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O conceito de antinatureza em Crepúsculo dos ídolos

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O conceito de antinatureza em Crepúsculo dos ídolos

The concept of anti-nature in Twilight of the Idols

Fernando de Sá Moreira

Doutor em Filosofia pela PUCPR e professor do IFPR campus Telêmaco Borba, Paraná, Brasil, e-mail:

fernando.moreira@ifpr.edu.br

Resumo

Em meio à profusão de obras gestadas e redigidas em 1888, Nietzsche prepara e publica o conhecido livro Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Trata-se de um texto com 10 capítulos ligeiros e relativamente curtos, além de um prólogo e do encerramento intitulado “Fala o martelo”. Em sua versão em português, o livro conta apenas com cerca de 150 páginas. No entanto, a despeito da imagem descompromissada que sua ligeireza passa, a obra revela-se extremamente profunda ao leitor atento e rica em materiais e sentidos a interpretar. O presente artigo analisa um conceito específico presente no quinto capítulo do texto, cujo título é “Moral como antinatureza”. Referimo-nos ao conceito de “antinatureza”. São apenas três passagens em toda a obra que mencionam esse conceito, todas elas localizadas no capítulo acima aludido. No entanto, uma busca na totalidade dos textos nietzschianos revela também que o conceito assume um papel razoavelmente central nos anos finais de produção do filósofo alemão, em especial entre 1887 e 1888. Nossa investigação procura evidenciar que a antinatureza não é um conceito absolutamente oposto ao conceito de natureza. Paradoxalmente, o contraponto a esse conceito é representado pela noção de saúde. A hipótese defendida é que a classificação da antinatureza enquanto tal resulta de um complexo jogo de sentidos, dentre os quais identificamos quatro: a antinatureza como estranhamento na visão do nobre; a antinatureza como negação do mundo; como antagonismo contra as leis da vida; e como tendência de enfraquecimento e esfacelamento de si mesmo, de sua própria natureza individual.

Palavras-chave: Antinatureza. Saúde. Doença. Instintos.

Abstract

Among the profusion of pieces conceived and written in 1888, Nietzsche puts together and publishes the well-known book Twilight of the Idols, or how to philosophize with a hammer. It is made up of 10 brief and relatively short chapters, besides a prologue and the ending entitled "The Hammer Speaks". In its version in Portuguese, the book contains only about 150 pages. However, despite the immediate lack of commitment such a quick read conveys, the piece reveals itself to be extremely deep to the careful reader and rich in materials and meanings to be interpreted. The current article analyzes a specific concept found in the fifth chapter of the text, whose title is “Morality as nature”. Regarding the concept of

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anti-58 nature, there are only three passages throughout the whole text which mention it, all of which are found in the above-mentioned chapter. Despite that, in light of Nietzsche's lifetime work and production, the concept takes on a reasonably central role in the philosopher's final active years, particularly between 1887 e 1888. Our investigation aims at shedding light on anti-nature as not the absolute opposite of anti-nature, in their concepts. Paradoxically, its counterpoint is represented by the notion of health. The hypothesis here to be defended is that anti-nature, when classified as such, results in a complex web of meanings, within which four main significances are identified: anti-nature as estrangement of the noble vision; anti-nature as the negation of the world; as antagonism against the laws of life; and as a tendency to the deterioration and disintegration of itself, within its own individual nature.

Keywords: Anti-nature, Health, Disease, Instincts.

1. Introdução

Como se sabe, Crepúsculo dos ídolos é uma das últimas obras organizadas por Nietzsche e reúne em seus 10 capítulos reflexões sobre os mais diversos assuntos. Vários temas clássicos de seu pensamento filosófico são retomados e reapresentados em uma abordagem própria.

No presente trabalho, interessa-nos investigar um conceito específico, a saber: o conceito de “antinatureza” (Widernatur). A expressão surge de forma mais destacada apenas no título do quinto capítulo do texto, denominado “Moral como antinatureza” (Moral als Widernatur). Vale notar ali que há certo paradoxo na proposição do capítulo, pois, apesar da menção em seu título, a um primeiro olhar, o conceito parece ocupar um lugar meramente secundário. Isso porque, ao fazer a leitura dessa parte do texto, não encontramos qualquer definição mais clara do que significa ser uma “antinatureza”.

Obviamente, é possível destacar ali diversos elementos que indicam o significado em geral da crítica de Nietzsche à moral. Porém, pode-se observar igualmente que, em específico, o uso da expressão “antinatureza” e seus derivados não é tão marcado, quanto o título levaria a supor. Mesmo quando se extrapola o capítulo em questão, não se encontra nessa obra qualquer definição mais clara para esse termo. Em todo o livro, exceto a menção no título do capítulo sobre a moral, há apenas duas passagens nas quais emerge o termo ou alguma de suas

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59 possíveis derivações (cf. GD/CI A moral como antinatureza 4 e 5)1.

Essa não é, contudo, uma exclusividade do texto de 1888. Mesmo que tomemos a totalidade da obra filosófica de Nietzsche2, continuaremos sem uma definição absolutamente clara desse conceito. Ainda assim, não é sem sentido atentar que a palavra adquire cada vez mais presença nos dois últimos anos de sua produção intelectual.

Na obra publicada por Nietzsche, Há apenas duas referências em livros anteriores a 1887, a saber, na segunda das Considerações extemporâneas e outra em Gaia ciência (cf. HL/Co. Ext. II 10 e FW/GC 1, de 1874 e 1882, respectivamente). Em ambos os casos, as ocorrências apresentam-se na forma adjetivada widernatürlich. Nas cartas anteriores a data mencionada, encontramos apenas uma missiva a Elisabeth Nietzsche, datada de 27/04/1883 (cf. BVN/CN 1883 408), e uma segunda remetida em 26/03/1885 a Malwida von Meysenbug (cf. BVN/CN 1885 587). Mesmo entre os apontamentos póstumos, há somente uma passagem redigida na passagem de 1886 para 1887 (i.e. NF/FP 7[5] do final de 1886 – primavera de 1887), que registra também o adjetivo widernatürlich.

Em contrapartida, nas obras que vieram a público ou foram escritas entre 1887 e 1888,

1 A fim de facilitar a consulta aos textos de Nietzsche, adotamos no presente artigo a seguinte convenção de siglas: KSA – Edição crítica das obras de Nietzsche, organizada por G. Colli e M. Montinari (Sämtliche Werke:

Kritische Studienausgabe in 15 Bänden); KSB – Edição crítica das cartas de Nietzsche, igualmente organizada

por G. Colli e M. Montinari (Sämtliche Briefe: Kritische Studienausgabe in 8 Bänden); eKGWB – Edição crítica digital das obras e cartas de Nietzsche, organizada por P. D'Iorio e baseada nas edições KSA e KSB (Digitale

Kritische Gesamtausgabe von Nietzsches Werken und Briefen); BVN/CN – Cartas de Nietzsche, obtidas junto à

eKGWB; GT/NT – O nascimento da tragédia (Die Geburt der Tragödie); HL/Co. Ext. II – Considerações

Extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida (Unzeitgemässe Betrachtungen, Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben) MAI/HHI – Humano, demasiado humano, vol. I

(Menschliches, Allzumenschliches, erster Band); M/A – Aurora (Morgenröthe); FW/GC – Gaia ciência (Die

fröhliche Wissenschaft); JGB/BM – Além de bem e mal (Jenseits von Gut und Böse); GM/GM – Genealogia da

moral (Zur Genealogie der Moral); GD/CI – Crepúsculo dos ídolos (Götzen-Dämmerung); AC/AC – O

anticristo (Der Antichrist); EH/EH – Ecce homo (Ecce homo); e NW/NW – Nietzsche contra Wagner

(Nietzsche contra Wagner). Após a sigla, indicamos o número do aforismo, parágrafo ou seção citada. Sempre que necessário, entre a sigla e o número do texto, mencionamos o nome ou número do capítulo ou dissertação onde a passagem se encontra. No caso das cartas, antes da numeração da carta, situa-se o ano de redação. Os apontamentos póstumos trazem a sigla NF/FP, seguida do número de registro e período de redação, de acordo com a eKGWB e KSA. As traduções são de nossa pena e foram cortejadas com as conhecidas traduções das obras de Nietzsche indicadas abaixo, na seção Referências bibliográficas. As demais referências a outros autores segue o padrão AUTOR-DATA.

2 Para esta pesquisa, consideramos os resultados obtidos na busca textual pela expressão “widernat?r*” no banco de dados da eKGWB. Isso significa que fazem parte da pesquisa as obras publicadas e organizadas por Nietzsche e seus fragmentos póstumos a partir de 1869, além das cartas remetidas pelo filósofo desde 1850. Não estão inclusas cartas redigidas por correspondentes e remetidas ao filósofo. Na expressão de busca, o símbolo “?” pode ser representado por qualquer carácter único; no presente caso, principalmente “u” ou “ü”. Além disso, o símbolo “*” pode ser substituído por qualquer conjunto de caracteres, independente de seu tamanho e inclusive a possibilidade de ausência completa de caracteres naquele espaço. Por conseguinte, são igualmente registrados os resultados “Widernatur”, “widernatürlich” e suas variações ou declinações. Para fins de registro: a busca textual foi realizada a 16/03/2016 pela plataforma online do projeto, disponível em <http://www.nietzschesource.org/#eKGWB>.

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60 o termo ocorre em Genealogia da moral, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo, Ecce homo e Nietzsche contra Wagner. Entre os póstumos e cartas mais tardias podem-se encontrar também outras numerosas menções. Ao todo, são apenas 5 referências no período compreendido entre 1850-1886, consideradas obras, cartas e anotações póstumas. Frente a essas, deparamo-nos com o surpreendente número de 15 ocorrências relativas a 1887 e outras 25 a 1888.

Ainda assim, tomando-se como referência os textos publicados ou preparados para publicação por Nietzsche, não encontramos definições categóricas do conceito de antinatureza em lugar algum. Por outro lado, os indícios terminológicos levam-nos a supor que não se trata de um conceito meramente secundário. Pelo contrário, a antinatureza ganha especial relevância no contexto da crítica à moral. Ao que tudo indica, ela caracteriza, segundo a letra de Crepúsculo dos ídolos, o modo próprio de atuar da moral. A moral se apresenta ou pode ser interpretada como antinatureza.

Também não parece ser o caso de supor que se trate apenas de uma palavra de significado difuso e sem maior importância. Há, sem dúvida, certa tensão na escolha do termo. Se Nietzsche é de fato um crítico da tradição metafísica e, ao mesmo tempo, afirma uma certa interpretação que defenderá sempre a imanência do mundo, é então lícito levantar a questão: de que modo é possível a existência de uma antinatureza, na moral em específico ou em qualquer outro domínio?

A depender do modo como se considera a relação entre natureza e antinatureza, tal conceituação manterá uma inesquivável tensão com o propósito nietzschiano de retradução em termos naturais e sua recondução à natureza, como é explicitado, por exemplo, em JGB/BM 2303. Paralelamente, não parece lícito supor que esse tipo de posicionamento tenha se alterado em Crepúsculo dos ídolos. Encontramos no texto de 1888, por exemplo, todo um capítulo dedicado a desmitificação do conceito de “mundo verdadeiro” (cf. GD/CI Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula). Por conseguinte, não há também uma suposta outra natureza além daquela que encontramos no mundo “aparente”, em cuja fluidez vivemos. Nesse sentido, o caráter antinatural da moral deve ser perfeitamente natural.

É a essa problemática que tentaremos nos direcionar nas próximas páginas. Se obtivermos êxito em nossas pretensões, mostraremos que a antinatureza não é um termo fortuito ou secundário no texto nietzschiano. Pelo contrário, trata-se, a nosso ver, de um

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61 conceito intimamente ligado aos desenvolvimentos da crítica de Nietzsche à moral, inclusive a seus desdobramentos tardios.

2. Moral antinatural e instintos

Em Crepúsculo dos ídolos, o termo antinatureza aparece pela primeira vez no corpo do texto apenas no aforismo 4. Nele, Nietzsche estabelece uma oposição entre “moral sadia” (gesunde Moral) e “moral antinatural” (widernatürliche Moral):

– Eu formalizo um princípio. Todo naturalismo na moral, isto é, toda moral

sadia é dominada por um instinto da vida, – qualquer mandamento da vida é

preenchido com um determinado cânon de “deve” ou “não deve”, qualquer entrave e hostilidade é com isso posto de lado. Ao contrário, a moral

antinatural, isto é, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e

pregada, volta-se diretamente contra os instintos da vida, – ela é uma, ora secreta, ora ruidosa e descarada condenação desses instintos. (GD/CI A moral como antinatureza 4)

Como se vê, a oposição é justificada pela relação de cada uma das morais com os instintos da vida. Enquanto a moral sadia é dominada por esses instintos, a moral antinatural coloca-se “contra os instintos da vida”.

É importante ressaltar aqui o pluralismo moral de Nietzsche. As expressões moral sadia e moral antinatural não dizem respeito a apenas duas morais determinadas, mas antes a dois modos de valorar e de se relacionar com a vida. Saúde e antinatureza agem aqui como elementos de classificação de grupos de morais possíveis. Esse tipo de procedimento já é bem conhecido, pois o filósofo já tinha realizado algo semelhante em textos anteriores. Um claro exemplo é apresentação de duas formas de valorar em Além de bem e mal, sob os nomes de “moral de senhores” e “moral de escravos” (cf. JGB/BM 260).

Voltando à moral antinatural, Nietzsche se esforça para mostrar que ela atentaria contra os pressupostos mais fundamentais da vida, mesmo em âmbitos tradicionalmente compreendido como neutros ou amorais. Casos ilustrativos encontram-se fartamente no próprio Crepúsculo dos ídolos. Os capítulos “O problema de Sócrates” e “A 'razão' na filosofia” denunciam precisamente esse ponto: mesmo o conhecimento mais “puro” carrega consigo secretamente imperativos de ordem moral, frequentemente característicos do modo antinatural de valorar.

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62 Mesmo conceitos altamente abstratos, como “Deus”, na medida em que seriam resultantes e serventes dessa moral antinatural, seriam hostis à vida e estariam intimamente relacionados a ela. Nas palavras de Nietzsche: “Ela [a moral antinatural], ao dizer "Deus enxerga o coração", diz Não aos mais baixos e elevados anseios da vida e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus tem seu regozijo é o castrado ideal... A vida finda onde o 'reino de Deus' começa...” (GD/CI Moral como antinatureza 4).

Em sentido semelhante, o filósofo observa que grande parte dos conceitos morais tradicionais são antinaturais, i.e. direcionam-se contra a vida. Por exemplo, a compaixão, que frequentemente é vista por Nietzsche como uma forma de fazer mal para si mesmo, como crueldade consigo mesmo ou envenenamento de si, ao invés de sustentar um verdadeiro desejo de fazer bem ao outro4. Ela aparenta favorecer a vida, ao contribuir para a preservação de certos indivíduos e diminuir as tensões existentes, contudo ela, no limite, a condena por meio de um secreto envenenamento e contaminação das forças criadoras.

A criação exige a presença de tais tensões. Nas palavras do filósofo: “Se é fecundo somente ao preço de ser rico em antagonismos; permanece-se jovem somente sob a condição de que a alma não se distenda, não anseie por paz...” (GD/CI Moral como antinatureza 3).

Assim, todas as ações humanas são permeadas por valorações morais, que podem pertencer a uma moral sadia ou a uma moral antinatural. Em outras palavras, as ações podem ser lidas enquanto promotoras ou detratoras da vida e de seus instintos. Também os pensamentos devem ser incluídos aqui. Não há qualquer distinção absoluta entre o agir e o pensar. Para Nietzsche, a razão e seus julgamentos, tal como foi compreendida pela tradição filosófica, não passaram de um erro. Sem perceber, todos os filósofos nada mais fizeram do que expor em fórmulas e conceitos seus impulsos mais íntimos5.

Aqui se vê que Nietzsche não concorda com a ideia de que existiria uma moral única para os homens, tampouco com a ideia de que através de alguma ferramenta seríamos capazes de descortinar uma moralidade verdadeira e universalmente válida, fosse essa ferramenta a razão ou pretenso senso moral. Esse é um dos motivos que o levam a criticar duramente Schopenhauer, cuja reflexão ética faz crer que haveria um legítimo consenso entre os filósofos sobre o conteúdo da moralidade humana. Para o predecessor de Nietzsche, todos estariam de acordo quanto ao que se deve pregar; apenas não concordariam com a

4 Cf. GD/CI Incursões de um extemporâneo 35 e 37, também AC/AC 7.

5 Os pensamentos não são outra coisa, de acordo com Nietzsche, senão resultados de processos instintivos (cf. JGB/BM 3 e 6).

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63 fundamentação da moral6. No entanto, segundo Nietzsche, se a filosofia, quase em sua totalidade, esteve em consenso a respeito de alguns julgamentos morais, disso não se deve concluir que eles sejam em si mesmos válidos. Pelo contrário, o consenso dos filósofos, nada mais revela senão uma certa idiossincrasia dos filósofos, uma filiação a uma forma de valorar que, como sabemos, Nietzsche critica duramente. De que quase toda moral pregada até hoje tenha um caráter antinatural, não decorre que exista apenas uma moral.

Não há um mundo verdadeiro pelo qual possam se fiar as ações humanas. Não há um conhecimento absolutamente verdadeiro que possa indicar o caminho do agir moral. Sequer há um “conhecimento pelo conhecimento” poderia garantir qualquer neutralidade do discurso filosófico. Logo, a filosofia não estaria conduzindo-nos a uma verdade universal. Ela seria mais propriamente conduzida por uma certa moral antinatural. Os juízos dos filósofos seriam, na verdade, preconceitos morais intimamente relacionados com a antinatureza.

Estando esses elementos estabelecidos, podemos nos perguntar: de onde provém essa idiossincrasia antinatural? Não restam dúvidas: em função do que já foi exposto, chegaremos então a uma primeira conclusão a respeito da antinatureza: ela refere-se aos instintos. Ou seja, é na natureza afetiva do homem que a antinatureza se constitui enquanto tal. Portanto, sua origem não é diferente daquela da moral sadia. Ambas são derivações dos instintos e dizem respeito aos instintos. Em outras palavras, a antinatureza refere-se aos instintos porque ela é (a) um processo instintivo e (b) atua contra os instintos (da vida).

3. Moral sadia e moral antinatural

Quanto à moral sadia, seus conceitos e valorações cumpririam o propósito de elevar a vida, ou seja, estariam a serviço de uma intensificação dos instintos da vida. Cabe observar que a moral sadia sustenta, em determinados contextos, conceitos bastante assemelhados aos da moral antinatural.

O conceito de Deus, no quadro de uma moral antinatural, é detrator dos instintos.

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Sobre o consenso em torno da moralidade em Schopenhauer, basta que nos lembremos da segunda seção de

Sobre o fundamento da moral: “Em todos os tempos, pregou-se muita e boa moral; mas a fundamentação da

mesma encontrou-se constantemente em estado deplorável” (SCHOPENHAUER, 1977, vol. 6, p. 153). Para mais informações sobre o pluralismo moral de Nietzsche e seu confronto com a ética schopenhaueriana, cf. CARTWRIGHT, 1988; OLIVEIRA, 2015; URE 2006; e VAN TONGEREN, 2012.

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64 Todavia, é possível encontrar eventualmente um conceito semelhante no seio de uma moral sadia, satisfazendo ali o impulso de tonificação da vida. Um exemplo seria a religiosidade grega e a concepção de deuses presente nela. Por diversas vezes, Nietzsche ressalta a diferença entre gregos e homens modernos no tocante à religiosidade. Entre os gregos, a crença nos deuses assumiria ainda uma forma sadia. Em condições de saúde como as suas, os deuses podem servir precisamente como um caminho de expiação dos perigosos sentimentos de culpa: “Fazendo, apesar disso, um dos bons algo que não é digno dos bons, recorre-se a subterfúgios; por exemplo, atribui-se a culpa a um deus, ao se dizer: ele afligiu o bom com o ofuscamento da percepção e a loucura” (MAI/HHI 45). Não esqueçamos que, segundo Nietzsche, a loucura divina pode ser inclusive uma ferramenta extremamente útil e, portanto, pode ser também bastante desejável; abrem-se por meio dela caminhos à criação e à superação (cf. GT/NT Tentativa de autocrítica 4 e M/A 14).

Igualmente, os textos mais próximos de Crepúsculo dos ídolos mantêm a mesma duplicidade. Nietzsche descreve em Além de bem e mal o modo como os antigos gregos cultivavam sua religiosidade como reflexo de sua “plenitude e gratidão” (cf. JGB/BM 49). E, em O anticristo, ele opõe o conceito de deus proveniente de um “povo que ainda crê em si” – portanto, de um deus forte e símbolo da gratidão desse povo – com o conceito de deus resultante de uma “castração antinatural” do deus nobre (cf. AC/AC 16).

Mais do que os conceitos ou valorações isoladamente, importa notar as relações que tais criações humanas estabelecem com a vida e, em específico, com formas de vida em particular. Essa relação com a proveniência dos valores é importante para determinar a saúde ou a condição antinatural de uma moral.

O que foi dito em relação ao conceito de deus vale também no tocante ao ateísmo. Ora, se Nietzsche critica duramente as religiões, não se deve concluir que o ateísmo seja em si mesmo intensificador da vida. Tudo leva a crer que Nietzsche considera que existem diversas formas de expressão para esse fenômeno, a qual nós genericamente designamos pelo termo “ateísmo”. Em consequência disso, algumas dessas expressões podem ser resultado de uma moral sadia, ao passo que outras derivariam de uma moral antinatural.

Em Genealogia da moral, por exemplo, o filósofo se esforça no sentido de argumentar que certo tipo de ateísmo é apenas o desdobramento do próprio ideal ascético: “Nessa medida, O ateísmo probo e incondicional […] não se contrapõe, como aparenta, àquele ideal [ascético]; ao contrário, ele é apenas uma de suas últimas fases de desenvolvimento, uma de

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65 suas formas finais e consequências internas” (GM/GM III 27). Em sentido semelhante, o texto de Ecce homo nos permite ver que o ateísmo pode ser a manifestação de diferentes processos. O autor esclarece, por exemplo, em relação a si mesmo, que a razão de ser de sua descrença em deus é distinta de outras razões possíveis: “Eu, absolutamente, não conheço o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: ele se evidencia em mim por instinto” (EH/EH Por que sou tão inteligente 1).

Levando-se em consideração o que até aqui foi assinalado, é forçoso notar que a moral antinatural não é oposta a uma moral “natural”. Ou invés disso, em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche preferiu construir seu jogo de oposições entre saúde e antinatureza. Isso nos leva a destacar um segundo aspecto do conceito de antinatureza. A antinatureza possui um caráter doentio. A moral antinatural é, sobretudo, um sintoma de doença. E, obviamente, a moral sadia é, por sua vez, um sintoma de saúde.

4. Moral antinatural como sintoma de declínio

A moral antinatural é um sintoma, pois, mais do que uma conclusão lógica, racional e imparcial a respeito da vida e dos costumes, ela indica sempre uma valoração de fundo essencialmente instintivo. As valorações morais são externações de certas configurações instintivas profundas que não poderiam ser compreendidas de outra forma, senão pela leitura de suas consequências, isto é, das valorações morais que delas derivam. Enquanto resultante de impulsos, a moral antinatural está diretamente associada à fisiologia7 do indivíduo que a profere.

É justamente em razão dessa íntima vinculação entre o indivíduo e sua moral que a segunda pode ser um “documento” para a compreensão do primeiro. Seria possível, para aquele que estivesse preparado para tal, ler a condição fisiológica de um indivíduo nas nuances e nas entrelinhas de seu pensamento8. As morais restam na condição de signos a

7 Para mais informações sobre a relação entre as valorações humanas e sua constituição fisiológica, cf. FREZZATTI JR, 2006 e MÜLLER-LAUTER, 1999.

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A julgar por alguns de seus escritos, Nietzsche acredita ter desenvolvido a capacidade de fazer esse tipo de leitura das condições de saúde de um homem a partir de suas valorações. Veja o caso da seguinte colocação redigida em uma carta à irmã Elisabeth Nietzsche no ano de 1883: “Talvez, melhor do que ninguém, eu também ainda saiba estabelecer hierarquias entre os homens fortes, de acordo com a virtude” (BVN/CN 1883 471). Uma tradução integral da mencionada carta pode ser encontrada em NIETZSCHE, 2015.

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66 interpretar: “as morais são também apenas uma linguagem simbólica de afetos [Zeichensprache der Affekte]” (JGB/BM 187). O mesmo é reafirmado em Crepúsculo dos ídolos:

Assim, o juízo moral nunca deve ser tomado literalmente: enquanto tal, ele contém apenas contrassensos. Porém, ele permanece inestimável enquanto

semiótica [Semiotik]: ele manifesta, ao menos aos conhecedores, as

realidades mais valiosas das culturas e interioridades, as quais não sabiam o suficiente para “entender” a si próprias. Moral é apenas discurso simbólico [Zeichenrede], apenas sintomatologia [Symptomatologie]: tem-se que já saber do que se trata, para se tirar proveito dela. (GD/CI Os “melhoradores” da humanidade 1)

O pensamento antinatural, negador da vida, é absolutamente necessário enquanto tal, na medida em que é um desdobramento de condições internas doentias. A antinatureza não é um erro ou um engano, mas uma consequência de uma fisiologia arruinada.

Por exemplo, na concepção de Nietzsche, o fervor com o qual Schopenhauer defende o aspecto desinteressado de sua concepção de arte e mesmo de música, não seria resultado nada ocasional ou acidental. Também não se pode atribuir essas valorações a um simples equívoco, como se ao elaborar uma cadeia de raciocínios, o filósofo tivesse se desviado em alguma operação lógica e sido conduzido a um resultado meramente falso, o qual se poderia corrigir agora mediante raciocínios logicamente mais adequados.

Ele seria, pelo contrário, resultado direto de uma necessidade fisiológica de alívio, de descanso, de calmaria. A arte seria, para Schopenhauer, uma forma de manter “repouso em todos os subterrâneos; todos os cães belamente postos à corrente [...]; vísceras modestas e devotas” (GM/GM III 8). A concepção estética schopenhaueriana resultaria, assim, da necessidade de pacificação interior e estaria diretamente ligada, portanto, às condições interiores de seu autor.

O mesmo se poderia dizer de Sócrates. Seu moralismo e o problema de seu moralismo referem-se aos instintos e a sua condição doentia, décadent. Por sua vez, o efeito causado pela dialética socrática entre os gregos deve-se a uma condição doentia que, já em processo, se intensificava entre os nobres atenienses contemporâneos ao mestre de Platão (cf. GD/CI O problema de Sócrates 4 e 9).

Como Nietzsche nos permite enxergar na passagem seguinte, os juízos negadores da vida não provém de qualquer condição fisiológica, senão de uma condição de degenerescência:

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A moral, na medida em que condena, em si, não por olhares [Hinsichten], considerações [Rücksichten], intenções [Absichten] da vida, é um erro específico do qual não se deve ter pena, uma idiossincrasia-de-degenerados que, de maneira imensurável, proporcionou muito prejuízo!… (GD/CI Moral como antinatureza 6)

O mais interessante aqui não é, portanto, a veracidade de um juízo moral, seja ele proveniente da moral antinatural ou da moral sadia. Para Nietzsche, em última instância, a correção desses juízos jamais poderia ser comprovada. A busca da verdade em si mesmo, seja em termos epistemológicos ou morais, sequer teria sido a autêntica atividade de um filósofo. Assim, as valorações morais em si mesmas, independentemente de sua proveniência, não possuem qualquer valor. Tanto o Sim, afirmador da vida, quanto o Não, negador da vida, nada mais são do que idiossincrasias. Dessa forma, uma valoração moral qualquer jamais pode ser universalizada como, por exemplo, pretenderia uma filosofia como a de Kant. Há no forte a necessidade dos valores nobres. Há no décadent a necessidade dos valores da décadence, em ambos os sentidos que a palavra necessidade assume nessa frase: como carência e como anseio.

Logo, pode-se considerar coerentes até mesmo certos indivíduos que aparentemente contradizem o pensamento e ação. Eventualmente, um condenador da vida e defensor da mais ferrenha disciplina ascética não é ele mesmo um asceta. Seu discurso apresenta uma grave condenação à vida e prega um certo modo de viver que ele não segue rigorosamente. Para Nietzsche, tal condição de vida pode ser esclarecida por sua condição fisiológica.

Trata-se de um indivíduo em condição doentia, sem força sequer para manter um rigoroso ascetismo. Seu discurso denuncia uma necessidade de sua condição de vida e, justamente por sua incapacidade de levar o sacrifício das paixões adiante, seu discurso intensifica-se e torna-se mais venenoso. Nas palavras de Nietzsche:

A propósito, aquela hostilidade, aquele ódio só atinge seu auge quando tais naturezas não são mais firmes o suficiente para a cura radical, para a renúncia de seu "demônio". Vislumbre-se a história completa dos sacerdotes e filósofos, inclusive dos artistas: o mais venenoso contra os sentidos não foi dito pelos impotentes, também não pelos ascetas, senão pelos acetas impossíveis, por aqueles que teriam tido necessidade de ser ascetas... (GD/CI Moral como antinatureza 2)

Em todo caso, não devemos esquecer de que estamos sempre diante de instintos em luta entre si. Tanto a condenação quanto a bendição da vida resultam dessa luta. As criações intelectuais, ou seja, do “espírito”, são totalmente condicionadas pelo jogo subterrâneo dos

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68 afetos.

Ainda que muitas vezes o discurso da tradição moral pregou a vitória do “espírito” sobre as “paixões”, Nietzsche não cessa de argumentar em contrário. Podemos notar alguns indícios dessa argumentação desde o princípio do capítulo “Moral como antinatureza”. No primeiro aforismo, por exemplo, o pensador alemão afirma: “Aniquilar as paixões e anseios, meramente para evitar sua estupidez e consequências desagradáveis de sua estupidez, parece-nos hoje mesmo apenas como uma forma aguda de estupidez” (GD/CI Moral como antinatureza 1).

De acordo com o ponto de vista aqui apresentado, o uso repetido e irônico do termo “estupidez” (Dummheit) indica, estrategicamente, que também a tentativa de aniquilação das paixões e dos anseios é uma forma de paixão e de anseio. Essa interpretação fortalece-se caso considerarmos que o tema geral do aforismo é propriamente a “espiritualização das paixões”. Em outras palavras, o espírito não é oposto ao campo passional do indivíduo, mas, pelo contrário, ele provém precisamente das paixões. A guerra de morte da Igreja contra as paixões, a tentativa de castrar todos os instintos da vida origina-se, a despeito de sua própria opinião, de paixões e anseios. Usando uma fórmula de Genealogia da moral: a tentativa de calar a vontade da vida, nada mais é que uma “vontade de nada”. Mas, enquanto tal, ela ainda é uma vontade (cf. GM/GM III 28).

Não é sequer a qualidade dos instintos que muda, no caso de um negador ou de um afirmador da vida, mas somente a configuração na qual os impulsos mais íntimos de um indivíduo se organizam. Não se tratam de instintos de morte contra instintos de vida, mas sempre certa dinâmica instintiva que se impõe ao indivíduo e valora através dele, como mostra a segunda aparição do conceito de antinatureza no quinto capítulo de Crepúsculo dos ídolos:

Quando nós falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesmo exige-nos que fixemos valores, a vida mesmo valora através de nós, quando nós fixamos valores... Segue-se daí que também aquela antinatureza de moral, a qual concebe Deus como contraconceito e condenação da vida, é somente um juízo de valor da vida - de qual vida? De

qual tipo de vida? - Ora, eu já dei a resposta: da vida declinante,

enfraquecida, cansada e condenada. (GD/CI Moral como antinatureza 5)

Em última instância, a moral antinatural, longe de ser fruto de uma força qualitativamente diferente da moral sadia, tem a mesma proveniência desta última, ou seja, a própria vida. Deste modo, não existe aqui uma oposição essencial entre “vida” e “morte”.

(13)

69 Deve-se pensar, portanto, em outra origem da oposição entre as moralidades. Porém, vale ressaltar que essa origem não pode ser compreendida como fruto de um “sujeito”, de um “espírito” ou, ainda, de uma “alma” autônoma, tal como foi pensado eventualmente pela tradição filosófica. Quando Nietzsche afirma que valoramos sob a ótica da vida, não há mais como delegar a um sujeito o papel de protagonista de suas próprias valorações. Aquilo que valora é ainda mais profundo que os pensamentos e sensações conscientes de um sujeito. É a própria vida que fala através de nós. Mas, ela mesma não é uma unidade que fala univocamente. Pelo contrário, ela fala de diferentes modos em diferentes casos, ela configura espécies de vida, modos de vida distintos. A valoração nobre é uma valoração da vida que decorre de uma determinada forma e condição de vida; a valoração escrava e antinatural decorre, por sua vez, de outra determinada forma e condição de vida.

De tudo o que até aqui foi apresentado, pode-se concluir que a moral sadia está relacionada com a vida ascendente e a antinatureza – essa é nossa terceira conclusão – está relacionada com a vida em uma configuração declinante. Ser doentio é ser declinante, degenerescente. Como se pode perceber, se em um primeiro momento somos tentados a interpretar o conceito de antinatureza como um elemento transcendente e/ou essencialmente oposto à natureza, agora, para fazer justiça ao pensamento nietzschiano, devemos interpretá-lo de forma imanente, de acordo com certa dinâmica própria da vida9. Um quarto aspecto que destacamos é que a antinatureza é imanente à vida. Trata-se, portanto, de uma naturalização da antinatureza.

5. A antinatureza como conceito do nobre

Pode parecer, à primeira vista, estranho que a natureza possa ser a origem mesma da antinatureza, porém, é preciso levar em consideração que a vida não é uma unidade10. Segundo o ponto de vista nietzschiano, toda unidade é meramente aparente. Ela é o resultado de uma formação de domínio de múltiplas forças e impulsos. O mundo é um constante jogo

9

Não opor essencialmente natureza e antinatureza certamente se harmoniza com a proposta apresentada no início de Além de bem e mal, no contexto da crítica à metafísica: “A crença fundamental dos metafísicos é a

crença nas oposições de valores” (JGB/BM 2).

10 Especificamente sobre o problema da unidade na filosofia de Nietzsche, recomendamos a leitura de MÜLLER-LAUTER, 1997.

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70 de forças, uma multiplicidade em luta. A unidade pode unicamente ser compreendida como uma cristalização mais ou menos estável de uma determinada formação de domínio de impulsos. São essas constelações de força que podem estar em condição ascendentes ou decadentes

As moralidades sadias e antinaturais não são, pois, resultados de processos instintivos pura e essencialmente fortes ou fracos. Se assim os compreendêssemos cairíamos em um esquema metafísico que Nietzsche pretende evitar. Tanto a moral nobre quando a moral escrava é, isso sim, um resultado de processos de luta entre impulsos.

É, todavia, importante perceber que esses dois modos de valorar não são conciliáveis ou elimináveis. Ainda que uma moralidade concreta possa trazer elementos das duas formas de valorar e mesmo que um indivíduo possa antagonicamente portar caracteres das duas moralidades, em última análise elas não se conciliam jamais no sentido de uma síntese definitiva. Elas também não se eliminam mutuamente. Mesmo em um cenário em que a humanidade esteja quase completamente comprometida com uma mesma forma de valorar, é possível pensar manifestações de uma outra.

Ainda assim, Nietzsche vê seus contemporâneos como intimamente ligado à moral escrava e lhe causa até mesmo um estranhamento o fato de que ela seja reconhecida como os únicos valores válidos. O reconhecimento quase absoluto da moral escrava como a única verdadeira moral chegaria mesmo a assustá-lo (cf. EH/EH Por que sou um destino 7). Mesmo que no decorrer da história da filosofia tenham se travados inúmeros debates acerca da moral, Nietzsche enxerga, no fundo, praticamente a mesma condenação da vida expressa pelos filósofos. O debate filosófico jamais teria chegado às questões mais delicadas acerca da moral, ou seja, o debate acerca da moral sempre tomou os valores da moral escrava como irretocáveis.

Justamente nesse ponto, o discurso nietzschiano se insere e se reconhece. Ao analisar a antinatureza, ele vincula-se também em alguma medida ao modo nobre de valorar. Não é a moral antinatural que enxerga a si mesma como antinatural. Essa é, ao contrário, uma prerrogativa do nobre, do saudável, daquele que ainda vê a si mesmo e seus instintos mais naturais com orgulho. É do ponto de vista de uma moral sadia que uma moral doentia é classificada como tal.

Desse modo pode ser interpretada, por exemplo, a aparição do conceito antinatureza na primeira dissertação da Genealogia da moral. Segundo Nietzsche: “Roma sentiu no Judeu

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71 algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda” (GM/GM I 16). É o nobre (representado por Roma) que olha com estranhamento as práticas ascéticas e valorações da moral escrava (representado pelo judeu).

Nietzsche, nesse contexto, não é um indivíduo que identifica valorações morais de um ponto de vista neutro, ou seja, desinteressado. Sua filosofia como um todo tem um caráter eminentemente comprometido com a criação e a superação. Com isso, ela se assume enquanto instrumento de luta, enquanto instrumento para o fortalecimento. Se ele se coloca diante da moral, não o faz para simplesmente a refutar ou identificar suas estruturas, mas, sobretudo, para superá-la.

Essa é nossa quinta e última conclusão: o conceito mesmo de antinatureza está comprometido com o modo saudável de valorar.

Não obstante, é preciso reconhecer que Nietzsche não pretende reativar valores nobres específicos e, em especial, os anteriormente válidos em povos e tempos mais fortes, como, por exemplo, entre os gregos da época trágica. O filósofo alemão se compromete com a superação da predominância da condição antinatural vigente e com a criação de novos e inauditos valores. Para tanto, não se trata de eliminar o modo escravo de valorar, mas antes de usá-lo a seu favor. Também as ferramentas de proveniência não nobre são úteis à construção de novos valores:

Cada vez mais nossos olhos abrem-se para aquela economia, a qual ainda precisa e sabe tirar proveito disso tudo que o santo desatino do sacerdote, a razão doente no sacerdote, rejeita, para aquela economia na lei da vida que tira sua vantagem mesmo da species repugnante do santarrão [Muckers], do sacerdote, do virtuoso, – qual vantagem? – Ora, nós mesmos, nós imoralistas somos aqui a resposta… (GD/CI Moral como antinatureza 6)

6. Considerações finais

Levantamos finalmente cinco aspectos do conceito de antinatureza: (1) sua relação com os instintos, (2) sua condição doentia, (3) a compreensão de que a doença é resultado de uma vida declinante, (4) o traço imanente do conceito, (5) seu comprometimento com o modo sadio de valorar. Segue-se que o conceito de antinatureza descreve um processo vital, portanto, em certo sentido, um processo natural. Trata-se de um jogo de impulsos que, a fim

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72 de promover a preservação de um indivíduo ou grupo, gesta uma moral da abnegação. Consequentemente, ele torna-se a causa de sua própria degenerescência, na medida em que procura aniquilar suas paixões e, com isso, enfraquece e envenena a si mesmo.

Embora possa ser perfeitamente compreendido como um processo natural, é evidente que a qualificação desse processo como “antinatural” não é sem razão. Nele, encontram-se características específicas que o distinguem dos processos sadios e, isto é, dos processos “naturais”.

Tudo nos leva a crer, então, que o conceito de antinatureza possui em Crepúsculo dos ídolos quatro sentidos principais e interrelacionados, a partir dos quais ele se justifica na obra. A antinatureza é antinatural (1) porque causa o estranhamento do nobre que, de seu ponto de vista, não consegue prontamente compreender as valorações dos declinantes como óbvias e “naturais”; (2) porque contraria a tendência geral da vida à superação, ao favorecer a conservação em detrimento da natural superação de si; (3) porque ela propõe um fabuloso “mundo verdadeiro” para além do mundo natural, o qual ela nega, ao criar metafisicamente uma oposição absoluta entre ser e vir-a-ser; e (4) porque ela degenera ou indica a degenerescência da natureza do indivíduo, ao buscar a extirpação e castração de algo em si, de seus instintos de vida.

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