizador das relações privadas”. (Ibid., p.3).

A estabilidade e a segurança do Códi-go Civil de 1916 começa a declinar a partir dos anos 20, já que ocorre uma intervenção cada vez maior do Estado brasileiro na eco-nomia (época da eclosão da Primeira Grande Guerra). A partir de então, a dogmática civi-lística não mais atendia aos anseios sociais e o Estado legislador passou a publicar leis extravagantes, muitas em dissonância com os princípios basilares do Código Civil de 1916. (Ibid., p.4).

A partir dos anos 30, o nosso Código Civil de 1916 já tinha perdido seu caráter exclusivo de regulador das relações interprivadas. A le-gislação extravagante, em consonância com a evolução econômica, disputava ‘pari passu’ a importância na sua aplicação. Nesta época de-vemos destacar, também, a política legislativa

do Welfare State – fenômeno do dirigismo contratual (Constituição de 1934). (Ibid., p.6).

A partir da Constituição brasileira de 1946, o Código Civil perde definitivamente seu papel de Constituição do direito privado. Os princípios constitucionais passam a ter maior relevância e influência na exegese dos temas relacionados ao direito privado, “a fun-ção social da propriedade, os limites da ati-vidade econômica, a organização da família, matérias típicas do direito privado” ganham proeminência na nova ordem pública consti-tucional. (Ibid., p.7).

Essa publicização do direito civil atinge seu ápice com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, “valorado e interpretado juntamente com inúmeros diplomas setoriais, cada um deles com vocação universalizante. – Era dos Esta-tutos”. (Ibid., p.8). Daí que o direito privado é nominado de direito privado socializado, publicizado, constitucionalizado ou despatri-monializado, no sentido de maior relevo para a realização da personalidade e a tutela da dignidade da pessoa humana, nortes da nova ordem constitucional brasileira. Os princípios e valores constitucionais ganham proeminên-cia no processo de interpretação e aplicação do Direito.

Com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002, ganham destaque as cláusulas gerais e os direitos da personalidade. As cláusulas gerais devem ser interpretadas em harmonia com os princípios fundantes da Constituição da República, já que o intérprete jurídico deve colorir a exegese civilística com os matizes axiológicos da principiologia constitucional. Nesse momento, os valores civilísticos de ín-dole liberal devem ser mitigados pelos valores coletivos de solidariedade e justiça social.

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Código Civil de 2002, devem ser interpretados em sintonia com as cláusulas constitucionais protetivas da personalidade, quais sejam:

dignidade humana como valor fundamental da Constituição da República (art.1o, III, da

CRFB/88) e igualdade substancial (art. 3o, III,

da CRFB/88).

Na esteira da filosofia existencialista (Heidegger, Sartre, Jaspers), a personalidade humana deve ganhar status de valor jurídico de cunho existencialista, já que esta não pode ficar aprisionada ao rol de direitos subjetivos típicos adotado pelo Código Civil. Daí a im-portância do entrelaçamento principiológico entre o direito civil e os direitos humanos.

A personalidade jurídica não pode ser considerada como um reduto do poder do in-divíduo, mas sim “como valor máximo do or-denamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade”. (TEPEDI-NO, 2002, p.XXV).

Nesse sentido, o autor fala de uma verda-deira “cláusula geral de tutela e promoção da

pessoa humana”, tomada como valor máximo

pelo ordenamento. Vejamos as suas lições:

Cabe ao intérprete ler o novelo de direitos introduzidos pelos arts. 11 a 23 do Có-digo Civil à luz da tutela constitucional emancipatória, na certeza de que tais diretrizes hermenêuticas, longe de apenas estabelecerem parâmetros para o legisla-dor ordinário e para os poderes públicos, protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade econômica privada, informando as rela-ções contratuais. Não há negócio jurídico ou espaço de liberdade privada que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional. (Id., Ibid.)

É nesta linha de pensamento que a per-sonalidade jurídica não pode ser considerada

somente como a aptidão de ser titular de

di-reitos e deveres, conforme prescreve o artigo 1o do Código Civil, ou seja, considerada como

sinônimo de capacidade jurídica. Ao contrá-rio, a compreensão da personalidade jurídica deve se dar em duas vertentes: a primeira, como a possibilidade de ser sujeito de direitos e deveres e a segunda, e mais relevante, como o sentido existencial do próprio ser humano, visto como valor fundamental de nosso orde-namento jurídico. Neste caso, é o princípio da dignidade da pessoa humana ressoando em sua mais nobre originalidade.

Assim, destaca-se a importância dos estu-dos avançaestu-dos de hermenêutica jurídica e Di-reito Civil-Constitucional, uma vez que aquela deixa de ser considerada como hermenêutica de orientação metodológica-científica (modo de conhecer) para ser estudada como herme-nêutica ontológica (modo de ser).

2. A COnCEPçãO DA RElAçãO jURíDICA ObRIgACIOnAl

A partir desse novo locus hermenêutico, a obrigação jurídica deve ser compreendida como a realização do Direito, inserida no seu contexto histórico-cultural, ou seja, a ideia de relação jurídica obrigacional deve estar em harmonia com os direitos fundamentais, com vistas à repersonalização da pessoa. É a tutela de interesses patrimoniais (credor e devedor) em sintonia com os cânones da tutela da digni-dade da pessoa humana.

É a percepção das relações obrigacionais adornadas aos elementos de uma sociedade de risco (Ulrich Beck), a uma sociedade pós-mo-ralista (Gilles Lipovetesky), a uma sociedade pós-moderna etc. Estamos diante de um novo amálgama econômico-social: e-mails, mundo cibernético, moeda virtual, home-internet

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bankings etc. Daí a necessidade de uma nova

racionalidade, isto é, a necessidade de (re) pensar o Direito à luz deste novo contexto sociocultural, já que a dogmática jurídica tradicional se encontra fincada na concepção clássica de “sujeito de direito”. É o fenôme-no obrigacional atrelado à relação sujeito-objeto (S  O). O superendividamento é um exemplo da necessidade de (re)pensarmos a relação jurídica obrigacional a partir da superação da relação sujeito-objeto, ou seja, é uma nova racionalidade jurídica a partir de uma perspectiva ontológico-existencial. (MELLO, 2006). Neste contexto, a relação jurídica obrigacional é adornada por um sen-tido de cooperação entre credor e devedor com vistas ao adimplemento da obrigação. Frise-se: é a superação do esquema sujeito-objeto de índole liberal-individualista em direção a uma relação jurídica sujeito-sujeito que traduza relações jurídicas de intersubje-tividade (S  S). É a humanização do Di-reito em detrimento da ideologia privatística oitocentista.

Ora, é a concepção de sujeito de direitos (credor e devedor) alinhada ao mundo da vida ou mundo vivido. É o interfaceamento do fenômeno obrigacional com a ideia de ser no mundo (Dasein, na concepção heidegge-riana). Melhor dizendo: é a possibilidade de análise do fenômeno obrigacional a partir de suas vicissitudes totalitárias concretas no mundo da vida. É a relação jurídica obriga-cional ajustada a uma nova dinâmica social de interrelação humana vista a partir de suas especificidades concretizantes. É o Direito inserido na pós-modernidade.

É justamente por isso que os operado-res do direito precisam ajustar a dogmática jurídica ao novo, ao efêmero, ao poder ser, à diversidade, à diferença, ao pluralismo, bem como enfrentar as relações jurídicas civilísticas (incluindo as relações entre

cre-dor e devecre-dor) a partir de sua dinamicidade espaço-tempo cultural.

3. UM nOvO POntO DE vIStA EPIStEMOlógICO

É necessária a superação de algumas con-cepções tradicionais do pensamento jurídico civilista, bem como a análise do fenômeno jurídico a partir de aproximações com a her-menêutica constitucional.

A dogmática jurídica civilista não pode ficar fundamentada em premissas imutáveis, inquestionáveis, postas a partir do texto legal como único ponto de partida (em distonia com o texto constitucional). O Direito deve ser concebido como um sistema fechado em si mesmo, o qual por si só impossibilita a sua evolução.

É dessa forma que o Direito ainda se en-contra amparado no paradigma epistemológico da filosofia da consciência e na subjetividade. Observa-se a entificação do Direito. Este deve restar harmonioso com o modo de ser no mun-do.

O pensamento jurídico não pode ser conce-bido a partir de um predomínio imposto pelos limites da razão e edificado com os poderes da racionalidade abstrata. A transcendência exis-tencial torna-se uma alavanca de evolução da ciência jurídica.

O pensamento jurídico civilista não pode ficar adstrito a um sistema de pretensão abso-luta, isto é, à pretensão do Código Civil bastar a si mesmo, de ser completo, fechado, de ter tudo. Isso quer dizer que o direito não pode ser explicado a partir de uma relação sujeito-objeto, em que se instaura a subjetividade do sujeito com a objetividade do objeto.

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relação sujeito-objeto, do subjetivismo, é a busca do homem em sua essência, como pos-sibilidade e modo de ser no mundo, ou seja, é o caminho em direção a uma humanização do Direito Civil. É o caminho para a (de)sen-tificação do Direito, já que um ente não pode fundar os entes. É a partir da hermenêutica como modo de ser no mundo que o Direito deve procurar caminhar por uma área de va-lores humanos peculiares, subtraídos à lógica formal do direito positivo.

O Direito é um sendo, é um acontecer, é uma abertura de possibilidades. O ser deve ser compreendido a partir do homem em seu próprio acontecer, historicamente situado. A hermenêutica, com o viés da ontologia fun-damental, procura interrogar o ser por meio da historicidade e da temporalidade do ser aí, ou seja, compreender a questão do ser fora do contexto da tradição metafísica.

Desse modo, é a partir do pensar originá-rio que a ciência jurídica vai desdobrando o seu jogo de preceitos legais. No viço dessa originalidade, pensar o Direito quer dizer: vir e chegar à plenitude de ser no Direito é a clareira, aletheia; é a essência do pensamento jurídico em seu desvelar-se, em seu dar-se originário. Vê-se, pois, a produção do Direito e não, simplesmente, a sua (re)produção jurí-dica. É essa operação do pensamento jurídico que possibilita a sua renovação pela (re)fun-damentação de seu ser.

A compreensão é a própria abertura do "ser-no-mundo", bem como é um existen-cial. Todo o compreender é derivado dessa compreensão existencial, que é a própria luz, iluminação, abertura, clareira, revelação do ser-aí, aletheia.

O Direito deve ser compreendido de modo originário e autêntico, desvinculado dos con-ceitos ingênuos e opiniões que a tradição em

si as carrega. Há que se buscar uma abertura mais abrangente e mais originária do Direito.

Hoje em dia, dizer o Direito nos chega por meio de um pensamento jurídico alienante e silente, pautado em um positivismo legalista. Estas reflexões procuram destacar esse silên-cio e alienação, para assim, talvez, ouvir o seu canto mais originário. É a busca da autentici-dade do Direito.

Por isso, ao escutar no silêncio da inau-tenticidade do Direito (reificação jurídica), o pensar originário açula o não saber. Sente-se, então, toda a sede e necessidade de procurar uma (re)fundamentação do pensamento jurídi-co civilista. O Código Civil não pode mais ser visto como um objeto cognoscível, da mesma forma que o julgador não será como um sujeito cognoscente passivo e desinteressado.

Angustiante por natureza, a busca desen-freada pela segurança jurídica torna-se cada vez mais limitadora da criatividade judicial e sufoca o pensar original. No momento da prestação jurisdicional, o homem, a sociedade, o mundo, os valores, a cultura, a historicidade e a temporalidade não podem ser desconside-rados.

Um sistema jurídico axiologicamente neu-tro, atemporal, ahistórico já representa um pe-rigo a ser evitado e uma ameaça a ser controla-da pelos juristas. Caso contrário, imperar-se-á por toda a parte uma atitude de subserviência ao texto legal, representando, assim, a inauten-ticidade do Direito, isto é, a reificação do direi-to. Isso representa uma prestação jurisdicional restrita às atividades lógicas, científicas, cuja visão objetivista dos entes está em distonia com o mais digno de ser pensado, qual seja: o pensar o ser e a verdade da faticidade do ser-aí.

É necessária a busca pela essência do Di-reito. O que essencializa a ciência jurídica já

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não pode ser uma ciência, já que esta essência é algo de metaciência. Isto se dá porque a es-sência de alguma coisa só pode ser pensada. É algo existencial; logo, não é um ente. Daí a essência das relações jurídicas civilísticas ser a condição de sua própria possibilidade.

Quando se pensa o Direito Civil, não se pretende observá-lo como um conjunto de re-gras e princípios, da mesma forma que quando se empreende um olhar para o Direito posto, não está a se pensar o Direito. Portanto, é ne-cessário desviar o olhar para os pressupostos de sustentação da ciência jurídica, em especial, para o caráter e especificidades inseridos no que se chama de direito civil-constitucional. É a busca de um sentido mais original a ambos (Direito Civil e Direito Constitucional).

Daí que o Direito Civil não pode mais ser concebido como uma ordem normativa isolada, cujo fundamento de validade seja en-contrado em si mesmo. Ao contrário, o Direito Civil passa a ser compreendido a partir de um pressuposto constitucional, de caráter existen-cialista.

É nesse sentido que o Direito Civil seria entendido como decadente e em si alienan-te, já que ocorreria o encobrimento do seu "poder-ser" mais próprio, desatrelado ao modo de "ser-no-mundo". Essa alienação gera um aprisionamento do próprio julgador, uma vez que sua decisão estaria distanciada de seu sen-tido mais originário. Seria essa, portanto, uma visão objetivista do próprio Direito Civil.

O que se pretende destacar é a imperativa necessidade de se remeter o Direito Civil a um horizonte ontológico-existencial, visando ao desenvolvimento de toda uma crítica ao Direito Civil vigente e todo o empenho na construção de um horizonte novo para se repensarem os fundamentos do conhecimento jurídico civi-lístico, sobretudo face à complexidade social

do novo milênio. Apenas a título de exemplo, o que dizer da adoção de uma criança por um casal formado por pessoas de mesmo sexo?

É nesse sentido que o Direito Civil se re-vela fortemente problemático. O Direito Civil está em crise. Apresenta-se normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente frente a uma sociedade hodierna alinhada por uma alta complexidade estrutural, que suscita uma série de questões novas (NEVES, 2002, p.10).

Essas questões são fruto de uma radical mutação dos referentes axiológicos e culturais de nossa sociedade. Daí a existência de um campo fértil para o Direito Civil Constitucio-nal. É preciso, pois, “uma efetiva renovação dos esquemas interpretativos, que se caracte-riza pela redefinição dos valores jurídicos e de categorias tradicionais do Direito.” (BAR-RETTO apud OST, 2005, p.7). Nesta linha, afirma François Ost (2005, p.19) que a vida do Direito “está longe de representar esse longo rio tranquilo, que muitos imaginam talvez do exterior: nele se agitam as forças vivas da consciência social e se enfrentam os mais va-riados tipos de práticas e interesses.”

O Direito Civil não apresenta soluções normativas para todos os problemas práticos concretos e, no mais das vezes, a interpretação jurídica e o sentido do texto jurídico são atos separados de sua aplicação a um caso concreto. Melhor dizendo: frequentemente, a estrutura lógica e a racionalidade normativa do sistema jurídico civilista encontram-se em distonia e alheias às exigências do caso jurídico deciden-do, a ponto de representar uma sistemacidade jurídica simplesmente formal que fica indi-ferente aos conteúdos normativos materiais historicamente e temporalmente considerados. O sistema das normas jurídicas não pode ficar dissociado de sua realização concreta.

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Convém, ainda, destacar que o Direito Ci-vil fechado sobre si mesmo, numa ambiência formal e abstrata, fomenta uma alienação de uma realidade social em mutação e se afasta cada vez mais do contexto sociocultural con-temporâneo. Nem mesmo a invocação das “cláusulas gerais”, “cláusulas abertas” e o re-conhecimento das anomias do sistema são su-ficientes para superar a inoperância de alguns valores consagrados pelas regras jurídicas e até mesmo pela própria cultura jurídica.

Há que compreender que a realidade jurí-dica ainda é reflexo de um sistema normativo autônomo, racional, axiologicamente neutro em sua estrutura, destacando-se o princípio do individualismo liberal, a igualdade abstrata e a segurança jurídica. Nesse sentido, Castanheira Neves tem ensinado que a abertura para um funcionalismo jurídico é o meio para superar o normativismo, com o seu formalismo e o seu lógico-sistematismo. Nessa linha do funciona-lismo, o Direito deixa de ser um sistema au-tossubsistente e passa a ser um “instrumento e um meio ao serviço de teleologias que de fora o convocam e condicionalmente o submetem”. (NEVES, 2002, p.31).

Talvez o grande desafio seja o de pensar o Direito Civil em harmonia com a profunda mutação dos valores, da moral, da ética e dos novos comportamentos sociais. Por que a prestação jurisdicional precisa ser padronizada segundo um normativismo alienante, desa-linhada a uma renovação de valores? O que dizer do direito de ter uma “opção sexual”, já que cada vez mais países aprovam o casamen-to de pessoas do mesmo sexo? Neste poncasamen-to, a laicização do direito permite a evolução dos costumes, ainda que contrários aos pensamen-tos religiosos e conservadores. Em nossos ho-rizontes atuais, já é possível a transformação de nosso corpo, a mudança de sexo, a correção de possíveis desvios, sem a exigência de justi-ficações diante de nossa comunidade. Juremir

Machado da Silva lembra que, algum tempo atrás, as mulheres negavam ter feito cirurgia plástica; atualmente, essa prática faz parte das escolhas privadas legítimas e corriqueiras de muita gente. Da mesma forma, os homens pas-saram a preservar mais seu corpo e tornaram-se metrostornaram-sexuais (SILVA apud LIPOVETSKY, 2005, p. XVI).

Apenas para entender esse contexto de transformações, vale perguntar: e quanto ao direito de morrer ou de ser auxiliado a morrer? A eutanásia ganha adeptos, invade a mídia e agita o dia a dia forense. Em outra oportunidade, uma batalha legal de quase uma década, que envolveu os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos Estados Unidos, chegou aparentemente ao fim quando médicos desligaram o tubo de alimentação que permitia Terri Schiavo, de 41 anos, permanecer viva. Responsável legal por Terri, seu marido, Mi-chael, brigava na Justiça há oito anos com os pais dela, Robert e Mary, pelo direito de des-ligar o aparelho (EUTANÁSIA, 2005, p.40). No Brasil, em setembro de 2005, circulou na mídia “o direito de viver do pequeno Jhéck”, cujo pai, desesperado com o estado do filho de quatro anos, internado com doença que destrói seu corpo, já tentou duas vezes desligar os aparelhos que mantêm a criança viva. A mãe da criança luta contra a eutanásia na espera de um milagre (O DIREITO..., 2005, p.1).

Não há como os tribunais ficarem desaten-tos ao progresso da ciência, como a clonagem, as células-tronco, isto é, quais os limites e o direito de o homem mexer em seu próprio cor-po? A bioética e o biodireito se destacam.

Qual o limite para a interferência do Es-tado na vida privada? O que dizer sobre os comportamentos sexuais e familiares, como a homoafetividade, a monogamia, a bigamia ou poligamia? E quanto à barriga de aluguel e à possibilidade de dois homens (ou mulheres)

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adotarem filhos? Buscam-se uma “nova ordem familiar” e uma nova estética dos prazeres? Os costumes sociais mudaram. Vale lembrar que o adultério não é mais considerado crime no Brasil. Daí mais uma vez Juremir Machado da Silva:

Tudo aquilo que não incide sobre o co-letivo de maneira totalizante e abusiva, ou seja, as práticas comportamentais sem prejuízo de terceiros, é remetido ao espaço privado. Faça você mesmo o seu caminho.

A sociedade pós-moralista olha para trás e fica chocada. Como foi possível que seres racionais impusessem a si e aos outros a impossibilidade do divór-cio? Como foi possível que pessoas fos-sem obrigadas a permanecerem juntas quando já não se suportavam? Como foi possível que a união entre duas pessoas fosse regulada pela sociedade inteira? (SILVA apud LIPOVETSKY, 2005, p. XVIII).

As mudanças de paradigmas, a mutação social, os novos valores devem se converter em apropriação permanente pelo Direito. A decisão judicial não pode ficar limitada a ser a simples resultante da lógica dedutiva. É nesse sentido que o Direito Civil Constitucional representa um novo marco teórico para a (re)fundamentação do direito privado.

É necessário, pois, haver horizontes, ou seja, o julgador não pode ficar limitado ao direito positivo, ao texto da lei, mas deve ver para além disso. O operador jurídico que possui horizontes sabe valorizar as mutações sociais, os novos valores, vê e dialoga com as dimensões culturais, sociais e históricas de seu tempo.

Vê-se a relevância dareflexão jurídica ci-vilística. Refletir não é trancar-se isoladamen-te em um conjunto de normas em si e por si. É na reflexão do Direito Civil que se retorna ao seu fundamento sem fundo, seu abismo. Logo, a irreflexão do pensamento jurídico é um atrofiamento e um nivelamento do Direito Civil em sua própria inautenticidade. A dog-mática jurídica civilística está em crise.

Juristas e julgadores tornam-se insensíveis ao novo, fugindo do pensamento originário e, consequentemente, distanciando-se de toda a vitalidade criadora do direito.

Grande parte dos operadores do direito julga saber tudo de tudo: direito posto. O di-reito como um ente. É a reificação do didi-reito. É a atividade do julgador e do intérprete ana-lisando o direito como um objeto.

É contra essa postura do objetivismo ingê-nuo que o Direito Civil procura uma dimen-são constitucional-existencial.

Dessa forma, ao pensar o Direito Civil em sua forma mais profunda, mais originária, a partir do pensamento mais digno de ser pensado, caminha-se em direção aos cânones constitucionais. É um caminhar ontológico e não metodológico. Daí que todo novo ca-minhar traz consigo insegurança, ansiedade, preocupação, medo, ousadia, obscuridade e surpresa.

Nesses termos, um pensamento originário começa a fluir no campo jurídico civilístico. Esse caminhar foi guiado não só pela filosofia e hermenêutica existencialista, bem como por estudiosos do vigor de Francisco Amaral, Luis Edson Fachin, Gustavo Tepedino, Maria Ce-lina Bodin de Moraes, Judith Martins-Costa, Daniel Sarmento, Sérgio Cavalieri Filho, Syl-vio Capanema de Souza, Antônio Junqueira de Azevedo, Cláudia Lima Marques, Natalino

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Irti, Pietro Perlingieri, Paolo Grossi, dentre outros, que já trilharam caminhos inespera-dos sempre adornainespera-dos com novas cores. São estes autores que estão dispostos a conhecer e a buscar a essência das coisas, em seu sentido originário.

O caso concreto decidendo deve ser onto-logicamente analisado a partir da hermenêuti-ca ligada ao modo de "ser no mundo", a uma essência do Ser que é a essência do homem, ao homo humanus; é realizada de forma ori-ginária, através de uma pré-compreensão ju-rídica em que o intérprete está inserido numa tradição histórica na qual se insere (círculo hermenêutico). Isto representa que o julgador somente poderá atingir o significado dos entes a partir de seu horizonte histórico, a partir de uma situação hermenêutica.

Daí o motivo de a norma jurídica reque-rer sempre uma interpretação. O magistrado não pode proferir sua decisão judicial por meio apenas do procedimento lógico-formal, segundo um modelo clássico do silogismo lógico-dedutivo. A dimensão hermenêutica deve habitar o espaço jurídico, visto que a pré-compreensão do intérprete “entra em jogo”, como modo de ser da condição humana de "ser-no-mundo". Por isso, a fenomenologia hermenêutica se faz presente na estrutura e na organização do pensamento jurídico.

A missão do juiz é atuar como um agen-te de transformação que não se limita a ser um aplicador passivo de regras e princípios preestabelecidos, mas sim um instrumento de mudança social, pautado pelos objetivos socioeconômicos atuais, levando-se em con-sideração a complexidade e a pluralidade da sociedade.

O desvelamento de um direito autêntico torna-se um processo gradativo através do qual os magistrados, isoladamente ou em

combinação com os demais operadores do Direito, procuram superar as técnicas tradicio-nais de hermenêutica, juntamente com as ope-rações lógicas utilizadas para dizer o Direito. Digamos que é a superação das crenças, mitos e superstições do Direito, já que produzido pelos mesmos métodos e mantidos pelas mes-mas razões que conduziram o conhecimento científico dos séculos XVIII e XIX.

Os doutrinadores de vanguarda, gradual-mente, começaram a colocar novas espécies de questões e a traçar linhas inovadoras de desenvolvimento para o Direito Civil. Em vez de procurar fincar o Direito Civil na órbita individualista-patrimonialista, eles procuram apresentar a integridade do Direito Civil, a partir de sua constitucionalização. Por exem-plo, perguntam não pela simples relação en-tre sujeito de direitos na esfera interprivada (individualista), mas antes pela sua relação

intersubjetiva (relação sujeito-sujeito), isto

é, um agir pensando no outro, com vistas no princípio da dignidade da pessoa humana. Algumas vezes um caso concreto decidendo, que deveria ser resolvido por meio de regras e procedimentos imutáveis, resiste ao ataque do procedimento lógico-formal, ou seja, não funciona segundo os padrões antecipados e re-vela-se uma anomalia que deve ser ajustada às expectativas do Direito Civil Constitucional. Desta e de outras maneiras, a esfera jurídica civilística desorienta-se seguidamente, já que o locus hermenêutico está na Constituição e não apenas no Código Civil. Daí que a

Consti-tucionalização do Direito Civil representa um

fenômeno desintegrador da tradição civilís-tica, já que implica uma mudança na postura hermenêutica que governava a prática anterior.

Tais características aparecem com bastante clareza nos estudos avançados de Direito Civil guiados por Francisco Amaral, Gustavo Tepe-dino, Maria Celina Bodin de Moraes, Heloisa Helena, Judith Martins-Costa, dentre outros.

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Os estudos revolucionários de Direito Civil Constitucional não podem ficar adstritos ao meio acadêmico; ao contrário, devem produ-zir impactos nas decisões judiciais

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Referências

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