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Criptojudaísmo no feminino. Uma análise da Resistência judaica na Bahia Quinhentista a partir das fontes da I Visitação do Santo Ofício ao Brasil

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Criptojudaísmo no feminino. Uma análise da Resistência judaica na Bahia Quinhentista a partir das fontes da I Visitação do Santo Ofício ao Brasil

Angelo Adriano Faria de Assis Doutor em História pela UFF; Professor Adjunto – UFV

Resumo:

Implantado em Portugal o monopólio católico a partir de 1497, com o processo de expulsão/conversão forçada de judeus e mouros do reino, não tardariam a se agigantar os problemas de intolerância religiosa disfarçada de problema social entre os cristãos-velhos e os neoconversos. A instauração do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, no ano de 1536, com o intuito de zelar pela pureza da fé católica, teria nos cristãos-novos suas principais vítimas. Com a intensificação dos trabalhos inquisitoriais, muitos deixaram Portugal, tornando-se o trópico brasílico, região do açúcar, principal produto da colônia naquele momento, dos destinos preferidos. Durante a primeira visitação inquisitorial às capitanias açucareiras do Nordeste (Bahia, Pernambuco, Paraíba e Itamaracá), entre 1591 e 1595, ganha destaque o número de mulheres cristãs-novas acusadas de práticas judaizantes, sinalizando a intensa participação feminina no processo de resistência judaica, como propagadoras do judaísmo secreto que se tornara possível para a divulgação e sobrevivência das antigas tradições, adaptado o judaísmo às dificuldades e perseguições que lhe foram impostas. Os processos contra a família Antunes, do Recôncavo Baiano – a matriarca Ana Rodrigues, primeira vítima da Inquisição no Brasil condenada à fogueira, mais suas filhas e netas –, insistentemente delatada perante a Inquisição, mostram-se primordiais para esta análise.

Palavras-chave: Inquisição no Brasil, resistência judaica, criptojudaísmo feminino.

Em inícios da modernidade, a intolerância religiosa metamorfosear-se-ia, em vários espaços da Europa, em perseguição contra os judeus. Na Ibéria, que, por conta dos oito séculos anteriores de bom convívio entre cristãos, judeus e mouros, ficaria marcada como a terra das três religiões, o processo de monopolização cristã e consequente eliminação das demais religiões dar-se-ia em dois momentos temporalmente próximos.

Do lado espanhol, o processo de unificação do próprio Estado passava, em grande parte, pela unidade da fé. Assim, em 1492, os reis católicos completavam a campanha territorial com a reconquista de Granada, expulsando mouros e judeus dos limites espanhóis. Muitos dos judeus saídos da Espanha aproveitariam a proximidade geográfica e a extensa fronteira seca para entrarem em terras portuguesas. Proibidos de permanecer na Espanha, levas de judeus cruzaram a fronteira para se abrigar em Portugal, fazendo com que aumentasse de forma considerável a já significativa presença de judeus em seu território, que pode ser estimada, de acordo com alguns historiadores, em cerca de dez a quinze por cento do total da população lusa – embora estes

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2 números não possam ser considerados exatos. O que cabe salientar é que, independentemente da exatidão numérica, era marcante a presença de judeus em Portugal às vésperas da virada para o Quinhentos.

Todavia, os interesses que ligavam as coroas ibéricas e que passavam, naquele momento, pelo acordo de matrimônio do monarca português com a infanta espanhola – consequentemente, pela questão sucessória do trono hispânico –, dentre outras questões de relevância, fariam com que a liberdade de crença que persistia em Portugal tivesse final similar ao que ocorrera do outro lado da fronteira poucos anos antes. Dessa forma, o acordo nupcial entre Dom Manuel I e a filha primogênita dos reis de Espanha teria entre seus pontos o fim oficial da presença judaica em Portugal. A assinatura dos decretos de expulsão dos judeus, em dezembro de 1496, culminaria, dez meses depois, com a conversão forçada dos seguidores da fé de Israel ao catolicismo. Expulsos, mas proibidos de sair, os judeus foram batizados à força, transformados em neoconversos ou cristãos-novos, mas continuaram, na prática, a serem vitimados pelos mesmos preconceitos e perseguições. Assim, “pela força e pela fé católica surgia o cristão-novo português, baptizado pela água sagrada que, ao mesmo tempo que o salvava, acabaria por marcá-lo, bem como a toda a sua descendência” (FRANCO &ASSUNÇÃO, 2004, p.26).

Embora o decreto do monarca português tenha levado à tentativa, por certo número destas famílias judias, de adaptação à nova realidade, buscando abraçar de forma sincera o catolicismo que lhes era imposto, não era de se estranhar que o processo de conversão gerasse um leque de possibilidades distintas de adaptação ao decreto de extinção que se colocara perante a comunidade judaica portuguesa. Como não poderia deixar de ser num processo realizado de maneira forçosa e decretado por lei, muitos dos judeus que foram obrigados a abraçar a doutrina cristã para continuarem presentes e tentarem ser aceitos na sociedade que renegava suas tradições, considerável parcela dos antigos adeptos da religião hebraica buscou, dentro das condições e limites possíveis, manter a herança religiosa, procurando formas de continuar fiel às crenças dos antepassados, mesmo que de forma limitada, improvisada e adaptada às parcas possibilidades então vigentes.

Mais uma vez não podemos nos remeter a números exatos. Porém, é certo que muitos dos antigos judeus agora cristãos encontrariam formas, variadas em intensidade e conteúdo, de continuar ocultamente a comungar a fé do coração: eram, por isso, chamados criptojudeus. Não podemos, contudo, considerar “criptojudeu” como sinônimo de “cristão-novo”. Em livro clássico, Sonia Siqueira define a diferença:

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Cristão-novo e criptojudeu não são sinônimos. O nascimento gera o primeiro, a vontade o segundo. O cristão-novo esforçava-se por ser igual aos demais: tentava vencer as barreiras do meio e do seu íntimo e ajustar-se. O criptojudeu contentava-se em parecer igual aos demais. Reservava-se o direito de continuar sendo judeu, de permanecer, às vezes, heroicamente fiel a si mesmo, à religião herdada. Por isso tinha duas religiões: uma externa, social, outra a religião da sua consciência, interior, feita de práticas secretas. Odiava a sociedade que o compelia a uma vida de simulações que lhe tolhia a liberdade de crença, mas guardava certa atitude precavida, cônscio de ser o lado mais débil. (SIQUEIRA, 1978, p.71)

A presença do criptojudaísmo no mundo português já ganhou leituras tão variadas quanto díspares na historiografia luso-brasileira, as quais, no limite, percorrem desde a negação de sua existência até a afirmação de que tal prática era generalizada. Mais coerente, ao que nos parece, é a posição de Ronaldo Vainfas, que aponta o fenômeno criptojudaico como variante no tempo e no espaço, mais concebível e consciente conforme nos mantemos próximos do período de liberdade religiosa em Portugal (VAINFAS, 1997). O fato é que a busca desenfreada pela pureza religiosa acabaria por identificar no criptojudaísmo a maior ameaça ao cristianismo português, da mesma forma que a justificativa principal para a instauração do braço lusitano do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, em 1536. Quatro anos após, já em 1540, já ardiam as primeiras chamas dos autos de fé promovidos pela Inquisição às margens do Tejo. O clima de constante vigilância acabaria por agravar as relações sociais, radicalizando as hostilidades entre cristãos-velhos – indivíduos de “sangue puro” – e os batizados em pé – vistos como de “origem maculada”.

Outra característica marcante que se radicaliza com o estabelecimento da Inquisição e o aumento das perseguições aos criptojudaizantes em Portugal é a tentativa, pelo grupo dos cristãos-novos que continuavam a abraçar a fé dos antepassados, de moldar o judaísmo tradicional – cuja prática estava interdita – transformando-o num judaísmo possível, limitado às práticas e rituais menos denunciadores de sua existência, adaptados à nova e hostil realidade. Procurava-se, assim, driblar a ilegalidade e não desaparecer por completo. Neste novo quadro de exclusão, a importância da figura feminina seria também redesenhada.

Desta forma, proibido oficialmente e perseguido pelos olhares atentos da Inquisição, o judaísmo, outrora livre, deslocar-se-ia para a “cozinha”, redimensionando o valor das mulheres para a manutenção e divulgação da antiga fé aos descendentes.

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4 Não à toa, a estruturação da Inquisição em Portugal e o aumento das perseguições significariam o aumento das migrações de cristãos-novos para a América portuguesa, que vivia o início do apogeu açucareiro, e onde a Inquisição não havia ainda estendido os seus tentáculos. À frente desta economia açucareira em ascensão, uma considerável parcela de cristãos-novos “enobrecidos” pelo dinheiro e transformados em donos de terra e respeitáveis senhores de engenho.

O Brasil era espaço privilegiado para a resistência criptojudaica, graças a uma relativa harmonia no convívio entre cristãos-velhos e novos. Prova deste bom convívio é a maciça presença neoconversa em praticamente todos os espaços da economia. Havia cristãos-novos nos mais diversos meios, chegando muitos deles a ocupar cargos e posições de importância: ouvidores da Vara Eclesiástica, mestres de latim e aritmética, senhores de engenho, religiosos, profissionais letrados, médicos, advogados, vereadores, juízes, escrivães, meirinhos e almoxarifes, o que reflete o alto grau de miscibilidade na colônia se comparada às outras áreas de migração dos cristãos-novos partidos de Portugal, como o Norte europeu, as geograficamente descontínuas ocupações no Oriente e o Levante (NOVINSKY, 1972, p.58). Também o elevado número de casamentos que uniam cristãos-velhos e neoconversos aponta para uma maior aceitação social destes enlaces e a diluição dos atritos no convívio entre os grupos na região brasílica.

No judaísmo tradicional – religião letrada calcada na leitura e discussão dos livros sagrados –, as mulheres ocupavam posições inferiores às dos homens, como locais secundários no culto e papéis públicos limitados, recebendo apenas uma educação mínima, a ponto de se crer, no limite, que era melhor queimar as sagradas palavras da Torá do que transmiti-las e ensiná-las às mulheres. A proibição da prática do judaísmo no Mundo Português e a nova importância dada à educação no lar, contudo, levariam a uma transformação destes papéis, transformando o judaísmo numa espécie de “religião domiciliar”, fruto da impossibilidade de sua divulgação pública, com nova ênfase na divulgação oral dos ensinamentos, devido às dificuldades e perigos implicados na posse de textos hebraicos. Funções que antes eram exclusivas dos homens passariam à responsabilidade das mães – sinal da ocorrência, no seio da religião mosaica, de um certo afrouxamento dos rigorismos como meio de garantir a sobrevivência em ambiente hostil.

Neste clima de intolerância ao judaísmo, as residências passariam a ocupar importância estratégica: seriam os lares locais de propagação da religião dos antepassados, através da memória ensinada e das práticas religiosas e cerimoniais. Impedida a livre crença, “a cultura

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5 doméstica continuou, em parte, com aquelas práticas e celebrações de ‘portas a dentro’” (SILVA, 1995, p.121), embora essas práticas sofressem certo esvaziamento e modificações conforme crescia a distância do período de judaísmo permitido, mudando de cor, intensidade e significados a cada nova geração. A própria teologia judaica, cada vez menos profundamente conhecida pelos cristãos-novos, enfrentava as consequências destas limitações, agravadas pela inexistência de rabinos para cumprirem o papel que lhes caberia numa situação de normalidade religiosa, como também pela proibição da circulação de livros ligados à religião mosaica: impossibilitados da leitura sagrada, a Torá, muitos utilizavam a Bíblia católica, mas sempre renegando os textos do Novo Testamento. Como já se adiantou, a transmissão oral dos ensinamentos ganhou novo alento. Impedidos em suas preferências doutrinárias, e procurando driblar as desconfianças da sociedade, os criptojudeus viam-se obrigados a abandonar certas cerimônias marcantes da sua profissão de fé em favor de práticas menos conhecidas ou delatoras de sua real entrega religiosa: assim, trocam-se roupas e acessórios judaicos pelas vestimentas cristãs; as circuncisões pelas orações e vigílias domiciliares; as rezas públicas na língua dos antepassados pela oração interior, em segredo; a guarda pública de certas datas e festas como o Ano Novo ou o Pentecostes pelos jejuns; os jejuns principais por outros menos conhecidos fora da comunidade judaica. Com o mesmo intuito, celebrações que no judaísmo tradicional ocupavam posição de menor destaque passavam, por serem menos acusadoras, a tema central da resistência marrana, como foi o caso do “Jejum de Ester” – rainha judia que escondia suas origens ao próprio marido, vivendo, como os criptojudeus, da dissimulação –, tornando-se a “Oração de Ester” a “prece marrana por excelência”. É bastante significativo o fato de ser uma mulher a heroína dos cristãos-novos, e o exemplo de Ester se repetiria constantemente devido às necessidades impostas aos criptojudeus. O judaísmo de “portas a dentro” mostrar-se-ia, nos mais ínfimos detalhes, influenciado pela figura da mulher (POLIAKOV, 1996, p.198-199).

Anita Novinsky complementa: “proibida a sinagoga, a escola, o estudo, sem autoridades religiosas, sem mestres, sem livros, o peso da casa foi grande. A casa foi o lugar do culto, a casa tornou-se o próprio Templo. No Brasil Colonial, como em Portugal, somente em casa os homens podiam ser judeus. Eram cristãos para o mundo e judeus em casa. Isso teria sido impossível sem a participação da mulher” (NOVINSKY, 1995, p.549-555). Não é difícil supor o peso destas mulheres na manutenção da fé agora proibida. Um judaísmo “feminino”, de cozinha – local de destaque nas casas judaicas, onde as mulheres, à beira do fogo, cozinhavam os alimentos e contavam histórias de seu povo e tradições para os filhos, ensinando-lhes a língua dos

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6 antepassados, as canções e orações, o preparo dos alimentos, as histórias e ensinamentos do livro sagrado. E, sobretudo, a necessidade de saber ocultar a antiga fé e fingir dedicação ao cristianismo. Aqui como lá, o núcleo familiar tornou-se locus privilegiado para a irradiação da lei mosaica, içando as mulheres ao status de grandes responsáveis por sua reprodução. O “judaísmo de cozinha” tornou-se o símbolo da resistência ao catolicismo opressor e grande responsável pela manutenção da cultura e tradições da antiga fé proibida por decreto em fins do século XV. Lar-sinagoga-escola: espaço multifuncional onde a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de provedora, mãe, educadora, catequista e rabi. Sustentáculos da religião proibida, as “mulheres cristãs-novas apresentaram no Brasil uma resistência passiva e deliberada ao catolicismo. Foram prosélitas, recebiam e transmitiam as mensagens orais e influenciavam as gerações mais novas” (NOVINSKY, 1995, p.?), cientes da necessidade de encobrir seus verdadeiros objetivos. Transmitindo os ritos religiosos ao praticá-los nas residências, realizavam o rabinato diminuto, feminino e oral que se tornara possível e que, embora contrariasse o códice mosaico, garantiu-lhe a sobrevivência. Conforme lembra Elias Lipiner, dizia-se à época das mulheres neoconversas que, “devotas e rezadeiras, iam nos domingos e dias santos ouvir missa”, procurando evitar, perante a sociedade, as desconfianças sobre sua real entrega ao catolicismo, “mas nos sábados vestiam seus melhores vestidos” (LIPINER, 1969, p.46), preparando-se para o sagrado dia de descanso dos judeus, em que a família estaria reunida para celebrar os costumes de seus antepassados.

A nova importância destinada à mulher neoconversa não passaria em branco para a Inquisição, e desmascarar a fonte de disseminação da heresia judaica, reprimindo exemplarmente os seus responsáveis, era fundamental para a função didática desempenhada pelo Santo Ofício. Na documentação produzida pelo tribunal português durante a primeira visitação ao Brasil, que percorreria as capitanias açucareiras do Nordeste brasílico entre 1591 e 1595, encontram-se diversos indícios deste judaísmo limitado porém possível vivenciado na colônia, mormente ligado a ritos, prática da “esnoga”, cultos funerários, interdições alimentares, formas de benzer heterodoxas, negações à religião dominante em seus símbolos e dogmas, situações em que, indiscutivelmente, a importância das mulheres salta aos olhos. Dentre as inúmeras e variadas acusações sobre práticas judaizantes, é riquíssimo o desfile de relatos sobre mulheres que insistiam em manter fidelidade ao judaísmo, praticando-o nos momentos de privacidade, embora publicamente, imbuídas dos temores que oprimiam os simpatizantes de Israel, dissimulassem, declarando-se verdadeiras cristãs. Não foram poucas as denúncias a retratarem a dubiedade

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7 vivida pelas cristãs-novas na colônia, não só externamente – a suportarem o peso das fronteiras sociais –, mas também nas suas próprias crenças e comportamento, a confundirem muitas vezes a tradição cristã com os ensinamentos judaicos, divididas entre a fé imposta e a do coração, desconhecendo ambas em seus detalhes, praticando-as de forma igualmente equivocada.

Um dos mais estarrecedores casos de mulheres acusadas de práticas judaizantes na documentação referente às visitações inquisitoriais ao Brasil, sem dúvida, seria aquele que envolveria representantes de váriasde Ana Roiz, moradora em Matoim, no Recôncavo Baiano.

A cristã-nova Ana Roiz – ou Rodrigues – viera do reino com Heitor Antunes, seu marido, senhor de engenho e “cavaleiro da casa del-rei”, que se orgulhava de sua descendência direta dos Macabeus - célebre família de sacerdotes e militares judeus do século II a. C., cuja epopeia é narrada no Antigo Testamento. Segundo diziam, o “cavaleiro macabeu” possuía sinagoga em suas terras no Recôncavo da Bahia havia cerca de trinta anos. Teve sete filhos, para os quais conseguira genros de sangue puro. Eram conhecidos como “a gente de Matoim”. Morto o marido, Ana Rodrigues o enterrara segundo a tradição, em terra virgem, pranteando-o pelo modo judaico. Esperava o momento de poder se juntar novamente ao esposo, também de acordo com a fé que seguia: testemunhas afirmavam que guardava “as joias de quando se casou para se enterrar com elas quando morrer”1. A presença da Inquisição acabaria com a tranquilidade da família, seguidamente acusada de criptojudaísmo e de desrespeito à fé católica. Dentre os Antunes, seria Ana a denunciada com maior gravidade e insistência. Prevendo as trágicas consequências da visita do Tribunal, alguns membros do clã aproveitariam o período da graça para confessar os erros, adiantando-se à avalanche de acusadores, procurando, assim, mostrar boa vontade com o Santo Ofício e amenizar as culpas que lhes eram imputadas.

Judaizante ao extremo e de idade bastante avançada, Ana era conhecida pelas blasfêmias que pronunciava. O parentesco bíblico de que outrora se orgulhava o marido era agora símbolo do escárnio público de que era vítima ao lado das filhas, chamadas pejorativamente de “Macabeias”. Suas histórias geravam escândalo. No batismo de uma bisneta, teria Ana afirmado: “olhai que negro batismo”! Quando de um dos partos de suas filhas, clamando-se por Nossa Senhora, dissera, “não me faleis nisso que não no posso dizer”2! Uma parenta cristã-velha contaria sobre a octogenária matriarca que, adoecida certa vez, “suas filhas lhe mostravam um

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“[Antonio Dias, da Companhia de Jesus] contra Anna Roiz, Anrique Mendez, Phelipe de Guillem”, em 16/08/1591. Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 337-338.

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8 crucifixo e que ela o não queria ver, dizendo: tirai-o lá”, recebendo o auxílio de um filho para livrar-se da incômoda presença. O receio de ter a crença proibida desvendada e da rejeição social daí decorrente levaria uma de suas filhas a retrucar: “mãe, não nos desonreis porque somos casadas com homens cristãos velhos e nobres”. Quando em lucidez, tentava, assim como as filhas, manter as aparências, “sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias, indo às igrejas, dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas cristãs”3.

Apesar do esforço dissimulatório, aos olhos populares sua residência era transformada em verdadeiro templo judaico, onde ensinava as tradições da antiga lei aos filhos. Não foram poucas as denúncias a retratarem minuciosamente os costumes da matriarca e de sua família, como as práticas e interdições alimentares, as bênçãos e o luto ao modo judaico, as orações com guaias, o respeito aos jejuns e dias santos para os hebreus – cerimônias que, pelo exemplo vivo da velha macabeia, eram transmitidas aos descendentes.

A velha senhora seria acusada de práticas judaicas por todos os lados, somando uma das maiores coleções de denúncias da primeira visitação. Com mais veemência, seria delatada por guardar o dia sagrado dos judeus; não comer certos tipos de alimento; jurar pelo mundo que tem a alma do marido e guardar-lhe luto ao modo dos judeus; lançar a água de casa fora em caso de falecimento; fazer jejuns e orações judaicas, movimentando o corpo à maneira dos judeus; recusar um crucifixo quando doente e benzer filhos e netos escorregando-lhes a mão pelo rosto. Outros parentes próximos da anciã – principalmente filhos e netos – confessariam ou seriam acusados de algumas destas práticas, embora em nenhum caso tenha-se repetido o mesmo número de acusações que pesavam sobre a matriarca da família. O envolvimento de filhos, cunhados, netos e sobrinhos nas acusações de judaísmo permite-nos vislumbrar o grau de complexidade do fenômeno criptojudaico entre os Antunes. Este se manifestava através da preservação de várias tradições do judaísmo de “portas a dentro”, reproduzidas no ambiente doméstico e transmitidas às novas gerações, ainda que com uma espécie de “filtragem” na recepção. Algumas destas práticas eram paulatinamente abandonadas pelos descendentes, na tentativa de ocultar a fé proibida (sem contar o próprio processo de aculturação a que os cristãos-novos estavam submetidos).

Ciente das críticas sociais ao seu comportamento e temendo as presumíveis denúncias de seus desregramentos ao inquisidor, a matriarca dos Antunes compareceria ao Tribunal para confessar algumas de suas práticas de judaísmo, mas para tudo apresentando desculpas,

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9 afirmando desconhecer-lhes a herética origem: não comia carne de arraia e cação fresco por fazer-lhe mal ao estômago, mas, antes da doença, comia; ao morrer-lhe um filho lançara fora a água dos potes, ficando “os primeiros oito dias sem comer carne”, porque isso lhe fora ensinado por uma comadre cristã-velha; jurava “‘pelo mundo que tem a alma de meu pai’, ou de meu marido, ou de meu filho”, mas sem entender “ser juramento de judeus”. Estarrecido, o visitador parecia não aceitar as explicações, alertando-a de “que está mui forte a presunção contra ela, que é judia e vive na lei de Moisés”, posto não ser “possível fazer todas as ditas cerimônias de judeus, tão conhecidas e sabidas”, sem lhes conhecer a origem, “e que por isso fica claro que ela é judia e que as fez como judia”4. Desmascarada, a velha senhora seria presa e enviada numa jaula ao Tribunal de Lisboa, enquanto seus genros cristãos-velhos e fidalgos tentavam em vão provar sua inocência. Era sua primeira morte – uma morte social, pública, apontada como suspeita pela Inquisição e como herege pela sociedade. Idosa e doente, morreria no cárcere – sua segunda morte, esta, física, debilitada pelo esforço da viagem, pela pressão psicológica, pela fragilidade do corpo cansado e humilhado –, o que não a livraria da continuidade do processo movido pela Inquisição e de ser condenada ao “braço secular” e relaxada em efígie, tendo sua memória amaldiçoada e os ossos desenterrados, “queimados e feitos em pó em detestação de tão grande crime” – uma terceira morte, que não respeitava nem o que restava de seu esqueleto. Para evitar que seu exemplo fosse repetido, um quadro feito pelos pintores que trabalhavam para a Inquisição, retratando-a entre labaredas e seres demoníacos – quarta morte!!! –, ficaria exposto na igreja de Matoim, onde morara, a mando do Santo Ofício. Além da matriarca macabeia, outros familiares sofreriam acusações, e alguns deles seriam processados pela Inquisição: Heitor Antunes, seu falecido marido; Beatriz, Violante e Leonor, suas filhas, e a neta, Ana Alcoforado.

Sua condenação traria, afora as complicações sociais para os membros da família, estigmatizados como judaizantes e/ou coniventes e acobertadores de práticas criptojudaicas, um outro agravante para seus descendentes: os bens em nome da velha senhora seriam confiscados pela Inquisição, o que levaria os seus genros anos depois, em 1600, a apresentarem, pessoalmente, diversas petições em Lisboa para revisão da pena, novamente alegando idade avançada e insanidade da velha matriarca, com o objetivo não só de limpar o nome da família, mas também de recuperar os bens tomados pelos inquisidores e assim poder dar continuidade aos negócios do clã na Bahia. Como define Elias Lipiner, “a jurisdição do Tribunal da fé não se

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“Confissão de Ana Rodrigues, cristã-nova, na graça, em 1o de fevereiro de 1592”. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da Bahia (organização Ronaldo VAINFAS). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 281-286.

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10 extinguia com as labaredas da fogueira em que eram sacrificadas suas vítimas. Não parava em quem fora por ele condenado, mas estendia-se aos descendentes vivos para serem diretamente atingidos, proibindo-se-lhes o exercício de ofícios públicos e certas profissões liberais, e expondo-os, particularmente, à malevolência pública” (LIPINER, 1969, p.137).

Quase trinta anos após Ana ter sido presa pelo primeiro visitador do Brasil, já durante a segunda visitação inquisitorial, iniciada em 1618, ouvir-se-iam ainda ecos do desregrado comportamento dos Antunes, novamente apontados ao visitador como grupo judaizante. As histórias sobre Ana Rodrigues e seus descendentes ainda permaneciam vivas na memória e eram repetidas, ocasionando o tal roubo da imagem que ficava na porta da igreja de Matoim e representava a velha Macabeia queimando no inferno. Esta foi uma tentativa desesperada de preservar-lhe a memória e livrar os seus familiares da gigantesca infâmia que lhes pesava sobre os ombros5.

Inegavelmente, Ana Rodrigues foi destes baluartes da resistência judaica na colônia, representante das mais agudas do criptojudaísmo brasílico no século XVI. Apesar do desejo da Inquisição, não seria a única, embora as histórias dessas mulheres não nos sejam sempre conhecidas. Como a velha matriarca de Matoim, tantas outras viveriam ambiguamente, divididas entre o catolicismo que repudiavam e o judaísmo que não podiam seguir abertamente, praticando ora um, ora outro, dependendo das necessidades do momento. Mártir da religião proibida, Ana sofreria pressões, ofensas, calúnias e discriminações por lutar pelo resgate e continuidade da identidade de seu povo. Quatro mortes, pelo menos, a tentarem apagar sua existência. Mas ela foi redimida pela História, pela análise do próprio processo inquisitorial que ordenava seu silêncio. E foi vitoriosa, por fim, por conseguir, dentro do que era possível, repassar a antiga tradição aos filhos e manter vivos os ideais da fé que se esmerara em compartilhar com os familiares.

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Sobre o envolvimento de membros da família Antunes com a Inquisição, ver ainda: ASSIS, Angelo A. F. A Inquisição no Brasil e a Farsa pelo Avesso: O caso de Baltasar Coelho, tratante e falso familiar do Santo Ofício, e da prisão de Nuno Fernandes, revel e descendente dos Macabeus do Recôncavo (ASSIS et al., 2007, p.?).

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