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Do outro lado do atlântico : gênero e raça na experiência diaspórica em Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

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Academic year: 2021

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Suélem da Cunha

Do outro lado do atlântico:

gênero e raça na experiência diaspórica em Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

Dissertação submetida Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestra em Literatura.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone Pereira Schmidt.

Florianópolis 2019

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Suélem da Cunha

Do outro lado do atlântico: gênero e raça na experiência diaspórica em Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

O presente trabalho em nível de Mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Leila Assumpção Harris Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Profa. Dra. Lourdes Martinez-Echazábal Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de Mestra em Literatura.

____________________________ Prof. Dr. Marcio Markendorf

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura

____________________________ Profa. Dra. Simone Pereira Schmidt

Orientadora

Florianópolis, 2019.

Simone Pereira

Schmidt:33918

104087

Assinado de forma digital por Simone Pereira Schmidt:33918104087 Dados: 2019.10.31 19:29:18 -03'00' Marcio Markendorf:915 73483168

Assinado de forma digital por Marcio

Markendorf:91573483168 Dados: 2019.11.01 11:30:51 -03'00'

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Este trabalho é dedicado a todas as mulheres imigrantes originárias do Sul Global.

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AGRADECIMENTOS

O suporte que recebi durante minha jornada enquanto mestranda foi essencial para a construção deste trabalho. Não há como expressar em palavras minha gratidão, mas gostaria de deixar registrada a minha gratidão a algumas pessoas que me ajudaram ao longo do caminho.

Sou extremamente grata a três mulheres em especial, pois elas fizeram parte de todo meu processo de produção acadêmica. O suporte emocional e teórico que recebi delas foi fundamental para a conclusão dessa dissertação:

À minha orientadora professora Simone Pereira Schmidt, cuja sensibilidade e conhecimento tocaram meu coração desde o primeiro dia em que a vi. Foi Simone que me introduziu a literatura Africana e principalmente a Chimamanda Ngozi Adichie, Simone disse sim ao meu sonho e sem suas orientações esse trabalho não seria concluído;

À professora Clarice Fortunato Araújo, minha grande amiga e maior motivadora durante todo o meu processo de desenvolvimento acadêmico. Clarice foi uma das minhas grandes inspirações como mulher, professora e acadêmica.

À professora Ana Carolina Andrade Pessanha, grande amiga e conselheira, cuja dedicação à leitura e compreensão de minha pesquisa foram imprescindíveis para a conclusão desse trabalho. Os aconselhamentos de Carolina fizeram de mim uma escritora mais atenta e corajosa!

Sou também eternamente grata ao meu grande amor, companheiro e amigo Michel Antoine Tribess Onesti, por todo o suporte emocional, técnico e psicológico durante o processo de mestrado. (YOU ARE MY ROCK!).

Gostaria de agradecer a minha querida mãe por sempre ter apoiado meus sonhos. Agradeço também:

Ao Profº. Dr. Gladir da Silva Cabral por ter me introduzido aos Estudos Culturais ainda no período de minha graduação em Letras; às amigas Djina Torres e Natália Rangel pelo carinho e conselhos sobre “como sobreviver ao Mestrado”; às professoras Drª. Eliana Avila e Drª. Lourdes Martínez-Echazábal pela contribuição teórica durante a qualificação dessa pesquisa;

À professora Leila Assumpção Harris, por todo apoio emocional e pela contribuição teórica e bibliográfica;

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Aos grandes amigos imigrantes que me inspiraram nessa pesquisa, Kadson Borges, Luci Costa, Adriana Campos, Lorena Campos e todos os colegas haitianos, africanos e sul americanos com quem trabalhei e convivi durante minha estadia nos Estados Unidos.

À Chimamanda Ngozi Adichie pela obra Americanah.

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Imigrante

eles nem imaginam o que é perder seu lar e talvez nunca mais encontrar outro ter sua vida inteira

dividida entre duas terras e se tornar a ponte entre dois continentes

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RESUMO

A presente dissertação pretende analisar a experiência diaspórica da personagem Ifemelu, protagonista do romance Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie e, por meio desta análise, discutir os embates de gênero e raça vivenciados pela personagem durante sua jornada imigratória. Esse trabalho propõe através dos estudos diaspóricos e da literatura africana contemporânea, promover uma discussão sobre as mulheres no espaço migratório, em especial as mulheres negras africanas e, assim, questionar as repercussões provenientes das relações de poder presentes no contexto de diáspora.

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ABSTRACT

The present thesis intends to analyze the diasporic experience of the character Ifemelu, protagonist of the novel Americanah written by Chimamanda Ngozi Adichie. It aims through this analysis, to discuss the gender and race encounters experienced by the character during her immigration journey. This work proposes through diasporic studies and contemporary African literature to promote a discussion about women in the migratory space, especially African black women, and thus to question the repercussions of the power relations present in the diaspora context.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1. IFEMELU ATRAVESSA O ATLÂNTICO: CONFIGURAÇÕES DIASPÓRICAS NA CONTEMPORANEIDADE ... 17

1.1 QUEM É O SUJEITO DIASPÓRICO? ... 25

1.2 NOVA DIÁSPORA, GLOBALIZAÇÃO E MUNDO TRANSNACIONAL ... 33

1.3 IFEMELU, A AFROPOLITANA?... 37

2. DURANTE A JORNADA: GÊNERO E RAÇA NA EXPERIÊNCIA DIASPÓRICA DE IFEMELU ... 42

2.1 O CORPO DA MULHER NEGRA EM DIÁSPORA NO CONTEXTO NORTE- AMERICANO ... 43

2.2 HIERARQUIA RACIAL E ESSENCIALISMO DA CULTURA NEGRA NOS EUA 51 2.3 EMBATES RACIAIS E A EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA RACIAL: IFEMELU E A NOVA CONSCIÊNCIA. ... 61

3. O RETORNO DE IFEMELU: OS DESAFIOS DO HOMECOMING ... 71

3.1 SERÁ QUE A NIGÉRIA SEMPRE FOI ASSIM? ... 71

3.2 TODAS AS NIGERIANAS PRECISAM CASAR? ... 76

3.3 EU NÃO SOU UMA AMERICANAH! ... 80

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 84

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INTRODUÇÃO

I.mi.grar verbo intrans. Entrar (num país estranho) para nele viver (FERREIRA, 2005, p. 484). Esse é o significado do verbo imigrar descrito no dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio. Essa breve noção, porém, jamais conseguiria descrever os inúmeros desafios e conflitos por trás desse ato. Ser imigrante não é apenas se deslocar para outro país e viver nele; ser imigrante é partir-se ao meio, ou fragmentar-se por completo. Este era o sentimento que sentia e sinto em relação ao meu processo imigratório, por exemplo. Enquanto imigrante, eu transitei para lugares de “não-pertencimento”. Lá, aprendi que nossas origens contam muito em terras estrangeiras (principalmente nas terras do Uncle Sam, onde ser do Sul Global é sinônimo de inferioridade dentro da hierarquia social existente nos Estados Unidos). Entender a angústia do não-pertencimento sempre foi um anseio presente não somente durante minha estada em terras estrangeiras, mas, também, após o meu retorno. Foi esse anseio que me levou à presente pesquisa: para não somente entender e estudar sobre o meu processo, mas, principalmente, entender e ouvir outras vozes. Vozes de mulheres imigrantes cujos lugares de fala são distintos do meu. Ser uma mulher latino-americana nos Estados Unidos não é fácil. Entretanto, muito mais difícil era a vida das minhas colegas de trabalho, mulheres negras, vindas do Haiti, Gana, Barbados, México (entre outros países) com quem tive o privilégio de compartilhar minha experiência e aprender sobre outras trajetórias. Quando li a obra Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie1 pela primeira vez, ouvi muitas dessas vozes: para além do processo diaspórico da personagem Ifemelu, todas as personagens que fazem parte da narrativa, cuja experiência migratória diaspórica estava longe de ser o American dream, eram mulheres que sofreram preconceito racial, xenofobia entre muitas outras violências. E foi com o intuito de aprender com essas vozes que eu me dediquei a este

1 Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em 15 de setembro de 1977 em Enugu, Nigéria. A autora tem escrito diversos trabalhos desde seu primeiro romance Purple Hibiscus, publicado em 2003, obra pela qual recebeu o prémio Commonwealth Writers como Melhor Primeiro Livro em 2005. Sua obra foi traduzida para mais de trinta línguas e apareceu em inúmeras publicações, entre elas a New Yorker e a Granta. Recebeu vários prêmios como o National Book Critics Circle Award. Posteriormente à Purple Hibiscus, Adichie publicou Half of a Yellow Sun, nomeado em homenagem a bandeira da nação de Biafra, pois se passa antes e durante a Guerra de Biafra, obra que lhe concedeu o Orange Prize de 2007 para Ficção. Em seguida, publicou o livro de contos The Thing Around Your Neck. Americanah, publicado em 2013, foi selecionado pelo jornal New York Times como um dos dez melhores livros de 2013. No Brasil, o romance foi publicado pela editora Companhia das Letras e traduzido por Julia Romeu. Adichie foi, ainda, a primeira mulher a ser Chefe da Administração da Universidade da Nigéria. A autora também é mundialmente conhecida por seus discursos na plataforma TED TALKS “We Should all be feminists” e “The Danger of a single story”. “We should all be feminists” foi traduzido no Brasil como Sejamos todos Feministas e publicado pela Companhia das Letras em 2017. As obras Hibisco Roxo, Meio Sol Amarelo e No Seu pescoço, também foram publicadas no Brasil pela editora Companhia das Letras. A obra mais recente de Adichie, Dear Ijeawele, (Como educar Crianças feministas) foi e traduzida e publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras em 2017.

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trabalho. Ainda que este estudo tenha como foco somente a experiência diaspórica da protagonista, a pesquisa é dedicada a todas as mulheres imigrantes originárias do Sul Global; mulheres que buscam alternativas para suas histórias e que merecem, sobretudo, direitos fundamentais respeitados, bem como todos os outros cidadãos em seus respectivos países hospedeiros, uma vez que a xenofobia vem se intensificando juntamente com o movimento global do conservadorismo e neoliberalismo. O que já era difícil passou a ser insustentável nos últimos anos.

Segundo os teóricos e pesquisadores da Lancaster University, Mimi Sheller e John Urry (2006), o mundo está em movimento constante, e isso não pode ser negado. Para eles, “[...] o mundo parece estar de mudança. Pessoas que procuram asilo político, estudantes internacionais, terroristas, integrantes das diásporas, turistas, negociantes, estrelas do esporte, refugiados e backpackers” (SHELLER; URRY, 2006, p. 207, tradução nossa) 2.

Os autores afirmam que essas movimentações de corpos distintos faz com que muitos deles sejam marcados pela diferença, de uma forma negativa ou inferiorizada. O estudo de Sheller e Urry (2006) dialoga muito com o atual cenário mundial: em janeiro de 2018, muitos questionamentos acerca do tema da imigração vieram à tona mundialmente em decorrência de uma série de atitudes xenofóbicas do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Um exemplo claro da xenofobia explícita de Trump são as palavras que ofenderam milhões de imigrantes e descendentes de imigrantes nos Estados Unidos. De acordo com o site CNN

Politics, o presidente dos Estados Unidos estava frustrado com o demasiado fluxo imigratório

de alguns países africanos para os USA e, por isso, mencionou: “Why do we want all these people from 'shithole countries' coming here?”3. Trump, segundo fontes da CNN, ainda mencionou que, ao invés de haitianos e africanos, mais pessoas da Noruega deveriam migrar para os Estados Unidos. No Brasil do presente ano, seguindo os passos do presidente dos Estados Unidos, o atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, declarou em uma de suas entrevistas durante uma visita diplomática à Casa Branca que “a maioria dos imigrantes não tem boas intenções”4. Além disso, na Europa são relatados inúmeros casos de violência

2 “All the world seems to be on the move. Asylum seekers, international students, terrorists, members of diasporas, holidaymakers, business people, sports stars, refugees and backpackers” (SHELLER, URRY, 2006, p. 207).

3“Por que nós queremos todas essas pessoas desses „países de merda‟ vindo para cá?” (tradução nossa). Ver mais em: <https://edition.cnn.com/2018/01/11/politics/immigrants-shithole-countries-trump/index. html>. Acesso em: 2 ago 2019.

4 Ver mais em: “Nos EUA, Bolsonaro disse que „a maioria dos imigrantes não têm boas intenções‟. importante enfatizar que o Brasil é um país cujo índice de imigração de brasileiros no exterior é muito maior do que o índice de imigrantes residentes no Brasil. Disponível em: <https://jornalggn. com. br/politica/nos-eua-bolsonaro-disse-que-a-maioria-dos-imigrantes-nao-tem-boa-intencao/>. Acesso em: 15 abr. 2019.

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xenofóbica pelas manchetes dos jornais, principalmente em países como a França, Alemanha e Itália5, onde o número de imigrantes aumentou consideravelmente depois da Guerra na Síria.

Com a repercussão de todos esses fatos, múltiplas manifestações contra a xenofobia emergiram no mundo. Porém, muito ainda precisa ser discutido sobre quem são as pessoas atacadas pelo discurso xenofóbico. É nesse sentido que os estudos sobre migração são necessários para o entendimento dessas relações de poder. Partindo desse pressuposto pretendo, também, discutir e refletir sobre os estudos diaspóricos. Será que todas as pessoas podem transitar pelo mundo da mesma forma? Quais são as principais motivações que levam as pessoas a migrarem? Por que algumas pessoas são recebidas com mais hospitalidade enquanto migrantes do que outras? Ao ler Americanah, romance da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, todos esses questionamentos emergiram em mim.

Americanah narra o relacionamento entre a jovem nigeriana Ifemelu e o jovem

nigeriano Obinze, e, concomitantemente, suas jornadas enquanto imigrantes. O romance, em seu início, se dá em Lagos, Nigéria, durante a década de 90, em meio a um conflituoso período em que um regime militar governava o país. Segundo Richard Bourne, autor do livro Nigeria: a new history of a turbulent century publicado em 2015, a Nigéria sofreu um dos seus piores golpes de Estado na década de 90. Em 1993, o General Sani Abacha aboliu a democracia na Nigéria. O regime cruel e ditatorial de Abacha, mesmo com sua morte em 1998, durou até o ano de 2007 quando o presidente Yar´Adua foi eleito democraticamente com 70 por cento dos votos.

No romance, a protagonista Ifemelu parte para os Estados Unidos com a esperança de estudar e se refazer longe de uma Nigéria sitiada pelo golpe. Durante seu período imigratório, Ifemelu escreve um blog sobre questões de gênero e raça e nele compartilha sua experiência como mulher negra africana que vive nos Estados Unidos. É diante deste efeito de

mise-en-abyme6 composto pelos blogs dentro do próprio romance que nós, leitores, acompanhamos a

jornada de Ifemelu e sua construção identitária.

5 Ver mais em: <https://internacional. estadao. com. br/noticias/nytiw, crise-de-imigracao-na-europa-ja-passou-mas-xenofobia-continua, 70002393322>. Acesso em: 15 abr. 2019.

6 De acordo com o E-dicionário dos Termos Literários: “O conceito designa o fenómeno de reprodução de um escudo por uma peça situada no seu centro. André Gide usou-o para referir essa visão em profundidade e com reduplicação reduzida sugerido pelas caixas chinesas ou pelas matrioskas (bonecas russas), promovendo o deslizamento do conceito para o campo dos estudos literários e das artes plásticas em geral. A mise-en-abyme consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular. Tal autorepresentação pode ser total ou parcial, mas também pode ser clara ou simbólica, indirecta. Na sua modalidade mais simples, mantém-se a nível do enunciado: uma narrativa vê-se sinteticamente representada num determinado ponto do seu curso”. Ver em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/mise-en-abyme/>. Acesso em: 14 maio 2019.

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A trajetória da protagonista fez-me refletir sobre a diversidade e as multiplicidades dos deslocamentos mundiais, bem como as relações de poder que estão atreladas a eles. Por isso, acredito ser necessário investigar algumas teorizações relacionadas à migração e, concomitantemente, discutir, a partir delas, as múltiplas configurações de diáspora.

O principal objetivo desta pesquisa é analisar a experiência imigratória da personagem Ifemelu e os embates de gênero e raça, consequentemente. Meu propósito, por meio desta análise é promover uma discussão sobre as mulheres no espaço imigratório e suas repercussões. Para isso, é necessário que se saiba qual é a configuração do deslocamento de Ifemelu. Se parto do princípio de que é uma experiência diaspórica, então, será uma análise que tratará, claramente, de relações de poder. São estas questões que contornam este estudo e que desejo trazer à tona nas páginas que se seguem.

Durante muito tempo, a minha percepção acerca do conceito de diáspora era baseada em estudos sobre movimentos migratórios ligados aos acontecimentos históricos, tais quais os deslocamentos dos povos africanos durante a escravização ou, também, a movimentação do povo judeu conhecida como diáspora judaica. Foi apenas por meio de novas discussões e perspectivas atreladas aos estudos diaspóricos que conheci outras possibilidades de deslocamentos que trazem diferentes configurações e novas conceptualizações do termo “diáspora”.

No primeiro capítulo, analiso quais foram os motivos que levaram Ifemelu a migrar para os Estados Unidos e em qual contexto de deslocamento a protagonista se encontra: seria Ifemelu apenas uma estudante em terras estrangeiras ou seria ela uma filha da nova diáspora?

Utilizo, portanto, como aporte teórico, o olhar de Avtar Brah sobre os estudos diaspóricos, bem como a noção de nova diáspora proposta pela teórica indiana Gayatri Spivak, e os conceitos de James Clifford e Stuart Hall sobre o tema.

Clifford (1994), ao falar sobre diáspora, reconhece a relevância do tema no âmbito histórico e expande sua noção através de conceitos plurais para evitar a ideia única do que seria a experiência diaspórica. Ou seja, a noção de um modelo fixo de experiência migratória vinculado ao conceito histórico de diáspora, como comunidades que migravam de forma voluntária ou involuntária. Já as teóricas Jana Evans Braziel e Anitta Mannur (2003) explanam que nem todas as formas de viagem podem ser consideradas diáspora. Avtar Brah (2011), por exemplo, nos ensina que a viagem diaspórica é distinta de uma viagem comum, pois ela, além de ser composta por longas distâncias, também envolve pessoas que procuram se estabelecer em outro lugar e, normalmente, esse processo migratório é permeado pelas relações de poder. Em concordância com Brah, Spivak traz o conceito do mundo

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transnacional definindo-o como nova diáspora a partir das relações de poder7, ou seja, das migrações provenientes do mundo neoliberal. Com base nessas teorizações, apresentarei e discorrerei sobre a trajetória e o motivo do deslocamento da protagonista Ifemelu em terras estadunidenses.

No segundo capítulo, procuro analisar as questões de gênero e raça que permeiam a experiência de deslocamento da protagonista. Entre estas questões, estão: a interpelação, ou seja, o “descobrir-se” negra em terras estrangeiras; a corporificação da experiência diaspórica - onde desdobrarei a pormenores o entrelace de gênero e raça ao tratar do corpo da mulher negra -; a percepção da hierarquia racial presente na sociedade norte-americana e, juntamente com ela, o racismo; os embates culturais entre africanos e afro-americanos e, consequentemente, o desenvolvimento de uma consciência bipartida e a expansão de uma consciência racial desenvolvida pela personagem durante sua vivência nos Estados Unidos.

Alguns dos teóricos que compõem o embasamento do segundo capítulo são Stuart Hall, Avtar Brah, Gayatri Spivak, Angela Davis, Gloria Anzaldúa, Sandra Regina Almeida, Dorren Massey, Dionnne Brand, Chandra Mohanty, bell hooks, Nilma Lino Gomes, Deepika Bahri, Naomi Schor, Chandra Mohanty, Homi Bhabha, Paul Gilroy e W. E. B. Du Bois.

No terceiro capítulo, trago a problematização acerca do processo de retorno da personagem Ifemelu. Primeiramente, procuro falar sobre as noções de retorno propostas por Dionne Brand e Stuart Hall; posteriormente trato de algumas questões de gênero decorrentes do processo de retorno da personagem e, para isso, utilizei o aporte teórico de Dorren Massey e Gayatri Spivak. Finalmente, busco discutir os conflitos identitários vivenciados por Ifemelu durante sua volta à Nigéria e, para isso, utilizo a noção de “Crítica Cúmplice” proposta pela teórica Linda Hutcheon, assim como a formação de uma nova consciência cuja origem se dá no “entre-lugar”. Articulo, portanto, os conceitos de Homi Bhabha (entre-lugar) e Gloria Anzaldúa (nova consciência).

7 Por relações de poder entendemos as inúmeras desigualdades em termos de raça, classe e gênero entre dominadores e dominados. O teórico peruano Aníbal Quijano (2002) revolucionou os estudos pós-coloniais com o conceito de “colonialidade de poder” ao afirmar que a ideia de raça funciona como ferramenta classificatória da sociedade, pois, segundo ele, a raça é o princípio fundador do capitalismo. A “colonialidade do poder” está no rastro das situações coloniais de dominação e exploração que vivenciamos na contemporaneidade. Complementando a ideia de Quijano, a teórica Maria Lugones (2008) afirma que, além da raça, o gênero também é constitutivo da “colonialidade do poder”, pois é necessário olhar para as mulheres de cor e a violência que recai sobre elas na intersecção. Portanto, Lugones expande o conceito de Quijano (2002) trazendo a noção da “colonialidade de gênero” e a importância do olhar interseccional sobre as categorias gênero, raça e classe. Para mais sobre “Colonialidade de Poder” e “Colonialidade de Gênero”.

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1. IFEMELU ATRAVESSA O ATLÂNTICO: CONFIGURAÇÕES DIASPÓRICAS NA CONTEMPORANEIDADE

Via-se numa casa como a do Cosby Show, numa faculdade com alunos segurando cadernos que, milagrosamente, não tinham vincos nem sinais de uso. Ela fez os exames para as faculdades norte-americanas num centro de Lagos lotado de gente comichando com suas ambições americanas. Ginika, que havia acabado de se formar na faculdade, se inscrevia em universidades em seu nome, ligando para dizer “Queria que você soubesse que vou focar na região da Filadélfia, que já conheço”, como se Ifemelu soubesse onde ficava a Filadélfia. Para ela os Estados Unidos eram os Estados Unidos. (ADICHIE, 2014, p. 111).

Neste capítulo, apresento questões relacionadas à teorização sobre diáspora e pretendo, por meio delas, articular, nos próximos parágrafos, a configuração diaspórica da personagem Ifemelu.

No romance Americanah, a protagonista Ifemelu migra para os Estados Unidos na década de 1990 quando seu país natal, a Nigéria, é sitiado por um golpe militar8, o que impossibilita Ifemelu de estudar e a faz se inscrever para universidades norte-americanas. O trecho acima nos mostra as expectativas de Ifemelu em relação ao seu novo lar, os Estados Unidos. Nele, a narradora relata o quanto o imaginário do american way of life está presente na vida da protagonista que almeja um futuro melhor longe do golpe militar decorrente na Nigéria.

Assim como Ifemelu, porém longe da ficção, muitas pessoas compartilham desse imaginário e migram de seus países procurando melhores condições de vida. Vários fatores podem causar essa busca por um novo lar: guerras, crises econômicas, golpes de estado e o neoliberalismo global, que induz o fluxo migratório crescente por meio de relações de poder9. A conceptualização do termo diáspora é tema de várias e incansáveis discussões entre teóricos e estudiosos da área, uma vez que existem várias configurações desse fenômeno migratório. Os autores Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin (1998) conceituam a diáspora como a movimentação forçada ou voluntária de povos de suas terras natais para novas regiões. Segundo eles, a diáspora é um fato histórico proveniente da colonização. Assim como os autores acima, as teóricas Jana Evans Braziel e Anitta Mannur (2003)

8 Em novembro de 1993, foi executado o sétimo golpe de Estado orquestrado pelo General Sani Abacha na Nigéria. Abacha dissolveu o governo nacional interino e aboliu a democracia no país. O General baniu toda a atividade política o que levou vários nigerianos ao exílio. Ver em: IGBOANUGO, Uzochukwu. Nigeria Political History, Democratic Governance and Social Management. Kindle Version. Dany Beck Paper, 2017.

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explanam que historicamente a diáspora se refere às comunidades de pessoas que foram deslocadas de seus países de origem por meio de movimentos de migração, imigração ou exílio. Neste caso, como menciona Melo (2011), o conceito de migração se dá como o deslocamento de pessoas dentro de um espaço geográfico, de forma permanente ou temporária. Já o conceito de imigração é constituído pelo deslocamento de pessoas de um país para o outro, sendo que as motivações para esse deslocamento podem ser variadas, pois podem ser econômicas, políticas ou pessoais. Desta forma, o imigrante é o indivíduo que pretende fixar residência em outro país. Tal qual o imigrante o sujeito exiliado também possui fortes motivações para deixar o país. Entretanto, no exílio a expatriação é forçada ou não, e, para Said (2003, p. 54), “[...] o exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anônima e infeliz, com estigma de ser um forasteiro” , ou seja, o exilado sai do seu país por razões extremas, e muitas vezes esse deslocamento é contra sua vontade. Após esse breve panorama sobre alguns dos processos constituintes do fenômeno migração, gostaria de enfatizar que meu propósito é discutir especificamente algumas das teorizações sobre a diáspora relacionadas à imigração, uma vez que a personagem Ifemelu é uma imigrante. Logo, como afirmam Braziel e Mannur (2003), nem toda forma de viagem ou deslocamento de pessoas é necessariamente considerada diáspora.

A teórica Avtar Brah (2011), em Cartografías de la diáspora: identidades em

cuestión, também afirma que as diásporas são claramente distintas das viagens ocasionais.

Para a autora, a viagem diásporica não pode ser vista como uma viagem curta, pois ela é constituída por longas distâncias e envolve sujeitos que procuram se estabelecer em alguma outra parte e, também, envolve relações de poder.

Ainda segundo as autoras Braziel e Mannur (2003), o termo foi usado, primeiramente, como uma tradução grega das escrituras hebraicas com a intenção de descrever o movimento das comunidades judaicas que viviam em exílio fora da Palestina. A definição de Ashcroft, Griffiths e Tiffin (1998) dialoga diretamente com a explanação de Braziel e Mannur (2003) porque as autoras também usam, como referência histórica, o conceito de diáspora negra africana que foi resultado do processo colonial e do sistema escravocrata, uma vez que ele traz a noção de “movimentação forçada”, tal como foram os processos de escravidão de africanos negros durante a colonização das Américas, por exemplo.

É comum, ainda que de forma generalizada, relacionar o termo diáspora somente a esses momentos históricos citados acima. Contudo, James Clifford (1994), em seu texto “Diásporas”, ressalta (e completa a noção de Braziel e Mannur) a importância de reconhecermos esses conceitos no contexto histórico. Entretanto, tais conceitos não podem ser

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vistos como modelos únicos, pois, na contemporaneidade há novas configurações acerca de diáspora sobre as quais discorrerei posteriormente. É devido à noção de múltiplas configurações de diáspora que o romance Americanah se torna tão relevante para dialogarmos sobre as diversas experiências diaspóricas na contemporaneidade.

O romance relata a história do relacionamento entre a jovem Ifemelu e o jovem Obinze, ambos nigerianos. A história, em seu início, se dá em Lagos, Nigéria, durante a década de 90, em meio a um conflituoso período em que o regime militar governava o país. Conforme o historiador nigeriano Zents Sowunmi (2014), o golpe militar, orquestrado pelo General Sani Abacha em novembro de 1993, foi um dos mais cruéis dentre os outros golpes militares já ocorridos no país. Sowunmi afirma que Abacha foi um dos piores ditadores na história da Nigéria, e sua estratégia foi certeira ao dividir o país em seis zonas administrativas, o que enfraqueceu muito a economia do país e destruiu a democracia. No romance, os conflitos políticos naquela altura resultaram em greves nas universidades, inviabilizando a continuidade dos estudos da jovem Ifemelu. Logo, em busca de novas alternativas e motivada pela sua tia Uju, imigrante em terras estadunidenses, Ifemelu parte para os Estados Unidos com a esperança de estudar e se refazer longe de uma Nigéria sitiada pelo golpe. Durante seu processo de adaptação e relocalização, a jovem vive uma série de conflitos os quais influenciam o seu olhar perante o mundo, a afirmação de sua identidade cultural e suas origens. Decidida a sanar muitas de suas angústias e dúvidas, a personagem escreve um blog chamado “Raceteenth ou Observações diversas sobre negros americanos (antigamente conhecidos como crioulos) 10 feitas por uma negra não americana”. Nele, ela compartilha sua experiência de ser uma mulher negra africana que vive nos Estados Unidos.

No romance, pode-se observar que existem experiências diaspóricas diferentes. A protagonista Ifemelu, por exemplo, migra para os Estados Unidos porque foi beneficiada com uma bolsa de estudos universitária, uma vez que uma crise política havia afetado profundamente o funcionamento das universidades na Nigéria:

As greves agora eram comuns. Nos jornais, os professores da universidade listavam suas reivindicações e os acordos que eram destroçados por membros do governo cujos filhos estudavam no exterior. As universidades ficaram vazias, as salas de aula sem vida. Os alunos torciam por greves curtas, pois sabiam que seria impossível não haver nenhuma. Todos falavam em ir embora do país (ADICHIE, 2014, p. 109)11.

10 In English: “Raceteenth or Various Observations About American Blacks (Those Formerly known as Negroes) by Non-American Black” (ADICHIE, 2013, l. 138).

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Foi por causa de conflitos políticos que tia Uju também partiu para os Estados Unidos. Uju era amante de um general que foi assassinado durante o golpe militar. Para proteger a si e a seu filho, ela abandona sua carreira como médica na Nigéria e migra para terras norte-americanas. Outro personagem em deslocamento é Obinze. Ele, que na Nigéria era namorado de Ifemelu, migra para a Inglaterra, porém, não consegue a documentação necessária para permanecer no país e acaba sendo deportado. Além de Obinze e Uju, que são personagens muito marcantes no romance, também há Dike, filho de Uju e primo de Ifemelu. O jovem garoto que migrou com sua mãe, sendo ele na época ainda bebê, foi criado nos Estados Unidos, porém, sofre com os mesmos embates raciais que Ifemelu: por ser imigrante e africano inserido no contexto afrodescendente da sociedade norte-americana.

Essas quatro personagens (Ifemelu, Obinze, Tia Uju e Dike) nos mostram experiências distintas em suas trajetórias, ainda que venham do mesmo lugar. Vivenciando desafios enquanto imigrantes, eles experimentam contextos diaspóricos diferentes, pois cada um deles experiencia a diáspora de uma forma singular. É por meio desta análise que os estudos de James Clifford (1994) mencionados acima contribuíram para aprimorar o meu entendimento sobre o que seria, de fato, uma experiência diaspórica, e se existe ou não uma caracterização única da experiência em diáspora; ou seja, como eu poderia identificar a experiência migratória da protagonista Ifemelu, uma vez que as motivações, as razões e as vivências desses deslocamentos são distintas? E de que forma eu poderia conceituar essas experiências como diaspóricas? Ainda que meu objetivo seja analisar apenas a personagem Ifemelu, considero necessária a comparação do contexto migratório da protagonista com os das outras personagens mencionadas acima para poder analisar as várias configurações de migração. Dessa forma, ao falar sobre as múltiplas definições de diáspora, Clifford menciona em seu texto “Diasporas” o ensaio “Diasporas in Modern Societies: Myths of Homeland and Return”, publicado em 1991, escrito pelo autor William Safran, o qual discute sobre uma variedade de experiências coletivas em diáspora. Ele cria uma lista modelo na qual as experiências diaspóricas, em sua maioria, poderiam ser conceituadas como:

“Comunidades de minorias expatriadas” (1) que são dispersas de um “centro” original para pelo menos dois lugares “periféricos”; (2) que mantêm “memória, visão ou mito sobre sua terra natal original”; (3) que “acreditam que não são – e talvez não possam ser totalmente aceitos pelo país anfitrião” (4) que veem o lar ancestral como um lugar de eventual retorno, quando é a hora certa; (5) que estão comprometidos com a manutenção ou restauração desta pátria; e (6) da qual a consciência e a solidariedade do grupo são “definidas de forma importante” por esta relação contínua com a terra natal

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(SAFRAN, 1991, p. 83-84 apud CLIFFORD, 1994, p. 305, tradução nossa)12.

Ao identificar as características apontadas por Safran na experiência migratória de Ifemelu, pude perceber que algumas delas, descritas na lista acima, podem ser atribuídas à vivência diaspórica da personagem, como, por exemplo, o item número três que revela que, as pessoas em diáspora acreditam que não são e talvez não possam ser totalmente aceitos pelo país anfitrião. Ifemelu, assim como as outras personagens em diáspora (tia Uju, Dike e Obinze, por exemplo) não se sentem aceitos pelo país hospedeiro, pois precisam negociar constantemente suas identidades e lidar com atitudes xenofóbicas. O item número seis da lista de Safran, o qual define como característica da diáspora a solidariedade entre grupos de imigrantes e sua relação contínua com a terra natal, pode ser percebida no romance no trecho seguinte, o qual demonstra a reação de Ifemelu quando participa do encontro do grupo de estudantes africanos da faculdade:

Eles contavam, brincando, o que os americanos lhes falavam: Você fala inglês tão bem. Tem muita AIDS no seu país? É tão triste que as pessoas vivam com menos de um dólar por dia na África. E eles próprios caçoavam da África, trocando histórias de absurdos, de tolice, e sentiam-se seguros para caçoar, porque era algo que nascia de uma saudade, de um desejo desesperado de ver aquele lugar de novo. Ali, Ifemelu tinha uma leve sensação acalentadora de renovação. Ali ela não precisava explicar. (ADICHIE, 2014, p. 152)

O desejo de retorno, mencionado no item quatro da lista de Safran, também faz parte da experiência de Ifemelu. Muito embora ela já estivesse estabilizada financeira e profissionalmente, o fator emocional foi o principal gatilho para a ideia da volta:

Seu blog estava indo bem, com milhares de visitantes por mês, ela ganhava bastante para dar palestras, tinha uma bolsa de estudos em Princeton e estava com Blaine – “Você é o amor da minha vida”, havia escrito ele em seu último cartão de aniversário. No entanto, tinha cimento na alma. Estava lá havia algum tempo, numa fadiga matutina, algo sombrio e sem contornos nítidos. E trouxe consigo anseios amorfos, desejos indistintos, vislumbres breves e imaginários de outras vidas que ela poderia estar vivendo, que ao longo dos meses se transformaram numa lancinante saudade de seu país (ADICHIE, 2014, p. 13).

12 “ „Expatriate minority communities‟ (1) that are dispersed from an original „center‟ to at least two „peripheral‟ places; (2) that maintain a „memory, vision, or myth about their original homeland‟; (3) that „believe they are not – and perhaps cannot be – full accepted by their host country‟; (4) that see the ancestral home as a place of eventual return, when the time is right; (5) that are committed to the maintenance or restoration of this homeland; and (6) of which the group´s consciousness and solidarity are „importantly defined‟ by this continuing relationship with the homeland” (SAFRAN, 1991, p. 83-84 apud CLIFFORD, 1994, p. 305). ,

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Ainda que muitas das características citadas na lista de Safran possam ser identificadas na experiência de Ifemelu, nem todas as pessoas em diáspora compartilham das mesmas experiências. No romance, Tia Uju não pretende voltar para a Nigéria, e Obinze só retorna para o país devido à sua deportação. Porém, segundo os estudos de Clifford (1994), a diversidade e distinção dessas experiências não interferem no fato de Ifemelu, Obinze e tia Uju estarem vivendo em diáspora. A razão disso está no fato de que apesar de considerar relevante a conceptualização de Safran para os estudos diaspóricos, Clifford (1994) o contrapõe em relação à noção de um tipo ideal de diáspora, ou seja, um modelo único de experiência diaspórica onde todas as características desse deslocamento fossem semelhantes e compartilhadas entre todas as pessoas que o vivenciam. Para o autor, os critérios propostos por Safran não representam todos os grupos que viveram e vivem a experiência diaspórica, portanto, é necessário tomarmos mais cuidado ao tentar definir a diáspora como uma experiência única, enquanto existem múltiplas configurações do fenômeno. Dessa forma, ele afirma que:

Talvez uma hesitação seja expressa pelas citações acerca de um "tipo ideal", uma sensação de perigo na construção de uma definição, aqui no início de um importante projeto comparativo que identifica o fenômeno da diáspora muito próximo de um grupo. De fato, grandes segmentos da experiência histórica judaica não atendem ao teste dos três últimos critérios de Safran (CLIFFORD, 1994, p. 305, tradução nossa) 13.

Assim como Clifford (1994), Stuart Hall (2011) também reafirma que nem todos os sujeitos diaspórico almejam o retorno à terra Natal. Para Hall (2011), a experiência diaspórica vai muito além do desejo de retorno, e não pode ser definida ou essencializada como algo totalmente puro, mas, sim, como uma experiência formada pela heterogeneidade e diversidade e definida através das negociações identitárias feitas por meio da diferença e pelo hibridismo. Hibridismo, segundo Hall (2011, p. 71), “não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução”. Essa tradução cultural, também conhecida como hibridismo, proveniente das negociações identitárias em diáspora, é explicada pelo teórico Homi Bhabha da seguinte forma:

Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referencia, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou

13 “Perhaps a hesitation is expressed by the single quotes surrounding „ideal type‟, a sense of danger in constructing a definition, here at the outset of an important comparative project that identifies the diasporic phenomenon too closely with one group. Indeed, large segments of Jewish historical experience do not meet the test of Safran´s last three criteria” (CLIFFORD, 1994, p. 305).

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“inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a “diferença do outro” revela insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e significação. (BHABHA, 1997 apud HALL, 2011, p. 71).

No romance, essas questões relacionadas ao hibridismo, ou tradução cultural, como estabelecem Bhabha (1997) e Hall (2011), aparecem durante o período em que Ifemelu vive nos Estados Unidos, porém se tornam mais evidentes quando a personagem retorna a seu país de origem, a Nigéria. No seguinte trecho, Ifemelu demonstra “a revisão de seus próprios sistemas” fator mencionado por Bhabha na citação acima:

Agora, lutava para entender o que não era dito. Quando os donos de loja tinham ficado tão grosseiros? Os prédios de Lagos sempre tiveram aquela camada de podridão em cima? E quando aquela se tornara uma cidade de pessoas que pediam por tudo e se apaixonavam pelo que era de graça? “Americanah!”, brincava Ranyinudo sempre. “Você está vendo as coisas com olhos de americano. Mas o problema é que nem é uma americanah de verdade. Se pelo menos tivesse um sotaque americano, a gente aturaria as reclamações!”. (ADICHIE, 2014, p. 416)14.

Ainda sobre as conceptualizações de diáspora, Braziel e Mannur (2003), assim como Hall (2011) e Clifford (1994) discordam de uma noção pura, de uma conceptualização única para o termo diáspora, ou seja, a noção de que todos os deslocamentos diaspóricos possuem as mesmas características, como por exemplo, o anseio pelo retorno, a ideia de migração forçada de comunidades inteiras, etc. Para as autoras, por exemplo, o termo diáspora que no passado era conceptualizado como exílio ou deslocamento nostálgico da terra natal, hoje, carrega em seu significado diferentes epistemologias, tais como a “nova diáspora” e suas diversas configurações (sobre as quais discorrerei a seguir) que se constituem de formas distintas daquelas ocorridas historicamente, como, por exemplo, a diáspora judaica e a diáspora negra, esta última decorrente do processo de escravidão.

As autoras ainda mencionam que muitas das recentes teorizações acerca do tema discutem sobre a ambiguidade literal do próprio vocábulo que é etimologicamente derivado da palavra grega diasperien, sendo dia – o equivalente a “atravessar” e sperien “espalhar e cultivar sementes”. Para elas, o termo, que em seu significado amplo denomina comunidades de pessoas que se deslocam de seus lugares de origem por meio da migração, imigração ou exílio como consequência da expansão colonial, é descrito em seu sentido etimológico de maneira “romantizada”, ou seja, o termo diáspora que etimologicamente significa “espalhar sementes” soa como algo positivo, porém, sabemos que há outras faces da expansão colonial

14 As questões sobre hibridismo, ou tradução cultural serão abordadas com mais pormenores no terceiro capítulo deste trabalho. Por enquanto, meu intuito é apenas situar o conceito.

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que não são tão brandas, pois envolvem a aculturação, a movimentação forçada de pessoas como, por exemplo, nos processos de escravização, assim como a dominação e exploração de povos15.

Partindo desse pressuposto, não podemos simplesmente classificar diáspora como uma experiência única e homogênea, pois existem outras configurações diaspóricas além das conhecidas no âmbito histórico, assim como também não podemos generalizar todas as formas de deslocamento como diaspóricas. Para isso, precisamos entender quem é o sujeito/a da diáspora o/a qual mencionarei nas linhas seguintes.

Em Americanah, é possível identificar múltiplas configurações diaspóricas porque os contextos migratórios desses deslocamentos envolvem relações de poder e dentro delas, problemáticas que são interligadas com questões de raça, classe e gênero. Há, por exemplo, um diálogo entre Ifemelu e a jovem Aisha no primeiro capítulo do romance, que mostra diversidade de vivências diaspóricas: Ifemelu e Aisha são ambas duas mulheres negras africanas vivendo diasporicamente nos Estados Unidos. Entretanto, a diferença de classe cria uma grande fenda que separa suas experiências. Enquanto a jovem senegalesa Aisha trançava os cabelos de Ifemelu em um salão de beleza, Ifemelu conta a ela que voltará para a Nigéria:

“Mas eu vou voltar para a Nigéria”, acrescentou Ifemelu, sentindo um remorso súbito. “Vou semana que vem. ”

“Para ver a família. ”

“Não. Vou voltar a morar lá. A morar na Nigéria. ” “Por quê?”

“Como assim por quê? Por que não?”

“É melhor você mandar dinheiro para eles. A não ser que seu pai seja homem grande. Você conhece gente graúda?” (ADICHIE, 2014, p. 24). Ifemelu é uma estudante universitária, possui moradia própria e está vivendo nos Estados Unidos legalmente. Para ela, voltar para a Nigéria é uma escolha, não uma necessidade. Diferentemente de Aisha que está no país ilegalmente e precisa trabalhar para mandar dinheiro para a família. Podemos observar que são contextos de experiências diaspóricas claramente distintos em função das questões de classe, entretanto, sabemos que há uma essencialização por parte da sociedade norte-americana de suas vivências enquanto imigrantes por causa de questões raciais e também dos marcadores da colonialidade.

15 Outro teórico que também é crítico em relação às ambiguidades do termo diáspora é Paul Gilroy que, em seu texto “The Black Atlantic” (1993), apresenta uma preocupação sobre a homogeneização de todos os povos que fizeram parte da diáspora negra, como se todos tivessem a mesma história ou herança cultural e étnica em comum o que, como consequência, estabeleceu a noção de um essencialismo negro. Discorrei mais detalhadamente sobre o essencialismo negro em diáspora no capítulo segundo deste trabalho.

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O essencialismo16 da identidade negra aparece no romance em vários momentos. Um deles se refere ao essencialismo sofrido por mulheres negras africanas nos Estados Unidos. Uju consegue um cartão de Seguridade Social (posteriormente, no romance, Ifemelu consegue se legalizar nos Estados Unidos) de outra mulher negra cujo nome é Ngozi Okonkwo, para que Ifemelu possa trabalhar, uma vez que ela possui apenas o visto de estudante:

“Eu não pareço nada com ela”, dissera Ifemelu quando tia Uju lhe dera o cartão.

“Os brancos acham que nós todos somos parecidos” “Ahn-hã tia!”

“Não estou brincando. A prima de Amara veio para cá no ano passado e ela ainda não tem um visto, por isso começou a trabalhar com identidade de Amara. Você se lembra dela? A prima é magra e tem pele clara. Elas não se parecem nem um pouco. Ninguém notou [... ] Só não esqueça do seu novo nome. (ADICHIE, 2014, p. 132).

No trecho acima podemos ver que a personagem passa a ter uma noção da essencialização de sua identidade devido à cor de sua pele. Falarei mais sobre o essencialismo da cultura negra em diáspora e suas implicações no segundo capítulo desse trabalho.

1.1 QUEM É O SUJEITO DIASPÓRICO?

Diante de tantas ambiguidades e contradições, como poderíamos, então, entender e reconhecer quem é o sujeito diaspórico? Será que todas as pessoas podem transitar da mesma forma? Como mencionei anteriormente, de acordo com o aporte teórico de Avtar Brah (2011), a diáspora é um deslocamento que envolve relações de poder. Brah enfatiza que para teorizarmos o que de fato é diáspora, precisamos nos perguntar: quem viaja? Quando viaja? Em que circunstâncias econômicas e políticas viaja? Certamente, temos muitas perguntas que nem sempre serão respondidas, entretanto, partindo do questionamento proposto pela autora, conseguimos ver que o sujeito diaspórico não é um viajante comum. Ifemelu não saiu da Nigéria para passar suas férias em Nova York. Ela também não é filha de pais ricos que pagam seus estudos no exterior. Ifemelu é uma jovem cujo pai está desempregado e vive as consequências econômicas e políticas de um golpe militar. Portanto, seu contexto migratório envolve relações de poder, como nos ensina Brah. A teórica também enfatiza que as pessoas em diáspora passam por experiências distintas que podem ser vividas em múltiplas

16 Aqui me refiro a essencialismo como ato de colocar várias pessoas em um mesmo grupo identitário, no caso de Ifemelu, por causa da cor de sua pele, gênero e nacionalidade. Tratarei melhor as noções e conceptualizações sobre essencialismo no capítulo segundo deste trabalho.

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modalidades nas quais as questões de gênero, raça, classe, religião, língua e geração influenciam na singularidade de cada processo.

Nesse sentido, completando a ideia de Brah, Hall (2009) explica que este sujeito diaspórico precisa negociar constantemente sua identidade cultural com os costumes desse “outro lugar”, este novo lar. Ele/ela passa, então, a pertencer a várias casas, a vários lares, e constituí para si uma identidade híbrida. Essa construção do “eu” em meio às negociações identitárias, muitas vezes pode ser um processo doloroso e traumático. No romance, Ifemelu sente a necessidade de mudar seu sotaque nigeriano para um sotaque norte-americano depois de um encontro infeliz com a recepcionista da faculdade, Cristina Tomas. Cristina responde às perguntas de Ifemelu de forma exageradamente pausada como se Ifemelu não fosse falante da língua inglesa:

“Boa tarde. É aqui que a gente se matricula?” “Isso. Você. É. Uma. Aluna. Estrangeira?” “Sou”.

“Você. Primeiro. Precisa. Pegar. Uma. Carta. Do. Departamento. De. Alunos. Estrangeiros. ”

“Eu falo Inglês”

“Aposto que fala. Só não sei se fala bem”. (ADICHIE, 2014, p. 145).

A atitude preconceituosa de Cristina Tomas leva Ifemelu a acreditar que precisa se adequar a um novo sotaque, embora o inglês seja uma das línguas oficiais em seu país:

Ifemelu se encolheu. Naquele segundo de silêncio difícil em que ficou olhando nos olhos de Cristina Tomas antes de pegar os formulários, ela se encolheu. Como uma folha seca. Falava Inglês desde pequena fora a capitã da equipe de debate no ensino médio e sempre achara a pronúncia anasalada dos americanos um pouco rudimentar; não deveria ter se acovardado e encolhido, mas o fez. E, nas semanas seguintes, conforme o frio do outono ia surgindo, começou a treinar um sotaque americano. (ADICHIE, 2014, p. 147).

No trecho acima vemos a personagem tentando se adequar ao sotaque norte-americano para não ser subestimada. Essas atitudes de revisão ou “adequação” ou “tradução cultural” é o princípio do que Hall chama da construção de identidades híbridas (HALL, 2011). Esse hibridismo identitário proveniente da diáspora pode ser analisado a partir dos estudos do autor (HALL, 2014), segundo os quais “a identidade cultural não é dada e sim construída”, e “a interação social está diretamente ligada a este processo”. Esses dois fatores que caracterizam

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o hibridismo identitário demonstram que a alteridade17 pode ser um elemento a se considerar durante esse movimento constante de construção do “eu”.

É dessa forma que o trecho do romance citado acima nos mostra o quanto a diáspora está ligada à alteridade devido ao estranhamento vivido pelo indivíduo que enfrenta a sobrevivência em um lugar desconhecido e também pelo estranhamento da sociedade do país anfitrião que muitas vezes não o acolhe. A diferença pode estar presente no outro por meio de novos costumes, princípios e barreiras culturais que vão desde a linguagem até questões religiosas. É neste sentido que o sujeito diaspórico tem uma percepção maior do outro, pois sua ligação com a diferença é ampliada, e também, devido a múltiplas relações de poder imbricadas em diáspora, o sujeito diaspórico passa a ser “outro”, o estrangeiro, aquele que não pertence. Sendo assim, Hall (2011) afirma que os sujeitos da diáspora precisam lidar com os novos costumes e a nova cultura em que vivem, contudo, estes/as sujeitos/as muitas vezes não são assimilados e acolhidos pelo novo lar e, assim, eles/elas precisam negociar suas identidades constantemente. As histórias e culturas interconectadas fazem com que essas pessoas sejam parte de dois mundos e várias “casas” ao mesmo tempo, o que corrobora com a noção da dupla consciência (double consciousness) – termo usado inicialmente por W. E. B. Du Bois (1998) acerca das discussões raciais. Para W. E. B. Du Bois (1998), os afro-americanos, isto é, os negros que nascem ou vivem fora do continente Africano, possuem uma dupla consciência. Segundo o conceito de Dupla Consciência proposto pelo poeta e historiador, os afro-americanos possuem duas concepções de si, pois são ao mesmo tempo negros e americanos.

No romance, Ifemelu constrói sua identidade por meio da alteridade cultural, ou seja, ela constrói seu “eu” em meio aos “outros”, porém entende que enquanto imigrante, ela é vista como a “outra”, a estrangeira, a que não pertence 18. Ainda sobre as identidades culturais na contemporaneidade (em diáspora ou não) Hall explica que as identidades pós-modernas não podem ser fixadas: “Nossos povos têm suas raízes nos – ou, mais precisamente, podem traçar suas rotas a partir dos – quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia; foram forçados a se juntar no quarto canto, na cena primária do Novo mundo. Suas rotas são tudo, menos puras” (HALL, 2011, p. 30).

17 Uso aqui os estudos sobre a linguagem feitos pelo teórico Mikhail Bakhtin (1981) para tentar explanar o conceito de alteridade. O eu, para Bakhtin, não é o do indivíduo isolado ou autônomo, mas um ser em constante interação e interdependência com o meio social, um ser atravessado pelo outro, ou seja, pela alteridade. O eu necessita da colaboração dos outros para poder construir-se e definir-se na construção da identidade. Na perspectiva bakhtiniana, portanto, o eu se constrói pela colaboração do outro.

18 Essas questões sobre hibridismo identitário e consciência bipartida serão abordadas com mais profundidade no segundo capítulo desse trabalho, onde pretendo analisar as questões de gênero e raça na vivência diaspórica da protagonista.

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Entretanto, quando falamos de diferença, como explica Brah (2011), “[ela] nem sempre é horizontal, e em sua maioria, é uma diferença hierárquica”, pois nem todos os sujeitos transitam com a mesma facilidade. A autora ao falar sobre o conceito de diferença afirma que:

O conceito de diferença, portanto, refere-se às formas pelas quais discursos específicos de diferença são constituídos, discutidos, reproduzidos ou adquirem novos significados. Algumas construções de diferença, como o racismo, colocam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos, que apontam como inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como algo relacional, contingente e variável. (BRAH, 2011, p. 154, tradução nossa)19.

Como Brah (2011) nos mostra, a diferença não representa somente hierarquia e opressão, mas, se a diferença toma forma de exploração e desigualdade, pode, certamente, ser hierárquica. Portanto, esta noção de hierarquia irá depender do contexto no qual se aplica a diferença. No caso das migrações, sabemos que nem todos os sujeitos transitam da mesma forma, pois há construções de diferença que criam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos, como, por exemplo, o próprio racismo. Em Americanah, o choque da personagem Ifemelu com o racismo e a percepção de uma hierarquia racial, faz com que ela sinta cruelmente a noção de diferença apontada por Brah anteriormente. Ifemelu entende que a diferença, como propõe Brah nem sempre é horizontal e no caso dos imigrantes ela é hierárquica. Em seu blog ela escreve sobre essa hierarquia dos imigrantes presente na sociedade norte-americana:

Hispânicos são frequentes companheiros dos negros americanos nos índices de pobreza, um pequeno passo acima deles na hierarquia racial do país. A raça inclui a mulher de pele chocolate do Peru; os povos indígenas do México; as pessoas com cara de mestiças da República Dominicana; pessoas mais branquinhas de Porto Rico; e o cara louro de olhos azuis da Argentina. Você só precisa falar espanhol e não ser da Espanha e, voilà, pertence a uma raça chamada hispânico. (ADICHIE, 2014, p. 116).

O que Ifemelu nos mostra é que ser diferente, ou ser o “outro”, o “não pertencente” irá depender da origem do imigrante, além das questões de gênero, raça e classe que estão imbricadas no contexto do lugar de partida. No romance, há um diálogo entre Ifemelu e seu então namorado Curt, no qual podemos perceber que o lugar de origem do imigrante interfere em sua liberdade de ir e vir. Quando Curt convida Ifemelu para passar um fim de semana em

19“El concepto de diferencia, por lo tanto, se refiere a las maneras en las que los discursos específicos de la diferencia se constituyen, discuten, reproducen o adquieren nuevos significados. Algunas construcciones de diferencia, tales como el racismo, colocan fronteras fijas e inmutables entre grupos, que señalan como inherentemente diferentes. Otras construcciones pueden presentar la diferencia como algo relacional, contingente y variable” (BRAH, 2011, p. 154).

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Paris (o que para ele, homem branco, rico e norte-americano é simples) para Ifemelu é muito complicado:

“Vamos para Paris amanhã!”, disse Curt fim de semana. “Sei que não é nada original, mas você nunca foi e vou amar mostrar a cidade para você!”

“Eu não posso simplesmente decidir ir a Paris. Tenho passaporte nigeriano. Preciso pedir um visto, mostrar meu extrato bancário, minha carteirinha do plano de saúde e várias outras provas deque não vou ficar lá e me tornar um fardo para Europa”. (ADICHIE, 2014, p. 214).

É nesse sentido que a pesquisadora brasileira, Larissa Pelúcio, fala sobre a condição da “imigrante terceiro-mundista” em seu texto “Subalterno quem, cara Pálida?” publicado em 2012. Nele, ela trata da subalternização das mulheres imigrantes originárias de fora do eixo euro-norte-americano e de sua própria experiência como imigrante brasileira na Alemanha. Pelúcio menciona o quando era subestimada por ser uma mulher latino-americana:

Eu, por exemplo, só descobri que não era branca quando, aos dezoito anos, fui viver na Alemanha. No Brasil, sempre fui socialmente branca e, portanto, (bem) tratada como tal. Aprendi naquele momento, em meio à neve, que meu corpo podia ser lido a partir das marcas da colonialidade que o situavam numa periferia exotizada e desmoralizada. Naquele longínquo ano de 1981, perdi também meu lugar de classe, tornei-me mais uma imigrante terceiro-mundista pronta para lavar pratos ou banheiros. De repente me vi em um lugar intersticial: o que eu era? (PELÚCIO, 2012, p. 398).

Em Americanah, Ifemelu também passa por um processo de subalternização pela sociedade norte-americana por ser uma mulher negra nigeriana. Ainda que ambas estejam em contextos migratórios diferentes, tanto a pesquisadora como a protagonista são exotizadas e interpeladas de maneira hostil e inferior por serem mulheres do Sul Global.

É nesse sentido que Braziel e Mannur (2003) exploram a importância dos estudos diaspóricos na atualidade, pois as recentes teorizações deste fenômeno não estão focadas em definir a diáspora como um tipo de migração feito por um grupo em particular com características idênticas em seu processo migratório, mas, sim, em problematizar e representar todas as experiências vividas em diáspora e suas múltiplas configurações. As autoras ainda afirmam que os estudos diaspóricos criam um espaço para a discussão crítica em relação a raça, etnia, nação e identidade. Portanto, os estudos diaspóricos também contribuem para os debates sobre as imbricações entre gênero, raça, classe, sexualidade e identidade nacional, pois essas categorias não podem ser analisadas separadamente, visto que, no contexto diaspórico há a interseccionalidade entre as categorias, tal como explicam Braziel e Mannur no trecho abaixo:

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Mais complexamente, estudiosos da diáspora têm sugerido maneiras inovadoras de pensar através dos, anteriormente demarcados, terrenos da identidade e exploram as imbricações de categorias étnicas e nacionais, enquanto oferecem insights sobre as construções culturais de identidade em relação à nacionalidade, diáspora, gênero e sexualidade; claro que classe interfere, se não assombra, a formação de todas estas categorias (BRAZIEL; MANNUR, 2003, p. 5, tradução nossa)20.

Como as teóricas afirmam acima, é muito difícil separar as relações de gênero, raça e classe em diáspora. Além das essencializações sobre as identidades femininas dos países ditos terceiro-mundistas, no âmbito da diáspora, há elementos que distinguem o processo de deslocamento vivido pelas mulheres ocidentais e mulheres do “terceiro mundo”. Em seu artigo “Dislocación y borderland: Uma mirada oblicua desde el feminismo descolonial al entramado migración, régimen heterossexual, (pos) colonialidad y globalización”, Camila Esguerra Muelle, pesquisadora sobre Gênero e Estudos Culturais, explana uma experiência vivida em Madrid, onde observa a diferença entre os termos imigrantes e estrangeiros. Segundo a autora, há uma divisão de classes em diáspora quando referente a africanos, latinos, árabes e outras culturas não ocidentais:

Durante o trabalho de campo em Madri, observei que há uma distinção generalizada no uso de palavras imigrantes e estrangeiros: o vocabulário imigrante implica um status baixo e é usado para se referir principalmente a estrangeiros de origem latino-americana, árabe e africana e da Europa Oriental. (MUELLE, 2013, p. 142, tradução nossa) 21.

Não é preciso ir muito longe para entendermos as colocações de Muelle. No Brasil, por exemplo, na atualidade, é evidente a diferença de tratamento dado aos imigrantes haitianos e venezuelanos em relação aos imigrantes europeus ou norte-americanos. Aliás, no Brasil, para muitos, pertencer a uma família de origem europeia é motivo de glamourização, ao passo que falar sobre a descendência dos povos africanos é afronta. Esses dados empíricos nos mostram o quanto é necessário fazermos uma desconstrução do conceito único de sujeito diaspórico. E, dessa forma, priorizando a multiplicidade das experiências em diáspora e em concordância com os estudos sobre diáspora, considero a protagonista Ifemelu uma sujeita diaspórica, pois sua trajetória é marcada por vários elementos que compõem essa

20 “More complexly, diasporic scholars have suggested innovative ways of thinking across the once demarcated terrains of identity and exploring the imbrications of ethnic and national categories, while offering insights into the cultural constructions of identity in relation to nationality, diaspora, gender and sexuality; of course, class inflects, if not haunts the formation of all these categories”. (BRAZIEL; MANNUR, 2003, p. 5).

21 “Durante el trabajo de campo en Madrid, pude observar que hay una distinción generalizada en el uso de las palabras inmigrantes y extranjeros: Mientras el vocablo inmigrante implica un estatus bajo y se usa para referirse principalmente a extranjeros de origen latino-americano, árabe, africano y del este de Europa” (MUELLE, 2013, p. 142)).

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movimentação migratória: ela sai do país em meio a conflitos políticos provenientes de relações de poder; é interpelada de forma discriminatória no país de destino, não somente pela cor de sua pele, mas, também, por ser nigeriana; encontra dificuldades de adaptação e, acha que, precisa assimilar a cultura do país hospedeiro e, por fim, desenvolve uma dupla consciência.

Assim, os estudos diaspóricos, bem como a literatura diaspórica são ferramentas indispensáveis para o debate sobre migração e os embates originários das relações de poder que envolvem esses deslocamentos. No âmbito da literatura, a pesquisadora Sandra Regina Goulart Almeida, em sua obra Cartografias Contemporâneas: espaço, corpo, escrita, enfatiza a importância do olhar para a contemporaneidade ao se tratar desses deslocamentos:

Pensar o momento contemporâneo implica necessariamente refletir sobre o espaço transnacional de circulação de pessoas e mercadorias, bem como a globalização que interliga a economia mundial, os movimentos migratórios que cada vez mais desestabilizam os estado-nação, os intensos trânsitos culturais e geopolíticos e a constante interação mediática e virtual entre os povos nações. (ALMEIDA, Sandra, 2015, p. 11).

Sandra Almeida (2015, p. 38), ao falar sobre a presença dessas discussões no âmbito da literatura, afirma que muitas autoras contemporâneas que anteriormente elaboravam seus romances com uma narrativa mais intimista e autobiográfica, atualmente “[...] têm abordado questões mais abrangentes, mas não menos problemáticas, com relação à presença das mulheres nesse novo contexto sociocultural e geopolítico”. Adichie, por sua vez, faz parte desse novo grupo de escritoras que abordam a complexidade da experiência migratória partindo da ótica feminista. O romance Americanah além de tratar de questões de gênero e raça, também ilustra por meio da ficção a experiência migratória contemporânea dos africanos para o ocidente, e principalmente, desmistifica a noção de uma África única e exotizada.

Nesse contexto, sobre a literatura diaspórica dos países africanos, a pesquisadora Delphine Fongang (2018) afirma que muitas das temáticas contemporâneas das literaturas africanas estão ligadas ao tema diáspora por causa da intensidade de deslocamentos vivenciados por africanos nos séculos vinte e vinte e um22. Esses deslocamentos, voluntários ou não, estão presentes na vida destas pessoas que os representam na literatura. O historiador nigeriano Toyin Falola, ao escrever o prefácio do livro organizado por Delphine Fongang

22 “Migration in the late twentieth and twenty- first centuries has given rise to a new wave of Africans seeking better economic opportunities in various Western locales. The recent voluntary, and in some cases, involuntary displacement of Africans from the continent results from the dilapidating states of affairs in many African nation states, including but not limited to, crumbling economies, poor educational systems, civil and ethnic was, disease, poverty, regional violence, and terror. The theme of leaving has become a major subject in contemporary African diasporic literature” (FONGANG, 2018, l. 147).

Referências

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