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Cortar-se na adolescência

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM PSICOLOGIA CLÍNICA:

PRÁTICAS CLÍNICAS NAS INSTITUIÇÕES

VÂNIA FERRARI CASSOL

CORTAR-SE NA ADOLESCÊNCIA

Ijuí (RS)

2018

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Cortar-se na adolescência

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Vânia Ferrari Cassol2 Daniel Ruwer3

Resumo: O presente artigo aborda uma das demandas de meninas pré-adolescentes/adolescentes cada vez mais presentes na clínica, o self cutting, ato de cortar-se a si mesmo, automutilar-se de forma intencional. O tema é trabalhado com base em pesquisas bibliográficas, tendo como fundamentação a teoria psicanalítica. O trabalho compreende, em um primeiro momento, as temáticas que envolvem a adolescência; em seguida, a problemática envolvendo a automutilação/self cutting, assim como articulações entre a automutilação e as angústias que surgem na adolescência em relação a constituição do corpo e do feminino. Aborda o retorno do Estádio do Espelho, que ocorre na infância e que faz ressurgir na adolescente a necessidade de apropriação de uma imagem “nova” do corpo, envolta de um processo de separação eu/Outro. Aponta que essas mudanças, em sua maioria, são traumáticas e apresentam atitudes de desamparo diante da construção da nova imagem corporal e da transicionalidade na relação eu/Outro. O ato de cortar-se na fase adolescente representa a demanda de inscrever uma nova representação de si.

Palavras-chave: Adolescência. Singularidade. Imagem. Estádio do Espelho. Cortes. Marcas. Separação.

Abstract: The article approaches one of the demands more and more present in the clinic with teenager girls, the ‘self-cutting’, the act of cutting themselves, conciently self-mutilation. The subject is worked based on bibliographical research having as foundation psychoanalytic theory. The subject develops in the first moment the themes that involve adolescence, and in the second moment the problematic involving self-mutilation/ self-cutting and also the link between the self-mutilation and anxiety that emerges during the adolescence in relation to the constitution of the female body. Approaches the return of the Mirror Stage that happens in the childhood , and does bring back in the adolescence the necessity of appropriation of a “new image about the body” enveloped in a process of separate I/Another. Points that these changes in majority are traumatic and introduce attitudes of helplessness against the build of the new corporal image and of the transitionality in the relation I/Another. The act of self-cutting in the adolescence phase represents the necessity of register a new representation of itself.

Key Words: Adolescence. Singularity. Image. Mirror Stage. Cut. Marks. Separation.

1 Artigo apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica: Práticas Clínicas nas Instituições, da

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), como requisito básico para a obtenção do título de Especialista.

2 Psicóloga do CRAS Bem Me Quer do município de Boa Vista do Buricá e Psicóloga na Clínica Espaço Psi –

Serviços em Psicologia, no município de Horizontina. Graduada em Psicologia na Unijuí e pós-graduanda em Psicologia Clínica: Práticas Clínicas nas Instituições, também na Unijuí. E-mail: vfcassol@yahoo.com.br

3 Graduado em Psicologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí),

especialista em Psicooncologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí. Professor do Departamento de Humanidades e Educação da Unijuí, orientador do presente trabalho. E-mail: daniel.ruwer@unijui.edu.br

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Introdução

[...] Como sempre adivinha tudo, minha mãe sabe que eu escrevo. Que encontrei um jeito de arrancá-la de mim sem sangrar. Ela me teme um pouco agora. Eu gosto da sensação de meu pequeno poder. Sou eu que conto a história, quero gritar. Como sempre, silencio. Como meu pai, silencio. (BRUM, 2011, p. 37).

Entrar no mundo adolescente nem sempre é fácil. O período da adolescência pode ser marcado como um tempo em que a dúvida faz surgir a angústia pelas várias contradições presentes nessa fase. É um momento em que o sujeito oscila entre a dependência e a independência, autonomia e submissão, onipotência e impotência.

O tornar-se adulto exige tempo, sendo esse o principal desafio dessa fase, pois trata-se de um momento em que a vida do adolescente passa por reviravoltas. Em algumas culturas em que as sociedades permanecem estáveis, os jovens passam por rituais de iniciação em que precisam vencer desafios e obstáculos propostos pelos adultos. Esses rituais de passagem é que trazem a garantia de força, competência e aptidões necessárias para a vida adulta.

A adolescência pode ser contagiante, mágica e, de certa forma, desejada pelo adulto, sendo que esse, por vezes, gostaria de ter permanecido adolescente. Mas ao mesmo tempo, pode ser aterrorizador, pela inconstância de sentimentos, fazendo com que haja mudanças no humor e no comportamento da pessoa, provocando atitudes impulsivas em questão de segundos, incluindo atos sobre o corpo.

A produção de marcas corporais é um fator presente em diversas culturas desde as mais antigas civilizações. Os piercings e tatuagens são algumas das várias formas de manifestações dessas marcas, que apresentam significações diversas de acordo com o contexto e sociedade na qual estão inseridos.

Um sintoma muito atual, envolvendo uma nova forma de marcar o corpo, vem chamando a atenção, principalmente por ser um fenômeno cada dia mais comum entre as adolescentes meninas, o “Cortar-se na Adolescência”. A automutilação, também chamada de self cutting, que significa “cortando a si mesmo”, consiste em cortes na própria pele, sendo que para algumas adolescentes esse ato torna-se compulsão, recorrendo aos cortes como forma de alívio frente a situações angustiantes. O ato é intencional e o adolescente tem a intenção de ferir-se.

Podemos encontrar relatos cada vez mais frequentes a partir das escolas, na escuta clínica e também nas redes sociais, tornando cada vez mais necessária uma investigação desse tema como forma de ampliar a compreensão sobre a automutilação. A análise do tema terá como

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subsídio a teoria psicanalítica, como forma de entender o porquê o adolescente se corta e como o terapeuta pode construir a abordagem clínica que possibilite a sustentação da escuta.

Em relação ao contexto clínico, esse sintoma, que aparece com mais frequência entre as meninas, traz consigo inúmeros questionamentos. Percebe-se que o ato está relacionado ao alívio da dor, uma dor existencial, uma dor emocional, porém, interroga sobre o fato da dor física não produzir desprazer. A adolescência é marcada por um período conflituoso em que o/a adolescente tem dificuldades de lidar com as mudanças ocasionadas em seu corpo e também com aquilo que é exigido dele. Normalmente, existe uma dificuldade de lugar, de não saber ao certo a que grupo pertence, uma falta de identificação. Identificar-se, esse é o desafio adolescente. Perceber uma nova existência a partir de uma nova imagem especular.

1 A adolescência

Para definir o termo adolescência faz-se necessário compreender seu significado e analisar suas implicações na constituição psíquica.

Conforme Geovana da Silva Ferreira (2016), as definições são as mais diversas e dependem da perspectiva teórica pela qual encontram-se inseridas. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adolescência é o período da vida que ocorre dos doze aos dezoito anos de idade. Já do ponto de vista psicológico e social, é impossível delimitar esse período por não se tratar apenas de uma fase cronológica da vida, mas de um fenômeno de maior complexidade, sendo vista como uma construção social contemporânea. Se pensarmos a adolescência pela idade de vida, esse tempo fica definido como puberdade, que é definida pela maturação dos órgãos sexuais. Em algumas culturas, isso é suficiente para a passagem ao mundo adulto, sendo marcado por ritos de passagem.

Dessa forma, a adolescência como é conhecida no mundo ocidental contemporâneo não existe, como também não existem as formas apresentadas pelas civilizações primitivas, em que a vida adulta caracterizava-se pela atividade sexual e o trabalho para a sobrevivência, sendo levado em consideração somente as aptidões corporais que os transformariam em homens e mulheres.

A modernidade transformou as formas de organização social e as formas de subjetivação, possibilitando a entrada de novos ideais e valores, e a adolescência passa a ser vista como crise, conflito. O discurso social traz novas formas de valorização, como a liberdade, o individualismo e o sucesso financeiro. Assim é que surge a adolescência na cultura atual, sendo vista como um

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tempo de suspensão entre a maturidade corporal e a autorização e reconhecimento para a entrada na vida adulta.

Vista por muitos como o último estágio da infância, a adolescência merece muita atenção, pois nessa fase de transição ocorrem mudanças físicas e emocionais que são importantes, desencadeando o que a psicanálise denomina de crise psíquica. Há, nesse momento, uma troca de posições, na qual o sujeito deixa de ser o objeto de amor dos pais e assume o lugar de sujeito de seu desejo.

[...] Convocado a responder na posição de responsável por seus atos, o(a) adolescente entra em crise devido a dificuldade de se situar a partir desse novo lugar, ou dito de outra forma, a adolescência é o momento psíquico no qual o jovem busca construir essa nova posição subjetiva. (MEES, 2004, p. 21). Trata-se de um momento em que é comum haver uma “confusão” quanto aos sentimentos, em que fica para trás a fase da brincadeira, do mundo sem responsabilidades, dando lugar a uma outra posição que precisa ser elaborada psiquicamente pelo adolescente. A questão adolescente traz consigo muitas incertezas do que realmente são, já que lhes são exigidas muitas coisas, como responsabilidades, atitudes “adultas”, o que de certa forma confirma o dito “em direito o adolescente não conta” (RASSIAL, 1997, p. 13), fazendo com que o mesmo fique em constante busca de um lugar.

Até esse momento, nada era exigido dele pelo fato de estar protegido pelo olhar do adulto, pois ali permanecia, sendo o âmbito familiar a única forma de lei e identidade a ser seguida. Com a entrada na adolescência, as exigências mudam, e esses precisam de maneira repentina dar conta das alterações do corpo, sexuação, vivência sexual, a escolha do parceiro, sendo esses elementos que a cultura responde ao lado da potência, tanto em relação a sexualidade como nas conquistas escolares, profissionais e financeiras.

[...] sendo-lhe solicitado, por uma ruptura geralmente bastante brusca, que ocupe uma posição que iria simultaneamente fazer ouvir sua singularidade, que até então ele precisava manter à distância, mas uma singularidade que participasse da comunidade, enquanto, ao mesmo tempo, fosse dissolvida, perdida e confundida com a comunidade de todas as singularidades existentes, que estão presas pelo dever sexual, em particular pelo dever fálico. (MELMAN, 1995, p. 9 apud MESS, 2004, p. 21).

Calligaris (2011) compara a trajetória adolescente com aeronáufragos que são adotados por uma tribo com cultura totalmente diferente da deles. Nessa comparação, o autor de “A adolescência” diz que o grupo precisaria de mais ou menos doze anos para se apropriar daquela

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cultura, da língua e dos costumes daquele povo, e que nesse tempo é aprendido que é preciso se sobressair e adquirir destaque, ou seja, quem melhor pesca e toca berimbau logo será percebido por todos. Porém, mesmo tendo aprendido todos os costumes do povo nesses doze anos, esses são informados que precisam preparar-se melhor por um período de dez anos, para enfim, serem reconhecidos como membros da tribo.

Verifica-se fenômeno semelhante nos adolescentes em nossa sociedade. Por aproximadamente doze anos integram-se a cultura e também aprendem a necessidade de se destacar, principalmente nesses dois campos: as relações amorosas/sexuais, como também na potência, ou seja, no campo financeiro e produtivo. Porém, mesmo tendo se apropriado de tudo isso, eles não são considerados aptos pela comunidade que lhe impõe. Calligaris chama esse processo de moratória.

[...] Há um sujeito capaz, instruído e treinado por mil caminhos – pela escola, pelos pais, pela mídia – para adotar os ideais da comunidade. Ele se torna adolescente quando, apesar de seu corpo e seu espírito estarem prontos para a competição, não é reconhecido como adulto. (CALLIGARIS, 2011, p.15).

Rassial (1997) ressalta o drama adolescente não como ignorância, mas o saber em demasia que mal recalcado, brutalmente retorna após uma tentativa de esquecimento fracassada e que, por sua vez, provoca agitação e perturbação em seu meio.

[...] após o Édipo, a adolescência é o segundo encontro verdadeiro de uma onipotência infantil, artificialmente mantida durante a fase de latência. Ele se confronta então, e confronta os outros, à impotência, a interdição e ao impossível: a impotência imaginária que afeta um corpo construído na infância como positivação do negativo, a interdição simbólica que constitui o eixo da língua em que se prometia mentirosamente o gozo, ao impossível real de um ato sexual que funda a relação ao Outro. (RASSIAL, 1997, p. 18-19).

Dessa forma, segundo Calligaris (2011) a adolescência se torna penosa, pois instaura a maturação dos corpos e possibilita o que a modernidade situa acima de qualquer valor, a independência. Mas apesar da autonomia tão reverenciada e idealizada, e apesar da maturação dos corpos, esses ficam impossibilitados e são forçados a reprimir e deixar para mais tarde o ingresso na vida adulta.

Desde já vale mencionar que a desculpa normalmente produzida para justificar a moratória da adolescência é problemática. Pretende-se que, apesar da maturação do corpo, ao dito adolescente faltaria a maturidade. Essa ideia é

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circular, pois a espera que lhe é imposta é justamente o que mantém ou torna inadaptado e imaturo. (CALLIGARIS, 2011, p. 17).

Rassial (1997) cita o campo pulsional, dizendo que há um deslocamento nessa área, pois o adolescente usa de seu próprio corpo para destacar objetos parciais, que equivalem ao campo do Outro. O adolescente reivindica crescimento através de objetos com função de fetiches4 como barbeadores, sutiã, evidenciando na cena o corpo do outro como um objeto cujo os julgamentos estéticos provocam um retorno do narcisismo5 e uma necessidade de reconhecimento como semelhante aos outros.

A pulsão6 funciona como suporte para o indivíduo e para o laço que o sustenta. Não se constitui de uma vez para sempre, pois não se nasce com uma organização pulsional estabelecida, mas desenvolve-se no cotidiano de modo constante, sendo colocado em ato nas vivências diárias com nossos semelhantes, sendo o corpo pulsional um corpo social. “Pulsão nada mais é do que fazer bordas no corpo, fazer orifícios, na medida que é pelos orifícios que constituímos nossa erótica.” (COSTA, 2004, p. 166).

2 A reinvenção do corpo adolescente

“A risada do braço. O sangue saindo pela boca do braço. Quantas vezes eu já me cortei.” (BRUM, 2011, p. 7).

A puberdade tem como principal efeito a transformação do corpo de criança, ou seja, o corpo infantil se assemelha ao corpo adulto e o adolescente precisa se apropriar ou reapropriar da imagem do corpo, assim como ocorrera na primeira infância, na época denominada de Estádio do Espelho.

A fase do espelho é o momento em que o ser humano se constitui. Num primeiro momento, a criança vê-se como fragmentada, não percebendo diferença ou divisão entre seu corpo e o da mãe, entre ela e o mundo exterior. A fase do espelho representa o primeiro momento de inteligência, pois quando carregada pela mãe vê sua imagem refletida no espelho e o ambiente refletido, sentindo de maneira lúdica a relação dos movimentos com sua imagem e o ambiente refletido. Assim, a criança volta o olhar para a mãe como forma de pedido para

4 Organização particular do desejo sexual, ou libido, na qual a satisfação completa só pode ser alcançada em

presença e uso de determinado objeto, o fetiche, que a psicanálise identifica como substituto do pênis que falta à mãe, ou ainda, como significante fálico.

5 Amor que o sujeito atribui a um objeto muito particular: a si mesmo.

6 Na teoria analítica, energia fundamental do sujeito, força necessária ao seu funcionamento, exercida em sua maior

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que essa autentique sua descoberta, sendo que no momento que a mãe confirma o “es tu é que dará o sou eu.” (CHEMAMA, 1995, p. 58).

Chemama (1995) afirma que o que permite a criança perceber a forma intuitiva do corpo, bem como a relação desse com a realidade, é a imagem especular. Porém, não é com os próprios olhos que a criança se vê, mas sempre com o olhar de quem ama ou detesta. Dessa forma aborda-se o narcisismo, “fundando imagem do corpo da criança a partir do amor da mãe e da ordem do olhar dirigido a ela.” (CHEMAMA, 1995, p. 58).

A apropriação da imagem especular pela criança somente ocorrerá quando essa sentir que tem um lugar no olhar do grande Outro, pois é esse olhar de reconhecimento da mãe, com ou sem direito, que impulsionará a constituição do ideal do eu. Assim, a fase do espelho é compreendida como uma identificação, ou seja, a transformação ocorrida no sujeito ao assumir sua imagem, sendo essa mesma identificação que se faz necessária na adolescência.

A chegada à adolescência traz consigo a reedição dos elementos que estiveram presentes no estádio do espelho. A imagem ideal de si, constituída na relação com o Outro, volta à cena. É frequente o descompasso, o desencontro e o desencanto com a imagem que agora surge. A emergência da puberdade coloca em xeque a imagem que se constitui, sendo que por vezes este momento se aproxima de algo da ordem de um trauma. Há a emergência do real, que produz uma necessidade de elaboração. (GIONGO, 2016, p. 41).

Ferreira (2016) diz que o encontro com a imagem do espelho na infância proporciona, por meio da sustentação simbólica do Outro primordial, que haja um reconhecimento e a apropriação do corpo infantil, até então visto como despedaçado. Com a adolescência, se faz necessário a reconstituição do Estádio do Espelho, pois esse corpo novamente precisa ser reescrito por significantes, já que o novo corpo vem dotado de atributos sexuais que até então pertenciam somente aos adultos. O fato de agora o adolescente encontrar em sua própria imagem esses atributos, provocam mudança de posição para o sujeito, que quanto a sexuação ainda interroga-se e busca apropriação.

Mas não é somente o próprio corpo que irá ressignificar, mas também o corpo do semelhante, que entra em cena como possível objeto de desejo, sujeitos a julgamentos estéticos, e que sobretudo em retorno designa esse outro como sujeito de desejo.

O momento é de desafio para os adolescentes, pois a imagem ideal de si presente no Estádio do Espelho retorna agora com a diferença de que o que garante a imagem do corpo não é mais a voz e o olhar dos pais, mas o olhar e a voz dos pares e eventuais parceiros do sexo oposto.

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Falar da dança do corpo adolescente é falar de ressignicar a imagem do corpo, e isto diz respeito a uma nova relação com o tempo e com o espaço. Nessa ressignificação muda o gesto, o ritmo e a direção. Muda a relação com o dentro e o fora, com o íntimo e o social, com o espaço casa e o espaço rua, bem como o modo em que o corpo ocupa este espaço. (BECKER, 2010, n.p.)

Se faz necessário ao adolescente constituir sua imagem, identificar-se e apropriar-se dela, e dessa forma encontrar caminhos de se fazer representar no mundo por meio de seus atos e sua fala. Para Costa (2001) essa representação pode ser entendida como um ato sobre o real7 em

que esse funciona como espelho do sujeito, necessitando que o Outro aprove e reconheça. Calligaris (2011) diz que a imagem refletida no espelho depende muito do olhar dos outros, pois o adolescente se vê bonito ou desejável se tem razões para acreditar que os outros assim o veem.

[...] Por isso o espelho é ao mesmo tempo tão tentador e tão perigoso ao adolescente: porque gostaria muito de descobrir o que os outros veem nele. Entre a criança que se foi e o adulto que ainda não chega, o espelho do adolescente é frequentemente vazio. Podemos entender então como essa época da vida possa ser campeã em fragilidade de autoestima, depressão e tentativas de suicídio. (CALLIGARIS, 2011, p. 25).

Nesse sentido, algumas meninas vivem uma espécie de desespero diante da imagem que reflete no espelho, havendo dificuldade dessa imagem representar-se numa condição sexuada. Segundo Giongo (2016), essa rejeição em relação a imagem especular faz com que a adolescente busque formas de mudar seu corpo, entrando em cena fatores como a alimentação ou excesso de atividades físicas, relacionados aos sentimentos de vergonha, inadequação, raiva em relação a si mesma.

Essas experiências por vezes podem estar acompanhadas por atos no próprio corpo, como os cortes e perfurações, que demonstram o quanto essa operação adolescente coloca em xeque sua estrutura psíquica, envolvendo a apropriação dos referenciais simbólicos8 e imaginários9. Ângela Lângaro Becker (2010), afirma que construir sua singularidade faz parte do jogo adolescente, sendo isso possível através da produção de falta no Outro. O adolescente necessita furar o estabelecido, furar o discurso familiar. Na medida que o discurso social toma o lugar do familiar é que o adolescente necessita contestá-lo, esburacá-lo. A necessidade de produzir uma

7 Aquilo que para o sujeito é expulso da realidade pela intervenção do simbólico.

8 Função complexa e latente que envolve toda a atividade humana, comportando uma parte consiente e outra

inconsciente, ligadas a função da linguagem, e mais especialmente, a do significante.

9 Categoria do conjunto terminológico elaborado por J. Lacan, real, simbólico e imaginário, constituindo o registro

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falta no Outro explica muitos dos acting-out10 na adolescência, transformando-se em acting a

falta que não foi possível produzir de forma simbólica. Sendo assim, o esburacamento do Outro ocorre no próprio corpo do adolescente.

Assim, os cortes são formas de manifestações clínicas que demonstram a relação do sujeito com seu corpo. Dizem de algo que delimita, ou seja, funcionam como uma borda corporal. O cortar-se na fase adolescente visa esconder e a mostrar, sendo algo endereçado entrando na dinâmica da separação, ou seja, refere-se a uma necessidade de um corte com o Outro, libertando-se de algo que sufoca.

Conforme Costa (2004) a história humana mostra uma constante necessidade de reconstituição, ou seja, um recorte insistente das bordas corporais. Por ser uma expressão da erotização e do funcionamento pulsional, que dá suporte a erotização, não são constituídas de uma vez para sempre, sendo as bordas responsáveis pela nossa relação com o ambiente, com o outro e com a realidade.

A autora explica que olhar e voz, analidade e oralidade, são bordas presentes desde que nascemos, porém, sua atividade não se dá de forma natural e precisam ser recortadas de modo constante. Pelo fato de não funcionarmos naturalmente é que se faz necessária a reconstituição dos suportes corporais, ocorrendo de modo privilegiado na mudança de lugar provocado pela passagem adolescente. “Precisamos reconstituir algum tipo de borda corporal para que possamos dar suporte a circulação do nosso corpo: para nos sentirmos representados, amparados e tendo algum lugar.” (COSTA, 2004, p. 171).

Na clínica com meninas percebe-se que a singularidade adolescente está encontrando entraves para se firmar. Para Giongo (2016), a separação em relação ao Outro primordial não ocorre, podendo ser pelo excesso de presença ou ausência, fatores esses que impedem as bordas que delimitam a relação eu/Outro. Em suas narrativas, percebe-se um vazio existencial. Verifica-se fantasias em que são objetalizadas, com ausência de sonhos e objetivos para a vida, não sendo sujeitos de seu desejo.

A dificuldade de conquistar sua própria singularidade associa-se a dificuldade de estabelecer diferenciação em relação a mãe. Segundo Giongo (2016), mães e filhas acabam por confundir seus dramas pessoais, transformando-os em um só. É comum, na experiência clínica com crianças e adolescentes, perceber que os conflitos entre os pais atingem diretamente os filhos, pela forma que esses conduzem os mesmos.

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Em um relato de uma adolescente essa refere: “Minha mãe diz que meu pai nunca me quis, nunca quis saber de nós porque abandonou ela grávida me xingando toda vez que quero conhecer ele.” Em outro momento diz: “Minha mãe diz que eu fui o erro da vida dela.”

Existe nesse relato toda a dor da mãe, a dor da rejeição do abandono que é estendido a adolescente, tornando-a extensão de seu sofrimento. Ali, a referência simbólica torna-se comprometida, dificultando que a mesma encontre na mãe a identificação feminina, pela dificuldade dessa sustentar esse lugar em relação a si mesma, deixando na filha adolescente um lugar vazio.

Dessa forma, sem retaguarda simbólica, tornar-se sujeito de seu desejo é mais penoso. Giongo (2016) diz que a menina, para se constituir como mulher, terá que passar por uma identificação que não sustenta um significante ao que é uma mulher, estando referida a experiência do gozo e castração da mãe como mulher.

[...] Assim a passagem da menina à condição de mulher pode se dar através de uma crise adolescente com esse tom urgente. Os atos sobre o corpo ganham espaço como uma tentativa do sujeito se diferenciar e na ausência de outros recursos de representação, seja porque ele ainda não os construiu, seja porque não há um Outro em posição de testemunhar e reconhecer. (GIONGO, 2016, p. 46).

Na narrativa de Brum (2011), as cicatrizes são formas de separação do corpo da mãe. A adolescência exige desse novo corpo uma apropriação. Essa que se torna quase impossível quando há uma presença sufocante da mãe, sendo então as cicatrizes bordadas no corpo da adolescente como tentativa de separação e de significação do próprio corpo.

[...] Para mim nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. Este ritual que agora pinga de mim como um fracasso. Mais um. Eu corto corto corto e ainda não sei que existo. Continuo sem corpo. E ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que eu não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole. (BRUM, 2011, p. 15).

Há muita semelhança nos relatos adolescentes, pois normalmente apontam a falta ou o excesso. A falta da lei, da castração da figura paterna e o excesso da presença ou ausência onipotente da mãe, que de certa forma sempre “obrigou” a menina e agora adolescente a ocupar um lugar que não era dela. A ocupar o lugar do pai, na cama e na vida da mãe.

Quando questionadas sobre o motivo dos cortes fica visível a existência de um sofrimento e a necessidade de existir de modo singular: “Me corto para aliviar a dor... a dor que sinto em

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meu peito.” A dor, confundida com sufoco, a dor de existir, ou de não existir de modo independente da mãe.

Começo a escrever este livro enquanto minha mãe tenta arrombar a porta com suas unhas de velha. Porque é realidade demais para a realidade. Eu preciso de uma chance. Eu quero uma chance. Ela também.

Quando digito a primeira palavra o sangue ainda mancha os dentes da boca do meu braço. Das bocas todas do meu braço. Depois da primeira palavra não me corto mais. Eu agora sou ficção. Como ficção posso existir. (BRUM, 2011, p. 7).

Essa passagem denota o que se percebe na clínica com adolescentes, ou seja, uma necessidade de existir, de ter um lugar, de serem ouvidas e compreendidas, de não serem simplesmente objeto de desejo do adulto.

A passagem adolescente, segundo Costa (2016), representa a constituição de um sintoma em que o sujeito busca um tentativa de inscrição na ordem simbólica, num discurso:

[...] É uma forma de – por um lado – tentar se situar em relação a cadeia significante, na relação a algo que dirige em cada tempo a posição sexuada. Por outro lado, também inscrever sua fantasia nessa relação com o discurso. Então todas as passagens do sujeito vão ter relação com o que dirige o discurso dominante no laço social. (COSTA, 2016, p. 132).

Nesse sentido, para a autora, os cortes representam uma dificuldade do nosso tempo em relação a passagem adolescente, justamente por algo que não faz sintoma, sendo esse responsável para que o adolescente dê conta da sua posição sexuada. Afirma que algo no nosso tempo impossibilita o adolescente de sair dos momentos de crise, já que a passagem adolescente sempre representou forçar margens, enfrentar riscos, além do ensaio em relação a potência fálica e dos sexos. Então, há uma dificuldade com a posição sexuada, “[...] que nos cortes produz compulsão. Ou seja, transforma-se em compulsão na medida que a dor transforma-se em gozo.” (COSTA, 2016, p. 133).

A experiência clínica com adolescentes comprova que os cortes representam o alívio de um estado de angústia que perpassa por todo o corpo. Para Costa (2016), o corte representa uma borda que faz extravasar a angústia, sendo que as primeiras atuações buscam produzir algo no Outro, algum endereçamento, mesmo que escondido. Sempre que as bordas corporais são endereçadas é porque demandam do Outro algum tipo de intervenção, porém só irão se tornar demandas se acolhidas. O risco é que esses atos provocam fascínio em quem trata disso. Um fascínio da ordem do horror, impedindo que sejam lidas como demanda. Assim, o que seria

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algo que busca separação, irá reenviar uma resposta ao cuidado, um cuidado que reenvia a algo primário, à mãe.

Em relação a clínica, com a entrada em análise percebe-se uma redução na manifestação do sintoma e, segundo Giongo (2016), se não desaparecem totalmente, deixam de se mostrar de modo compulsivo. Dessa forma, a análise possibilita que esse processo se opere e possibilita que as meninas encontrem novos recursos, como o fato de colocar em palavras as situações de angústias que provocam o ato, ou também outras formas de expressão, como desenhos, música ou dança.

Sempre tive medo de escrever. Da hora de tornar meu sangue símbolo do sangue. Tinha medo por causa da dor desconhecida que talvez viesse, que eu quase podia tocar como certeza. Ainda que eu sangre com sangue, esse ritual eu conheço. Ele faz de mim o pouco que tenho de mim. É uma constituição. Me constituo eu pelos cortes em mim. As palavras não. O que elas farão de mim? [...] Escrevo na esperança de que as palavras me libertem do sangue. Do corpo da mãe. (BRUM, 2011, p. 16).

Conclusão

A escolha do tema que aborda os cortes, também chamado de automutilação/cutting, teve o objetivo de ampliar os estudos sobre um sintoma cada vez mais presente em pré-adolescentes/adolescentes, principalmente meninas, na atualidade. A pesquisa, sob o viés da psicanálise, possibilitou um melhor entendimento sobre a passagem à adolescência, os sofrimentos e angústias presentes nesse tempo, como também aprofundar o assunto da automutilação/cutting, como forma de entender essa prática presente no mundo adolescente, a fim de haver uma melhor sustentação na escuta clínica.

Dessa forma, o cortar-se vem dar conta da angústia presente pela dificuldade de separação eu/Outro. A angústia presente vem a diminuir através da produção do corte real, já que o corte simbólico ainda não se efetuou, sendo as cicatrizes formas de refazer as bordas do corpo, impondo limites entre o eu/Outro.

A escuta clínica permite perceber que existe uma dificuldade de separação e de diferenciação eu/Outro, que impossibilita a adolescente constituir uma imagem de si. Portanto, a análise permite que as adolescentes obtenham um espaço de fala, proporcionando uma mudança em relação as manifestações, abrindo caminho para que o processo de separação se opere, possibilitando a constituição e apropriação da imagem de si.

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Referências

1. BECKER, Ângela Lângaro. A Reconstituição do Espaço e do Tempo. Tese: A Dança

Enquanto Imagem do Corpo: Expressões da Voz e do Olhar, 2010, Paris XIII.

2. BRUM, Eliane. Uma Duas. São Paulo: Leya, 2011.

3. CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência: São Paulo: Publifolha, 2009.

4. CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 5. COSTA, Ana. Entrevista: O Corpo e Seus Litorais. Revista: Corpo: Ficção, Saber, Verdade, v2, n 50, 2016.

6. COSTA, Ana. Corpo e Escrita.Rio de Janeiro:RelumeDumará, 2001.

7. COSTA, Ana. Texto: A Transicionalidade na Adolescência.In. COSTA, A. Adolescência e

Experiência de Borda: Porto Alegre: UFRGS, 1ª edição, 2004.

8. FERREIRA, Geovana da Silva. Entre Cortes e Amarrações: Considerações Psicanalíticas

sobre Automutilação/Cutting na Adolescência. Ijuí, 2016.

9. GIONGO, Ana Laura. Texto: Menina-Moça: um corpo que urge. Revista: Corpo: Ficção,

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10. MESS, Lúcia Alves. O Trauma Infantil e o Adolescente.In. COSTA, A. Adolescência e

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11. SADDI, Luciana. O Grande Desafio. Revista Psique, edição 136, editora Escala.

12. RASSIAL, Jean Jacques. A Passagem Adolescente: da família ao laço social. Porto Alegre, 1997.

Referências

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