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As cartas que nunca te enviarei...

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Academic year: 2021

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P á g i n a | 1 Redação: Angélica Dias/Judite Rodrigues Fotografia: Helena Oliveira/Mariana Santiago

As cartas que nunca

te enviarei...

Quatro décadas foram suficientes para quase acabar com a

correspondência escrita entre apaixonados. Duas pessoas de gerações

diferentes dão-nos conta do seu testemunho. Ontem era “cartas de

amor quem não as tem” e hoje é SMS‟s de amor quem não as recebe.

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entada no sofá da sala de estar, Dona Marinha relembra com um sorriso ternurento o dia 24 de Abril de 1973. Podia ter sido mais um dia como todos os outros no atelier de costura, não tivesse ela recebido a carta de um jovem militar português em serviço no norte de Angola.

Durante a guerra colonial era hábito os soldados enviarem cartas a pedirem madrinhas de

guerra para que pudessem passar o tempo e partilharem o seu dia-a-dia no ultramar.

Foi a primeira carta que Fernanda Marinha recebeu, tinha ela 21 anos. Um aerograma amarelo quepediaao carteiro que entregasse a carta a uma moça de Guimarães.

Dona Marinha não ia responder, não era hábito das raparigas do

atelier responderem a este tipo de

cartas. Todavia, a intensa persistência das colegas fez com que pensasse duas vezes: “nós líamos sempre este tipo de cartas em voz alta e ficavam sempre sem

resposta, mas como a letra era tão bonita e ele escrevia tão bem e elas insistiram tanto… decidi responder” (risos), recorda com alguma timidez ao pegar na primeira de muitas cartas que recebeu de Joaquim Oliveira. É com cuidado que a abre e, apesar de as mãos que a abriram pela primeira vez já notarem o passar do tempo, deixando a juventude lá trás, o sorriso é radiante.

A partir desse dia tudo mudou para a costureira e para o militar: "Ficava muito contente quando recebia as cartas dele, estava mais próxima dele”, relata folheando as cartas cautelosamente. À medida

que foram trocando

correspondência, a relação foi fortalecendo.

O vaivém de cartas durou cerca de sete anos, seguindo-se o casamento. As cartas ficaram guardadas. Eram enviadas, religiosamente, duas por semana. No total foram escritas cerca de 448 cartas. Algumas perdidas, outras ►

S

“Nunca fiz rascunhos, escrevia

só uma vez. Esforçava-me imenso

para fazer uma caligrafia bonita.”

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► enroladas numa fita verde que as segura e junta para que não se perca uma palavra. Já lhes pesam os anos. As esquinas rasgadas e a cor gasta dominam o papel.

rocurando mais cartas num baú estragado pelo tempo, outrora pertencente a sua mãe, Dona Marinha admite que nunca fazia rascunhos, só escrevia uma vez, esforçando-se para fazer uma caligrafia bonita. Selecionava cuidadosamente cada palavra que usava para se expressar da melhor forma.

Os assuntos eram diversos e desenvolviam-se a cada carta que era

mandada e recebida. “Falávamos de muita coisa: o dia-a-dia, das saudades dele de casa e da família e da vida em ultramar”. Tal como Tony de Matos dizia na sua música “Cartas de Amor”:

“Cartas de amor Pedaços de dor Sentidas de alguém

Cartas de amor, andorinhas Que num vai e vem, levam bem Saudades minhas

Cartas de amor, quem as não tem (…)”

Dois a três dias era o tempo de espera pelas cartas dos “enamorados”. Se fosse hoje, Dona Marinha não teria que esperar tanto tempo por uma resposta, já que a evolução das ►

P

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Agora existem meios mais práticos: e-mail, SMS, redes sociais… “As pessoas têm receio de escrever cartas, é quase uma pressão (…)”

► das tecnologias possibilitou uma comunicação quase imediata entre as pessoas.

UMA VISÃO DIFERENTE

carta é um processo longo e temos mais preocupação” afirma Cátia Pereira, de 19 anos, pois “envolve mais tempo, emoção e mais entrega”.

Aproximadamente, quarenta anos separam a juventude de Dona Fernanda e da jovem. E esse período de tempo foi suficiente para que a carta deixasse de fazer parte essencial das histórias de amor. Esta é cada vez mais substituída pelos jovens que optam por meios mais práticos e fáceis para se expressarem, “assim sabemos mais rapidamente se a pessoa recebeu a nossa mensagem, por e-mail, por SMS…”, acrescenta a jovem.

“Na carta vou dizer a razão pelo qual o amo e não simplesmente que o amo (…) ", explica com um sorriso envergonhado. Os jovens de hoje já não sentem a necessidade de se expressarem de forma quase exaustiva, basta uma frase: "Eu amo-te".

Já não é tarefa compreensível pegar numa caneta e num papel, começando por “olá bonequinha querida” e acabando com “ recebe votos de felicidade e um beijinho com muito respeito na testa deste que apesar de tudo te ama muito e que te deseja de todo o coração”, tal como Joaquim escrevia à sua amada e madrinha de guerra. Agora, "as pessoas têm receio de escrever cartas, é quase uma pressão”, diz Cátia com alguma incerteza. “Podem ser ridículas para quem está de fora, mas para nós têm muito mais valor” (risos). A este propósito também o heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, mencionava no seu poema “Cartas de amor” que:

"Todas as cartas de amor são Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.”

“A

M ar ia n a S a nt ia g o

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No coração de quem um dia recebeu cartas de amor fica a saudade da época em que uma folha de papel servia para muito mais que escrever duas frases na sala de aula.

O tempo leva algumas coisas e trás outras e o que o homem estranha, no momento seguinte entranha. Todavia, o que é novo nem sempre é o melhor em todos os aspetos. Os meios mais práticos, atualmente, para comunicar apresentam desvantagens. A de maior relevância prende-se com a questão do arquivo, pois estas ferramentas tecnológicas são limitadas quanto à capacidade de armazenamento de informação.

DO DECLÍNIO À SIMBOLOGIA s cartas, apesar de ridículas, são consideradas quer pelos mais jovens, quer pelos mais velhos, o meio de comunicação que prima no que toca ao romantismo. Era o

perfume que se

colocava, as fotografias que se mandavam e

recebiam, sempre

escolhidas com cuidado, as rosas encarnadas e as despedidas sentidas de quem estava longe, mas perto.

Outrora, as cartas traziam memórias e sonhos, hoje são apenas recordações de um tempo lá longe. Agora é o ►

A

Era o perfume, as fotografias, as rosas e as despedidas sentidas. Mariana Santiago

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Hoje as mensagens de

amor são mais objetivas

e diretas.

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►►toque do telemóvel a anunciar a receção de uma mensagem onde “os namorados são mais objetivos e diretos, dizem logo que sentem saudades, escrevem „minha bebé‟ e „fofinha‟ “, afirma Cátia com alguma tristeza.

A forma de as pessoas comunicarem mudou. Mudou também a maneira como os jovens namorados comunicam e partilham o seu amor. Hoje são poucos aqueles que usam cartas para manter contacto quase diário. Existem SMS, redes sociais ou outras formas. As cartas, esse meio mais sofisticado e romântico, são usadas apenas em momentos mais especiais como em aniversários e reconciliações.

O meio usado para comunicar pode já não ser o mesmo mas o conteúdodas mensagens, esse sim, sempre se manterá: o amor. Dona Marinha foi-se adaptando às novas formas de

comunicar. As suas mãos não seguram mais cartas de amor, mas um telemóvel que segundo a mesma serve sobretudo para “despachar”. Confessa que atualmente era capaz de mandar uma declaração de amor por SMS, “mas não tem tanto valor…”.

Nem mesmo a fita verde que prende as cartas conseguiu manter a esperança de estas permanecerem no imaginário dos jovens casais como o único meio de transmitir o amor.

As cartas de Dona Marinha ainda se encontram guardadas no baú velho, algumas partes soltas de frases sentidas, escritas há mais de 30 anos. ●

Agora “os namorados (…) escrevem „minha bebé‟ e „fofinha‟”.

Referências

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