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O Estatuto A Priori da Mecânica no "Tractatus"

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CDD: 193

O Estatuto

A Priori

da Mecânica no

Tractatus

BENTO PRADO NETO Departamento de Filosofia

Universidade Federal de São Carlos/CNPq SÃO CARLOS, SP

tuxo@power.ufscar.br

Resumo: Aquilo que se poderia chamar de “epistemologia do Tractatus”, isto é, sua reflexão sobre a ciência e, mais especificamente, sobre a Mecânica, foi alvo de pouca atenção por parte dos comentadores de Wittgenstein, muito embora seja considerável a quantidade de aforismos dedicados ao tema e essa reflexão seja inequivocamente importante para a história da epistemologia no século XX. O que pretendemos fazer aqui – para além de lembrar esse tema esquecido – é tão somente levantar um dos problemas que esses aforismos levantam – o do estatuto apriori da mecânica –, e indicar a direção geral na qual a sua solução deve ser procurada. Este artigo pretende determinar essa “direção geral” de forma quase que tão somente negativa, indicando-a ao afastar certas interpretações. Se nos demoramos nessas interpretações (que julga-mos equivocadas), é porque elas fornecem, na sua contraposição à leitura que julgajulga-mos correta, uma base para avaliar a contraposição entre linguagem fenomenológica e linguagem fisicalista, tais como concebidas por Wittgenstein em 1929. O interesse de tal exame, assim, extrapolaria a exegese de teses tractarianas e atingiria um dos eixos da ruptura entre o Tractatus e o assim chamado “segundo Wittgenstein”. Palavras-chave: Wittgesntein. Tractatus. Mecânica. Geometria.

Aquilo que se poderia chamar de “epistemologia do Tractatus”, isto é, sua reflexão sobre a ciência e, mais especificamente, sobre a Mecânica, foi alvo de pouca atenção por parte dos comentadores de Wittgenstein, muito embora seja considerável a quantidade de aforismos dedicados ao

tema (cerca de cinco páginas1, em pouco mais de setenta) e essa reflexão

seja inequivocamente importante para a história da epistemologia no

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século XX (basta pensar na sua importância para o Círculo de Viena). O que pretendemos fazer aqui – para além de lembrar esse tema esquecido – é tão somente discutir um dos problemas que esses aforismos levantam, e indicar a direção geral na qual sua solução deve ser procurada.

De início, para caracterizar um pouco melhor o nosso tema, co-mecemos por lembrar que não se deve confundir mecânica e ciência. Se a mecânica certamente é, aos olhos de Wittgenstein, uma forma privilegia-da e talvez até certo ponto paradigmática de ciência, as duas não se iden-tificam. A totalidade das ciências naturais é “a totalidade das proposições verdadeiras” (4.11), ao passo que a mecânica é a “tentativa de construir, segundo um só plano, todas as proposições verdadeiras” (6.343), isto é, a ciência (ou as ciências naturais, ou as ciências empíricas) se define pela verdade das suas proposições, ao passo que a mecânica, pela unicidade do plano de construção das proposições científicas. É à mecânica que são dedicados os aforismos 6.3 a 6.3751 do Tractatus. Não iremos proceder a um comentário linha a linha desses aforismos, nem tampouco comentar a evidente inserção dessa reflexão sobre a ciência no seu contexto históri-co. O que faremos será pinçar alguns traços gerais dessa caracterização da mecânica, para nos perguntarmos por suas relações com os princípios mais gerais do Tractatus.

O primeiro traço a ser observado é (i) o caráter em parte a priori da mecânica (assim como de toda lei científica). “A pesquisa da lógica signi-fica a pesquisa de toda legalidade”, reza o aforismo 6.3, e portanto toda a “legalidade” de uma “lei científica” deve provir da sua armação lógica. Há assim, certamente algo de empírico nas ciências naturais, mas, quando elas são formuladas na forma de leis, encontraremos nelas também algo de não puramente empírico, uma “construção lógica” (num sentido que nos caberá determinar). A ciência, enquanto tal, é tão somente a totalida-de das proposições verdatotalida-deiras, ao passo que a mecânica é fundamental-mente um sistema de leis. (ii) O segundo traço a ser observado é o caráter

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tado nos aforismos 6.341 e 6.342 (e no 6.35), e que supõe, de modo ób-vio, um terceiro traço (logo se verá porque fazemos tal distinção), a saber, (iii) o fato de que há sistemas alternativos de mecânica.

Nos aforismos supra-citados, Wittgenstein vale-se de uma metáfo-ra pametáfo-ra comentar a idéia de que a mecânica “põe a descrição do mundo numa forma unitária”. Suponha-se uma mancha arbitrária numa folha em branco: sua descrição, diz Wittgenstein, pode ser “posta numa forma unitária” graças a uma rede de malhas de uma determinada finura com a qual se recobre a folha de papel e por meio da qual indicamos que malhas são brancas, que malhas são pretas. Assim, (i): a mecânica tem uma di-mensão inteiramente a priori. De fato, “a mecânica determina uma forma

de descrição do mundo”2, determina, portanto, a “rede” da metáfora, e,

como essa rede “é puramente geométrica, todas as suas propriedades po-dem ser especificadas a priori”. Vale, aqui, notar o grifo do autor na ex-pressão “puramente”, pois ele enfatiza fortemente o primeiro traço por nós levantado (também se deveria grifar a expressão “todas”: na exata

medida3 em que a mecânica pode ser identificada à rede da metáfora, ela

pode ser dita inteiramente a priori). Além disso, não apenas há mecânicas alternativas (a Newtoniana, a Relativística) do mesmo modo que há redes alternativas (quadriculadas, hexagonais, mistas) – o que era o último traço (iii) que apontávamos –, mas essas mecânicas também têm um caráter, pode-se dizê-lo, convencional – o segundo traço (ii) por nós levantado. De fato, “nada diz sobre o mundo a possibilidade de descrevê-lo por meio da mecânica Newtoniana”, assim como nada diz sobre a mancha a possi-bilidade de descrevê-la por uma rede de uma forma determinada, e assim não se pode propriamente dizer que a mecânica Newtoniana seja “verda-deira” ou “falsa”. A metáfora parece indicar claramente, portanto, que uma mecânica é um sistema convencional de representação do mundo: ela

2 6.341 – grifo nosso.

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consiste em pôr a descrição do mundo numa forma unitária, “mas essa forma é arbitrária, pois eu poderia ter utilizado, com o mesmo sucesso, uma rede [diferente]” (6.341, grifo nosso); e até mesmo o critério convencio-nalista “clássico” para a escolha entre teorias – o da simplicidade – parece ser evocado: “diz algo sobre o mundo a possibilidade de descrevê-lo mais simplesmente por meio de uma mecânica do que por meio de outra” (6.342, in fine).

Talvez se possa objetar a essa nossa caracterização que as mecâni-cas podem não ser inteiramente convencionais, que talvez haja limites para sua aplicabilidade. Isso se revelaria já no fato de que, no aforismo 6.341, Wittgenstein diz, acerca da mancha sobre o papel, que “eu posso me aproximar tanto quanto quiser de sua descrição” por meio das redes – o que não implica alcançar essa descrição. Isto é: dependendo das respecti-vas formas da mancha e da rede – se a mancha for arredondada e a rede quadriculada, por exemplo –, a minha descrição só poderá valer “apro-ximativamente”. A descrição completa da mancha só seria possível em certos casos e, portanto, a mecânica não seria completamente convencional no sentido forte de que algumas vezes ela não seria completamente apli-cável. E, de fato, não assevera o aforismo 6.342 que, embora a possibili-dade de descrever uma determinada configuração (mancha) nada diga sobre ela, o fato dela poder ser descrita completamente diz algo sobre ela? Com relação ao primeiro ponto, talvez se possa dizer que cabe sempre, diante de uma metáfora, saber onde parar, saber até onde vai a similari-dade, a partir de onde ela deixa de valer.

Além disso, deve-se notar que esse “completamente” do aforismo 6.342 vem vinculado a uma especificação: a finura determinada da malha. Se pudermos desdobrar essa afirmação em duas afirmações independen-tes (“diz algo sobre a mancha o fato de poder descrevê-la completamente e também diz algo, algo a mais, o fato de poder fazê-lo com uma rede de

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determinada finura”), não restaria dúvida de que Wittgenstein estaria

apontando um limite forte4 para o caráter convencional da mecânica:

cer-tas mecânicas simplesmente não seriam capazes de descrever completa-mente a realidade. Mas o fato é que o texto do aforismo não opera nem sugere esse desdobramento. Pode-se tentar encontrar um tal desdobra-mento no parágrafo seguinte do mesmo aforismo, em que Wittgenstein assevera que diz algo sobre o mundo “a possibilidade de que seja descrito por meio [da mecânica newtoniana] precisamente como vem a ser o caso.

E também diz algo sobre o mundo a possibilidade de descrevê-lo mais

simplesmente por meio de uma mecânica do que por meio da outra” (grifo nosso). O desdobramento da afirmação, apenas implícito quando aplicado à mancha sobre o papel, explicitar-se-ia quando aplicado à me-cânica: à descrição completa da mancha corresponderia, na mecânica, o “modo preciso pelo qual ela descreve o mundo” (talvez: com tal ou qual grau de precisão), e à determinada finura da rede corresponderia o fato de ser mais simples descrever o mundo por meio de uma mecânica do que por meio de outra. A leitura é possível, mas ao preço de tornar um tanto mal formulada a última frase do parágrafo anterior, onde o “isso” (das), grifado pelo autor, longe de sugerir, parece afastar qualquer duplicidade,

parece insistir na unidade daquilo que “caracteriza a configuração”5.

E há outra maneira de ler esse aforismo. Se todas as mecânicas podem ser igualmente aplicadas ao real (até a descrição completa), é pre-ciso, por outro lado, algum elemento que permita escolher entre as teo-rias. A solução convencionalista clássica é a da simplicidade, simplicidade que, como dissemos, é efetivamente evocada no texto. Mas o que é ali

4 Pois algum limite certamente há: como veremos, dependendo, de um lado,

da configuração acidental do mundo e, de outro, da mecânica escolhida, a aplica-ção da mecânica à realidade será mais ou menos fácil.

5 “Das aber charakterisiert das Bild, dass es sich durch ein bestimmtes Netz

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evocado é a simplicidade da aplicação da mecânica, não a simplicidade da mecânica tout-court. A simplicidade da aplicação das mecânicas correspon-de, no símile da mancha sobre o papel, ao grau de finura da rede. No símile, para me aproximar mais da configuração da mancha, eu preciso estreitar a malha; na mecânica, para me aproximar mais da configuração do mundo, eu preciso complicar sua aplicação: no fundo, eu preciso introduzir “epiciclos”, que mantêm a minha mecânica celeste que descre-ve o movimento dos astros por meio de círculos, mas que complicam a sua aplicação com um maior número de círculos. E, se tal é o critério de escolha (grau de finura/simplicidade da aplicação), vê-se que, para que ele possa ser empregado, eu preciso, no caso do símile, fazer referência à descrição completa, ao passo que, no caso de mecânicas dadas, eu posso – e devo – me referir ao modo preciso pelo qual elas são de fato aplicadas. Com efeito, não faria sentido comparar a finura das duas redes, no símile, por referência a um certo grau de aproximação (como seria medido o grau comum de aproximação da configuração entre duas redes diferentes?), e portanto, a título de nível de aproximação “imparcial”, eu só disponho da descrição completa. Já no caso da mecânica, querer comparar a simplici-dade de aplicação de duas mecânicas a partir do patamar em que elas descrevem completamente o mundo seria pressupor o que de fato não temos (mecânicas que nos permitiriam prever/explicar todos os fenôme-nos), e somos obrigados a nos valer do “grau de aproximação” de que dispomos efetivamente: tal ou tal mecânica no modo preciso em que ela é de fato

aplicada ao real.

Supondo correta essa descrição da caracterização tractariana da mecânica, impõem-se de imediato para o leitor do Tractatus pelo menos duas tarefas: i) a de clarificar esse estatuto “a priori” da mecânica e compa-tibilizá-lo com os princípios mais gerais da “doutrina” tractariana da lógi-ca: como são possíveis essas diferentes redes de descrição a priori? ii) esclarecer esse aspecto não inteiramente convencionalista, em que a con-figuração do real se manifesta no modo pelo qual a mecânica é aplicada.

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Parte dessa segunda tarefa não parece difícil. Isto é, é fácil entender que, embora não diga nada sobre o mundo o fato de que ele se deixa descre-ver pela mecânica newtoniana, diz algo sobre ele o fato de que ele se deixa descrever precisamente assim como ele é descrito (cf. 6.342): pode-mos de fato dizer, de um modo trivial, que, uma vez aplicada de um certo modo, a mecânica é uma descrição do mundo (se fosse aplicada de outro mo-do ela resultaria numa descrição diferente, ela diria algo diferente sobre o mundo). É claro, por outro lado, que essa resposta – trivial – deixa em aberto o fundamental da questão: que traços do sistema convencional (aplicável a qualquer mundo possível) e do mundo permitem que eles sejam “cotejados” na forma de uma maior ou menor complicação do modo pelo qual um é aplicado ao outro? Mas, obviamente, procurar responder essa questão supõe que já tenhamos respondido a primeira, relativa ao estatuto a priori da mecânica. É ao exame desse estatuto e do problema de sua compatibilidade com o Tractatus que nos dedicaremos doravante. E, para deixar claro que há algo aparentemente problemático nesse estatuto a priori da mecânica, vamos evocar um problema diferente, mas aparentado, o do estatuto da geometria numa perspectiva logicista.

Por que Frege excluía a geometria do campo da matemática redu-tível à lógica? Por uma razão muito simples: a descoberta de geometrias não-euclidianas punha geometrias alternativas, com enunciados contraditó-rios (a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual/é maior/é menor que dois retos), e eu não posso deduzir de princípios lógicos duas proposições contraditórias. Se a geometria fosse um ramo da lógica, só poderia haver uma geometria, como só há uma aritmética. É conhecida a solução dada por Russell: as afirmações contraditórias que encontramos em diferentes geometrias de fato não são dedutíveis da lógica, mas tam-pouco pertencem à “geometria pura”. Esta última consiste em proposi-ções condicionais em cujo antecedente encontramos os axiomas caracte-rizando a estrutura de uma dentre as geometrias alternativas, e, no conse-qüente, essas afirmações alternativas. Como essas afirmações decorrem

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desses axiomas, o condicional é uma verdade lógica, e a geometria pura

um ramo derivável da lógica6.

Lembramos esse problema porque também na mecânica do

Trac-tatus encontramos essas duas características que, no caso da geometria

pareciam conflitar: temos sistemas a priori (e, portanto, do âmbito da lógica, em algum sentido) e, no entanto, eles são alternativos. Esta é a razão pela qual, acima, distinguimos o caráter convencional do fato de haver diferentes mecânicas possíveis: para tentar mostrar o parentesco entre o problema do estatuto da mecânica no Tractatus e o do estatuto da geome-tria no projeto logicista, sem nos comprometer com o estatuto conven-cional da geometria. Começaremos por esses aspectos, para voltar,

de-pois, ao caráter convencional da mecânica7. Por fim, há que confessar

uma pequena distância entre o caráter contraditório das proposições de diferentes geometrias e o caráter alternativo das diferentes mecânicas do

Tractatus – pequena distância introduzida pelo caráter abertamente

con-vencional que encontramos na descrição wittgensteiniana da mecânica, mas não na geometria tal como descrita por Russell. Convenientemente adaptado, o problema torna-se não como é possível extrair da lógica enunciados contraditórios, mas sim enunciados alternativos (entre os quais você tem de escolher).

Que lições tirar dessa aproximação? A estratégia Russelliana, obviamente, não poderia ser aplicada tal e qual para dar conta das rela-ções entre a lógica e as construrela-ções a priori e alternativas da mecânica do

Tractatus, na medida em que supõe que, tanto o antecedente quanto o

conseqüente das proposições da geometria pura sejam verdadeiros ou falsos.

6 RUSSELL (1996, p. 8).

7 Deixaremos de lado a questão do caráter convencional da geometria

(recu-sado por Russell, aliás), embora essa questão certamente estivesse no horizonte da reflexão tractariana sobre a mecânica, dado o contexto histórico da redação desse livro.

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Mas nada impede, a princípio, que seja possível uma “aclimatação” da solução de Russell ao cenário tractariano. De fato, vejamos. Russell carac-teriza as diferentes geometrias como a caraccarac-terização das propriedades lógicas de certas estruturas particulares. As “verdades” reunidas numa geometria (enunciadas no “conseqüente” dos condicionais da geometria pura) não valem, portanto, incondicionalmente – como as verdades lógi-cas parecem dever fazê-lo –, mas apenas acerca de certas estruturas pecu-liares. Ora, Wittgenstein não nega a existência de “verdades” (com todas

as aspas merecidas) lógicas peculiares8 a certas estruturas: é ele próprio

que fala em propriedades (e relações) formais (4.122 e seguintes). Certas estruturas (entenda-se: lógicas) têm propriedades, mas propriedades que, justamente por serem propriedades lógicas, são internas, são tais que “é impensável que seu objeto não a possua” (4.123). Assim sendo, a solução Russelliana certamente não pode ser diretamente aplicada, pois a presen-ça de uma dessas propriedades numa estrutura “não é expressa por uma proposição” (4.124) que pudesse figurar como membro de um condicio-nal. O que não impede que tais propriedades possam ser expressas de outro modo, a saber, por uma propriedade interna de uma proposição (ibidem).

O núcleo da solução Russelliana parece, portanto, poder ser trans-portado para o Tractatus, desde que encontremos as “estruturas” lógicas ou as “formas” lógicas adequadas (isto é, aquelas que caracterizarão tal ou qual geometria). É algo de semelhante a isso que parece ser sugerido com a própria idéia de um “espaço lógico”. De fato, esse “espaço” tem uma certa “geometria” (no sentido extremamente amplo que corresponde ao sentido também extremamente amplo que Wittgenstein confere ao termo “espaço” nesse contexto), isto é, propriedades formais, que se expressam nas pro-priedades formais da linguagem, isto é, na sua “sintaxe” – desde que não se confunda essa sintaxe “profunda” com a sintaxe superficial e aparente da linguagem comum, “traje que disfarça o pensamento” (4.002) –, sintaxe

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que pode ser “descrita” como uma forma lógica pode ser descrita. Dife-rentes geometrias poderiam corresponder a difeDife-rentes “regiões” do espa-ço lógico. Mas esse espaespa-ço lógico é constituído por dois elementos: (i) a forma geral da proposição, que é simplesmente a caracterização da pro-posição como função de verdade de proposições elementares, e (ii) as formas das proposições elementares. Parece pouco promissor procurar escavar a “forma geral da proposição” a fim de encontrar “formas pecu-liares” que pudessem engendrar “geometrias alternativas”, mas

voltare-mos ao tema9. Por enquanto, concentremo-nos no lado mais promissor.

Além da “forma geral”, há aquilo que ela supõe, que são as formas

particu-lares de proposições elementares: por meio destas últimas, podem ser

introduzidas diferentes estruturas proposicionais.

Mas o recurso às estruturas das proposições elementares como ba-se da geometria introduz uma dificuldade: os aforismos 5.55 e ba-seguintes vêm justamente asseverar a impossibilidade de determinar a priori a forma das proposições elementares. Do 5.55 ao 5.5571, essa determinação é constantemente contraposta ao domínio do a priori. Nos aforismos 5.55, 5.5541 e 5.5571, a expressão “a priori” ocorre com todas as letras e, ao longo de todo o trecho, as idéias de decidir de imediato, de anterioridade, de

antever, de antecipar, ecoam essa idéia e a contrapõem à de experiência. Por

outro lado, nessa contraposição, deve-se notar o aforismo 5.552, que introduz um conceito degenerado, por assim dizer, de “experiência” (entre aspas), e inverte a situação de anterioridade: desta vez a lógica não é anterior, mas posterior. Assim, as formas particulares das proposições elementares não são, decerto, um fato empírico, mas remetem a uma facticidade irredutível, i.e., à existência do mundo, e, nesse sentido, são “anteriores à lógica”. A geometria do espaço lógico, certamente, não é a 9 De certo modo, é propriamente na “forma geral da proposição” que se

po-derá encontrar guarida para o estatuto a priori da mecânica. No entanto, não será extraindo certas “formas proposicionais” com propriedades particulares.

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posteriori. Resta saber se podemos rebater as múltiplas geometrias

alterna-tivas na existência de múltiplas estruturas de proposições elementares como um dado irredutível. Pondo de lado esta última restrição, parece que obtivemos tanto o caráter a priori (ou, pelo menos, “não a posteriori”) quanto a possibilidade da existência de múltiplas geometrias. Nesse caso, a constituição de uma geometria particular equivaleria à determinação de certas propriedades formais de determinadas proposições elementares – não seria nada de diferente daquilo que está envolvido na caracterização do espaço lógico, e poderia ser efetuado por meio de um simbolismo perspícuo, uma “notação (...) que obedeça à gramática lógica” (3.325). Voltaremos, adiante, à questão de saber até que ponto uma tal caracteri-zação da geometria seria compatível com o cenário tractariano (mas po-demos desde já lembrar ao leitor que é fundamentalmente essa caracteri-zação que seve de fio condutor para o estabelecimento da geometria do “espaço visual” no início de 1929). Por ora, vamos ver que lições podem ser extraídas desse exame para a questão do estatuto da mecânica no

Tractatus.

Dizíamos que a mecânica, tal como caracterizada pelo Tractatus, é a

priori, alternativa e convencional. Nosso pequeno ensaio de historiografia

fantástica, no qual descrevemos uma inexistente “teoria da geometria do

Tractatus” (que iremos rejeitar, ao fim e ao cabo), indicou-nos de que

modo uma estrutura simbólica poderia ser ao mesmo tempo a priori (em-bora apenas no sentido mais fraco de “não-a posteriori”) e alternativa, e também nos indicou como caberia caracterizar essa estrutura. Mas, para que possamos aplicar isso à mecânica, seria preciso que, além disso, essa estrutura simbólica fosse “convencional”, isto é, que eu pudesse aplicar indiferentemente uma estrutura simbólica ou outra à realidade. E vê-se imediatamente que essa solução de tipo “russelliano” (adaptada às nossas necessidades) não pode funcionar, justamente porque tais estruturas alternativas estão, todas e cada uma delas, vinculadas de maneira rigorosa e estrita a estruturas específicas dadas. Além disso o caráter “não-a

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riori” que caracteriza o espaço lógico como constituído pelas proposições

elementares (e, nessa abordagem, as geometrias) não coincide com o a

priori que, no Tractatus, vem caracterizar as mecânicas. A passagem pela

concepção russelliana da geometria tinha apenas duas funções: i) mostrar claramente a existência de um problema (similar, mas não idêntico: por isso sua solução não pode ser adaptada); ii) esboçar o que será a concepção geral de “geometria do espaço visual” em 1929, que será contraposta à mecânica, ou, como dirá Wittgenstein então, à “linguagem fisicalista”.

As mecânicas não são simplesmente “alternativas”, “múltiplas”, mas convencionais. Podemos tentar lançar luz sobre esse caráter “conven-cional” da mecânica no Tractatus nos valendo do conceito de multiplicidade,

estritamente vinculado, no Tractatus, à possibilidade de simbolização10.

Tal conceito é evocado no manuscrito Theories11 de F. P. Ramsey, ainda

que de maneira periférica12, para tratar do estatuto da mecânica. Esse

texto, como o título o sugere, tem como tema exatamente a questão que nos ocupa e, além disso, foi escrito no contexto das discussões que Ram-sey mantinha com Wittgenstein em 1929, quando este último se debruça-va sobre o tema da fenomenologia ou, como ele também a chamadebruça-va, da

Erkenntnistheorie. Por si só, esse artigo de Ramsey já mereceria um exame à

parte no quadro dos estudos wittgensteinianos – e é fundamentalmente para lembrar esse fato que o citamos. De fato, vamos apenas colher a evocação por ele feita do conceito de multiplicidade, para utilizá-la de

for-10 5.475: “Importa apenas constituir um sistema de sinais que tenha um

de-terminado número de dimensões – uma determinada multiplicidade matemá-tica”.

11 RAMSEY (2003).

12 Na verdade, não tão periférica: ao fim do exame, Ramsey conclui que, à

primeira vista, as teorias podem ser concebidas “como uma linguagem”, embora não sejamos obrigados a fazê-lo; e, nesse momento, é justamente a necessidade de garantir para a teoria uma multiplicidade maior que a do mundo que nos força-ria a concebê-la como uma linguagem.

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ma bastante diferente. Ele é ali introduzido para qualificar “um traço

universal das teorias que são de alguma utilidade”: que elas tenham uma

multiplicidade maior que a do mundo que elas descrevem13. Na verdade,

o que Ramsey tem em vista não é que o simbolismo teórico tenha uma multiplicidade maior que a do mundo descrito, isto é, maior que o con-junto de todos os fatos logicamente possíveis: o simbolismo deve, a seu ver, ter uma multiplicidade maior que o mundo submetido a determinadas

regularidades. Essa multiplicidade suplementar – um espaço em que

ne-nhuma regularidade foi detectada – visa garantir a possibilidade daquilo que hoje em dia chamaríamos de um “programa de pesquisa”. Se a mul-tiplicidade da teoria se ajustasse perfeitamente à das regularidades obser-vadas, não haveria espaço, no quadro da teoria, para o acréscimo de ne-nhum elemento teórico (a determinação de uma nova regularidade, até então não observada), e, no quadro de tal teoria, só restaria ao cientista, como atividade, rezar para que a regularidade se mantenha.

Não nos poderíamos valer desse conceito para abordar diretamen-te as relações entre o mundo (e não o mundo submetido a dediretamen-terminadas regularidades, como no caso de Ramsey) e a mecânica? O aforismo 5.475 não parece exigir que, como todo e qualquer simbolismo, uma mecânica, para poder descrever o mundo, tenha de ter uma determinada

multiplicida-de? Será que uma multiplicidade maior presente na mecânica não garantiria a

flexibilidade simbólica necessária para que se instaure uma relação con-vencional entre mecânica e mundo descrito? É claro que o suplemento de multiplicidade não teria função simbólica, mas permitira que o sistema fosse por princípio (a priori) adaptável ao mundo. No momento em que eu aplicasse o sistema simbólico da mecânica ao mundo, o “método de projeção” introduziria a “multiplicidade correta”, e o que fosse supérfluo

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não teria função simbólica e seria descartado14 – mas para que isso seja a

priori possível, é preciso que se tenha uma multiplicidade “tão grande

quanto se queira”. Se deixarmos de lado aquele sentido degenerado de

a priori (“não a posteriori”) acima evocado, seu caráter apriorístico significa

que a mecânica deve poder ser aplicada não apenas independentemente do que de fato ocorra (das regularidades observadas), mas também inde-pendentemente dos estados de coisa possíveis que constituam o mundo. Seguir-se-ia assim que a mecânica teria de ter uma multiplicidade maior que qualquer multiplicidade que se escolha – ela deveria estar preparada para toda e qualquer multiplicidade –, o que faria dela uma multiplicidade infinita. Isso parece sugerir que o que está na raiz do caráter convencional da mecânica é o fato da multiplicidade do sistema simbólico “não impor-tar”, isto é, o fato de o “sistema formal” não especificar a forma lógica do descrito – o que parece jogá-lo antes para o plano do sinal do que do

símbolo. O fracasso dessa última abordagem vem completar uma dupla

lição: se pensarmos na mecânica no modo de um “sistema de proposi-ções” (ou de “formas de proposiproposi-ções”), não dá para dar conta nem do seu caráter a priori (pois não saberíamos de onde extrair tais proposições ou formas proposicionais alternativas), nem de seu caráter convencional (pois ele exclui que o sistema tenha a priori uma determinada multiplici-dade).

Voltemos, após essas tentativas de dar conta do estatuto da mecâ-nica como um sistema de proposições (ou de formas proposicionais) com uma de-14 Aliás, basta bater os olhos no exemplo simplificado de Ramsey ou então

lembrar que uma regularidade observada consiste na eliminação de certos graus de

liberdade – a exclusão de certas possibilidades – para perceber que, num certo

sentido, o sistema simbólico da mecânica deve ter, quando aplicado de uma determinada forma, uma multiplicidade menor que a do mundo (num outro sen-tido – no sensen-tido em que ele descreve integralmente o mundo – pode-se dizer que ele tem, quando aplicado, exatamente a mesma multiplicidade que o que ele descreve, o

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terminada multiplicidade, ao estatuto do a priori no Tractatus. Sem dúvida,

uma tautologia – digamos, (PV~P) – é a priori verdadeira. Mas isso só é uma tautologia na suposição de que “P” tenha sentido. O que parece indicar que o que merece propriamente a qualificação de a priori é menos essa proposição-limite que é uma tautologia do que o seu modo de construção. Essa idéia, aliás, parece refletir bem o que Wittgenstein pretende ao dizer que “só podemos antever o que nós mesmos construímos” (5.556). Mas, se a raiz do a priori está na idéia de construção, deve ser ali que poderemos procurar esclarecer o estatuto da mecânica, isto é, como ela pode ser ao mesmo tempo a priori e alternativa/convencional. Os trabalhos de João

Ver-gílio Cuter15 sobre a aritmética16 do Tractatus podem nos guiar, nessa

tarefa. Cuter aponta para a centralidade da noção de operação formal para entender a aritmética. A operação formal é o modo pelo qual obtemos uma proposição a partir de outra com base apenas nas formas de ambas (5.2-5.231). Uma operação formal dá origem a uma série formal (5.232).

Deixando de lado as formas da base17, a própria operação é claramente

da ordem da construção, do a priori, pois “a operação só pode intervir onde uma proposição resulta de uma outra de maneira logicamente signi-ficativa. Portanto, ali onde começa a construção lógica da proposição” (5.233).

15 Por exemplo, em CUTER (1995), ou em CUTER (2002).

16 Não à toa a correta compreensão da aritmética será relevante tanto para a

da geometria quanto para a da mecânica: são duas estruturas matemáticas.

17 Questão que não é irrelevante para o estatuto a priori das séries formais. De

um lado, o possível caráter “não a priori” (mas também “não a posteriori”) das bases conferiria a essas séries formais um estatuto tão a priori quanto aquele que pode ser concedido à tautologia (PV~P), segundo aquele raciocínio acima. De outro, qualquer que seja a substância do mundo, haverá algum “P” dotado de sentido, mas as bases de séries formais parecem depender de quantos nomes simples há e de quais suas combinações possíveis.

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Tal localização do núcleo do a priori da aritmética na noção de

ope-ração formal, junto com aquelas lições negativas, permite arriscar uma

dire-ção geral para uma caracterizadire-ção da mecânica no Tractatus: antes que um sistema de proposições (ou de formas proposicionais) dotado de uma certa multiplicidade, a mecânica seria um certo modo de “ordenar” pro-posições em séries formais. A totalidade da ciência, por certo, será um sistema de proposições com uma certa multiplicidade, com uma certa forma lógica (aquela que pode ser caracterizada por meio de proposições completamente generalizadas segundo os aforismos 5.526 e 5.5262), mas a mecânica determina o modo pelo qual todas as proposições da ciência devem ser

obtidas18. Esse “modo de derivação”, consistindo em operações formais, é inteiramente a priori, e, portanto, essa leitura da mecânica como um

sis-tema de operações formais daria conta de seu caráter a priori19. E quanto

ao caráter convencional? Uma ordenação qualquer é pelo menos claramente

arbitrária, na medida em que várias ordenações alternativas são possíveis.

Mais do que isso, a exemplo do que ocorre com o caso da Aritmética, não é propriamente uma determinada operação formal que entra em jogo, mas certas características gerais compartilhadas por séries formais diferentes. Isto é, uma mecânica não pressupõe a ordenação das proposições ele-mentares segundo séries formais determinadas (pela mecânica), mas se-gundo séries formais que possuem certas características determinadas pela mecânica. Mas isso ainda não nos mostra como um “sistema de ordenação” ou um “sistema de derivação” pode ser aplicado ao mundo independentemente das características que o peculiarizam (seja no que 18 6.341: “A mecânica determina uma forma de descrição do mundo ao dizer:

todas as proposições da descrição do mundo devem ser obtidas, de uma dada

maneira, a partir de um certo número de proposições dadas – os axiomas

mecâni-cos” (grifo nosso).

19 Salvo a questão de saber se todas as séries formais podem, como a série

P, ~P, ~~P, etc, ser constituídas independentemente da multiplicidade das pro-posições elementares.

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diz respeito às formas das proposições elementares que o podem descre-ver, seja no que diz respeito tão somente às proposições elementares que o descrevem corretamente, que são verdadeiras).

Este nosso pequeno percurso, assim, mais levantou problemas do que os resolveu. Mas creio que tenha mostrado (i) a existência de um problema e (ii) a direção geral que a tentativa de solucionar esse problema deve assumir. E, para finalizar, uma última palavra. O leitor pode se per-guntar qual é o lucro que se obtém ao trocar a caracterização da mecânica como um “sistema de proposições com uma determinada multiplicidade” por um “sistema de derivação de proposições”. Para que, afinal, todo esse trabalho, se, no final das contas, esse sistema de derivação de propo-sições deve resultar num “sistema de propopropo-sições com uma determinada multiplicidade”? E não poderíamos ter evitado o desvio inútil por aquela observação periférica do texto de Ramsey, que nos fez correr inutilmente atrás da idéia de multiplicidade? Não poderíamos, aliás, ter evitado também o desvio inútil pela “geometria do espaço lógico”, de saída não

exatamen-te a priori, mas meramenexatamen-te “não a posexatamen-teriori”20? Se o fizemos, foi

justamen-te para contrastar esses dois tipos de “geometrias”, ou de “sintaxes”: uma que consiste numa determinada multiplicidade de formas proposicionais – o que corresponderá à geometria do espaço visual, em 1929 – e outra que consiste num sistema de derivação ou de ordenação de proposições elementares – o que corresponderá à descrição do espaço físico em 1929. Esse contraste parece-nos extremamente relevante para o exame dos pontos de continuidade e de ruptura entre o Tractatus e as Philosophische

Bemerkungen.

20 Sobretudo porque, se podemos “construir” – na forma de um “sistema de

derivação de proposições” – uma geometria, a idéia de fundar a geometria (pura) na estrutura das proposições elementares torna-se inócua.

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Referências Bibliográficas

CUTER, J.V. “A Aritmética do Tractatus”. Manuscrito, v. XVIII, n.2, p. 109-140, 1995.

—————. “A Lógica do Tractatus”. Manuscrito, v. XXV, n.1, p. 87-120, 2002.

RAMSEY, F.P. “Les Théories”. In: F.P. Ramsey, Logique, Philosophie et

Probabilités. Paris: Vrin, p. 255-279, 2003.

RUSSELL, B. The Principles of Mathematics. New York/London: Norton, 1996.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução, apresenta-ção e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP, 1994.

Referências

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