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A MORADA DA IMAGINAÇÃO A casa como espaço de criação em Mia Couto

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A MORADA DA IMAGINAÇÃO

A casa como espaço de criação em Mia Couto

Taiane Santi Martins (doutoranda Letras/PUCRS)

O presente artigo pretende analisar a imagem da casa no livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra de Mia Couto, a partir dos conceitos sustentados por Gaston Bachelard em sua Poética do espaço. Em setembro de 2014, Mia Couto esteve em Porto Alegre para ministrar uma aula magna intitulada: Guardar memórias, contar histórias e semear o futuro; como parte das comemorações dos 80 anos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Para falar a respeito de tempo e memória, o escritor contou alguns fatos e vivências pessoais, em suas palavras ressaltou a importância da casa para sua formação como escritor. Mia Couto não cita Bachelard, mas sua narrativa vai ao encontro das teorias do francês:

E começo pela casa onde nasci, onde eu vivi minha infância. E é muito curioso que nós chamamos a nossa casa, (...) como se nós seguíssemos vivendo nela toda a vida. E confirmamos (...) da maneira como nós nos referimos a nossa casa de infância aquilo que eu, alguma vez, teria escrito (...): o importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. Esta casa converteu-se em memória porque ela foi carregada de encantamento. E mais do que tijolo e madeira, os materiais que produziram esta casa foram histórias. Eu sou filho de imigrantes e (...) como todos os imigrantes eles contavam histórias. (...) E de tanto contarem essas histórias eles acabaram de fazer dessa narrativa, dessa ficção uma espécie de uma outra residência. Um regresso de sua própria terra natal (Mia Couto, 10 de setembro de 2014).

Na Poética do espaço, Bachelard (1990) discorre a respeito da casa e sua relação com a memória e com o imaginário. Sendo a casa o primeiro universo do ser, ela acaba ganhando valores oníricos consoantes. Todos os espaços de morada, aliados às lembranças, permitem a evocação do devaneio e a construção de imagens que remetem aos tesouros dos dias antigos, ou seja, da memória da infância. Em outras palavras o filósofo francês está se referindo a mesma casa carregada de encantamento da qual fala Mia Couto, porque ela é uma construção imagética, uma projeção do inconsciente. Nesse sentido, a imaginação faz uso da casa, do lugar de abrigo, para a construção reconfortante de uma ilusão de proteção. A casa representa um berço que abriga o devaneio e protege o sonhador. Ela se torna uma das maiores forças de integração dos pensamentos, lembranças e sonhos do homem. Ela se torna

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combustível da imaginação. A casa do escritor moçambicano é povoada de histórias, de narrativas ficcionais nascidas das lembranças e da imaginação de seus pais. São as palavras, com um valor quase mágico, proferidas pelo pai e pela mãe do escritor que constroem as paredes, portas e janelas não da morada que Mia Couto passou sua infância, mas daquela que mesmo depois de adulto continua morando nele e, por conseguinte, em suas histórias. Quando revisita esta casa natal o escritor, assim como nós, adiciona a ela valores de sonho. Como diz Bachelard: “Nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida” (BACHELARD, 1990: 26). E como poeta é possível, sem que se rompa a solidariedade entre memória e imaginação, transmitir a elasticidade psicológica de uma imagem que comove profundamente.

Jean-Paul Sartre conceitua a imaginação como uma produção mental associada à construção de imagens (SARTRE, 2008). Além de vinda do entendimento, que entendo aqui como fruto da observação e reflexão atenciosa da realidade e das minúcias da condição humana. Seria, então, encargo do escritor criar imagens através de palavras. Mas não qualquer imagem, imagens poéticas, como diz Bachelard. Que são imagens que seduzem. A imagem poética é capaz de produzir “um verdadeiro despertar da criação poética na alma do leitor. Por sua novidade, uma imagem poética põe em ação toda a atividade linguística. A imagem poética transporta-nos à origem do ser falante” (BACHELARD, 1990: 7). Por isso ela comove, porque ela se torna pertencente ao leitor, enraíza-se nele. E dá ao leitor a impressão de que ele poderia, e deveria, tê-la criado. E o lugar mais próximo da origem do ser é a casa natal, a casa de Mia Couto.

Segundo Sartre “toda teoria da imaginação deve satisfazer duas exigências: justificar a discriminação espontânea que o espírito opera entre suas imagens e suas percepções e explicar o papel que a imagem desempenha nas operações do pensamento” (SARTRE, 2008: 110). É o pensamento que gera uma construção artística sobre a narrativa ficcional, e ele é baseado numa relação direta com o mundo real. Se o processo de criação ficcional surge do trabalho intelectual do escritor e de sua reflexão profunda sobre a vida e a natureza humana o fruto de seu trabalho deve proporcionar ao leitor o mesmo tipo de reflexão. Reflexão esta que certamente não termina, mas sim inicia, após a conclusão da leitura de uma narrativa.

Como relação ao processo cognitivo desenvolvido pelo receptor após a conclusão da leitura de uma obra literária. Paul Ricoeur parte da tese fundamental de que “é a narrativa que torna acessível a experiência humana do tempo, o tempo só se torna humano através da narrativa” (RICOEUR, 2010). E é para examinar e sustentar esta tese que o filosofo francês escreve os três volumes de Tempo e Narrativa. As

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obras de linguagem, em particular as narrativas ficcionais, se mostram mediadoras entre um ponto de partida e um ponto de chegada que levam o leitor de uma determinada configuração de mundo a outra. Pode-se dizer que o trajeto entre o ponto de partida e o ponto de chegada que acontece na narrativa de ficção torna o fechamento de uma obra um item importante. Falar em fechamento de uma narrativa equivale a falar que suas amarras são bem feitas, que ela é bem costurada e que proporciona uma compreensão simbólica do mundo.

Ademais, a maneira pela qual o escritor desperta no leitor o pensamento crítico, o sentimento de empatia, e a capacidade de perceber uma história fictícia como uma pulsão de vida e realidade é através da construção atenciosa de imagens. Maria José Duel diz que na vida cotidiana as imagens são um instrumento básico do pensamento prático (DUEL, 2007). Mas na arte literária a função da imagem é a de singularizar um objeto, uma cena, uma personagem, é causar uma impressão máxima no leitor e aprofundar o significado do texto. Voltamos ao sentimento de comoção profunda ao qual se refere Bachelard e a função da imagem poética. Para ele não é necessário que o leitor tenha vivido os mesmos sofrimentos, ou tido as mesmas vivências que o poeta, que o escritor, para compreender a felicidade de palavras oferecidas pelo texto. “A poesia tem uma felicidade que lhe é própria” (BACHELARD, 1990: 14), entendo aqui a poesia também como a prosa, como a linguagem literária. Trata-se, então, de imagens criadas não pela vida, mas pelo autor. “Trata-se de viver o não vivido e de abrir-se para uma abertura de linguagem” (BACHELARD, 1990: 14). A imaginação vem colocar-se na margem em que a função do irreal vem “arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos” (BACHELARD, 1990: 18). Ou seja, a imagem poética reformula, resignifica, singulariza, tira do óbvio o mundo e o vivido. A imagem poética está sob o signo de um novo ser. Foi o que os pais de Mia Couto fizerem por ele na infância. Através do pequeno ritual diário de narrar histórias, transformaram a casa num templo da imaginação. Um lugar seguro onde ele pode buscar elementos para fazer de si próprio um contador de histórias:

todas as noites os meus pais sentavam na cabeceira de minha cama e inventavam lembranças, contavam histórias e diziam poemas. O que me fascinava nisso não era exatamente o conteúdo. (...) E o que me restou desse encantamento que me roubava do mundo e do tempo foi essa memória que sendo ilusória é a grande verdade que mantenho e na qual eu próprio me converto em escritor. Sou filho de imigrantes, mas sou, sobretudo, filho de histórias (Mia Couto, 10 de setembro de 2014).

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Antes de se tornar escritor, Mia Couto foi consumidor de histórias e tornou os frutos da imaginação de seus progenitores a verdade que ele carrega. Não importa se o que ouvia dos pais era verdade, ou não. Ele mesmo diz que não se lembra de nenhuma das histórias ouvidas, mas lembra-se do encantamento, do efeito que elas produziam sobre ele. E de como elas estão enraizadas e inseridas no lugar mágico que é a casa natal. Nesse sentindo, não é um espaço delimitado pela matéria, ou refletido na geometria das paredes e na densidade dos tijolos. É um espaço percebido pela imaginação. Bachelard diz:

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem (BACHELARD, 1990: 19).

É bem possível que a casa natal da qual se lembra Mia Couto pouco tenha a ver com a casa real em que ele habitou na infância, mas isso pouco importa. Ela já é parte intrínseca de seu ser e de seu imaginário. A tal ponto que foi usada como matéria prima de livro e como metáfora da pulsão criadora do autor.

O romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto, coloca a casa como centro de importância desde o título. A narrativa gira em torno da personagem narrador Mariano, um estudante universitário que volta para Luar-do-chão, sua cidade e ilha natal, depois de muitos anos de ausência. Seu retorno é dado por ocasião da morte do avô e patriarca da família, Dito Mariano. Na companhia de Abstinêncio, seu tio mais velho, Marianinho atravessa o rio que separa a ilha da cidade. E ao desembarcar no porto, o jovem se encontra com a paisagem da vila transformada. Antes uma vila cortada por uma única rua, a irônica Rua do Meio. Agora novos caminhos de areia abertos num emaranhado. Mas ainda uma vila demasiado rural, em falta para com a “geometria dos espaços arrumados”. “As casas de cimento estão em ruínas, exaustas de tanto abandono. Não são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronado” (COUTO, 2003: 27). As casas da vila estão exaustas, elas sentem o tempo passar e o espaço ruir. Pelos olhos e pela voz da personagem narrador, Mia Couto dota as casas da vila com sentimentos saídos das lembranças de Mariano. Lembranças que a personagem sente como se viessem de uma parte já morta de si mesmo. Dói-lhe ver a ilha como está, dói-lhe ver a decadência, a miséria de Luar-do-chão, porque de certa forma ele se mescla a ilha, pois faz parte dela. É o seu lugar de origem. Se uma visão geral da ilha de Luar-do-chão ainda na chegada de Marianinho já reverbera no seu íntimo, imagine o encontro com sua casa natal.

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Por fim, avisto a nossa casa grande, a maior de toda a Ilha. Chamamos Nyumba-Kaya, para satisfazer familiares do Norte e do Sul. “Nyumba” é a palavra para nomear “casa” nas línguas nortenhas. Nos idiomas do Sul, casa se diz “kaya”.

(...) A casa é um corpo – o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus. Sobre mim se abate uma visão que muito se irá repetir: a casa levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E eu olhando a velha moradia, a nossa Nyumba-Kaya, extinguindo-se nas alturas até não ser mais que nuvem entre nuvens (COUTO, 2003: 28-29).

A casa, no romance, merece e ganha uma apresentação formal e detalhada como se fosse qualquer outra personagem importante da trama. Ela ganha nome próprio e ao ser nomeada se revela como metáfora de união de duas culturas. Nyumba-Kaya agrada tanto os parentes do norte como os do sul. Ela é a personificação da crítica velada que Mia Couto faz em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. É representação de um desejo, talvez inconsciente, ainda que racional de tornar Nyumba e Kaya uma coisa só. Não um ser homogêneo, já que não há a predileção de um termo ou de outro. Mas um ser harmônico, ainda que plural, posto em diálogo pelo uso das duas palavras. Cada uma em sua respectiva língua, definindo o mesmo ser. Além de nome a casa ganha corpo, cabeça e membros não explícitos. Mia Couto faz do telhado cabeça do ser de Nyumba-Kaya e o luto a transforma em asas. O céu que adentra a sala para limpar as sujidades cósmicas se transforma em leveza de voo. Leva embora os pesos do luto, mas também a casa em si mesma. Dessa maneira, o autor coloca a casa no lugar de sonho, converte-a em imagem. Bachelard diz que a casa “é um corpo de imagens que dão aos homens razões ou ilusões de estabilidade” (BACHELARD, 1990: 36). O voo não é estável, mas a imagem da casa extinguindo-se nas alturas até se tornar nuvem traz ao leitor a sensação de aconchego e de leveza. Não obstante de embate e fuga. Marianinho está retornando ao lar e vê sua morada escapar para os céus.

A Poética do espaço de Bachelard diz que reconhecer todas as imagens que compõem a casa significa revelar a alma da casa e para isso seria necessário levar duas coisas em consideração. 1) “A casa imaginada é um ser vertical” (BACHELARD, 1990: 36). O que se pode notar em Nyumba-kaya, ela se eleva. Tanto que levanta voo. E tal verticalidade pode ser notada por uma comparação utilizada pelo filósofo francês entre o sótão e o porão. Onde o sótão representaria a racionalidade, enquanto o porão representaria a irracionalidade, o inconsciente. Mia Couto não usa tais termos, no entanto deixa clara a verticalidade do teto da casa ao fazê-lo alcançar as nuvens. Um teto que foi aberto justamente para que o céu adentrasse o interior dos cômodos.

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Mesmo que a casa não levante voo de forma literal, ela é tomada e envolvida pelo céu. Nesse sentido, a moradia da família pode ser entendida como uma representação do conflito racional do romance.

Há alguns parágrafos eu estive dissertando a respeito da crítica latente que Mia Couto faz através de sua história imaginada. Tal crítica faz referência ao embate de culturas, à preservação de tradições africanas. Assim, a casa entendida como uma perspectiva mais racional do conflito da narrativa é o pássaro com asas de telhas que voa em direção à modernidade. Enquanto o porão de Mia Couto seria a própria terra, porque ela é entendida como casa desde o título do romance: uma casa chamada terra. É o próprio chão firme de Luar-do-chão que cumpre papel de porão, de inconsciente. Porque é a terra que reclama a memória de tudo que se passou sobre ela e se vinga do descaso para com as tradições fechando-se sobre si mesma. Depois de chegar à casa natal e se encontrar com os parentes o que Mariano acaba descobrindo é que o avô não está, de fato, totalmente morto. Ele estaria numa espécie de dimensão alheia ao nosso mundo de onde consegue se comunicar com o neto. A forma de comunicação que o quase falecido encontra são cartas que aparecem misteriosamente para Marianinho. Sem saber de onde aquilo vem, a personagem toma as cartas como algo alheio de seu mundo, especialmente quando reconhece nos escritos a sua própria grafia, sem nunca ter se lembrado de escrever em tais papéis. O conteúdo das cartas do avô quase morto traz ao neto tarefas que ele deveria cumprir para salvar toda a família e também a própria ilha de Luar-do-Chão. Assim, as cartas de Dito Mariano são o vazio de sua rememoração. A transcrição de antigas lembranças que não trazem a personagem de volta a vida. Ele agora escreve pelas mãos de Marianinho, mas está tão morto, ou quase morto, do que no início do romance.

Se dirigindo para o final da narrativa, os parentes já inquietos e impacientes com a falta de morto e de corpo resolvem fazer um funeral a qualquer custa, com objetivo de por fim a toda confusão. O que eles não esperavam é que a terra se fechasse. Marcado o dia e contratado o coveiro a cova não pode ser aberta. Não importava o lugar onde Curozero Muando, o coveiro, tentasse cavar e a força que impusesse na pá, a terra simplesmente não saía de seu lugar. Era a vingança a terra.

O que se passava era, afinal, bem simples: a terra falecera. Como o corpo que se resume a esqueleto, também a terra se reduzira a ossatura. Já sem ombro, só omoplata. Já sem grão, nem poeira. Apenas magma espesso, caroço frio. (...)

Grande culpa vinha da guerra, continua o coveiro. Soterraram muita gente baleada, o chumbo transvazara dos corpos enterrados para o chão. Agora já não havia cova, nem fundo.

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Já nem terra poderíamos extrair da terra. É vingança da terra, repetia (COUTO, 2003: 178).

É dessa maneira que a terra reivindica sua memória e se instala no campo do inconsciente, do onírico. E é somente depois de resolvidos todos os conflitos que Dito Mariano consegue finalmente morrer em paz e fazer a terra se abrir. É o próprio morto quem decide despedir-se de si mesmo.

Já passou o meu momento. Você está aqui, a casa está sossegada, a família está aprontada. Já me despedi de mim, nem eu me preciso. (...) Vai ver mais como a terra se voltará a abrir, oferecida como um ventre onde tudo nasce. Já sou um falecido inteiro, sem peso de mentira, sem culpa de falsidade. Me faça um favor: meta no meu túmulo as cartas que escrevi, deposite-as sobre o meu corpo. Faz conta me ocuparei em ler nessa minha nova casa (COUTO, 2003: 238).

Dito Mariano vai se embora para uma nova casa, ele não usa a palavra mundo, ou dimensão, ou qualquer outra para designar sua morte. Refere-se à ela como uma nova casa e ele pode finalmente a habitar, pois sua casa natal, Nyumba-kaya, está sossegada. Assim como a terra está em paz e voltará a se abrir oferecida. De tal forma, é entre a casa pássaro e o chão batido que fica visível a verticalidade dessa grande imagem de casa construída por Mia Couto ao longo das linhas do romance.

2) “A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade” (BACHELARD, 1990: 36). Analisando a casa natal de Mariano sob este vértice é possível perceber que ela toma o lugar de matrona. Ao retornar para Luar-do-chão, o jovem protagonista é escolhido pelo avô, e comunicado pela avó, para ser o responsável pelos funerais. E, sobretudo, para defender a viúva, as mulheres, para defender a Nyumba-kaya. E por tal encargo, recebe também todas as chaves da casa. É possível, neste sentido, fazer uma leitura do acontecimento relacionando-o ao posterior recebimento das cartas do avô Mariano. Assim, o recebimento das chaves torna-se metáfora da centralização de todos os conflitos da narrativa na própria casa. Outra evidência de tal centralidade está no fato de ser apenas quando a casa está sossegada que Dito Mariano pode enfim morrer. Além do mais, Nyumba-kaya não é somente a grande casa da família, ela é a maior casa da ilha, cenário dos maiores conflitos e descobertas. Lugar soberano, imponente e desafiador. Morada dos vivos e dos mortos.

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A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas casa seria aquela, única, indisputável (COUTO, 2003: 29).

Se num primeiro momento Mia Couto faz a casa alçar voo e escapar do toque de Mariano, logo em seguida ele a traz de volta e declara que Nyumba-kaya seria sua única e indisputável casa. Sem sombra de dúvidas a casa natal será a única construção com status de lar para Marianinho, não importa quanto tempo se faça ausente de sua terra natal. Por que Nyumba-kaya é parte de seu ser e sua composição psicológica e identitária. Ademais, o narrador personagem dota a casa de uma personalidade feminina. O ser carregado de memórias da infância, da família e dos antepassados está defronte a Mariano, desafiando-o como uma mulher. Uma mulher poderosa. É quase possível ver na casa a imagem de uma avó, uma matriarca, que leva rugas de cansaço e sabedoria no rosto. Com braços grossos e firmes de tanto carregar os filhos e os netos no colo. Uma mulher que tem no olhar o peso e a profundidade de quem já viu muita coisa se passar sobre a terra e o tempo.

Como meu objetivo neste ensaio é analisar não somente a significação da casa no romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, mas também a própria importância da casa natal de Mia Couto no seu processo de criação e sua formação enquanto escritor. Permito-me fazer uso do elemento feminino que o autor impõe a casa, a Nyumba-kaya, para retomar aqui o segundo momento da fala que utilizei no início do texto. Tal momento faz referência ao espaço feminino da cozinha.

Era sentado no chão da cozinha que eu fazia os deveres da escola. (...) havia uma grande mesa de madeira colocada no centro, e ao redor dessa grande mesa circundavam mulheres. (...) Essas mulheres tinham a grande sabedoria de falar baixo, falavam em sussurro, em murmúrio. E murmuravam coisas, diziam segredos, contavam histórias, (...) e ali faziam renascer (...) alguma coisa que era tão íntima como se fosse um templo. (...) E foi no chão da cozinha que eu me fiz poeta. E é por isso que eu amo (...) essa casa em que me tornei pessoa, em que eu me tornei mundo. Ainda hoje sempre que escrevo eu retorno a esse antigo chão. (...) Afinal ter casa é isso, é ter um lugar de eterno regresso (Mia Couto, 10 de setembro de 2014).

A imagem da cozinha habitada pelas saias rodadas, coloridas e esvoaçantes que encantavam a vista do pequeno Mia Couto nos remete novamente à infância e a evidência de que este encantamento infantil está presente no texto do escritor.

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Bachelard afirma que a infância é certamente algo maior do que a realidade. Maior do que a realidade porque a memória é uma construção mental. Ela é seletiva e como o cérebro não pode guardar todas as informações que recebe, exceto o de Funes, o memorioso, os seus vazios são preenchidos de sonhos.

Se não tivesse existido um centro compacto de devaneios de repouso na casa natal, as circunstâncias tão diferentes que envolvem a vida verdadeira teriam confundido as lembranças. Afora umas poucas medalhas com a efígie dos nossos ancestrais, nossa memória de criança contém apenas moedas sem valor. É no plano do devaneio, e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil (BACHELARD, 1990: 35).

Fica bem evidente na fala de Mia Couto que a cozinha a qual ele faz referência é uma cozinha saída do devaneio, pois é uma construção poética posterior ao vivido. É o Mia Couto adulto falando de suas lembranças de criança, são das percepções do adulto que saem as palavras que descrevem o chão de pedra que o fez poeta. E mais, não palavras espontâneas, livres como as das crianças. Trata-se de um texto escrito e lido para um público e com um propósito previamente estabelecido. A magia sai do encantamento da infância, além da sensibilidade e habilidade poética do escritor, esta é fruto de seu trabalho consciente. Está, portanto, no campo da vida adulta. Segundo Bachelard, é o devaneio que liberta a imaginação criadora. É o imaginário infantil que, ao deformar as primeiras imagens que recebe, dá asas a pulsão criadora de um ser. A infância é o germe de um poeta, pois o alimenta. Faz com que ele necessite da criação para fazer do sonho realidade. Através do papel o poeta, o escritor tem a capacidade de externar seu inconsciente, seu mundo de sonhos, suas críticas, ideologias e posicionamentos. E a crítica levantada pelo escritor moçambicano no romance aqui tratado é referente ao enfrentamento do que se poderia chamar de uma cultura tradicional de África e as influências que a cultura ocidental, e mais especificamente europeia, tem sobre o continente. Tal ponto de análise me leva ao terceiro momento escolhido por Mia Couto em sua fala no auditório da UFRGS e o último a ser abordado nesta análise. Já dissertamos aqui a respeito da casa em si, da cozinha, agora é momento de discutirmos a rua.

E eu tenho que dizer que a minha cidade (...) era um território colonial num tempo colonial. A rua passava em frente a minha casa e tinha um serviço (...) dividir a África e a Europa. Era assim arrumado que queriam o mundo, do lado de dentro (...) a razão bem portuguesa, um único Deus, uma narrativa que se falava em língua portuguesa. Do lado de fora ficava a África,

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(...) que falavam em outras línguas e rezavam a outros deuses. Essa linha divisória (...) nunca cumpriu muito bem esse papel de fronteira. Porque a África era grande demais para ser barrada a entrada da porta. A África entrava pela varanda, pela janela, pelas vozes, pelos sonhos. (...) E eu (...) atravessei a fronteira da rua, atravessei a fronteira do idioma, da raça e juntei-me a essas fabulas, a esse mundo fabuloso que passou a povoar as minhas crenças e também os meus medos. As histórias que insistentemente diziam que eram dos outros, dos negros africanos, acabaram sentando-se no meu quarto ao lado dessa tão lusitana evocação da saudade (Mia Couto, 10 de setembro de 2014).

Mia Couto é filho de imigrantes portugueses, mas é africano de nascença, de cultura e por escolha. Fez da cultura africana seu porta estandarte e bandeira. Fez das crenças tradicionais suas próprias crenças, viu as histórias que ouvia adentrarem a porta de seu quarto e sentarem-se ao lado de sua cama. E, desta maneira, tornou-se um dos porta-vozes da tradição oral e seus encantos.

O protagonista e narrador do romance em questão ser um universitário que retorna da cidade para a ilha natal é reflexo destas escolhas. Enquanto Marianinho espera as cerimônias fúnebres do avô ele é testemunha de acontecimentos fantásticos ligados a uma espiritualidade e visão de mundo a qual ele precisa reaprender. A viagem do neto predileto de Dito Mariano simbolizará uma viagem de reencontro consigo mesmo, sua família e suas tradições. Luar-do-chão é uma ilha separada da cidade por apenas um rio. O rio Madzimi representa a rua da qual fala Mia Couto no trecho supracitado. A rua que separa duas Áfricas. A África dita tradicional negra, mistificada, politeísta, plural; da África europeizada, monoteísta e, de certa forma, mais racional, pelo menos sobre os moldes ocidentais.

Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas (COUTO, 2003: 18).

A distância está posta nas diferenças. De um lado a cidade grande e urbana, de outro a ilha decadente, exausta, corroída e ainda demasiado rural. Carregada de memórias da guerra e da destruição. De certa maneira, o romance traduz o conflito de uma pequena elite ambiciosa, afastada da realidade e dos interesses de uma maioria rural. Marianinho é a personagem que realizará o encontro e embate entre as duas realidades aparentemente distantes. E na busca por saber da história de si mesmo e de sua família ele acaba por reaprender a olhar para as tradições regionais que, assim

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como a casa, se impõem soberanas. Aprende a trilhar sobre os caminhos do natural e do sobrenatural, ao se dar conta que estava recebendo cartas do avô pseudomorto, escritas pelo seu próprio punho. E ainda se dá conta que em Luar-do-chão o âmbito do sagrado é o próprio cotidiano, e que as histórias individuais estão intimamente ligadas ao destino da coletividade e da ilha.

Contudo, a trajetória de Mariano pelos caminhos de desvendar os mistérios de sua família, conhecer a si mesmo e dar descanso ao avô é construída de maneira a relacionar o destino dos homens de Luar-do-chão à Nyumba-kaya, a casa natal. Ela é o centro de todos os conflitos e mistérios. A grande dama de porte majestoso, lugar legítimo de morada, berço de retorno de Mariano e toda sua ancestralidade. E imagem poética da própria África, sua cultura, tradição e complexidades. E nesse sentido, após desvendar todas as imagens da casa é possível afirmar que a alma da casa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, como diria Bachelard, é a própria África.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1990

COUTO, Mia. Guardar memórias, contar histórias e semear o futuro. 09/2014. Vídeo

Conferência (43:58 min). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=IZtc11Bn0M0 Acesso em: jun. 2015

___________. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003

DUEL, Maria José. La manzana anónima de Newton y ló que de verdad expresan las historias. In: Escritura creativa cuaderno de ideas. Madrid : Fuentetaja, 2007.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa – A configuração do tempo na narrativa de ficção. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Tradução Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008.

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