• Nenhum resultado encontrado

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "JOÃO CABRAL DE MELO NETO"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A ESTRATÉGIA DO EQUILÍBRIO1

Stephen Bocskay

Harvard University

Resumo

Neste ensaio, o autor examina os paralelismos entre a poesia do poeta pernam-bucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e a pulsação democrático-pedagógica na sociedade brasileira dos anos sessenta. Na poética cabralina, abundam poemas em que a natureza é vinculada a questões pedagógicas e so-ciorraciais. Mais do que um recurso do canto poético, a natureza é uma das grandes fontes que possibilitaram hierarquizações socioeconômicas na socieda-de brasileira socieda-dessocieda-de a época colonial. Analisa-se o intercâmbio didático entre o mar e o canavial nos poemas “O mar e o canavial” e “O canavial e o mar”, da obra A educação pela pedra (1962-1965). Como contraponto, o antididatismo do poema “A educação pela pedra”. Discute-se, além disso, a ligação socioeconô-mica entre a terra pernambucana e os negros no poema “Paisagem do Capiba-ribe”, do livro O cão sem plumas (1949-1950).

Palavras-chave: pedagogia, hierarquia, poesia, democracia, diálogo.

Abstract

In this essay, the author examines the parallelisms between the poetry of the Pernambucan poet, João Cabral de Melo Neto (1920-1999), and the democra-tic-pedagogical wave in Brazilian society during the 1960s. In Cabral’s poetry, there abound poems in which nature is connected to pedagogical and socio-racial concerns. More than a device of the poetic voice, nature is one of the great resources that enabled socio-economic hierarchies in Brazilian society since the colonial period. The didactic exchange between the mar and the sugar cane plantation is analyzed in the poems “O mar e o canavial” and” “O

1 Meus agradecimentos a Maeve Jinkings, Flávio Morgado e Sayonara Sal-violi pela atenciosa revisão deste ensaio, bem como ao poeta Salgado Maranhão e aos organizadores do Salão de Livros do Piauí (SALIPI) pelo convite para apresentar este ensaio no primeiro ano de internacionalização desse mesmo festival literário em 2008.

(2)

vial e o mar”, from the book of poems, A educação pela pedra (1962-1965), and as a counterpoint, the anti-didacticism of the poem, “A educação pela pedra”. Moreover, the socio-economic connection between the land of Pernambuco and blacks is discussed in the poem “Paisagem do Capibaribe”, from the book of poems, O cão sem plumas (1949-1950).

Keywords: pedagogy, hierarchy, poetry, democracy, dialogue.

Na poesia do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto (1920-1999), abundam poemas em que a natureza é fortemente li-gada a questões pedagógicas e sociorraciais. Aliás, para Cabral, a na-tureza não é simplesmente um recurso do canto poético, senão também uma das grandes fontes que possibilitaram verdadeiras hie-rarquizações socioeconômicas na sociedade brasileira. Na primeira metade do ensaio, analisarei o intercâmbio didático entre o mar e o canavial nos poemas “O mar e o canavial” e “O canavial e o mar”, presentes em A educação pela pedra (1962-65). Como indica o título A

educação pela pedra, Cabral se dirige poeticamente à importância da

pedagogia na sociedade brasileira em um período histórico marcado pelo início da ditadura militar nesse país (1964-1985). Na segunda seção do ensaio, examinarei a ligação socioeconômica entre a terra pernambucana e os negros no poema “Paisagem do Capibaribe”, de

O cão sem plumas (1949-50). Deter-me-ei no poema “A educação

pe-la pedra”, a modo de encerramento, para argumentar que este poe-ma é um contraponto ao intercâmbio didático dos poepoe-mas “O poe-mar e o canavial” e “O canavial e o mar”.

No poema “O mar e o canavial” (1962-65), composto de du-as estrofes e oito versos, é estabelecida uma relação didática em que o mar e o canavial aprendem um com o outro. Mas, embora cada um apreenda algo do outro, há aprendizagens que procedem de ou-tras fontes não ditas:

O que o mar sim aprende do canavial: A elocução horizontal de seu verso; A geórgica de cordel, ininterrupta, Narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não aprende do canavial: A veemência passional da preamar; A mão-de-pilão das ondas na areia,

Moída e miúda, pilada do que pilar (Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 7).

(3)

De modo geral, a estrutura formal destes oito versos segue este esquema: os primeiros quatro versos contêm valores positivos que se vinculam ao que o mar aprende do canavial enquanto os últimos quatro versos aludem a uma espécie de negatividade, a qual é atribu-ível ao que não é aprendido do canavial. Nestes versos, o verbo “aprender” implica uma disponibilidade graças à qual o mar se ali-menta do canavial poeticamente (e.g. a elocução horizontal de seu verso). No terceiro verso, a geórgica é bem significativa por ser um poema em que se cantam a vida e o trabalho do campo. Mas, como esse mesmo verso indica, a geórgica estriba no plano da realidade socioeconômica pernambucana e não no espaço utópico alheio a questões históricas. Se a geórgica neste caso é narrada em voz e si-lêncio paralelos, o sisi-lêncio ressalta a marginalidade do ser como ob-jeto que ainda não virou sujeito na sociedade brasileira. Ao mesmo

tempo, aponta para o problema de transmissão da história e da

lite-ratura do trabalho do campo. Ainda assim, a palavra “paralelos” fri-sa a conjunção não dita de entre, isto é, a disjunção entre os seres ob-jetos e sujeitos na sociedade brasileira, e não a unificação, a qual anuncia o embrião nascente dos novos sujeitos estando não somen-te no mundo mas com ele (Freire, “Educação como prática da liber-dade” 47, 51).

Agora que o mar é dotado do verso pelo canavial, pode “cantar” e compartilhar a geórgica em vez de deixá-la ficar encerrada no ca-navial. Pode-se dizer, assim, que há uma conexão vital entre o cana-vial e o canto da vida e o trabalho do campo. Esta observação é crucial porque demonstra que o canavial não é só eixo de histórias poéticas, mas também de outras: sociais, econômicas e políticas. Em

relação a este ponto, Regina Igel argumenta que as próprias

obser-vações que Cabral teve na sua juventude – das ásperas condições socioeconômicas dos trabalhadores nordestinos – estão presentes na poesia dele. Segundo Igel, “Cabral imbui seus poemas imagéticos da energia da plantação, revelando sua graça e aspereza na medida em que desvenda a empobrecida realidade social que é camuflada pela abundante colheita” (Igel, “The Sugarcane Plantation in the Poetry of João Cabral de Melo Neto” 1)2.

2 Em seu ensaio, Igel cita Augusto de Campos e a sua descrição do poema “O canavial e o mar” como “reflective-didactic”, mas ela não se aprofunda no

(4)

Nos quatro versos a seguir, enumera-se o que o mar não apren-de do canavial. É certo que “a veemência passional da preamar” é uma qualidade da maré cheia da preamar. Mesmo assim, ao dissecar a palavra “preamar”, fica-se com o prefixo e sufixo “pré-amar”. Neste caso, como noutros, Cabral utiliza palavras que, ao serem de-cifradas, abrem pluralidades de significados. Às vezes, esta técnica é para desfazer hierarquias. Ao contrário da verticalidade do verso fornecido pelo canavial, os últimos dois versos da primeira estrofe – “A mão-de-pilão das ondas na areia, / Moída e miúda, pilada do que pilar”– conjuram uma imagem de horizontalidade.

Quanto à segunda estrofe, vê-se com maior clareza a maneira com que Cabral elabora uma relação didática entre o mar e o cana-vial. Agora, a posição é invertida, contando o que o canavial apren-de do mar:

O que o canavial sim aprende do mar: O avançar em linha rasteira da onda; A espraiar-se minucioso, de líquido, Alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial não aprende do mar: O desmedido do derramar-se da cana; O comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama

(Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 7).

Como se viu na primeira estrofe, o mar é equiparável ao ser hu-mano na sua capacidade de aprender de um outro ente. Isto é rele-vante também porque faz com que se considere o mar uma criatura humanizada. Quando o canavial aprende do mar consegue se ex-pressar como o mar. Noutras palavras, o canavial é capaz de se comportar como o mar sem perder o fluir que é dele próprio. Em-bora seja por causas distintas, o mar –tal qual o canavial– ondula e ritma-se. Portanto, a aprendizagem mútua facilita uma permeabili-dade identificatória mediante a qual um ente cobra o comportamen-to do outro. Além do mais, essa permeabilidade ou fluidez entre o tópico. Aliás, Igel não faz menção aos ecos da obra do conterrâneo recifense Paulo Freire, que faleceu apenas uns dois anos antes de Cabral em 1997. No entanto, Igel frisa poemas cabralinos, como “A cana–de–açúcar menina”, na personalização da natureza.

(5)

animado e o inanimado é uma técnica recorrente em muitos poemas cabralinos.

Diferentemente dos primeiros quatro versos da segunda estrofe, os últimos quatro versos do poema tendem a expor à vista, embora não exclusivamente, as características que são próprias de cada ente. Por exemplo, o canavial não aprende “o desmedido do derramar-se da cana” do mar. Talvez assim seja porque são os homens latifundi-ários que extraem o açúcar da cana para ser vendido e consumido. Isso explicaria o uso da palavra “desmedido”, cujo significado cono-ta desarmonia ou excesso. De fato, não é coincidência que a palavra “latifúndio” apareça no seguinte verso, a qual se refere à privatiza-ção da terra, isto é, a vantagem político-econômica do patrão sobre o trabalhador ou escravo. Roberto Schwarz observa que nos anos sessenta no Brasil “o aliado principal do imperialismo e, portanto, o inimigo principal da esquerda, seriam os aspetos arcaicos da socieda-de brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual socieda-deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados no progresso do pa-ís” (Schwarz, “O pai de família e outros estudos” 65). A descons-trução do latifúndio reverberou em vários núcleos intelectuais da sociedade brasileira da época: de dezembro de 1961 a dezembro de 1962 surgiu Violão de Rua, livro em que se centram questões sociais de luta e conscientização das camadas mais destituídas da sociedade brasileira, e, em dezembro de 1963, criou-se a Confederação Nacio-nal dos Trabalhadores Agrícolas3.

Como fenômeno da terra, o latifúndio não é considerado uma aprendizagem do mar. Porém, apesar das diferenças que são marca-das pelo que não é aprendido do mar, os dois entes da natureza têm algo em comum. O verbo “derramar-se” –que é empregado para o canavial e o mar– sugere uma semelhança em termos de moção. Por

3 A epígrafe do poema “Os homens da terra”, de Vinícius de Moraes em Violão de Rua, faz um nítido resumo das disputas intelectuais da época que res-soavam na poesia de muitos poetas brasileiros: “Em homenagem aos trabalha-dores da terra do Brasil, que enfim despertam e cuja luta ora se inicia” (Pinto e Silveira, “Violão de Rua” 82; e Buarque de Hollanda, “Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70” 20). Através de obras poéticas não se-melhantes, há tanto na poesia de Cabral como no poema “Os homens da ter-ra”, de Vinícius de Moraes, uma preocupação pelas condições de vida dos tra-balhadores da terra.

(6)

meio do verbo “aprender”, o poema desconstrói a metáfora: o ca-navial é um mar enorme a perder-se de vista no horizonte para logo depois ser recuperado com um sentido sociopolítico.

Além do poema “o mar e o canavial”, é preciso realçar a existên-cia de outro poema, também em A educação pela pedra, intitulado “O canavial e o mar” (1962-65). O poema “O canavial e o mar” é quase idêntico a “O mar e o canavial”, mas com duas mudanças significa-tivas. Como o título mesmo revela, a palavra “canavial” antecede a palavra “mar”, o que aponta para o desmantelamento da ordem (primeiro, segundo). Na relação didática construída por Cabral, ne-nhum dos entes da natureza exerce mais poder sobre o outro, tanto no aspecto visual como no conteúdo. Esta mesma pulsação demo-crática visibilizou-se em 1961 com o advento do primeiro Centro Popular de Cultura (CPC), cujo propósito fundamental foi o de de-finir estratégias para a construção de uma cultura nacional, popular e democrática. Tal esforço igualitário desencadeou:

Na organização de um amplo movimento cultural didático-conscientizador que tomava forma em toda uma série de grupos e pequenas instituições que surgiam vinculadas a governos estaduais, prefeituras ou geradas pelo mo-vimento estudantil. Em Pernambuco, com o apoio do governo de Miguel Arraes, o Movimento de Cultura Popular (MPC) formava núcleos de alfabetização em favelas e bairros pobres. Um novo método, criado por Paulo Freire, causava impacto” (Buarque de Hollanda, “Cultura e partici-pação nos anos 60” 9, 10).

De forma semelhante, em Pedagogia do oprimido (1968), livro pu-blicado apenas alguns anos depois de A educação pela pedra, Paulo Freire elaborou as suas impactantes teorias dialógicas, opondo-se às relações hierárquicas entre professor e estudante, e advogando por uma relação dialógica na qual a distinção e o próprio conceito hie-rarquizante entre professor e estudante é dissipado: “o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem jun-tos e em que ‘os argumenjun-tos de autoridade’ já não valem” (Freire, “Pedagogia do oprimido” 68-69)4. É assim que os poemas “O mar e

4 Em suas respectivas áreas de atuação, Freire, Arraes e Cabral são, todos, pensadores fortemente vinculados às realidades socioeconômicas de Pernam-buco. Em A educação pela pedra, por exemplo, detecta-se uma ênfase no

(7)

inter-o canavial” e “O canavial e inter-o mar” espelham a teinter-oria freireana de forma idealizada, enquanto o poema “A educação pela pedra” ex-põe mais o lado antidialógico da realidade pedagógica brasileira.

Como se viu anteriormente no poema “O mar e o canavial”, a relação entre o mar e o canavial gira em torno do verbo “aprender”. Mas, no poema “O canavial e o mar”, o verso “o que o canavial sim aprende do mar” é substituído por “o que o mar sim ensina ao ca-navial”. Se considerarmos os dois poemas uma unidade ou diálogo entre si, e não poemas isolados, a relação didática entre os dois po-emas é aumentada: só com ambos popo-emas cada ente da natureza aprende e ensina ao outro, sem deixar que um dos entes predomine. Dito isso, a troca do verbo “aprender” por “ensinar” implica, ao mesmo tempo, um movimento da passividade para a iniciação do ato. Ou seja, o aprender é tão fundamental como o ensinar sob a condição de que a troca seja mútua e equilibrada. Lidos juntamente, os dois poemas configuram um movimento de fluxo e refluxo, do qual participam os verbos “aprender” e “ensinar”:

O que o mar sim ensina ao canavial: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial sim ensina ao mar: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. 2.

O que o mar não ensina ao canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial não ensina ao mar: o desmedido do derrama-se da cana;

câmbio de conhecimento entre o mar e o canavial. Mais adiante, ver-se-á no poema “Paisagem do Capibaribe”, a indistinção entre a natureza e o ser huma-no. Embora “Paisagem do Capibaribe” não enfoque o didatismo da mesma maneira que os outros poemas, mostra, por um lado, a fluidez identificatória entre a terra e o ser humano, e por outro, a condição socioeconômica infra-humana do afrobrasileiro.

(8)

o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama

(Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 14).

Como já se demonstrou, os poemas “O mar e o canavial” e “O canavial e o mar” elaboram uma relação didática idealizada, e ao mesmo tempo limitada, de ensino e aprendizagem entre o canavial e o mar. Esse “didatismo mútuo” entre os elementos da natureza co-bra um valor especial se focalizarmos um poema como “Paisagem do Capibaribe”, do livro O cão sem plumas (1949-50). Neste poema, as flores da natureza não são somente personalizadas como “ne-gros” senão também proletarizadas devido à pobreza econômica e ao desamparo atribuídos aos negros5:

Aquêle rio

jamais se abre aos peixes, ao brilho,

à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes. Abre-se em flôres

pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga

como são os mendigos negros.

Abre-se em mangues de fôlhas duras e crespos

como um negro (Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 306).

Há uma transição bem reveladora entre a primeira e segunda es-trofe. Na primeira estrofe, o rio nunca se abre aos peixes nem em peixes por causa da “inquietação de faca que há nos peixes”. Abrir-se em peixes é dar-Abrir-se à violência. Mas, então, por que razão abrir-Abrir-se

5 A pobreza econômica pernambucana é tematizada pelo poeta Joaquim Cardozo, a quem Cabral dedica O cão sem plumas. No poema “Recife morto”, descreve-se uma espécie de decrepitude orgânica de algumas casas no Recife com conotações de negritude: “As janelas das velhas casas negras, / Bocas abertas, desdentadas, dizem versos, Para a mudez imbecil dos espaços imóveis” (Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 17). Antônio Carlos Secchin analisa os mesmos versos que sucedem o poema “Paisagem do Capibaribe”, mas sem realçar o seu conteúdo racial. De fato, Secchin prefere só falar em “homens” (Secchin, “João Cabral: A poesia do menos” 73).

(9)

em flores e fauna e não em peixes? A segunda estrofe diz que “o rio abre-se em flores pobres e negras como negros e numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros”. Cabe sublinhar que, frequentemente, o nordeste brasileiro, embora mais especificamente o sertão, é visto como terra áspera e seca. Tal é o caso do poema “A educação pela pedra”. Dito isso, a palavra “mendigo” é primordial para entender esta parte do poema, já que, embora os mendigos se-jam carentes sob o ponto de vista emocional, geralmente o são, efe-tivamente, em termos econômicos. Ao mesmo tempo, o sertão é outro mendigo para quem falta água. As flores pobres do rio que “se abre em mangues de folhas duras e crespos como um negro” reforçam a conexão entre a pobreza da terra e dos negros6. Vale le-var em consideração as reflexões teóricas de Haroldo de Campos acerca do livro O cão sem plumas. Em sua análise, Campos lembra que “traduziu-se este seu empenho pelo alargamento do auditório na investidura da temática do Nordeste — do subdesenvolvimento econômico agudo e do pauperismo dessa região — no bojo de sua poesia, cuja linguagem já se desvinculara antes, programaticamente, de compromissos com a poética do sublime e do seráfico” (Cam-pos, “Metalinguagem: Ensaios de teoria e crítica literária” 71).

A segunda parte do mesmo poema articula bem a permeabilida-de entre os elementos da terra e dos homens:

Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra; começa da lama;

6 João Alexandre Barbosa oferece uma leitura semelhante à minha: “desta maneira, o curso do rio, configurando o seu discurso (é através da abertura ou não que o rio fala ou silencia), refratário a peixes (brilho, inquietação), permite a “leitura” de uma realidade em que o natural (flôres) e o histórico (negros, men-digos) fazem parte de um mesmo repertório porque apontam para uma mesma condição (Barbosa, “O curso do discurso: Leitura de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto” 153). Mesmo que Barbosa ressalte o aspecto histó-rico dos “negros e mendigos”, neste poema, ver-se-á mais adiante que não examina o valor social, educativo, e histórico do poema “A educação pela pe-dra”.

(10)

onde o homem; onde a pele; começa da lama; onde começa o homem

naquele homem (Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 311).

Além de questionar a pretendida linha demarcatória entre os homens e a terra, o verso “onde começa o homem / naquele ho-mem / ” inquire os contornos existenciais dos homens. Então, em-bora o poema “Paisagem do Capibaribe” não focalize o intercâmbio didático como “O mar e o canavial” e “O canavial e o mar”, ilustra bem a conexão entre o sofrimento dos negros e a pobreza da terra, assim como a fluidez identitária entre os homens e a natureza.

Será preciso retornar ao tema do didatismo. Além da presença de verbos como “aprender e ensinar” nos poemas “O mar e o ca-navial” e “O canavial e o mar”, o poema “A educação pela pedra” desenvolve o conceito do didatismo, embora de forma distinta. O poema “A educação pela pedra” propõe duas educações pela pedra. A primeira educação é conceitualizada de tal forma:

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la

(Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 11).

Neste poema vale contemplar o tipo de relação didática que está patente. À diferença dos poemas “O mar e o canavial” e “O canavi-al e o mar”, em “A educação pela pedra” abundam mais pcanavi-alavras relacionadas com o didatismo (aprender, lições, dicção, aulas). Além disso, a presença de termos pedagógicos como “lições” e “aulas” faz levar em consideração, uma vez mais, o paralelismo entre o ideá-rio de Paulo Freire e a obra poética de Cabral. Aqui se pode pensar o leitor deste poema como um estudante que está à mercê de uma

(11)

voz poética que caracteriza o que a pedra tem de professoral7. Mas também, em muitos poemas do Cabral, a dificuldade de interpene-tração entre o aprendiz e o objeto de conhecimento (neste caso, a pedra) é uma metáfora recorrente na sua poesia. Essa dificuldade “obriga” ao leitor o ato de ler com a “mão esquerda”, ou seja, a fa-zer duvidar se entendeu ou não o próprio poema. A pedra como agente de conhecimento é quem possui o conhecimento desejado, mas claramente, nesta seção do poema, não há nenhum uso da pa-lavra “ensinar”. Ao designar a pedra como agente de conhecimento, ela tem uma dicção que deve ser aprendida e até uma moral. Mas, o que resulta chocante é essa “resistência fria” da pedra, sugerindo talvez que a pedra usufrua de uma posição autoritária da qual se re-cusa a despojar-se. Dito isso, a relação didática em “a educação pela pedra” é bem menos fluida do que nos poemas “O mar e o canavi-al” e “O canavial e o mar”. Assim mesmo, entre as várias definições da palavra “carnadura” significa “musculatura”. Este fato reforça a ideia de que a pedra, mesmo sendo “concreta” e impenetrável, con-tém características humanas. Também, cabe lembrar que “a carti-lha” é um pequeno livro em que se aprende a ler. Este conceito tem pelo menos duas implicações: a primeira comunica a ideia de o lei-tor (re)aprender a ler o poema, e a segunda poderá ser uma referên-cia à alfabetização do povo brasileiro.

Enquanto na primeira parte do poema a pedra não é vinculada a um sítio específico na natureza, na segunda parte a outra educação pela pedra é localizada no Sertão:

Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada;

7 É surpreendente que até João Alexandre Barbosa, preeminente scholar na obra de Freire, não estabeleça nenhum vínculo entre o conceito de educação no poema “A educação pela pedra” e as realidades sociais e político-educativas do Brasil na época em que Cabral escreveu o dito poema. Segundo Barbosa, o po-eta aprende mediante o fazer poético (Barbosa, “João Cabral de Melo Neto” 69). A interpretação de Barbosa é pouco elaborada porque intercala muitos po-emas cabralinos no texto sem esmiuçá-los. Que eu saiba, nenhum crítico literá-rio tem conjeturado sobre a relação entre as teorias freireanas e a poesia de Ca-bral. Mesmo Secchin, ao falar de “A educação pela pedra”, nunca une este po-ema às teorias de Freire (Secchin, “João Cabral: A poesia do menos” 223).

(12)

lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma (Cabral, “Poesias Completas” (1940-1965) 11).

Nesta segunda parte, a ação de dentro para fora contrasta-se com a ação da primeira parte de fora para dentro. Esta diferença ba-seia-se talvez no fato de que, na primeira parte do poema, o enfo-que é como aprender do poema desde fora; no entanto, na segunda parte o enfoque é o inverso: de como a pedra não sabe lecionar, ação iniciada desde dentro da pedra. A incapacidade da pedra “saber lecio-nar” é ligada a sua condição pré-didática. Quer dizer, a possibilidade de lecionar é inextricável do didatismo, tanto que lecionar mediante uma base pré-didática é difícil, senão impossível. Ao subverter o le-cionar, o pré-didatismo cessa o depósito de informações no outro (de que teoriza o Freire). Há várias maneiras de interpretar os versos “no Sertão a pedra não sabe lecionar, / e se lecionasse, não ensina-ria nada”. Sendo do Sertão, a pedra não ensinaensina-ria por ser manifesta-ção do contexto natural da pobreza. Se a pedra é pobre como a ter-ra, se assemelha ao paralelismo entre os negros e a terra no poema “Paisagem do Capibaribe”. Como os negros (pedras) não tiveram muita instrução formal nas instituições, “não sabem ensinar” no mundo das hierarquias sociais. Outra interpretação seria fazer uma distinção entre as palavras “lecionar” e “ensinar”. Seria, por exem-plo, demasiado redundante utilizar só um dos verbos “lecionar” ou “ensinar”. Porém, o uso de “lecionar” e “ensinar” pressupõe um contraste de significados. Aqui, talvez, Cabral impregne a palavra “lecionar” de uma carga negativa. Ditas de outro modo, as palavras “ensinar” e “lecionar” seriam conceitos incompatíveis, em vista de a última expressão verbal aludir mais às hierarquias institucionais.

Conclui-se, pois, que nos quatro poemas analisados de Cabral se espelham algumas das preocupações sociais de determinadas verten-tes da esquerda brasileira anverten-tes (e depois) dos anos sessenta. Em re-lação a este vaivém entre poesia e sociedade, visibiliza-se o parale-lismo entre o ideário de Paulo Freire e a poesia de Cabral, sobretu-do, em A educação pela pedra. Nos poemas “O mar e o canavial” e “O canavial e o mar”, o dialogismo é articulado de forma idealizada como troca de relativo equilíbrio entre o mar e o canavial. No en-tanto, o poema “A educação pela pedra” ilustra mais as facetas anti-dialógicas da “realidade brasileira”, na qual a pedra “leciona com

(13)

au-las”. Por último, o poema “Paisagem do Capibaribe” é útil na medi-da em que desmantela as “fronteiras” entre a natureza e o ser hu-mano. Dito isso, se “o negro e a flor” não são entes separados, o mar e o canavial são agentes humanizadores. Mais que natureza. BIBLIOGRAFIA CITADA

Barbosa, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. São Paulo: PubliFolha, 2001. —. “O curso do discurso: Leitura de o cão sem plumas de João Cabral de Melo

Neto”. Revista Iberoamericana 43 (1977): 149-167.

Buarque de Hollanda, Heloísa, and Marcos A. Gonçalves. Cultura e participação nos anos 60. 2a edição. São Paulo: Brasiliense, 1982.

—. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. 3ª edição. Rio de Ja-neiro: Rocco, 1992.

Cabral de Melo Neto, João. Poesias Completas (1940-1965). Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.

Campos, Haroldo de. Metalinguagem: Ensaios de teoria e crítica literária. 3ª edição. São Paulo: Cultrix, 1976.

Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. 29 edição. São Paulo: Paz e Terra, 2000. —. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

Igel, Regina. “The Sugarcane Plantation in the Poetry of João Cabral de Melo Neto”. World Literature Today 66,4 (1992): 661-664.

Secchin, Antônio Carlos. João Cabral: A poesia do menos. São Paulo: Duas Cida-des, 1995.

Schwarz, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

Vieira Pinto, Álvaro, and Ênio Silveira. Violão de Rua. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 1962.

Referências

Documentos relacionados

É também utilizado, juntamente com outros fármacos, para tratar o cancro da mama que se disseminou, o cancro dos ovários em estadio avançado e o cancro do pulmão de células

Pelo fato de a administração possuir o ser humano como um de seus centros de atenção, ela necessita buscar conceitos de compreensão com base em diversas ciências, e o

E) CRIE NO SEU CADERNO UM TÍTULO PARA ESSA HISTÓRIA EM QUADRINHOS.. 3- QUE TAL JUNTAR AS SÍLABAS ABAIXO PARA FORMAR O NOME DE CINCO SUGESTÕES DE PRESENTE PARA O DIA

Dirigi-me a casa, rapidamente, para pegar a máscara. Antes de palavra no plural, sem artigo: Não irei a festas durante a pandemia.. USO FACULTATIVO DA CRASE EXEMPLOS

Nesta visão algumas características positivas de nosso zoneamento já consolidadas são reforçadas, como os eixos estruturais, a distribuição da infraestrutura,

Conforme demonstrado neste estudo os pontos de monitoramento são localizados próximo ao lançamento do esgoto, em distância máxima de 400 metros, entretanto a

Sem desconsiderar as dificuldades próprias do nosso alunado – muitas vezes geradas sim por um sistema de ensino ainda deficitário – e a necessidade de trabalho com aspectos textuais

O presente estudo realizou uma análise descritiva, observacional e retrospectiva de pacientes atendidos no ambulatório de Hematologia do Hospital de Base de Brasília, no