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BIOÉTICA 4. Bioética, biologia, ética e ecologia: a bioética e o ser

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Academic year: 2021

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BIOÉTICA 4

Bioética, biologia, ética e ecologia: a bioética e o ser Radicação ontológica da bioética

Um dos maiores problemas da bioética como habitualmente tal disciplina ou área de conhecimento nos é servida refere-se à sua manifesta distanciação relativamente ao domínio ontológico, ao domínio do ser.

Se é fácil perceber a sua relação com a biologia e a ética, já não é fácil perceber a sua relação com a ontologia e a ontologia própria do ser humano, isto é, com uma onto-antropologia, mas não apenas com ela, pois

há uma radicação ontológica geral da bioética no seio de uma sistémica biológica e cosmológica geral, sem o que a bioética não passa de mais um

moralismo, apenas útil como forma de instrumentalização de isso que os mentores que assim procedam procuram dominar, o governo universal1 da vida.

Assim, a bioética relaciona-se com o ser de isso que constitui o seu campo de trabalho: a vida dos seres humanos, mas na relação com todo o biótopo que estes mobilizam com e na sua vida, mas também com o ambiente geral, não propriamente biológico, que é imediata ou mediatamente implicado. Há, deste ponto de vista fundamental, uma

necessária dimensão ecológica da bioética, de que trataremos mais adiante.

Percebe-se, então, que a bioética diz respeito a todas as formas de

relação humana com a vida própria do ser humano em contexto ecológico geral.

1 Este «universal» diz respeito apenas à vida como ela é conhecida no biótopo geral que é a biosfera

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Deve ser este o seu escopo e não se limitarem as suas ambições a um funcionamento meramente moralizador de comportamentos ou, pior, moralista e funcionalizador dos seus fins a uma ancilaridade política, económica ou outra qualquer, fundamentalmente irrelevante.

Isso com que a bioética se relaciona é com o ser do ser humano, de cada ser humano e de todos os seres humanos, não apenas no que esses seres possuem de biológico – no que seria uma inaceitável perspectiva partitiva e reducionista –, mas no que têm de total, no que tem de ser necessariamente uma perspectiva holística, que assuma como única a abordagem que lide com o ser humano como um todo.

Só a partir desta perspectiva ontológica holística pode ser possível algo de real como o famoso respeito pela pessoa humana ou, melhor ainda, uma relação de amor por essa mesma pessoa. Percebe-se, deste modo, facilmente, que o âmbito próprio da bioética é também o do bem-comum: uma bioética agente é um elemento construtor do bem-comum, e a bioética só faz sentido plenamente humano no seio deste horizonte e tendo o bem-comum como seu horizonte próprio.

A bioética trabalha não apenas para o bem do indivíduo, mas para o bem da comunidade.

Entre indivíduo e comunidade, sendo o bem-comum a finalidade última a promover, não há qualquer forma de oposição. O bem-comum é apenas atingível quando é realizável o melhor bem próprio possível para cada pessoa singular. O bem-comum é a soma dinâmica integrada e sistémica do bem próprio de cada pessoa singular, de todas as pessoas singulares, assim – e apenas assim – constituídas em comunidade. Um não existe e não pode existir sem o outro.

Deste modo, não é possível uma bioética digna do nome sem que o seu escopo não seja apenas o bem da pessoa singular, mas o bem desta integrado no bem-comum de toda uma comunidade, precisamente a

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comunidade a que essa pessoa pertence e que essa pessoa ajuda a erguer através da sua mesma pertença.

A bioética tem, pois, assim, uma dimensão política intrínseca, que lhe é inalienável.

Talvez melhor do que «bioética» o nome de «biopolítica» fosse mais apropriado. De qualquer modo, a dimensão política da bioética é indiscutível e não é possível constituir uma bioética qualquer sem que esta dimensão seja devidamente acautelada e pensada.

É apenas no seio desta dimensão política e como sua forma basal – como acontece em qualquer estrutura política real – que a parte propriamente económica da bioética faz sentido, isto é, faz sentido humano. Assim sendo, sempre que se encontra uma qualquer forma de dimensão económica quando está em causa uma qualquer questão bioética, é necessário ter presente que esta dimensão económica não diz respeito a escolhas políticas, por exemplo, mas diz, sim, respeito a uma dimensão

económica necessária que todo o viver político possui e que, no que tem de

fundamental, é independente do arbítrio dos seres humanos.

Logo, quando se pensa qualquer problemática bioética, há que saber que há domínios e momentos em que barreiras ontológicas de tipo

económico irão surgir, barreiras que não podem ser eliminadas ou

ultrapassadas, que, assim, condicionam necessariamente o que será a acção possível, mas que não impedem necessariamente o trabalho a realizar, embora o limitem necessariamente.

No entanto, momentos há em que a parte económica real – isto é, a ontológica – elimina qualquer possibilidade de trabalho. Mas tal implica que já não haja ou possa haver qualquer forma de problemática propriamente ética, pois não há já qualquer possibilidade de trabalho.

As impossibilidades ontológicas não constituem problemas éticos ou políticos.

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Tais impossibilidades são simples dados incontornáveis, profundamente relevantes do ponto de vista do ser, mas totalmente irrelevantes do ponto de vista ético e político. Por exemplo, no seio de uma catástrofe natural, tem toda a relevância ontológica a total ausência de meios terapêuticos não humanos, mas não tem qualquer relevância ética ou política. Já a existência de meios terapêuticos humanos, por exemplo, a existência de pessoal de saúde capaz de acção, é relevante dos três pontos de vista. Mesmo sem outros meios, os meios humanos devem agir com o que têm à mão, precisamente as suas mãos: o símbolo não necessita de mais explicitação.

Muito brevemente, podemos perceber que o campo de trabalho da bioética radica em estruturas ontológicas, que ultrapassam e integram a estrita ontologia antropológica, fazendo com que uma bioética qualquer digna do nome tenha necessariamente de ter em consideração a amarração ontológica de isso com que lida.

Ora, é precisamente na dimensão ontológica própria do ser humano que a intervenção de uma bioética se justifica, pois é o ser humano como

tal que está em causa e que justifica a intervenção.

Sem a dimensão ontológica do ser humano em causa, para quê uma bioética?

Esta dimensão ontológica assume todas as sub-dimensões partitivas que dela podem ser relevadas, por exemplo, biológica, sanitária, política, ética, psicológica, sociológica, religiosa, cultural em sentido lato ou estrito, etc.

No entanto, nenhuma destas dimensões parciais por si só ou em agrupamento restrito justifica o trabalho da bioética: esta dirige-se à

pessoa como um todo e como um todo ontologicamente considerado.

Sem esta consideração ontológica, corre-se sempre o perigo de redução do ser humano a algo de menor do que é realmente. E é esta

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redução que está sempre na origem da possibilitação de todas as formas de atentado contra não apenas a dignidade propriamente humana das pessoas, mas contra a sua mesma realidade existencial concreta, isso que a bioética deve trabalhar para defender e promover, enquanto tal.

Radicação ética da bioética

Tendo em consideração o que ficou estabelecido anteriormente, e sendo a ética uma parte própria irredutível da ontologia humana, presente como dimensão auto-constitutiva em cada e em todo o ser humano, por via desta sua dimensão ética, a bioética assume uma outra ligação ontológica com o ser humano, pois, como ética, é a ontologia própria do ser humano em movimento: cada movimento próprio de uma bioética é um movimento

ético, logo um movimento de auto-constituição própria do ser humano que o pratica.

A bioética é ontologia humana em realização.

Mas é-o porque é um movimento de um ser humano no sentido do bem-comum, porque do bem individual com este relacionado, de um outro ser humano, de uma pessoa. Não há movimento em bioética que não seja ontologicamente significativo, onto-antropologicamente significativo, positiva ou negativamente.

Esta acção depende sempre de uma qualquer intuição relativa a uma qualquer situação em que esteja em causa uma dimensão biológica de um ser humano, implica uma qualquer ponderação acerca dela e a tomada de uma qualquer resolução relativa a uma possível intervenção, a que se seguirá ou não uma intervenção. Há uma estrutura dinâmica e cinética do movimento bioético em tudo semelhante à da agência ética comum e geral.

Assim, todo o movimento em bioética é sempre fruto de uma qualquer deliberação, mais ou menos perfeita, de um qualquer sujeito ético, isto é,

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necessariamente humano, que leva a uma qualquer intervenção, mesmo que pela negativa, dado que, posta a situação, mesmo uma decisão de não intervenção constitui imediatamente uma forma de intervenção, por ausência de intervenção.

Ética e politicamente, é este um dos dados mais relevantes no que à bioética diz respeito (como acontece universalmente em todo o campo da ética e da política), pois, uma vez o sujeito bioético estando lançado na situação bioética não tem outra saída que não seja o laborar bioeticamente, mesmo que seja pela negativa.

É esta a situação sempre dramática e por vezes trágica em que, por exemplo, todo o pessoal de saúde se encontra, apenas por ser precisamente pessoal de saúde. É uma situação necessária, em que se exige sempre uma qualquer decisão, em que não há como não decidir e em que o sujeito,

assim tornado, mesmo contra sua vontade, bioético, é sempre responsável, em maior ou menor grau, pela decisão que toma e em que não há valores

ou tabelas deontológicas que eliminem a sua condição de sujeito ético-bioético-político em necessidade de tomada de decisão.

Desta decisão, como de todas as outras em âmbito ético e ético-político geral, promanam consequências irredutíveis que ou promovem um maior bem possível ou não promovem um maior bem possível.

A responsabilidade é sempre de quem toma as decisões, sendo que a

tomada de decisão não é um instantâneo evento isolado, mas tem sempre um historial, historial que congrega ontologicamente as responsabilidades

pelas consequências havidas. Este historial corresponde sempre a uma

qualquer pessoa, que, assim, é responsável pelo que tal historial congrega, isto é, é responsável por si própria enquanto tomadora de decisões.

Não há decisões vindas do nada ou mecanicamente redutíveis, todas têm um sujeito humano, imediato ou mediato, a que reportam (mesmo que haja máquinas capazes de tomar decisões ou de as replicar, o responsável é

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o ser humano que assim as produziu, mesmo que medeie um século entre a produção e decisão em causa).

Se, por exemplo, de um ponto de vista jurídico, tal não é contemplado, isso apenas quer dizer que há uma qualquer limitação da inteligência jurídica, voluntária ou não, mas não quer dizer que não haja uma responsabilidade mais funda.

Assim, e como exemplo, se alguém tiver decidido diminuir os recursos de socorro em caso de catástrofe, independentemente das razões aduzidas, que podem ser virtualmente infinitas e indefinidamente justificáveis ou não, se houver uma qualquer catástrofe e os meios reduzidos não forem suficientes, então, não é por a decisão ter sido tomada há dez anos e de uma forma formalmente legítima que deixa de ter responsabilidade na vitimização das vítimas quem tomou tal decisão.

Ética e politicamente é assim, e se outras dimensões não contemplam esta dimensão ética e política radicada ontologicamente – que é o forum onde o fundamental da questão se passa – tanto pior para a humanidade.

Tal atitude deveria ser abandonada e o cuidado com o bem-comum deveria presidir às decisões dos que são encarregues dos destinos dos povos.

Note-se que, deste ponto de vista, haverá muito poucas decisões de governo político dos povos que possam não vir a ter, de uma qualquer forma, uma eventual implicação bioética. Este horizonte transcendental deveria estar presente nas mentes dos decisores políticos administrativos.

Radicação biológica da bioética

Sem a dimensão propriamente biológica do ser humano, que é o que está em causa, não faria sentido a existência de algo como uma bioética, pois a restante ética, geral e especializada, bastaria. Assim, é

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especificamente para o que diz respeito à dimensão biológica do ser humano que a bioética faz sentido.

Deste ponto de vista, na sua vertente científica, a bioética pode ser entendida como uma ciência da vida, ciência da vida relativa não ao estudo da estrita especificidade da mesma, mas à sua relação com a fonte ética dos

movimentos humanos que condicionam a mesma vida, especial e mormente

a humana. A parte dedicada à saúde é apenas uma sua sub-parte, se bem que importantíssima.

Ora, se o olhar da biologia, como ciência, deveria ser um olhar desapaixonado sobre a vida – o que nem sempre acontece – o olhar da bioética deve ser um olhar apaixonado, pois o seu papel não é um papel descritivo ou narrativo ou meramente intelectual, mas um papel que parte de uma compreensão o mais lata e profunda possível para uma intervenção

concreta cuja única finalidade é a promoção da vida e da sua grandeza própria.

Tal implica, na relação com os seres humanos, que deva promover

uma cada vez maior e melhor dignificação da mesma vida humana, todavia

sempre em relação com todas as outras formas de vida e com todas as outras formas de existência, contribuindo, assim, não apenas para uma promoção da humanidade como mais uma espécie, em concorrência biológica com as outras, mas para uma promoção da mesma humanidade como agente de uma cada vez melhor co-existência biossistémica universal.

Sem qualquer forma de mitificação ou de utopização, é apenas no seio deste ambiente de contribuição humana, consubstanciada na implementação biossistémica da novidade biológica e cosmológica constituída pelo sentido teleológico do bem-comum, fundamentalmente diferente do sentido de uma competitividade cega e bio-entrópica, que se pode pensar a sobrevivência de um biótopo, o terrestre, que, após a

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novidade humana, não podendo, por enquanto, viver sem ela, pode encontrar no literal convívio com ela, uma possibilidade única de perpetuação, pois é a única realidade que sabe como atrasar a entropia que ameaça constantemente a vida.

A bioética pode ser uma forma ilustre de combater esta entropia no que ao ser humano diz respeito, mas, para tal, tem de assumir uma atitude verdadeiramente ecológica.2

A bioética como parte de uma nova «ecologia» eco-onto-ética

Espera-se, pois, da bioética não formas moralistas, sempre servas de inconfessáveis vontades de poder, mas uma contribuição para o que se pode definir como o bem-comum da vida como a conhecemos, mormente a vida humana. É neste horizonte epistemológico que a bioética deve ser reposta como uma reflexão acerca da vida, das ciências da vida e de todo o trabalho que se exerce sobre a vida, tendo como pano de fundo a ontologia geral da vida como a conhecemos, isto é, a vida como um irredutível

sistema ecológico.

A realidade da vida humana e de tudo o que dela decorre não existe separada da demais realidade e da demais realidade vital. A vida humana relaciona-se com o meio que a rodeia, é por ele condicionado, condiciona-o, quer este meio seja um meio redutoramente considerado apenas como biológico quer seja considerado como um meio paradigmaticamente biotípico, em que todas as dimensões ontológicas nele consideráveis são realmente consideradas.

Assim, a própria noção de saúde, em seu sentido mais vasto, que inclui, por exemplo, a imensurável noção de «bem-estar», recebe uma nova

2 Não nos referimos evidentemente a formas menores de ecologia, ancilares de vontades de poder mal

disfarçadas, mas à atitude ética que percebe o conjunto da vida como íntegro e a habitação desta mesma vida como um lugar comum tanto mais rico quanto mais nele a diferença puder existir, sem abusos de agressividade, sempre aliados de uma entropia inexorável.

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luz, percebendo-se que a saúde humana não é algo de separado, mas algo de ecologicamente integrado num biótopo geral que inclui todas as formas de vida e sua inter-agência, mas também todos os condicionantes puramente físicos-não-vivos, de um modo tão amplo, que inclui também a própria agência humana como forma necessariamente integrante desse e integrada nesse biótopo.

A consideração da vida humana e da saúde humana assume uma dimensão de interdependência necessária com a totalidade do meio, quer ele seja meramente físico quer seja também biológico quer seja também ético-político.

As questões da vulgar bioética passam a enquadrar-se num âmbito mais vasto, em que ganham uma outra dimensão, passando a perceber-se que muito do que se joga em bioética se refere não apenas ao ser humano como algo de separado e de irrelacionado com o demais da realidade, mas a esse mesmo ser humano como parte integrante dessa mesma realidade.

Tal permite que todos os elementos que contribuem para a realidade da situação que reclama a intervenção bioética surjam a uma outra luz, precisamente já não como algo de estranho, mas como algo que pertence de direito à mesma problemática bioética. Por exemplo, as questões de índole económica já não parecem ser de âmbito exterior à bioética, mas revelam-se em toda a sua pertinência como elemento próprio daquela situação. Pode mesmo ser que, num caso extremo, toda a questão, que agora é da ordem da bioética, seja motivada por um elemento económico. Sem este elemento, cuja presença pode ser legítima ou não – o que como elemento que provoca a situação que necessita de intervenção bioética não interessa, passa a interessar como isso que a bioética vai ter de pensar e resolver –, nem situação própria para uma intervenção bioética haveria.

Todas as situações habitualmente tratadas em termos de bioética ganham um outro sentido mais profundo quando perspectivadas neste

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horizonte eco-onto-ético, em que se patenteia que é o ser do ente está em causa que importa em termos bioéticos, mas no seio de tudo o que forma precisamente o seu contexto bio-onto-ecológico.

Américo Pereira UCP / FCH

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