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Cardiopatia Chagásica

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Academic year: 2021

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Correspondência: José Antonio Marin-Neto - Div de Cardiologia, Depto de Clínica Médica – Hospital das Clínicas - FMRP-USP - Av. Bandeirantes, 3900 - 14048-900 - Ribeirão Preto, SP

A doença de Chagas (DC) já afligia a humanidade há cerca de 4.000 anos, como evidenciado pela recuperação de material gênico do T. cruzi em cadáveres sul-americanos mumificados 1. Durante expedição à América do Sul, Charles Darwin pode ter-se tornado chagásico, a julgar por sua vívi-da descrição vívi-da picavívi-da do inseto transmissor e pelos sinto-mas apresentados posteriormente 2. Entretanto, somente no início do século XX, Carlos Chagas, em um dos feitos mais insólitos da História da Medicina, descobriu não so-mente a entidade mórbida que o imortalizou como epônimo, mas também o agente etiológico e seu mecanismo essencial de transmissão: excretas eliminados por insetos da família

Reduviidae (subfamília Triatominae), contaminadas com o T. cruzi, permitem sua inoculação no local da picada

hematófaga 3.

O parasito invade células de hospedeiros mamíferos, por mecanismos ainda não inteiramente conhecidos. Entre-tanto, trabalhos experimentais sugerem que a ativação do receptor do fator de crescimento transformante beta seja implicada nesse processo. Assim, não há penetração ou replicação do parasito em células desprovidas de tais recep-tores. Em contraposição, a capacidade invasora do T. cruzi é potenciada por administração desse fator de crescimento em modelos experimentais 4.

Virtualmente, qualquer sistema orgânico pode ser aco-metido. Envolvimento visceral digestivo ocorre, em cerca de 6%, e distúrbios neurológicos, em aproximadamente 3% da população chagásica, porém a cardiopatia constitui a mais séria complicação, atingindo, em algum momento de sua vida, um terço dos indivíduos sorologicamente positivos.

Aspectos

epidemiológicos

Há condições propícias para transmissão vetorial no Continente Americano, entre as latitudes 42ºN e 40ºS, em território abrangendo desde o México até a Argentina. Le-vantamentos sorológicos, ainda que imperfeitos, permitem estimar que 4 a 7% de 200 milhões de latino-americanos em 21 países sejam chagásicos, e que 65-90 milhões de outros estejam expostos ao risco 5.

José Antonio Marin-Neto, Marcus Vinícius Simões, Álvaro V. Lima Sarabanda

Ribeirão Preto, SP

Cardiopatia Chagásica

Estudos epidemiológicos transversais no Brasil e na Venezuela avaliaram a prevalência das manifestações clíni-cas e a mortalidade associadas à cardiopatia chagásica. En-tretanto, em virtude de não terem sido realizados estudos em larga escala, apropriadamente concebidos, não se dis-põe de visão concreta da epidemiologia deste grave proble-ma de saúde pública no subcontinente sul-americano. Além disso, a notificação epidemiológica não é inteiramente confiável, mesmo em regiões altamente endêmicas. Taxas de morbidade e mortalidade relacionadas à cardiopatia chagásica são muito variáveis até em regiões endêmicas de um mesmo país. Isso decorre, provavelmente, de diferenças importantes em características relativas às cepas parasí-ticas, e a fatores genéticos, climáticos, socioeconômicos, condições higiênicas e alimentares, e a políticas de saúde pública, atuando variavelmente em diversas regiões 6.

Embora sua real prevalência seja ignorada, as estimati-vas aproximadas acima indicam que a miocardite chagásica constitua a forma nitidamente mais comum de cardio-miopatia nos países sul-americanos 7. Devido à atual onda globalizante, correntes migratórias tendem a tornar o pro-blema com características de ubiqüidade 7. Para exemplificar esta tendência pode-se citar a recente conscientização so-bre a presença de cardiopatia chagásica nos Estados Uni-dos da América (EUA). Com base em prevalência de serologia positiva para DC, da ordem de 4,5% em 205 imi-grantes latino-americanos e em estimativas deste contin-gente populacional nos EUA, acredita-se existir nesse país aproximadamente meio milhão de indivíduos chagásicos 8. Em adição, expressiva migração da zona rural para a urbana, ocorrida no Brasil durante as últimas três décadas, foram responsáveis pelo aporte de 500 mil chagásicos para as grandes cidades 6.

Mecanismos adicionais de transmissão

Embora, infreqüentemente, a infestação também pode ocorrer por transmissão congênita, por via oral, aleitamen-to, contaminação laboratorial acidental e transplante de ór-gãos. Infestação por via transfusional tem sido objeto de in-tenso escrutínio recente, tendo em vista que levantamento efetuado, entre 1988 e 1990 em 850 municípios brasileiros, revelou que a triagem serológica para o diagnóstico de in-fecção chagásica, somente era executada em cerca de dois terços dos doadores 6. Revisão de levantamentos seroló-gicos, realizados em vários países durante a década de 1980,

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demonstrou taxas de positividade serológica para moléstia de Chagas variáveis entre 10% e 50% dos doadores em re-giões endêmicas 9.

Prevenção - A cardiopatia chagásica reveste-se de muito intenso impacto social. Estima-se perda de mais de 750 mil anos de vida produtiva anualmente, por morte pre-matura nos países latino-americanos, a custo aproximado de 1200 milhões de dólares americanos/ano de vida 10. Por isso, a eliminação da transmissão vetorial (por melhora do pa-drão habitacional e uso de inseticidas de ação residual) e transfusional, em regiões endêmicas e não-endêmicas 11-13, constitui claramente política de saúde pública dotada de elevada razão benefício/custo 7,10. Apesar de formidáveis obstáculos econômicos, estas metas já foram atingidas em áreas geográficas esparsas 14-16.

O programa denominado Iniciativa do Cone Sul, deslanchado em 1991, a custo de 207 milhões de dólares norte-americanos para os seis países sul-americanos envol-vidos, tem produzido resultados muito significativos 5,16,17. No Brasil, redução de 89% no número de municípios com infestação domiciliar, associou-se queda de 6,5% para 1% na taxa de doadores de sangue com serologia positiva para moléstia de Chagas, de 1982 a 1993 16,17. Com base nesses resultados, projeta-se para o ano 2000 a virtual extinção da transmissão de T. cruzi, no Brasil, Argentina, Chile e Uru-guai 5,18. Contudo, relatos esporádicos de transmissão em regiões supostamente sob controle epidemiológico, reco-mendam cautela em tais projeções 19.

História

natural

e

fatores

prognósticos

Conceitualmente, costuma-se dividir a história natu-ral da cardiopatia chagásica nas fases de miocardite aguda e crônica, separadas pela longa (10-30 anos, usualmente) e enigmática forma indeterminada 7,20,21. A base científica para esta divisão conceitual deriva de evidências experi-mental, patológica e clínica. Mais recentemente, tem avul-tado a reagudização, com expressão clínica muito protei-forme, em chagásicos portadores da forma crônica, que exibem imunodepressão natural ou iatrogenicamente de-senvolvida 22-25.

Vários estudos observacionais em regiões endêmicas do Brasil, Argentina e Venezuela, iniciados nos idos de 1940, possibilitaram o desvendamento da história natural da cardiopatia chagásica 7,26-43. Dispõem-se também de muitos estudos descritivos de séries de casos na fase aguda, adqui-rida por transmissão não-vetorial, mas tem valor limitado para o conhecimento da história natural da cardiopatia 7,22-26.

Os trabalhos sobre a história natural são predominan-temente de cunho transversal, sobre pacientes infectados em regiões rurais dos países mencionados. Muito poucos estudos tiveram o caráter de descrição de casos e controles não-chagásicos 7. Outro grupo de estudos observacionais enfocou a descrição e o seguimento de coortes de pacien-tes chagásicos internados 7,38-41.

Há flagrantes limitações de ambos os tipos de estudos

- rurais e hospitalares, para avaliação dos fatores prognós-ticos que influenciam a história natural da cardiopatia chagásica 7. Assim, nos estudos baseados em populações rurais geralmente não se faz exploração adequada do envolvimento cardíaco 27-37. Em contrapartida os resultados dos trabalhos com pacientes hospitalares, embora superio-res na caracterização da cardiopatia, não podem ser livre-mente extrapolados para o conjunto da população chagá-sica 8,38-41. Adicionalmente, devido ao extremamente protraído curso da cardiopatia chagásica crônica (CCC), des-de a fase des-de miocardite aguda até as formas avançadas des-de in-suficiência cardíaca (IC) e/ou arritmia maligna, não há estudos prospectivos englobando todo o espectro evolutivo da do-ença, em populações numericamente adequadas 7,42.

Prognóstico na fase aguda - Muito embora resultados de biópsia cardíaca e de estudos necroscópicos evidenciem a presença constante de miocardite na fase aguda, os estudos descritivos de séries de pacientes em áreas endêmicas, utili-zando testes sorológicos específicos, mostram que apenas cerca de 10% dos casos apresentam manifestações clínicas condizentes com o diagnóstico de moléstia de Chagas 26,27, di-ficultando sobremaneira a percepção dos distúrbios que aparecem na transição para a fase crônica, em humanos. En-tretanto, os aspectos citados são reproduzidos em modelos experimentais da doença.

Quando o diagnóstico clínico da moléstia foi possível (em subgrupo pequeno), o envolvimento cardíaco foi detectável em próximo de 90% de 313 casos sucessivos; 70-80% apresentavam cardiomegalia radiológica, em contraste com apenas 50% de casos com anormalidades eletro-cardiográficas. A gravidade da miocardite é inversamente proporcional à idade, sendo a IC duas vezes mais intensa em crianças menores de dois anos, comparativamente àque-las com idades de dois a cinco anos 27. A mortalidade da fase aguda nesse estudo foi de 8,3%, superior, portanto, às cifras de 3-5% relatadas em estudos similares em áreas endêmicas do Brasil, Argentina e Uruguai. O eletrocardiograma (ECG) foi normal em 63,3% dos casos não fatais, em apenas 14,3% daqueles falecidos durante a fase aguda. Ocorreram 75% dos óbitos em crianças com menos de três anos. Sem se correlacionar com a idade, a IC, acompanhada ou não de encefalite, foi complicação constante nos casos fatais 27.

Outro estudo de 172 pacientes com fase aguda conhe-cida por resultados sorológicos e clínicos, seguidos por até 40 anos em Bambuí, Minais Gerais, mostrou que o apareci-mento de sintomas, e alterações do exame físico ou do ECG ou radiológicas, ocorria em 33,8%, 39,3% e 58,1%, respecti-vamente após períodos de 10-20, 21-30 e 31-40 anos 27. Em outra resenha de 268 pacientes da mesma região, com fase aguda determinada em média 27 anos antes, a mortalidade global no período foi de 13,8% 27.

Nos pacientes que sobrevivem observa-se desapare-cimento dos sintomas e sinais do envolvimento cardíaco, em cerca de 1-3 meses, e normalização do ECG em mais de 90% dos casos após um ano. Entretanto, não há qualquer evidência de cura espontânea da infecção, como

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demons-trado em testes seriados de xenodiagnóstico e sorologia, em grupos de várias centenas de pacientes chagásicos 7.

Prognóstico na forma indeterminada - Embora a rele-vância clínica desta designação seja atualmente questio-nável, o conceito de fase indeterminada da moléstia de Cha-gas implica na ausência completa de sintomas e alterações físicas imputáveis a essa etiologia, positividade de reações sorológicas específicas e/ou do xenodiagnóstico, e nenhu-ma anornenhu-malidade atribuível à doença, no ECG e exames ra-diológicos cardíaco, esofágico e do cólon. Portanto, esta fase, por definição, termina com o aparecimento de quais-quer dessas manifestações clínicas ou laboratoriais.

O potencial evolutivo deste estágio da doença, deter-minado por fatores ainda desconhecidos, é indiscutivel-mente mostrado por estudos longitudinais de coortes em áreas endêmicas. Nesses trabalhos o envolvimento cardía-co tem sido surpreendido cardía-com taxas anuais de 1-3% 7.

Entre 400 adultos jovens seguidos por 10 anos, 91 (23%) tiveram alterações clínicas, no ECG ou na radiografia torácica. Contudo, dentre oito óbitos registrados no perío-do, apenas um decorreu da doença, por reagudização da cardite chagásica 30.

Outro estudo longitudinal, em Bambuí, comparou a evolução de 885 pacientes chagásicos jovens, na forma indeterminada, com a de 911 pacientes, também chagásicos, porém com alterações no ECG, já presentes no início do pe-ríodo de seguimento de 10 anos. Em cada um desses grupos a sobrevivência foi de 97,4% and 61,3% 31.

Um 3º estudo longitudinal, realizado em região rural venezuelana, endêmica, seguiu 364 pacientes chagásicos por período médio de quatro anos. Nesses indivíduos, a taxa anual de aparecimento de DC foi de 1,1%. Esta etiologia foi diretamente responsável por 69% dos óbitos ocorridos nesse período, sendo a mortalidade geral da comunidade igual a 3% 32.

Em 1973, iniciou-se no nordeste brasileiro estudo lon-gitudinal de campo, em área rural endêmica. Pela avaliação inicial, de 644 indivíduos com idade >10 anos, 53,7% tinham sorologia positiva para a DC. Essa mesma população foi reavaliada em 1977, 1980 e 1983. O desenvolvimento de anor-malidades no ECG ocorreu a taxa anual de 2,57% para os chagásicos, contra 1,25% dos indivíduos sorologicamente negativos, configurando risco relativo de 2, para a mesma área geográfica. A taxa de mortalidade ajustada etariamente foi de 8,9/1.000/ano em 488 chagásicos, enquanto a de 509 indivíduos sorologicamente negativos foi de 7,8/1.000/ano. A mortalidade foi nitidamente associada à presença de dis-túrbios de condução e arritmias ventriculares 33.

Em suma, esses estudos indicam que, enquanto os in-divíduos chagásicos permanecem na forma indeterminada, seu prognóstico é excelente 7. Deve-se ressalvar que esses resultados foram obtidos em populações chagásicas com >50% dos indivíduos tendo idades <20 anos. De fato, a prevalência da forma indeterminada da doença tende sempre a decrescer para populações menos jovens, em virtude da natureza evolutiva da moléstia de Chagas. Mesmo assim, é

oportuno enfatizar que após 10 anos, quase 80% dos pacien-tes chagásicos permanecem com a forma indeterminada da doença, e que provavelmente 50% da população global de infectados com o T. cruzi jamais apresentarão qualquer mani-festação clinicamente significante associada a esta etiologia. Permanece decepcionantemente elusiva a razão pela qual apenas certa proporção da população chagásica geral con-serva-se protegida quanto a complicações cardíacas. É pro-vável que a explicação do fenômeno seja multifatorial 7.

Prognóstico na forma crônica da cardiopatia - Os es-tudos acima referidos, analisando fatores prognósticos já na fase indeterminada em populações rurais, e avaliando de forma bastante superficial o desempenho cardíaco, de-monstram que a simples manifestação de alterações eletrocardiográficas constitui sinal bastante ominoso 34,35. Também um trabalho retrospectivo, em chagásicos segui-dos por 18 anos, revelou que o bloqueio de ramo direito (BRD) do feixe de His era três vezes mais freqüente em casos de óbitos do que nos sobreviventes nesse período 34.

Além dos distúrbios eletrocardiográficos, a noção de que o gênero masculino represente fator de mau prognósti-co, em pacientes com doença cardíaca manifesta, deriva de estudos com seguimento longo de coortes hospitalares e de um estudo tipo caso-controle 27-29. Este último trabalho tam-bém sugere possível segregação geográfica, agregação fa-miliar nos casos de cardiopatia chagásica, em áreas endêmicas 29.

Poucos estudos de seguimento de casos-controle fo-ram executados em regiões endêmicas 7,36,37. No Brasil cen-tral 36 duas avaliações clínicas transversais foram efetuadas em 1974 e 1984, incluindo o ECG-12 derivações e o estudo radiológico da silhueta cardíaca. Indivíduos sorologi-camente positivos foram cotejados com controles pareados por idade e gênero. Na 1ª das avaliações, 264 pares foram incluídos, dos quais 110 puderam ser recompostos e reexaminados com os mesmos métodos, 10 anos depois. A incidência de cardiopatia (diagnosticada por aparecimento de sintomas, e/ou distúrbios no ECG/radiografia de tórax), em chagásicos previamente hígidos, foi de 38,3% durante a década transcorrida com o trabalho. A mortalidade global entre os chagásicos foi de 23%, em comparação com ape-nas 10,3% no grupo controle. Ademais, a mortalidade cardiovascular, incluindo morte súbita (MS) e por IC, foi 17% no grupo sorologicamente positivo, contraposta a apenas 2,3% entre os controles. Significativamente, a morta-lidade global foi superior nos chagásicos do gênero mascu-lino, e predominou na faixa etária de 30 a 59 anos 36.

O mesmo grupo de investigadores, empregando méto-dos similares em região nordestina brasileira, encontrou ta-xas de mortalidade de 1,6 e 0% para 125 grupos pareados respectivamente, de indivíduos chagásicos e controles, seguidos por 4,5 anos 37. A progressão da doença, avaliada eletrocardiograficamente, ocorreu em apenas 10,4% dos chagásicos, em comparação a 4,8% de alterações no ECG, verificadas entre os controles. Embora sem comprovação direta levantou-se a hipótese de se dever à diversidade de

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cepas do T. cruzi a diferença de morbidade e mortalidade encontrada entre as duas regiões 7.

Há também suficiente evidência para apoiar a noção de que a mortalidade associada à cardiopatia chagásica seja nitidamente correlacionada com a gravidade da disfunção ventricular 7. Assim, sobrevivência até dois anos, após o primeiro episódio clinicamente manifesto de IC, foi de ape-nas 33.4% em 160 pacientes 38. A notar, 10% dos óbitos fo-ram súbitos, inesperados. Nos 98 pacientes que fofo-ram au-topsiados nessa série, documentou-se prevalência <20% de formas tissulares do T. cruzi, com flagrante predomínio deste aspecto em homens 38.

Em estudo de 107 pacientes chagásicos seguidos por 10 anos, significante redução da expectativa de vida, com-parativamente à de 22 indivíduos controles, ocorreu apenas naqueles portadores de alterações clínicas e/ou eletro-cardiográficas. Quando havia sinais de IC no início do perío-do de seguimento, a mortalidade em 10 anos alcançou o ní-vel de 82% em 34 pacientes, contrastando com sobrevivên-cia de 65% em 10 anos, para os pacientes sem IC, mesmo que portadores de alterações no ECG, quando do início do perí-odo observacional 39.

Outra investigação, envolvendo 104 pacientes chagá-sicos masculinos internados por IC, relatou taxa de mortali-dade de 52% após cinco anos. Os preditores mais relevan-tes para sobrevivência foram a fração de ejeção de ventrí-culo esquerdo (FEVE) e o consumo máximo de oxigênio du-rante esforço físico 40.

Em série de 42 pacientes com cardiopatia chagásica diagnosticada nos EUA, 11 mortes ocorreram durante segui-mento médio de aproximadamente cinco anos, sempre em associação com disfunção de ventrículo esquerdo (VE), re-gional ou global. A IC na apresentação ou superveniente durante o seguimento constituiu importante preditor de mortalidade. Isso, surpreendentemente, não se verificou com a MS abortada nem com a ocorrência de taquicardia ventricular sustentada (TVS) 8. Estes resultados conflitam com a evidência obtida em outro estudo, com 44 pacientes seguidos por dois anos, para os quais a taquicardia ventri-cular detectada durante o esforço físico representou rele-vante risco de MS 41. A discrepância entre esses dois estu-dos provavelmente explica-se pela limitação comum a am-bos, de englobarem relativamente pequeno número de pa-cientes e curto período de seguimento.

Em síntese, há evidência substancial de que o mais importante fator de mau prognóstico na CCC manifesta seja o grau de disfunção miocárdica. Quando se instala falência ventricular, o prognóstico é bastante sombrio, comparável ao descrito nas coortes de Framingham, com mortalidade próxima a 50% em quatro anos. É possível, embora não se disponha de evidência sólida para embasar esta noção, que arritmias ventriculares e MS contribuam relativamente mais para a mortalidade geral associada à cardiopatia chagásica do que à devida a outras etiologias de IC 7.

Manifestações

clínicas

Após a inoculação do agente etiológico, segue-se

pe-ríodo de incubação de cerca de 7 a 10 dias. As lesões conhe-cidas como “chagomas”, incluindo o típico mas não especí-fico sinal de Romaña, decorrem de edema de mucosa ou cutâneo, no local na inoculação. Alterações cardíacas sem-pre podem ser detectadas em qualquer fase da cardiopatia chagásica, mas, caracteristicamente, na fase aguda, verifica-se notável dissociação entre a gravidade da miocardite e a escassez de manifestações clínicas 7. Sintomas e sinais sistêmicos infecciosos (febre, hepato-esplenomegalia, sudorese, mialgias) são acompanhados, na fase aguda, por alterações laboratoriais igualmente não-específicas: leucocitose, com linfocitose absoluta, cardiomegalia radio-lógica, e distúrbios eletrocardiográficos [sendo os mais fre-qüentes taquicardia sinusal, batimentos ectópicos ventri-culares, baixa voltagem, alterações difusas da repolarização e bloqueio atrioventricular (BAV) incompleto]. Durante as primeiras semanas os testes sorológicos para infecção chagásica são usualmente negativos, mas o xenodiag-nóstico pode comprovar formas circulantes do T. cruzi. O diagnóstico de miocardite chagásica aguda causada por transfusão sangüínea requer elevado grau de conscien-tização e acuidade clínica, principalmente em regiões não-endêmicas 42. Este princípio também é aplicável ao problema diagnóstico representado pela reagudização da DC em pa-cientes crônicos cursando com deficiência imunológica 42. Estudos necroscópicos e investigações in vivo, empregan-do diversos métoempregan-dos de avaliação da função contrátil, da perfusão miocárdica, do controle autonômico sinusal e do ritmo cardíaco, bem como biópsia ventricular direita, de-monstraram que virtualmente todos os indivíduos chagá-sicos (inclusive aqueles com a forma indeterminada), são afetados por alterações de graus variáveis do desempenho cardiovascular 7,43-48.

Torna-se oportuno enfatizar que todas as alterações anatômicas e funcionais detectadas em vida são consisten-tes com os resultados de autópsias efetuadas em séries ex-tensas de pacientes falecidos nos vários estágios evo-lutivos da cardiopatia chagásica 43,44,49,50.

Tendo em vista as implicações prognósticas discutidas acima, é conveniente classificar os pacientes cardiopatas chagásicos de acordo com vários indicadores: sintomas, si-nais físicos, alterações eletrocardiográficas, presença de cardiomegalia radiológica, grau de disfunção ventricular di-reita e esquerda sistólica e diastólica, defeitos perfusionais miocárdicos, disautonomia cardíaca e anormalidades teciduais detectadas pela biópsia de ventrículo direito (VD) (tab. I). Os sintomas e sinais físicos presentes na forma crôni-ca da crôni-cardiopatia chagásicrôni-ca derivam de três síndromes essen-ciais, que podem coexistir no mesmo paciente: IC, disritmias, e tromboembolismo sistêmico e/ou pulmonar.

A IC de etiologia chagásica é geralmente de padrão biventricular. Caracteristicamente, as manifestações de in-suficiência ventricular direita (aumento da pressão venosa jugular, edema, ascite, hepatomegalia) são mais pronuncia-das do que as de congestão pulmonar (dispnéia, estertores crepitantes) 51. Outro sintoma comum é a fatigabilidade. O exame físico geralmente evidencia sopros regurgitantes

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mitral e/ou tricúspide, amplo desdobramento da 2ª bulha, devido à combinação dos efeitos da hipertensão pulmonar e do BRD, além de impulso apical impulsivo e/ou amplo.

A arritmia cardíaca, incluindo salvas de extra-sístoles, causa palpitação, lipotimia, pré-síncope e síncope 52. Esses sintomas podem também ser causados por BAV completo, que pode ser diagnosticado por inspeção meticulosa do pulso jugular e pela ausculta cardíaca. Como referido, a complexidade da arritmia cardíaca tende a se correlacionar com a intensidade da disfunção ventricular. Entretanto, não é incomum encontrar-se pacientes chagásicos com formas avançadas de arritmia ventricular e preservação da FEVE. Em geral, tais pacientes apresentam distúrbios regionais da mobilidade ventricular 52.

MS ocorre com incidência não bem determinada, mas certamente não é um fato irrelevante e pode ocorrer, embora muito raramente, mesmo em pacientes previamente assin-tomáticos. Esse tipo de desfecho é muitas vezes precipitado por esforço físico estrênuo e associa-se, nos casos em que foi possível documentá-lo, com taquicardia degenerando para fibrilação ventricular, ou, muito menos freqüentemente, a assistolia e BAV. Estudos necroscópicos revelam que pa-cientes que sofreram MS em tais condições apresentavam graus variáveis porém constantes de miocardite e depo-pulação neuronal cardíaca 44. Em alguns desses pacientes, havia evidência em vida, ou post-mortem de aneurismas ventriculares em diversas áreas ventriculares (posterior, ínfero-lateral ou apical) 42.

Embolia sistêmica ou pulmonar, originada das próprias câmaras cardíacas ou de trombose venosa profunda preci-pitada por débito cardíaco baixo cronicamente, constitui complicação freqüente e grave da cardiopatia chagásica. Muito provavelmente a real incidência dessa complicação é subestimada, clinicamente. Assim, um estudo de 1.345

au-tópsias consecutivas de pacientes chagásicos mostrou trombose cardíaca ou embolização periférica em 44% dos casos, onde, embora a formação de trombos murais afetasse igualmente as câmaras direitas e esquerdas, a embolia sistêmica era mais freqüente do que a embolização pulmo-nar, sendo que esta última complicação relacionava-se dire-tamente com a causa mortis em 14% de todos os casos 50.

Dor torácica, usualmente atípica para isquemia miocár-dica, é outro sintoma comum 8,47,53,54. Em um contingente pequeno, mas não desprezível de pacientes chagásicos, esse sintoma mimetiza muito fielmente o quadro de síndrome coronariana aguda 55,56.

Métodos diagnósticos complementares

É um fato marcante da CCC, que alguns portadores de anormalidades eletrocardiográficas e áreas de dissinergia ventricular significante possam ser trabalhadores braçais por longos períodos, sem sintomas decorrentes de sua in-tensa atividade física 7,44,47.

De forma geral, o uso judicioso de diversos tipos de exames laboratoriais pode indigitar a presença de anormali-dades anatômicas e funcionais e contribuir para o estabele-cimento de diagnóstico e prognóstico apropriados, em vári-as condições clínicvári-as 42.

Exames sorológicos - Métodos capazes de detectar anticorpos dirigidos a antígenos parasitários específicos permitem o diagnóstico etiológico da doença 57. De utiliza-ção mais freqüente são os baseados em fixautiliza-ção de comple-mento, imunofluorescência e ELISA, os quais, rigorosamen-te padronizados, alcançam sensibilidade e especificidade superiores a 90%. Métodos mais modernos e acurados con-sistem no emprego de técnicas de biologia molecular para

Tabela I - Classificação fisiopatológica da cardiopatia chagásica crônica conforme o estágio evolutivo, baseada em evidências clínicas e laboratoriais de dano miocárdico

Forma clínica Indeterminada cardiopatia clinicamente manifesta Insuficiência cardíaca

Estágio evolutivo IA IB II III

Sintomas Ausente Ausente Mínimos Conspícuos

Exame físico Normal Normal Pode ser anormal Anormal

Alterações no ECG Ausente Ausente BRD, BRE, BAV, BEVP + ondas Q TV

Área cardíaca Normal Normal Normal Aumentada

(radiografia torax)

VD: anatomia e função Normal Pode estar deprimida Freqüentemente anormal Anormal

VE: função diastólica ? Anormalidades leves Anormal Anormal

VE: função sistólica Normal Leve dissinergia regional Dissinergia segmentar Depressão global

Defeitos perfusionais ? Podem ocorrer Freqüente Freqüente

Função autonômica ? Pode ser anormal Pode ser anormal Freqüentemente

Biópsia VD ? Pode ser anormal Anormal Anormal

Teste de esforço Normal Pode ser anormal: Pode ser anormal: Anormal:

- arritmia - arritmia + redução da

- déficit cronotrópico - déficit cronotrópico capacidade física Arritmia/morte súbita Ausente Muito raro Freqüência variável Freqüente

* Modificada6, com permissão. VE- ventrículo esquerdo; VD- ventrículo direito; ECG- eletrocardiograma; BAV- bloqueio atrioventricular: BRD- bloqueio do ramo direito do feixe de His; BRE- bloqueio do ramo esquerdo; BEVP- batimento ectópico ventricular prematuro; TV- taquicardia ventricular; ? - desconhecido.

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detectar DNA parasitário 58-60. Tais técnicas também am-pliam o potencial de melhor caracterizar diagnóstica e prognosticamente a infecção chagásica, por permitirem identificar mais adequadamente a cepa parasitária 60.

Eletrocardiograma - O ECG de 12 derivações rotineiro detecta, com muita freqüência, BRD associado ou não a hemibloqueio anterior esquerdo, alterações difusas da repolarização ventricular, batimentos ventriculares ectópi-cos, isolados ou em salvas, muitas vezes multiformes. Tam-bém são comuns ondas Q patológicas, e graus variáveis de BAV. Em estágios mais avançados da cardiopatia pode apa-recer baixa voltagem generalizada e fibrilação atrial 61.

Radiologia do tórax - O aspecto mais característico, em muitos doentes, consiste de cardiomegalia global, des-proporcionalmente intensa perante o grau discreto de con-gestão pulmonar 42.

Monitorização eletrocardiográfica dinâmica (Holter) - Praticamente todos os tipos de disritmia atrial e ventricular, incluindo-se a disfunção do nó sinusal, o BAV intermitente, e a ectopia ventricular complexa podem ser detectados 52,62. Ecocardiografia - Nos estágios iniciais da doença, este exame é valioso para detecção de áreas dissinérgicas, inclu-sive a virtualmente patognomônica lesão apical. Nos está-gios mais avançados da doença verifica-se hipocinesia e di-latação global, comumente associada a regurgitação mitral e/ ou tricuspídea 63.

Teste ergométrico - Este exame é relativamente limita-do para avaliação de pacientes chagásicos com limita-dor precordial, porquanto muitos deles apresentam alterações no ECG basal, que virtualmente impossibilita sua interpreta-ção durante o esforço físico, com relainterpreta-ção a possíveis dis-túrbios isquêmicos 64. Entretanto, o teste ergométrico pode representar alternativa adequada ao exame de Holter, para detecção de arritmias ventriculares durante o exercício 41,65. Também pode ser constatada deficiente resposta cronotró-pica ao esforço, devida à depressão do controle parassim-pático sinusal 66,67.

Angiocardiografia nuclear - Ainda que menos dispo-nível do que a ecocardiografia para finalidades clínicas, este exame tem se mostrado muito útil em pesquisas visando à análise da função biventricular, em fases precoces da cardiopatia. Assim, em pacientes com a forma digestiva, isolada ou indeterminada, disfunção ventricular direita re-gional e global pode ser surpreendida na ausência de envolvimento aparente do VE 68,69.

Cintilografia miocárdica de perfusão - Distúrbios transitórios (do tipo reversível ou paradoxal) e irreversíveis são detectáveis, com bastante freqüência, em chagásicos portadores de síndromes anginóides. Essas alterações da perfusão miocárdica regional ocorrem na vigência de

nor-malidade coronária subepicárdica pela angiografia e, prova-velmente, decorrem de disfunção ao nível microcirculatório ou fibrose localizada 8,47,53.

Estudo hemodinâmico intravascular e angiografia de contraste - O cateterismo cardíaco acompanhado de estudo angiográfico torna-se muitas vezes imperativo, em pacien-tes com sintomas sugestivos de isquemia miocárdica, e re-sultados inconclusivos pela avaliação com ECG e cintilo-grafia miocárdica, para confirmar ou, mais comumente, afas-tar a presença de doença coronária obstrutiva. O método também possibilita visibilização muito acurada das dissinergias parietais ventriculares, que podem ser compli-cadas por trombose 42,53-56.

Estudo eletrofisiológico intracardíaco - Exame indica-do em casos selecionaindica-dos para avaliar a função sinusal e a condução AV, quando a origem dos sintomas permanece obscura após avaliação não-invasiva 42. Embora sem de-monstração objetiva de benefício direto, aceita-se a utilida-de utilida-deste exame em dois outros subconjuntos da população cardiopata chagásica: sobreviventes de episódio de MS; e pacientes com TVS , para avaliar o prognóstico e ajudar na escolha da estratégia terapêutica (medicações antiarrítmi-cas, cirurgia, ou desfibrilador implantável) 70,71.

Em muitos pacientes com preservação da função glo-bal de VE, que não apresentam taquicardia espontânea (apenas indutível), ou somente sofrem de episódios não-sustentados, a eletrofisiologia intracardíaca deixa de ter re-levância prognóstica. Assim, a estimulação programada não se mostrou capaz de induzir taquicardia ventricular em qual-quer dos 72 pacientes apresentando de 400 a 1200 extra-sístoles/hora, dos quais 35% tinham taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) durante a monitorização por méto-do de Holter 71. Nesse grupo a FEVE era em média de 60%. Apenas um entre os 72 pacientes apresentou TVS durante seguimento médio de três anos 71.

Eletrocardiografia de alta resolução - Existe apenas experiência preliminar com esta técnica. Em pacientes sem distúrbios dromotrópicos, sugere-se que os potenciais tar-dios ocorrem mais freqüentemente quando coexistem episó-dios de TVS 72. Essas alterações também parecem se correlacionar com o grau de disfunção ventricular, mas o seu significado prognóstico permanece por estabelecer 73.

Ressonância magnética - Este método, conquanto ainda não utilizável para fins clínicos habituais na cardio-patia chagásica, demonstra potencialidade para revelar o processo inflamatório subjacente, além de propiciar a ava-liação anatômica e funcional da função cardíaca, com exce-lente resolução espacial 74.

Avaliação autonômica cardíaca - Diversos testes autonômicos simples (inclusive a medida da variabilidade da freqüência cardíaca durante a monitorização eletro-cardiográfica) podem ser empregados para demonstrar

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disautonomia (predominantemente parassimpática) em pa-cientes cardiopatas chagásicos crônicos 47,75-77. Todavia, as anormalidades da regulação autonômica não produzem sin-tomas nem causam hipotensão postural, de forma que seu significado clínico é incerto.

Alterações

patológicas

O conhecimento das alterações patológicas na cardiopatia chagásica deriva de estudos necroscópicos em humanos, e de observações em vários modelos experimen-tais que reproduzem razoavelmente os vários estágios da doença 43,78-86. Também os resultados da biópsia endo-miocárdica foram úteis nesse sentido, inclusive para estudo da forma indeterminada da moléstia 46,87.

Na fase aguda, a patologia se exterioriza, principal-mente, por dilatação cardíaca global e derrame pericárdico. A microscopia denota parasitismo intenso de praticamente todos os sistemas orgânicos. A miocardite é intensa e difusa, ocorrendo necrose miocitolítica, edema, vasculite e infiltrado inflamatório, de natureza mono e polimorfonuclear. Trombose mural pode complicar o processo inflamatório, que se estende até o endocárdio. Há também envolvimento do sistema de condução e dos plexos nervosos intramurais e extracardíacos.

Quando o óbito sobrevem, após a instalação de IC na fase crônica, observa-se na autópsia dilatação e aumento conspícuo do peso cardíaco (350 a 800g em geral). A dilata-ção predomina nas câmaras direitas e os sinais de tão sistêmica são mais proeminentes do que os de conges-tão pulmonar 84,51. É possível que este aspecto peculiar seja explicado por dano precoce e intenso do VD, fato este mui-tas vezes negligenciado por estudos funcionais da CCC, mas surpreendido por pesquisas dirigidas 68,69.

Encontra-se trombose mural, em vários estágios de organização, em cerca de 50% dos pacientes autopsiados, envolvendo igualmente as câmaras direitas e esquerdas 50. A lesão mais específica é o aneurisma apical, descrito, em um estudo, em 52% de 1.078 pacientes autopsiados 88. Esta lesão não apresenta a típica fibrose que costuma ocorrer em aneurismas de origem isquêmica e, muito raramente, se rom-pe 78,88. Não se observa boa correlação entre a prevalência de aneurisma apical e idade, peso cardíaco. A lesão apical tem sido encontrada também em pacientes falecidos subita-mente sem manifestações clínicas pregressas da doença 44. O estudo histológico mostra a miocardite crônica, com de-generação e necrose miocitária focal, associada a infiltrados inflamatórios de tipo mononuclear 82,89. Estas anormalida-des têm sido tradicionalmente interpretadas como indepen-dentes de parasitismo direito das fibras miocárdicas, por-que o T. cruzi é raramente encontrado, na fase crônica, em estudos microscópicos de humanos e de modelos experi-mentais de DC 82.

Fibrose focal, coalescente, constitui feição das mais salientes, no miocárdio e no sistema especializado de con-dução do estímulo elétrico 90. As alterações eletrocar-diográficas descritas acima correlacionam-se com o

envolvi-mento inflamatório e de fibrose reparativa do ramo direito e do fascículo ântero-superior esquerdo do feixe de His 89. Distúrbios microvasculares descritos em modelos experi-mentais consistem de rarefação capilar, edema intersticial, agregados plaquetários e espessamento da membrana basal vascular. Aspectos semelhantes foram encontrados em mate-rial de biópsia endomiocárdica. Em pacientes com a forma indeterminada, tais alterações foram encontradas em 60% dos casos, mas tipicamente foram menos intensas do que em chagásicos com cardiopatia clinicamente manifesta 46,87.

Depopulação neuronal intracardíaca e degeneração dos plexos nervosos ocorre de forma intensa e típica na for-ma crônica da cardiopatia chagásica 82,91,92. Contudo, não há correlação entre a intensidade da agressão neuronal e o grau de dilatação cardíaca ou outros sinais de miocardite na fase crônica da moléstia 91.

Fisiopatologia e mecanismos de patogênese

As manifestações clínicas e o próprio dano orgânico da fase aguda são nitidamente associados à multiplicação parasitária no miocárdio, aparelho digestivo e sistema ner-voso. A elevada parasitemia também se correlaciona com os sinais de reação imunológica sistêmica, tais como a linfa-denopatia, e o aumento de baço e fígado típicos desta fase da moléstia. Com a remissão da parasitemia e das reações inflamatórias sistêmicas, acredita-se que, durante a fase indeterminada se desencadeie processo de miocardite focal mais incessante, levando à destruição cumulativa de fibras miocárdicas e paulatina fibrose reparativa 7,78.

Neste período, a miocardite é essencialmente silente, salvo por episódios esporádicos de arritmia cardíaca e, possivelmente, até de MS 44,93. A miocardite também leva a perda progressiva de massa miocárdica que, atingindo-se certo limiar de destruição, provoca dilatação cardíaca e/ou disritmia ventricular potencialmente letal 7,78. O suporte científico para esta concepção fisiopatológica genérica advém de evidências proporcionadas por pesquisas em vários modelos experimentais de cardiopatia chagásica, o que, também, é corroborado por estudos correlativos de aspectos clínicos e resultados necroscópicos em humanos. Esses trabalhos observacionais incluíram sempre algumas dezenas de pacientes nas fases aguda e indeterminada e várias centenas ou milhares de casos com a forma crônica da cardiopatia chagásica 7,78.

Arritmia ventricular complexa constitui um dos mais relevantes aspectos fisiopatológicos da CCC, em vista de sua potencial implicação na gênese de MS. Acredita-se que esta manifestação seja mais conspícua em pacientes chagásicos do que em miocardiopatas de outras etiologias, embora não se tenha descrição de estudos comparativos. Previsivelmente, há evidência de que a complexidade e in-tensidade desses distúrbios de ritmo se correlacionem com o agravamento da disfunção ventricular 94. Entretanto, po-dem também ocorrer em pacientes chagásicos com função ventricular esquerda global dentro de limites de normalida-de. Há evidência de que o substrato eletrofisiológico

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bási-co para a TVS seja bási-constituído pela presença de macro-circuitos de reentrada do estímulo elétrico, em regiões ventriculares posteriores-basais ou póstero-laterais 95.

A despeito dos avanços registrados recentemente na compreensão da fisiopatologia da cardiopatia chagásica, o desafio precípuo continua sendo a identificação dos meca-nismos patogenéticos operantes durante a fase indeter-minada da moléstia de Chagas. A marcante discrepância entre as manifestações clínicas e patológicas das fases aguda e crônica, também requer elucidação a partir de sua base comum infecciosa.

Fundamentalmente, há quatro classes de mecanismos implicados na patogênese da cardiopatia chagásica:

Mecanismos neurogênicos - Como já assinalado, há am-pla evidência necroscópica de intensa depopulação neuronal nos vários estágios evolutivos da doença 49,79-82. Esses resulta-dos são reproduziresulta-dos por investigações experimentais em modelos animais de infecção chagásica 49,83-86,96-99. Os aspectos histopatológicos mais salientes consistem de destruição neuronal difusa e irregularmente distribuída nos vários tecidos. Observam-se parasitismo ganglionar direto, mas também periganglionite e lesões degenerativas das fibras nervosas e das células de Schwann. Embora mais estudadas ao nível do sistema parassimpático intramural cardíaco, essas anor-malidades também envolvem o sistema ganglionar simpáti-co pára-vertebral 81.

Em correspondência a esses estudos patológicos, ex-tensa gama de investigações clínicas documentaram, em humanos, graus intensos de depressão do controle auto-nômico cardíaco, predominante, mas não exclusivamente parassimpático 47,69,75-77,96. Isto constitui um dos aspectos mais característicos, embora não específicos da CCC. Em estudos comparativos, a denervação parassimpática, en-contrada na doença reumatismal, na cardiomiopatia dilatada idiopática, e na endomiocardiofibrose, foi nitidamente de menor expressão do que na moléstia de Chagas 49.

É oportuno salientar que a depopulação neuronal expli-ca satisfatoriamente a gênese do megaesôfago e megacólon chagásicos 100 e, por analogia, tem sido implicada na teoria neurogênica da CCC: a destruição preferencial do sistema parassimpático cardíaco, instalando-se de forma intensa e precoce, levaria a prolongado desequilíbrio autonômico, e como conseqüência provocaria processo cardiomiopático de base essencialmente catecolaminogênica 49,79.

Essa postulação tem sido desafiada por várias linhas de evidência, questionando-se diretamente a possibilidade de mecanismos neurogênicos constituírem fatores pato-genéticos fundamentais 7. Assim, a freqüência e intensida-de do processo intensida-de intensida-destruição neuronal são extremamente variáveis ao nível individual e não se correlacionam com qualquer parâmetro de disfunção miocárdica 77,92,96,101-103. Essa variabilidade do comprometimento do sistema auto-nômico cardíaco poderia, em tese, ser explicada por diversidade neurotrópica entre cepas parasitárias ou por outros fatores, genéticos ou ambientais 99. Estudos recentes mostram não haver associação entre a disautonomia parassimpática e distúr-bios regionais de contração ventricular 69.

Apesar destas objeções, é oportuno considerar-se o fato de que em todas as investigações mencionadas, a ava-liação autonômica limitou-se ao controle da freqüência car-díaca, como marcador de influência parassimpática. Portan-to, é plausível especular-se que eventuais distúrbios autonômicos ao nível ventricular possam ocorrer sem pos-sibilidade de detecção por esses métodos 47.

Investigações mais recentes permitiram aprofun-damento sobre este aspecto, utilizando-se cintilografia por impregnação com 123 I-meta-iodo-benzil-guanidina, para ava-liação direta do sistema simpático ao nível miocárdico 104-106. Denervação simpática regional foi detectada em elevada proporção de pacientes, inclusive com a forma inde-terminada da doença. Tais alterações foram verificadas em áreas sem anormalidades contráteis e constituem a primeira evidenciação de distúrbios do sistema simpático em nível ventricular na CCC.

Em um desses estudos, também se observou elevada taxa de esvaimento da impregnação miocárdica com 123 I-MIBG em regiões ventriculares, exibindo mobilidade normal 106. Tal altera-ção poderia ser devida a aumento precoce da atividade simpá-tica em nível miocárdico, e interpretada como elemento compa-tível com os postulados da teoria neurogênica. Entretanto, ex-plicação alternativa consiste na possibilidade de ocorrência de competição pelos receptores neurais simpáticos, entre o rádio-traçador utilizado e substâncias endógenas antagônicas.

Esta última e hipotética possibilidade poderia se coa-dunar com relatos recentes sobre a existência de anticorpos circulantes, com capacidade de ligação a receptores tanto colinérgicos como adrenérgicos em linfócitos e no mio-cárdio 107-111. Tais anticorpos parecem ser capazes de de-sencadear efeitos fisiopatológicos, enzímicos, morfo-lógicos e alterações moleculares potencialmente lesivas ao miocárdio 109-111. Além disso, depósito desses anti-corpos em estruturas de receptores neurotransmissores poderia causar sua dessensibilização e causar denervação progressiva. Mecanismos como esses, se comprovados em investigações adicionais, poderiam conciliar alterações neurogênicas e agressão imunológica, como fatores fisiopatológicos na CCC.

Em síntese, a teoria neurogênica continua muito discu-tível. O significado prognóstico de suas implicações não foi estabelecido, e a atraente hipótese de seu envolvimento na gênese de mecanismos de MS permanece inteiramente especulativa 93,112.

Mecanismos inflamatórios ligados ao parasita - Du-rante várias décadas passadas acreditou-se que, em virtude do baixo grau de parasitismo miocárdico e da intrigante au-sência de correlação topográfica entre os focos inflama-tórios e os locais de assestamento das formas amastigotas do T. cruzi nas miocélulas, o parasita não representasse fa-tor patogenético decisivo na fase crônica da cardiopatia 82. Esta visão enraizava-se na verificação de que a miocardite linfocitária focal e a necrose miocitolítica podiam ocorrer em áreas não aparentemente parasitadas, e também, na consta-tação de que a parasitemia era sempre, quando existente,

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muito escassa, na forma crônica 51,113,114. Entretanto, investi-gações mais recentes, empregando técnicas imunohisto-químicas para detecção de anticorpos dirigidos contra antígenos do T. cruzi, comprovam a existência de correlação topográfica entre os focos onde estas alterações são detectáveis e as próprias reações inflamatórias 113,115. Resul-tados similares foram obtidos quando se empregou o mé-todo de PCR para detectar fragmentos genômicos de T.

cruzi 116. Adicionalmente, técnicas de biologia molecular permitem, agora, detectar antígenos plasmáticos derivados do T. cruzi em contingentes apreciáveis de pacientes chagásicos nos quais essa evidenciação era impossível usando técnicas sorológicas convencionais 117,118. Assim, torna-se plausível especular que mesmo sendo de baixo ní-vel, o parasitismo possa representar mecanismo de ativação antigênica permanente, e constituir fator patogenético es-sencial de alteração imunológica na fase crônica da moléstia de Chagas 119-121.

Se o parasitismo estivesse comprovadamente ligado à patogênese da cardiopatia crônica, haveria relevantes implica-ções terapêuticas potenciais. Nesse sentido, há apenas escas-so indício da possibilidade de que o tratamento etiológico pu-desse influenciar favoravelmente o curso clínico da fase crôni-ca da doença 122. Assim, um estudo não-randomizado, aberto, controlado por placebo, incluiu 131 chagásicos tratados com benzonidazol, que tiveram sua evolução comparada à de ou-tros 70 pacientes não tratados com essa medicação, em segui-mento de oito anos em média 123. Relatou-se redução significa-tiva da incidência de novas alterações eletrocardiográficas e de deterioração clínica no grupo tratado. Resultados semelhantes foram relatados recentemente, usando-se itraconazol e alopurinol 124. Se esses estudos puderem ser ratificados por outras investigações mais abrangentes, tais resultados refor-çariam consideravelmente a teoria de que o parasita possa par-ticipar direta e decisivamente na gênese da agressão mio-cárdica da fase crônica da DC.

Anormalidades microcirculatórias - Várias classes de evidência clínica e experimental subsidiam o conceito de que distúrbios isquêmicos transitórios ocorram em nível microvascular na CCC.

A primeira classe de evidências relaciona-se com as características morfológicas da miocardite crônica. A distri-buição focal e a natureza miocitolítica da necrose observa-da, bem como a intensa fibrose reparativa são feições tam-bém observadas em modelos experimentais não-chagásicos de isquemia/reperfusão miocárdica, e indigitam a ocorrên-cia de distúrbios isquêmicos miocárdicos esparsos, com envolvimento coronário em nível microcirculatório 125-127. Este último aspecto patológico tem sido também verificado em estudos necroscópicos em humanos 127-129 e em modelos murinos de CCC 130-134. Em animais de experimentação, des-creveu-se a presença de trombos oclusivos plaquetários em vasos coronarianos subepicárdicos e intramurais, com-patíveis como fatores causais de isquemia provocada por anormalidades microvasculares e verificada nesses estu-dos por técnicas histoquímicas específicas 133,134. Além

dis-so, administração de verapamil, antagonista dos canais de cálcio dotado de potente efeito vasodilatador e, possivel-mente, também antiplaquetário, mostrou-se capaz de reduzir a extensão do dano miocárdico e a letalidade em camundon-gos infectados com T. cruzi 135.

Também em várias investigações clínicas independen-tes, usando-se diversos marcadores perfusionais (tálio-201, 99m -sestamibi e microesferas também marcadas com tecnécio-99m) foram documentados defeitos miocárdicos perfusionais, du-rante esforço e repouso, em pacientes chagásicos com artérias coronárias angiograficamente normais 8,47,70,136-142. Esses distúr-bios perfusionais (fixos, reversíveis ou paradoxais) foram en-contrados em significante proporção desses pacientes, mes-mo na completa ausência de outros sinais de dano miocárdico. Estudo da resposta de fluxo coronariano à administra-ção de acetil-colina, em pacientes chagásicos, sugeriu a ocorrência de disfunção endotelial 143. De forma análoga, outra investigação relatou reatividade coronária subepicár-dica anormal aos testes da hiperventilação e da ministração de nitrato. Estes resultados são também compatíveis com a noção de que em chagásicos crônicos haja anormalidades funcionais da regulação do fluxo coronário 144. Estudos com técnicas de análise ultra-estrutural em modelo canino de cardiopatia chagásica, sugerem que o comprometimento microcirculatório possa ser secundário à interação lesiva de células inflamatórias com o endotélio vascular 145. Torna-se plausível especular que substâncias como a tromboxana-A2, citocinas, e prostaglandinas, secretadas no infiltrado inflamatório, afetem de forma incisiva a reatividade vascu-lar. Esta hipótese, portanto, vincula a isquemia micro-vascular detectada na cardiopatia chagásica ao processo inflamatório 126. Em contraposição, os fenômenos isquê-micos potenciariam os efeitos lesivos da inflamação primá-ria, em mecanismo de retro-alimentação fisiopatológica.

Também parece razoável admitir-se, como hipótese de trabalho, que a elucidação dos mecanismos causais da isquemia experimentada por pacientes chagásicos possa contribuir para definição da estratégia mais adequada de tra-tar a precordialgia que apresentam.

Mecanismos de agressão imunológica - Vasto acervo de relatos de investigações científicas parece apoiar a teoria que atribui a mecanismos de auto-imunidade o papel-chave da patogênese da CCC. O conceito de que a miocardite mononuclear propicie os elementos celulares efetores de agressão de fibras miocárdicas não parasitadas deriva de estudos histopatológicos, utilizando microscopia de luz. Mais recentemente, essa evidência foi corroborada por es-tudos em modelos de experimentação animal, com métodos ultra-estruturais, sugerindo a ocorrência de reatividade imu-ne cruzada entre antígenos do parasita e do miocárdio 145.

Esse mimetismo antigênico relativo ao T. cruzi e ao miocárdio tem sido descrito para extensa série de anti-corpos dirigidos contra diversos antígenos do hospedeiro da infecção chagásica 146-150. Todavia, para demonstrar que esse efeito biológico pudesse ter relevância clínica, pelo menos potencial, no sentido de apoiar a teoria da

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imu-nidade, seria necessário identificar a presença de auto-antígenos específicos, cuja injeção em hospedeiro sensí-vel, reproduzisse a agressão orgânica. Lesão miocárdica deveria, ainda, ser produzida por transferência passiva de linfócitos 151.

Recentemente, esse tipo de evidência em apoio à teo-ria auto-imune foi obtida pela identificação, no modelo murino de doença chagásica experimental, de linfócitos TCD4+ específicos contra miosina 152. Outro indício forte-mente sugestivo foi a demonstração de que é possível deter o processo de agressão miocárdica, nesse modelo, induzin-do-se a depleção desses linfócitos 153. Em adição, lesão miocárdica em animais não infectados pôde ser induzida por transferência passiva dos linfócitos TDC4+ obtidos dos camundongos chagásicos 153.

Finalmente, epítopos específicos, associados com a resposta imune do hospedeiro, com potencial capacidade de mediar dano miocárdico, foram identificados 120,154-162. Há também evidência de que a estimulação permanente de macrófagos expostos aos antígenos do T. cruzi leva a pro-dução de citocinas, modulando a resposta imune e, possi-velmente, causando a relativa depressão imunológica que, provavelmente, é responsável direta por perpetuar a infec-ção 121,163,164. Todos esses resultados investigacionais re-centes se colimam para apoiar a teoria de que a miocardite linfocitária fibrosante, focalmente identificada na CCC seja determinada por resposta auto-imune a epítopos próprios

da estrutura protéica miocárdica. Essa intolerância imuno-lógica parece ocorrer por mimetismo dessas estruturas por antígenos parasitários.

Em síntese, a visão moderna confere a mecanismos li-gados à presença do agente etiológico e a respostas auto-imunes o papel preponderante na gênese da CCC. Disau-tonomia cardíaca e isquemia em nível microvascular são, muito possivelmente, apenas fatores ancilares, atuando para intensificar e ampliar o alcance deletério daqueles meca-nismos patogenéticos sobre o miocárdio. Esta visão fisiopa-togênica global, com as interações de retro-alimentação po-sitiva postuladas, encontra-se esquematizada na figura 1.

Tratamento da cardiopatia chagásica

Tratamento etiológico - Dois fármacos (nifurtimox e benzonidazol) são disponíveis para uso clínico, com efetividade antiparasitária comparável e, também, exibindo espectro superponível de efeitos colaterais nocivos, comumente responsáveis pela interrupção do tratamento: dermatite, polineurite, leucopenia, intolerância gastroin-testinal 165,166. O relato recente de mais alta incidência de câncer em pacientes chagásicos submetidos a transplante cardíaco e requerendo terapia tripanossomicida, também sugere ser a pesquisa de drogas mais efetivas e melhor tole-radas altamente recomendada 167. Há resultados recentes de tratamento da reativação chagásica em pacientes que

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beram transplante cardíaco, com alopurinol e itraconazol, que são especialmente provocantes mas demandam escru-tínio e confirmação rigorosos, antes de permitirem conclu-sões mais abalizadas 124,168.

É virtualmente consensual a opinião de que pacientes com a forma aguda da infecção chagásica, por qualquer dos mecanismos identificados de transmissão, devam ser trata-dos etiologicamente, para controle sintomático, deter o pro-cesso da miocardite e/ou encefalite, e, presumivelmente, minimizar o dano orgânico. A eficácia do tratamento no que concerne a este último aspecto não pôde ainda ser demons-trada, por carência de estudos controlados, com seguimen-to apropriado. Após o tratamenseguimen-to nessa fase aguda, há negativação do xenodiagnóstico em mais de 90%, e os tes-tes sorológicos são normalizados em cerca de 80% dos pa-cientes. O alcance prognóstico da conversão sorológica permanece por ser determinado, também por não se dispor de estudos adequadamente conduzidos para avaliar tão im-portante aspecto clínico. Na CCC os potenciais efeitos pro-tetores da terapêutica antiparasitária não são demons-tráveis por combinação de razões: em primeiro lugar, os mé-todos de avaliação da eficácia terapêutica não são absoluta-mente confiáveis; além disso, soabsoluta-mente escassos estudos muito limitados numericamente e, quanto ao esquema pro-tocolar não controlado, foram relatados 169-171. Por exemplo, a negativação sorológica com o tratamento não pode ser usada como indicador de impacto sobre o curso clínico da moléstia, porquanto esses dois aspectos são claramente dissociáveis, e a negatividade da sorologia e da parasitemia são espontaneamente comuns na evolução natural da fase crônica. Outro limitante encontrado nesses estudos refere-se ao viés introduzido por refere-seleção de pacientes com para-sitemia persistente antes do tratamento 7. Finalmente, con-forme já discutido, estudos experimentais revelam que, en-quanto a parasitemia pode ser escassa ou mesmo não detectável, com os métodos empregados naqueles estudos, o parasitismo tissular pode ser significativamente mais in-tenso e relevante 114.

Em contraposição, sorologia persistentemente positi-va poderia simplesmente refletir a vigência de mecanismos de memória imune, ou se associar a reatividade cruzada con-tra antígenos alterados do hospedeiro. Assim, todos os cri-térios já utilizados para avaliação sorológica dos resultados de tratamento etiológico na fase crônica da moléstia de Cha-gas são inadequados, impedindo interpretações definitivas sobre o significado das taxas bastante reduzidas de nega-tivação verificadas (4-8%) nos estudos mencionados 169-171. Em conseqüência dessas limitações, enquanto não se dispuser de método laboratorial adequado para avaliação, o único critério aceitável de efetividade de qualquer forma de tratamento etiológico deverá forçosamente se basear na prevenção de complicações clínicas da doença.

Portanto, não são atualmente autorizadas quaisquer re-comendações de tratamento etiológico, como recurso clínico indiscriminado na fase crônica da moléstia de Chagas. Clara-mente, seria necessário seguimento prolongado de coortes extensas de pacientes chagásicos, para detectar eventuais

inflexões na história natural da cardiopatia crônica, que fos-sem imputáveis ao tratamento tripanossomicida 7.

Tratamento da insuficiência cardíaca congestiva -Sendo a exteriorização hemodinâmica da IC de etiologia chagásica superponível em muitos aspectos à da miocardiopatia dilatada, intervenções terapêuticas clássicas -restrição salina, diuréticos, digital, vasodilatadores como nitratos e hidralazina - têm sido empregadas liberalmente para alívio sintomático em cardiopatas chagásicos 7. De fato, vários trabalhos observacionais, de pequenas dimen-sões populacionais, não controlados por placebo, relataram benefício hemodinâmico agudo associado ao uso desses diversos agentes farmacológicos, e, em menor grau, aumen-to da capacidade de esforço físico a curaumen-to prazo. Todavia, não há estudos publicados sobre redução de mortalidade ou mesmo sobre benefício sintomático ou hemodinâmico a longo prazo, em cardiopatas chagásicos 7.

Estudos preliminares, englobando pequenos grupos de pacientes tratados com inibidores da enzima de conver-são da angiotensina (IECA) pareceram evidenciar resulta-dos promissores em termos de alívio sintomático 172,173. Em-bora não se disponham de estudos com esses agentes, ou mesmo, com quaisquer outros, mostrando impacto benéfico sobre a sobrevivência, na cardiopatia chagásica, é lógico supor, como hipótese de trabalho, que os efeitos favoráveis dos IECA possam ser, em pacientes chagásicos, super-poníveis aos verificados em outras etiologias de IC. Em rea-lidade, há evidência incipiente de que, pelo menos aguda-mente, administração desse tipo de agente, produza efeito neuromodulador benéfico em cardiopatas chagásicos com essa síndrome 174.

Conforme já exposto, são precocemente detectáveis, em alguns pacientes chagásicos com a forma indeterminada da doença, anomalias regionais contráteis 63,175. Por outro lado, a discreta dissinergia assim manifesta parece refletir a extensão do dano miocárdico, mais fielmente do que as alte-rações no ECG que, classicamente, foram consideradas pre-cursoras de envolvimento cardíaco mais grave 176. Ademais, recentemente obteve-se indício de que a dissinergia regio-nal, ainda que discreta, precocemente detectada, associe-se a relevante implicação prognóstica desfavorável 177. Por conseguinte, à luz dessas evidências em conjunto, torna-se plausível admitir a conveniência de se testar a hipótese de que, na cardiopatia chagásica, por analogia com o demons-trado em outras etiologias de agressão miocárdica, a inter-venção terapêutica precoce possa evitar a instalação de IC clinicamente manifesta, e alterar a ominosa história natural da doença.

Abordagens cirúrgicas Transplante cardíaco -Como em outras cardiopatias, o transplante cardíaco foi rea-lizado em pequenos grupos de pacientes chagásicos com IC refratária. Atualmente, a aplicação do método está restri-ta por impedimentos de ordem socioeconômica, e pelo po-tencial de reativação da infecção chagásica que se segue à depressão do sistema imune. Miocardite aguda,

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acompa-nhada de marcante depressão da função ventricular, ocorreu em cinco dos nove primeiros pacientes incluídos na mais ex-tensa série (22 casos) operada em um único centro médico 178. Embora a reagudização seja geralmente bem controlada por terapêutica antiparasitária, a possibilidade de dano irre-versível ao coração transplantado não é negligenciável. Nos últimos 13 pacientes dessa série, tratados com regime de imuno-modulação com ciclosporina mais apropriado, essa complicação ocorreu em apenas um caso. Neste subgrupo a sobrevida após dois anos do transplante foi de 80%, confi-gurando resultados encorajadores relativamente a outras séries anteriores. Contudo, deve-se reconhecer que o im-pacto desta modalidade terapêutica a longo prazo está ain-da por ser determinaain-da, mediante estudos adequaain-damente desenhados, em coortes mais amplas de pacientes 7.

Cardiomioplastia dinâmica - Este procedimento cirúr-gico paliativo tem sido empregado de forma bastante limita-da em pequenos grupos de pacientes chagásicos nos quais foram obtidos resultados iniciais promissores, em termos de controle sintomático e melhora hemodinâmica aguda 179. Resenha recente de experiência em centros sul-americanos com essa técnica cirúrgica, compreendendo total de 112 pacientes, englobava apenas 13 pacientes chagásicos com IC 180. Após um e cinco anos de seguimento após a inter-venção, a sobrevivência no subgrupo chagásico foi res-pectivamente de 40 e 9,5%, valores que, aparentemente, são muito inferiores aos observados nos demais pacientes des-sa compilação, portadores de cardiomiopatia dilatada, com sobrevivência de 86,1% e 49,8% nos respectivos períodos de seguimento. Não se despistaram possíveis fatores de mau prognóstico que explicassem o aparente insucesso re-lativo do procedimento em cardiopatas chagásicos. Isso demonstra a necessidade de se definir, com base em expe-riência prospectivamente desenhada e controlada, o papel eventual desse procedimento, em grupos seletos de pacien-tes chagásicos refratários, pelo menos como abordagem temporária, talvez como passo intermediário para adoção de condutas mais radicais e potencialmente mais efetivas, como o transplante 7.

Prevenção de complicações tromboembólicas - Existe apenas escassa informação sistematizada sobre prevenção de fenômenos tromboembólicos em pacientes chagásicos apresentando trombos murais ou aneurisma apical 7. Em 65 portadores desta última lesão estudo de seguimento por período mediando de 19 a 176 meses documentou 17 episó-dios de embolia em 14 pacientes (24,5%) 181. Esses pacientes também apresentavam IC congestiva, tendo 11 deles faleci-dos durante o tempo de observação do estudo. Em oito ca-sos a causa mortis foi diretamente ligada à IC e em três a embolia cerebral.

Outro estudo de pequenas dimensões populacionais focalizou a contribuição específica da cardiopatia chagásica como causa de embolia em 69 pacientes com acidentes vasculares cerebrais tratados em região sul-americana endêmica 182. Entre 13 pacientes com cardiopatia dilatada

não isquêmica, a etiologia chagásica foi comprovada em 9 (13,0%) casos. Isto representou a 3ª causa mais freqüente de embolia, após fibrilação atrial (29%) e doença valvular reumática (20,3%)

Entretanto, o risco real de tromboembolismo na cardio-patia chagásica é desconhecido, pois não foram realizados estudos dirigidos a obter tal informação. Também não se dispõem de dados sobre o valor prognóstico da ocorrência de tromboembolismo na história natural da cardiopatia chagásica, por inexistência de trabalhos clínicos enfocando este aspecto 7.

Portanto, as recomendações atuais para anticoa-gulação em cardiopatas chagásicos seguem os princípios estabelecidos para outras cardiomiopatias dilatadas. As-sim, devem receber medicação anticoagulante endovenoso ou oral os pacientes com disfunção global de VE, aqueles com fibrilação atrial, antecedentes tromboembólicos, trom-bose mural em áreas dissinérgicas 183. Estas recomendações são dificilmente aplicáveis em muitos pacientes chagásicos, por limitações socioculturais e econômicas 7.

Tratamento de pacientes com precordialgia - Tais pa-cientes podem constituir subgrupo de difícil manejo clínico e o tratamento é inteiramente empírico. O sintoma não é de-vido à angina vasotônica, e também não há evidências de que possuam aumento do tônus coronário basal, pois não se demonstrou a vigência de respostas exacerbadas a estí-mulos vasoconstrictores ou vasodilatação mediada por mecanismo endotelial 144,184.

Por outro lado, não há apoio para intervenções diri-gidas ao controle de possíveis mecanismos esofágicos como potencialmente responsáveis pelo sintoma. Embora muitos desses pacientes tenham evidência endoscópica objetiva de esofagite, sua sensibilidade a estímulos quími-cos e mecâniquími-cos está reduzida, de acordo com estudo recen-te 185. Alguns pacientes obtêm alívio sintomático pelo uso de nitratos, e bloqueadores beta-adrenérgicos ou dos ca-nais de cálcio, mas a resposta individual é imprevisível.

Tratamento dos distúrbios de ritmo - O tratamento de bradiarritmias sintomáticas é similar ao recomendado para outras cardiomiopatias, geralmente baseado no implante de marcapasso permanente. Todavia, não há evidências con-clusivas para respaldar esta ou qualquer outra opção tera-pêutica na cardiopatia chagásica 7.

Indicações preferenciais para inserção do marcapasso são a disfunção do nó sinusal e o BAV completo 186. O bene-fício desta estratégia terapêutica é assumido como poten-cial com base em evolução clínica aparentemente superior de grupos assim tratados, comparativamente à história na-tural de outros pacientes em que esse tratamento não foi possível 187,188. Outro aspecto relevante neste contexto refe-re-se à freqüente associação de arritmia ventricular comple-xa e distúrbios da condução atrioventricular. Embora não haja também evidência conclusiva para apoiá-la a estratégia usual em tais casos consiste no implante “profilático” de marcapasso artificial e concomitante terapêutica anti-arrítmica farmacológica.

Referências

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