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Serra do corpo-seco, Ituiutaba-MG O lugar, a assombração e o mito popular a partir da geografia das representações / Sierra seca corporal, Ituiutaba-MG El lugar, la acosación y el mito popular de la geografía de las representaciones

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Academic year: 2020

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Serra do corpo-seco, Ituiutaba-MG

O lugar, a assombração e o mito popular a partir da geografia das

representações

Sierra seca corporal, Ituiutaba-MG

El lugar, la acosación y el mito popular de la geografía de las representaciones

DOI:10.34117/bjdv6n1-099

Recebimento dos originais: 30/11/2019 Aceitação para publicação: 10/01/2020

Anderson Pereira Portuguez

Professor Doutor do Curso de Geografia do Instituto de Ciências Humanas do Pontal e do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Pontal - Universidade Federal de Uberlândia.

portuguez.andersonpereira@gmail.com

Murillo Inojosa Wolf

Bacharel e Licenciado em Geografia pelo Instituto de Ciências Humanas do Pontal - Universidade Federal de Uberlândia,

murillowolf@hotmail.com

RESUMO

A Lenda do Corpo-Seco é contada do Sul ao Nordeste brasileiro, contendo várias versões para o mesmo intuito: a de organizar a sociedade por meio da memorização de condutas. Assim, este trabalho teve como objetivo estudar a Serra do Corpo-Seco a partir de suas representações culturais, tomando como base a lenda homônima contada no município de Ituiutaba. Para esse trabalho, foi realizado primeiramente um levantamento bibliográfico para compreender a história da ciência geográfica e sua relação com os estudos culturais. Posteriormente, foram levantadas algumas bibliografias que tratassem a respeito dos estudos fenomenológicos sobre cultura, e sobre a relação da Geografia com as representações, percepção e cosmovisão. Foi realizado também um levantamento literário que abordasse os aspectos sobre a Lenda do Corpo-Seco, suas funções e variações, bem como sua distribuição no território brasileiro. Por fim, foi realizado um trabalho de campo na Serra do Corpo-Seco cujo intuito foi de conhecer a paisagem pesquisada e realizar uma cobertura fotográfica do local. Concluiu-se que a lenda de fato cumpre seu papel de mobilizar as emoções e consciências na forma de controle social. Observou-se ainda que a Serra do Corpo-Seco é uma formação geomorfológica marcante na paisagem de Ituiutaba, o que lhe atribui ainda mais relevância nas representações sociais da lenda.

Palavras-chaves: Cultura. Lenda. Lugar. Controle Social.

RESUMEN

La leyenda del Cuerpo Seco se cuenta desde el sur hasta el noreste de Brasil, y contiene varias versiones con el mismo propósito: organizar la sociedad a través de la memorización de comportamientos. Por lo tanto, este trabajo tiene como objetivo estudiar la Serra do Corpo-Seco a partir de sus representaciones culturales, basada en la leyenda homónima contada en el municipio de Ituiutaba (MG). Para este trabajo, primero se realizó análisis bibliográfico para comprender la historia de la ciencia geográfica y su relación con los estudios culturales. Más tarde, surgieron algunas bibliografías que tratan sobre los estudios fenomenológicos sobre la cultura y sobre la relación de la Geografía con las representaciones, la percepción y la cosmovisión. También se realizó análisis

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literario que abordó los aspectos sobre la leyenda del Cuerpo Seco, sus funciones y variaciones, así como su distribución en el territorio brasileño. Finalmente, se llevó a cabo un trabajo de campo en Serra do Corpo-Seco con el propósito de conocer el paisaje investigado y hacer una cobertura fotográfica del lugar. Se concluyó que la leyenda cumple su papel de movilizar las emociones y las conciencias en forma de control social. También se observó que Serra do Corpo-Seco es una formación geomorfológica sorprendente en el paisaje de Ituiutaba, lo que le da aún más relevancia en las representaciones sociales de la leyenda.

Palabras clave: Cultura. Leyenda Lugar Control social 1 INTRODUÇÃO

A lenda do Corpo-Seco é uma das principais lendas da Mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Esta lenda narra a história de um morto-vivo, cujo corpo é ressecado como pau e respeitado pelos vermes. De tão ruim que ele foi em vida, o corpo é rejeitado tanto por Deus quanto pelo Diabo, restando-lhe vagar pela terra, assustando as pessoas nos campos durante a calada da noite. Em Ituiutaba, município localizado na Microrregião do Pontal do Triângulo Mineiro, esta lenda se passa na Serra do Corpo-Seco, local onde acredita-se que o Corpo-Seco foi enterrado para cumprir sua sina (ver Figura 01).

As lendas são representações de um determinado conhecimento de mundo e podem ser utilizadas como ferramentas de manipulação social. Assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar a hipótese de a Lenda do Corpo-Seco ser utilizada como um instrumento de organização social, na qual as ações sociais são orientadas por meio da memorização de condutas. Os objetivos secundários deste trabalho são: analisar a origem das lendas sobre mortos-vivos no Brasil, dando ênfase nos processos históricos e geográficos que originaram a Lenda do Corpo-Seco no município de Ituiutaba; bem como compreender a maneira como a Serra do Corpo-Seco pode nos proporcionar a sensação de medo por meio de seus símbolos presentes na paisagem, tornando-se assim um espaço amedrontador.

A metodologia deste presente trabalho foi dividida em três etapas. A primeira é referente à revisão de literatura, na qual levantamos os conceitos que norteiam as pesquisas sobre Geografia Cultural, assim como para conhecer os pensamentos dos autores mais influentes que estudam as questões sobre cultura, inclusive no que tange as lendas brasileiras. Nesta primeira etapa foi realizado uma análise documental para coleta de alguns dados cartográficos, que estarão presentes nas figuras do presente trabalho.

A segunda etapa metodológica deste presente trabalho refere-se ao trabalho de campo, realizado no mês de agosto deste presente ano. Esta etapa possuía o intuito de realizar uma cobertura fotográfica, bem como realizar exercícios de observação da paisagem para acrescentar ao trabalho não somente as conclusões de observação direta, mas também em imagens fotográficas.

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FIGURA 01 – Localização da Serra do Corpo-Seco em Ituiutaba – MG

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A última etapa metodológica deste trabalho diz respeito à redação do texto final. Convém esclarecer que a categoria lugar foi escolhida para nortear as reflexões da presente pesquisa, pois ela foi valorizada pelos autores Tuan (1980) e Ellard (2016). Este último autor foi escolhido para nortear as análises finais desta pesquisa, quando trabalhamos o conteúdo específico da Serra do Corpo-Seco como lugar de amedrontamento, pois é um dos poucos filósofos que tratam sobre esse assunto. Convém portanto, reconhecer a importância da categoria paisagem que poderia ter sido utilizada com maior ênfase neste trabalho, mas, ao trabalhar com os pressupostos da Geografia Humanista, da Geografia Cultural, dentro do qual se insere a Psicogeografia, optamos por trabalhar a categoria valorizada pelos autores que elegemos para a análise deste estudo.

Com efeito, dividimos este trabalho em três tópicos. O primeiro tópico discorre sobre o modo como a Geografia se tornou ciência, sobretudo como ela se tornou uma disciplina das Ciências Humanas, para então compreender os processos pelos quais levaram a ciência geográfica, por meio da fenomenologia, a abordar os temas culturais. Ainda nesta primeira parte do trabalho, iremos debater sobre o papel da percepção, da cosmovisão e das representações para a compreensão do espaço, lugar e território, bem como compreender a função dos mitos, lendas e mitologias para a Geografia Cultural. Para tal, foi necessário realizar um levantamento das bibliografias que retratassem sobre a relação da ciência geográfica com os estudos culturais, bem como fora levantadas as bibliografias que conceituassem alguns termos técnicos da fenomenologia, como percepção e representações. Por essa razão, esse trabalho baseia-se na Geografia das Representações e na Geografia da Percepção, áreas originárias do contato da Geografia com a Sociologia, Etnologia e Psicologia em meados da década de 1960.

O segundo tópico deste trabalho é referente à Lenda do Corpo-Seco no Brasil. Nele, iremos abordar a Lenda do Corpo-Seco como uma ferramenta de coerção social, uma vez que ela é utilizada para fundamentar uma ideia cristã de nação, relacionando-a com os processos de ocupação e formação do território nacional. Para tal fim, foram realizados levantamentos bibliográficos e documentais com o intuito de identificar e mapear as várias versões desta lenda sobre o território brasileiro, bem como para compreender a origem e a função deste tipo de lenda.

Por fim, o terceiro tópico deste trabalho retrata especificamente sobre a Lenda do Corpo-Seco contada no município de Ituiutaba, Minas Gerais. Neste caso, iremos observar que a Lenda está relacionada aos processos de ocupação e formação territorial deste município. No que tange a Serra do Corpo-Seco, iremos demonstrar como ela pode influenciar nossos sentidos e percepções, nos proporcionando um sentimento de medo diante à grandiosidade natural da paisagem e aos símbolos culturais presentes nela. Para a realização deste tópico, foram realizadas entrevistas, análises documentais e revisão de literatura, cujo o intuito era de identificar as representações subjetivas sobre

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a lenda, bem como foi realizado um trabalho de campo para identificar, por meio de fotografias, os símbolos culturais e a paisagem amedrontadora do local.

Embora a Lenda do Corpo-Seco esteja espalhada pelo Brasil, muitas pessoas não a conhecem. Assim, esse trabalho se justifica na importância de incentivar, favorecer e afirmar a cultura popular como patrimônio, bem como valorizar e preservar os espaços e as representações que possuem uma simbologia mítica, histórica e popular.

2 DA GEOGRAFIA À GEOGRAFIA CULTURAL: UM BREVE HISTÓRICO

Antes de iniciarmos a discussão, gostaria de esclarecer que esse primeiro tópico possui por objetivo compreender o desenvolvimento da história do pensamento geográfico, bem como servir de base teórica para as discussões em tópicos posteriores.

A Geografia está presente na nossa vida desde os primórdios da humanidade, mas ela nem sempre foi considerada ou tratada como uma área do conhecimento científico. Inicialmente, a Geografia era utilizada para interpretarmos o espaço vivido e, consequentemente, melhor nos relacionarmos com ele, conforme nos explica Tanaka (2010)

A condição humana desperta no homem desde os primórdios de sua existência uma teia complexa entre o ser e o espaço vivido por ele. Assim, a humanidade possui uma intima ligação de desejo e necessidade de conhecer seu espaço, bem como explorar outros, possibilitando o ajuste de conhecimentos vividos e adquiridos ao longo do tempo e refletindo, assim, as características não só temporais, mas também de uma dada sociedade e suas visões sobre o espaço. (TANAKA, 2010, p. 57)

A primeira civilização a tratar os conhecimentos sobre o mundo de maneira científica, ou seja, por meio de uma metodologia lógica e racional, foi a Grécia Antiga (século XII ao séx. IX a.C.). Segundo Cavalcanti (2010, p. 33), “[...] foi dos conceitos de kosmos e de physis que surgiram a cultura ocidental, a filosofia e a ciência, e daí a Geografia”. Assim, podemos dividir a Grécia Antiga em duas fases:

Cosmológico, com predominância de explicação mitológica do universo e da origem das principais significações da realidade. Esse saber mitológico procurava uma explicação para a época e momento históricos, das principais questões da existência humana, tanto na natureza (buscando o conhecimento do seu princípio material) como na sociedade (relações e modo de vida dos homens)

Antropológico, em que o discurso cosmológico e materialista passa a dar lugar a um discurso moral e político, criando-se nesse período uma nova temática: o homem. A Filosofia muda de espaço geográfico, com a criação da polis (das colônias

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para o centro cultural), acarretando a variação do objeto de pesquisa: da natureza para o homem. (CAVALCANTI, 2010, p. 13)

Durante a fase cosmológica, os gregos buscavam compreender o mundo por meio dos fatos mitológicos, ou seja, consideravam os elementos da natureza (fogo, água, trovão, etc.) forças autônomas, dotados de consciência, sentimentos, vontades e desejos. Era então a partir dos mitos que se interpretava a realidade, as relações sociais, o espaço e as coisas. Neste sentido, Cavalcanti (2010, p. 14) afirma que “o mito atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano”, e que “sua força de mensagem reside na capacidade de sensibilizar as estruturas profundas e inconscientes do psiquismo humano”.

Neste período, os conhecimentos que hoje são relativos à área da Geografia não eram caracterizados como científico, pois apesar de utilizarem o pensamento e o raciocínio para designarem a filosofia natural, ou seja, o estudo objetivo da natureza e do universo físico, os gregos não buscavam descrever por meio da filosofia natural os fenômenos naturais. De acordo com Cavalcanti (2010), a filosofia natural buscava

[...] chegar à essência dos entes que possuem corpo, partindo do ente sensível das coisas materiais existentes para posteriormente alcançar o conceito de ser, ao conhecimento do homem e à demonstração racional da existência de Deus. (CAVALCANTI, 2010, p. 14)

Contudo, os Sete Sábios1 gregos foram os percursores da era antropológica na Grécia antiga,

deixando de lado as explicações mitológicas ao adotar um método lógico-racional. Em outras palavras, utilizavam-se da observação e de princípios teóricos metodológicos para compreender o Universo. Assim, destacam-se os pensadores da Escola Jônica2 pelo fato de serem pioneiros na concepção de um conhecimento metodológico, como os pensadores Tales de Mileto (considerado por muitos o primeiro cientista), por especular as dimensões da órbita do Sol e da Lua e por estudar os intervalos de solstícios; e Anaximandro de Mileto, ao defender a ideia de que a vida surgiu primeiramente na água, para posteriormente ocupar o ambiente terrestre, sendo assim o percursor da teoria da evolução das espécies. (CAVALCANTI, 2010)

1 Os Sete Sábios da Antiguidade é a denominação referente aos pensadores que tiveram suas máximas e sentenças

proverbiais inscritas no templo de Apolo em Delfos. Suas ações e ideias construídas durante os séculos VII e VI a.C. moldaram a ética e a moral de todo o Ocidente. Fazem parte deste grupo: Tales de Mileto, Periandro de Corinto, Pítaco de Metilene, Brias de Priene, Cleóbulo de Lindos, Sócon de Atenas e Quilón de Sparta.

2 A Escola Jônica (século VII) foi o local onde originaram os primeiros estudos racionais e descritivos sobre a natureza

por meio da observação. Seus principais pensadores foram: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso.

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Seguindo esta perspectiva, não podemos deixar de citar os pensadores gregos Aristóteles e Platão pelas suas contribuições na ciência geográfica. Aristóteles, por exemplo, foi discípulo de Platão e um dos principais influenciadores do pensamento ocidental. Suas concepções foram fundamentais para a formação de diversas áreas do conhecimento científico, como a Biologia, Fisiologia, Zoologia, Física, Psicologia, Ética, política, entre outros, sendo considerado assim um naturalista. Aristóteles defendeu a ideia de um sistema geocêntrico, na qual o planeta Terra seria o centro deste sistema e os outros astros girariam ao redor. Tal teoria cairia por terra somente no século XV, momento em que Nicolau Copérnico divulga sua ideia sobre o Heliocentrismo.

Platão, por sua vez, foi um dos principais pensadores gregos de todos os tempos. Ele criou a Teoria das ideias e a Teoria das formas, ao dizer que o homem é construído mediante duas realidades de mundo, a inteligível (ideias) e a sensível (formas).

O mundo inteligível corresponde à ideia de um conhecimento inato, ou seja, prévio ao nosso nascimento, que nos permite identificar os objetos. Tais objetos seriam estruturados conforme as ideias e formas primordiais, sendo assim imitações perfeitas da realidade. É no mundo inteligível que encontramos as ideias de valores, resultando nos conceitos como moral e ética por exemplo (MAIRINQUE, 2013).

Desta forma, Platão indaga sobre a noção de Belo na obra O Banquete; e sobre a noção de Justiça, descrita na obra Fédon. Aprofundando-se mais nesse assunto, Platão cria a Teoria da Reminiscência ao afirmar que nosso conhecimento não é resultado de um processo de construção, mas sim, de uma recordação de algo já visto anteriormente (MAIRINQUE, 2013). Assim, pode-se afirmar que todo conhecimento carrega consigo valores morais e éticos advindo das vivências pessoais de cada indivíduo. Este conceito irá basear as discussões posteriores deste trabalho no que diz respeito aos símbolos culturais presentes na paisagem como ferramentas de manipulação social, uma vez que as ações humanas são influenciadas pela memorização de condutas e pelas vivências.

Já o mundo sensível (concreto) seria criado por um artífice, por um criador, no qual ele denominava de Demiurgo. Para Platão, este mundo sensível seria uma cópia do mundo inteligível, acessível aos sentidos e à materialidade. Afirmava ainda que “o tempo seria uma espécie de imagem imóvel no eterno, nascida junto com o mundo. [...] Ambos são criações de um mesmo artífice, oriundas de uma mesma esfera inteligível” (MAIRINQUE, 2013, p. 11)

Nesse sentido, Platão relata uma relação dualista presente entre corpo e alma. Para ele, o corpo seria uma espécie de tumba ou cárcere da alma, e que nos daria a possibilidade de cumprir nossas penas materialistas, por meio das sensações como dor por exemplo. A alma, segundo ele, se libertaria do nosso corpo ao morrermos, libertando-se por consequência, da materialidade (MAIRINQUE,

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2013). Estas concepções do mundo sensível, bem como a ideia de corpo como cárcere da alma irão embasar as discussões sobre percepção nos tópicos seguintes.

Apesar de Platão, Aristóteles e diversos outros pensadores gregos influenciarem os conceitos contidos em diversas áreas do conhecimento, como ética, moral, direito, zoologia, botânica e psique por exemplo, bem como as metodologias referentes às ciências, eles não foram capazes de estabelece-las como tal.

Neste aspecto, segundo Tanaka (2010), foi Alexander Von Humboldt, durante o século XVIII, o principal contribuinte para a formação de uma ciência geográfica. Nascido na Alemanha em 1769, Humboldt destacou-se como um naturalista, estudando os campos da zoologia, sociologia, química, física, astronomia, climatologia (termo provavelmente de sua autoria), orografia, oceanografia, geologia, botânica e principalmente a Geografia.

Diferentemente dos gregos, Humboldt é considerado o fundador da ciência geográfica pois foi o primeiro a se preocupar com a mensuração precisa dos fenômenos, sistematizando e relacionando-os por meio do método comparativo, “que permite generalizações universais e a perspectiva histórica de evolução, em detrimento de uma natureza imutável” (NETO, 2010, p. 46). Deste modo, Humboldt inovou ao trazer para a Geografia assuntos poucos explorados como a estatística, economia política, linguística e migrações, contribuindo assim para a formação de áreas como Geografia Estatística, Cartografia, Geografia Política e Geografia Cultural.

Com efeito, Humboldt contribuiu para que a Geografia adquirisse um olhar particular para as relações entre grupos humanos e meio, proporcionando assim o surgimento da Geografia Humana ao final do século XIX

A Geografia Humana se construiu no fim do século XIX, na época onde o darwinismo estava triunfante. Ela foi concebida por Friedrich Ratzel como uma ecologia dos homens. A ideia foi aceita por outros geógrafos, esses da escola francesa, Vidal de La Blache, por exemplo. (CLAVAL, 2011, pág. 2)

Humboldt foi também um vetor essencial para o surgimento de escolas nacionais como a alemã, a francesa, a inglesa e a americana por exemplo, cada qual com seus métodos: determinista, possibilista, culturalista, etc. Essas variedades metodológicas ocorrem até os hoje pautadas na relação entre a metodologia do pesquisador e sua área de atuação.

No final do século XIX, a escola alemã, formada inicialmente por Humboldt e Ratzel, foi a pioneira ao inserir o conceito de paisagem como categoria de análise da Geografia, conforme nos explica Neto (2010)

Humboldt trabalha no segundo volume de Cosmos de maneira inicial e próxima ao que viria a ser a Geografia descritiva tradicional, e trabalha o elemento paisagem

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(landschaft) como retrato e ligação entre observador e objeto, por meio da arte (pintura) (NETO, 2010, p. 52)

Em decorrência disso, o alemão Otto Schluter se especializou nos estudos sobre estabelecimentos humanos, como casas, campos e cercados, observando e analisando a maneira pela qual os grupos humanos modelam o espaço em que vivem, propondo assim o termo em alemão Kulturlandschaft para designar as paisagens culturais, ou, em outras palavras, as paisagens humanizadas. (CLAVAL, 2011)

Ratzel, por sua vez, visava em seus estudos geográficos “levantar as características das relações de determinado meio com o homem que ali habitava, [...] a partir dos utensílios e práticas empregadas no processo de produção de subsistência do coletivo.” (FERRAZ, 2007, p. 37). O termo Antropogeografia foi criado por Ratzel para definir esse campo de investigação, cujo intuito era de descrever as áreas onde vivem os homens e estabelecer as causas geográficas da repartição dos homens na superfície da Terra, definindo assim a influência da natureza sobre os corpos e espíritos dos homens (CLAVAL, 2007). Deste modo, o conceito de Antropogeografia foi um marco para a Geografia, pois “demarca como o conhecimento geográfico não pode descartar os elementos culturais, assim como as interações entre estes e com os demais aspectos da realidade humana (econômico, político etc.), no processo de entendimento dos diferentes arranjos paisagísticos produzidos” (FERRAZ, 2007, p. 37)

No tocante à escola francesa, Paul Vidal de La Blache ressignificou o termo Antropogeografia para Geografia Humana e inicia este tipo de estudo na França nos últimos anos do século XIX. Considerava a cultura como “aquilo que se interpõe entre o homem e o meio e humaniza as paisagens” (CLAVAL, 2007, p.35). Deste modo, suas pesquisas possuíam o foco de compreender as relações que os grupos estabeleciam com o contexto físico e biológico onde vivem, considerando que tais grupos foram levados a adotar técnicas e praticá-las de acordo com os ritmos das estações anuais, tornando a paisagem o resultado da organização social do trabalho.

Par reforçar o sentido de que a paisagem é resultado da organização social do trabalho, e este último resultado das técnicas, referencio o geógrafo brasileiro Milton Santos (1994), pois este afirma que as técnicas

[...] aparentes ou não numa paisagem, são, todavia, um dos dados explicativos do espaço. Tais técnicas (agrícolas, industriais, culturais, transporte, comunicação, etc.) não têm a mesma idade e desse modo se pode falar do anacronismo de algumas e do modernismo de outras, como, naturalmente, de situações intermediárias. Essas técnicas se efetivam em relações concretas, relações materiais ou não, que as presidem, o que nos conduz sem dificuldade à noção de modo de produção e de relações de produção. [...] Trata-se, também, na verdade, da história dos instrumentos e meios de trabalho postos à disposição do homem. Quando um novo instrumento ou meio ou forma de trabalho torna-se uma forma de ação, constitui-se uma espécie de certidão de nascimento ou data de origem. [...]A combinação, num lugar, de técnicas

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de idades diferentes, significa, em cada momento histórico, possibilidade local de acumulação ou desacumulação do capital em virtude da rentabilidade diferencial devida aos modos- de produção concretos (SANTOS, 1994, p.30)

Além disso, Vidal de La Blache acrescenta a teoria de gêneros de vida para explicar as paisagens, pois os elementos da paisagem “não ganham sentido se não são compreendidos como componentes dos gêneros de vida.” (CLAVAL, 2007, p.33)

Os gêneros de vida encarregam-se dos valores: eles são praticados porque permitem subsistir, mas também porque conferem uma identidade; situam-se mais ou menos alto na escala das preferencias coletivas. Os nômades têm orgulho da liberdade que a mobilidade lhes permite. Os sedentários desprezam a pobreza e o despojamento que constituem o destino daqueles que não podem levar consigo nada além do estritamente necessário. (CLAVAL, 2007, p. 30)

Trinta anos após os primeiros estudos culturais alemães, Carl Sauer funda a escola estadunidense de Berkeley, contrapondo-se à hegemônica escola do Middle West, que desconhecia por completo as abordagens culturais da escola alemã daquela época, pois possuía como metodologia principal a coleta de dados e as representações cartográficas (CLAVAL, 2007). Sauer possuía uma aproximação científica com a Antropologia, e, ao publicar o artigo The morphology of landscape em 1925, relaciona os estudos culturais da Geografia como

Seção ingenuamente selecionada da realidade. A paisagem submete-se a múltiplas alterações. Esse contato do homem e de seu domicilio, mutante, tal como se exprime através da paisagem cultural, é nosso campo de estudo. Concerne à nós a importância que tem o sítio para o homem, e também as transformações que este impõe ao sítio. Em síntese, tratamos das interrelações do grupo, ou das culturas, com o sítio, tal como se exprime através das diversas paisagens da Terra. (SAUER apud CLAVAL, 2007, p.30)

Logo, tanto a escola alemã quanto a escola americana ignoravam as dimensões sociais e psicológicas da cultura, negligenciavam as representações e trabalho mental dos indivíduos, limitando-se apenas aos aspectos simbólicos da paisagem. Para Corrêa (2009), esta primeira fase dos estudos culturais se caracteriza por

[...] privilegiar a paisagem cultural e os gêneros de vida, resultantes das relações entre sociedade e natureza. Estes temas desdobravam-se em ouros como as regiões culturais, a ecologia cultural ou o papel do homem destruindo a natureza, a difusão cultural e outros associados, via de regra, à dimensão material da cultura. (CORRÊA, 2009, p. 2)

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A segunda fase dos estudos culturais inicia-se ao final do século XIX na Inglaterra, nação na qual passava por um processo industrial crescente na época, resultando na chegada de diversos imigrantes em seu território.

A imigração favorecida pela Inglaterra Industrial que despontava, atraía os olhares do mundo e preocupava a sociedade britânica. O país foi inundado por uma intensa população advinda das mais diversas regiões e foi se alojando às margens das cidades e, principalmente, das estruturas sociais. Tradicionalista em todos os sentidos, a sociedade britânica não conseguia admitir que suas estruturas fossem abaladas por essa grande euforia populacional, já que para eles, as malhas de sua sociedade eram intocáveis: detinham títulos de pureza cultural. (JUNIOR, 2016, p.80)

No início do século seguinte, a primeira e a Segunda Guerra Mundial impulsionaram o avanço tecnológico, sobretudo no que tange os meios de comunicações, os meios de transporte e a industrialização de fábricas em regiões urbanizadas, como o caso da Inglaterra por exemplo. Esse processo colocou em risco o objeto de estudo da Geografia Cultural, pois o conceito de gêneros de vida não poderia ser aplicável às sociedades urbanas em detrimento da padronização das técnicas e consequentemente das paisagens dessas regiões.

Com os processos de urbanização e mobilidade cada vez mais dinâmicos e diversificados a gerarem uma maior complexidade das relações sócio-espaciais, subvertendo fronteiras anteriormente mais facilmente identificáveis, além da maior integração de informações por meio da televisão e outros veículos comunicativos, a caracterização cultural como unidade de um agrupamento humano com seu território a partir de elementos singulares e únicos, inerentes a uma determinada região, ficou mais difícil. (FERRAZ, 2007, p. 35)

Claval (2007) complementa ao dizer que

O interesse dos geógrafos pelos fatos de cultura era centrado no conjunto de utensílios e equipamentos elaborados pelos homens para explorar o ambiente e organizar seu habitat. A mecanização e a modernização introduzem um arsenal de máquinas e de tipos de construções tão padronizados que o objeto de estudo é esvaziado de interesse. (CLAVAL, 2007, p. 48)

Em contraponto, a ciência geográfica teve de mudar seus métodos de pesquisa para compreender os processos socioespaciais mais complexos, provenientes do avanço tecnológico das guerras mundiais. Portanto, a Geografia em contato com a Etnologia, Sociologia, Filosofia, História e Artes beneficiou-se dos “aportes do marxismo, da fenomenologia, da hermenêutica, das ciências

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sociais e humanidades, como a crítica literária e a linguística, e das ciências naturais” (CORRÊA apud SUESS, 2018, p. 5). Ferraz (2007) ressalta ainda que,

Em decorrência das transformações sócio-econômicas após a Segunda Guerra, os graves conflitos ideológicos levaram ao surgimento de um discurso mais dicotomizado politicamente nas ciências humanas, levando a Geografia buscar, de um lado, nos parâmetros tecnicistas e sistêmicos, abordagens mais pragmáticas e técnicas de estudos do território, e por outro, nos referenciais marxistas os parâmetros teóricos que viabilizassem suas análises sociais. (FERRAZ, 2007, p. 38)

Complementa Corrêa (2009) ao dizer que

A 2a Guerra Mundial e a retomada da expansão capitalista alterando a organização do espaço e tendendo a eclipsar culturas tradicionais, regionais, levou à valorização de estudos com perspectivas pragmáticas, voltados para as transformações em curso e esperadas. A preferência mudou dos estudos sobre paisagens culturais, habitat rural, sistemas agrícolas e difusão cultural para estudos sobre lógicas locacionais e estudos urbanos, entre outros. (CORRÊA, 2009, s/p.)

Com efeito, a Geografia pôde estudar o papel dos sistemas institucionais de relações sociais na estruturação dos grupos e na organização do espaço. Deste modo, a ideia de cultura no Reino Unido foi dividida em duas concepções. Segundo Claval (2011), a primeira concepção foi oriunda de Raymond Willians, e designava uma interpretação do marxismo sobre os meios de comunicação e sobre os modos de produção, sugerindo que as classes mais altas da sociedade dominavam as inferiores por meio da difusão de seus modos de representação. A segunda concepção foi desenvolvida por Stuart Hall no Centro de Estudos Culturais da Universidade de Birmigham, e analisa o papel das representações na gênese da imagem do outro, considerando a cultura como um instrumento de segregação e exclusão, tendo em vista o uso desse instrumento pelas classes mais altas para dominar os comportamentos das classes inferiores. Neste sentido, Junior (2016) afirma que

o universo da cultura não está subordinado somente aos valores atribuídos pelas classes sociais dominantes, que classificam sob suas próprias regras e gostos o que dizem ser bom ou ruim, melhor ou pior. A concepção de cultura passa a inscrever práticas sociais cotidianas em seus significados e sentidos, mesmo que essa discussão seja rechaçada pela concepção tradicional-dominante. O cotidiano é todo ele constituído por traços culturais. As pessoas elaboram e reelaboram suas relações culturais a partir do convívio com outras pessoas e culturas. (JUNIOR, 2016, p. 81)

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Desta forma,

os Estudos culturais devem ser vistos tanto sob o ponto de vista político, na tentativa de constituição de um projeto político, quanto sob ponto de vista teórico, isto é, com a intenção de construir um novo campo de estudos. Sob o ponto de vista político, os Estudos Culturais podem ser vistos como sinônimo de correção política, podendo ser identificados como a política cultural dos vários movimentos sociais da época de seu surgimento. Sob a perspectiva teórica, refletem a insatisfação com os limites de algumas disciplinas, propondo, então, a interdisciplinaridade. [...] É um campo de estudos onde diversas disciplinas se intersecionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea (ESCOSTEGUY apud JUNIOR, 2016, p. 80).

A relação entre cultura e política nos estudos culturais possibilitou que a Geografia compreendesse o termo cultura de uma outra forma, conforme o relato de Corrêa (2009)

A relação entre cultura e política remete às diferenças entre classes sociais, às estruturas de poder e às políticas culturais de diferenciação, [...]. A partir desta relação a cultura passa a ser considerada simultaneamente como reflexo, meio e condição de existência e reprodução, e não mais como superestrutura, determinada pela base, nem como entidade supraorgânica, independente e pairando acima da sociedade. Reflexo, meio e condição conferem à cultura um nítido caráter político. (CORRÊA, 2009, s/p.) Desta forma, a tensão entre alguns movimentos sociais durante a segunda metade do século XX fez emergir nos estudos culturais o conceito de identidade. Os estudos culturais dessa época, segundo Ferraz (2007, p. 32), “contribuiu para a elaboração dessas identidades territoriais e por definirem um projeto evolutivo-desenvolvimentista dessas nações a partir dos referenciais econômicos e culturais das chamadas nações mais civilizadas”. Neste sentido, o autor afirma ainda que

Para reforçar o sentido de identidade territorial a partir da aceitação às regras institucionais e econômicas da ordem capitalista, era necessário concentrar essa população no meio urbano, fazendo com que ela assumisse os valores culturais dessa sociedade mais tecnicista, dinâmica, padronizadora e fiscalizadora. Daí o rápido processo de urbanização que permeou a reordenação espacial da maioria dos países periféricos do sistema econômico, o que levou a fortes conflitos culturais entre gerações e camadas sociais. (FERRAZ, 2007, p. 34)

Esses conflitos identitários fizeram com que a Geografia mudasse seu entendimento de cultura, que até então era tratada como algo superior ao indivíduo, passando a entender a cultura de forma mais humanista, como reflexo, meio e condição da existência das pessoas e dos grupos, considerando a nova sociedade urbana que se formava sob uma perspectiva interpretativa dos fenômenos, cujos significados são criados e recriados pelos grupos sociais, refletindo assim as diversas esferas da vida e suas espacialidades. No que diz respeito a isso, Suess (2018) afirma que

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A reivindicação de diversos grupos e movimentos sociais que não aceitam apenas serem diferenciados por meio da dicotomia burguesia/proletariado, impulsionaram a heterotopia e polivocalidade3 das abordagens temáticas. Dentro dos

espaços de exclusão não foram apenas os despossuídos economicamente que expuseram suas angústias, mas também os ambientalistas, as mulheres, os negros, os homossexuais, os transgêneros e outras ditadas minorias no âmbito do poder econômico, político, social e cultural. Portanto, a apropriação dos espaços de produção de conhecimentos por parte desses grupos permitiu, igualmente, um boom nas temáticas aceitáveis como campo de investigação na ciência geográfica. (SUESS, 2018, p. 6)

Portanto, o contato que a Geografia tivera com outras ciências como a Sociologia e a Antropologia, possibilitou que a ciência geográfica compreendesse a nova sociedade urbana que se formava. O surgimento de movimentos sociais como o feminismo, o movimento gay, o movimento hippie, o movimento negro americano, os movimentos de contracultura e o movimento jovem despertaram na ciência geográfica o interesse pela relação com o urbano e territórios identitários, mudando assim a maneira como a Geografia aborda seus objetos de estudos culturais.

A partir de 1970, a produção de pesquisas sobre a base material da vida e sobre as técnicas de produção começaram a dividir espaço com os estudos que abordavam a dimensão simbólica da cultura e suas representações, conforme nos explica Côrrea (2009)

A década de 1970 foi, em realidade, uma arena de embates epistemológicos, teóricos e metodológicos, no âmbito dos quais emergem uma geografia crítica e diferentes subcampos que, nos anos 80 iriam confluir, em parte, para gerar a denominada geografia cultural renovada. (CORRÊA, 2009, s/p.)

Contudo, as pesquisas sobre percepção do espaço e ambiente, realizadas por psicólogos, foram fundamentais nessa renovação que estaria por vir. Na França, por exemplo, essa abordagem cultural enfatizou as experiências espaciais e os espaços imaginados pelos homens, considerando o papel dos espaços nas construções das identidades e a conceituação do eu, do nós e do outro sobre a organização do espaço. Claval (2011) define essa fase como virada cultural, e afirma que “para entender as dimensões espaciais das atividades econômicas, da vida política, da estruturação social, do papel e do estatuto das cidades, elas têm também de ser analisadas como realidades culturais” (CLAVAL, 2011, p. 15).

3 Polivocalidade pode ser entendida como a interpretação variada a respeito de um mesmo símbolo. Para Corrêa

(2009, s/p.), polivocalidade é “o antídoto a um significado imposto, único, que as elites, em sua hegemonia cultural, pretendem impor.”

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Desta forma, a Geografia Cultural que inicialmente abordava os estudos sobre cultura valorizando as técnicas e os utensílios, bem como despreza os conteúdos simbólicos, passou a abordar temas como mitologias, lendas e literatura por exemplo, pois estes temas passam a ter o caráter de documento científico uma vez que nelas estão inseridas de modo simbólico as emoções e as percepções do autor e dos personagens sobre o ambiente, é uma forma de compreender o mundo. Nesta perspectiva, Corrêa (2009) afirma que

[...] os significados não são apenas um produto social. Constituem também uma condição para a reprodução social, incluindo não apenas valores, crenças, mitos e utopias, mas também as relações sociais e a espacialidade humana. (CORRÊA, 2009, s/p.)

Foi só a partir da “virada cultural” que os especialistas em literatura, mitologia e artes ganham enfoque no desenvolvimento deste tipo de pesquisa, pois o contato com a Etnologia e com a Sociologia possibilitou esse tipo de análise. Assim, Geografia Cultural tende então a ir mais fundo nas questões sobre percepção, representações e Cosmovisão, permitindo-se assim, mergulhar na cultura popular a partir de referenciais científicos e não científicos.

3 O PAPEL DA PERCEPÇÃO, DA COSMOVISÃO E DAS REPRESENTAÇÕES PARA A GEOGRAFIA CULTURAL

A mudança metodológica presente nos estudos sobre cultura afetou demasiadamente a maneira como os geógrafos a analisavam. A relação que os geógrafos tiveram com as áreas da Psicologia e Etnologia por exemplo, em meados do século passado, levou a Geografia a considerar o conteúdo simbólico da cultura e entendê-la como um instrumento de segregação e exclusão social, contrapondo os estudos que até então consideravam as técnicas e os utensílios como principal objeto de estudos sobre cultura.

Deste modo, a Geografia Cultural passou a ter uma perspectiva mais fenomenológica e interdisciplinar em relação aos seus objetos de estudo. Apoiada nos estudos psicossociais e com bases na Fenomenologia e na Semiótica, surge então a Geografia da Percepção e a Geografia das Representações, áreas estas que possibilitam analisar o território, a paisagem e o lugar (e outros temas e categorias de análise da Geografia) por meio das percepções e representações (ROCHA, 2003).

Entretanto, antes de entendermos o modo como a Geografia aborda os aspectos culturais por meio da percepção e da representação, precisamos primeiramente conceituar os termos Fenomenologia e Semiótica, pois estes além de influenciarem os estudos culturais da Geografia Cultural renovada, são essenciais para esse trabalho, tendo em vista que abordaremos a Serra do Corpo-Seco por meio das vivências, dos sentidos, da percepção e dos espaços imaginados.

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Etimologicamente, Fenomenologia significa o estudo ou a ciência dos fenômenos, das aparições, das aparências. Fenomenologia, portanto, é o campo de análise da essência dos fenômenos, sejam eles materiais (naturais, físicos) ou imateriais (plano das ideias, percepções e sentimentos), e abrange, por meio da vivência, os fenômenos que podem ser evidenciados, sentidos ou imaginados. Para Pereira (2010, p. 174), a Fenomenologia “busca evidenciar as essências repondo-as na existência, na medida em que o palpável sempre existiu ‘ali’, numa forma prévia ao pensamento”. Assim, a Geografia começa a considerar a subjetividade, a interpretação dos fatos, a percepção e os sentimentos como material de estudo, caracterizando-os como fenômenos.

A Semiótica, por sua vez, é “a ciência de todo tipo de linguagem, seja ela verbal, a que é veiculada pela língua, ou a não-verbal, construída de símbolos, sinais, elementos arquitetônicos” (ROCHA, 2003, p. 71). Ou seja, a Semiótica tem por objetivo investigar as ações e as funções do signo presentes nas linguagens, seja a linguagem expressa na comunicação oral, constatada sobretudo na fala, seja a linguagem expressa na comunicação simbólica, presente nas paisagens. Deste modo, a Semiótica contribui para interpretarmos neste presente trabalho tanto os signos não-verbais da paisagem amedrontadora da Serra do Corpo-Seco quanto os signos verbais presentes na literatura e na oralidade desse mito.

No contexto deste trabalho, os signos não verbais estão presentes na paisagem da Serra do Corpo-Seco, na qual apresentam símbolos cristãos e também nos induz a sentirmos medo pelo fato da paisagem ser amedrontadora. Já os signos verbais estão presentes nesse trabalho no que se refere ao contar da lenda por meio da oralidade e escrita. Ambos os casos, verbais ou não-verbais, estão constituídos de signos que estão à espera de interpretação por aqueles que observam a paisagem e também por aqueles que escutam ou leem a lenda.

Para entender melhor esse assunto, a Semiótica divide a função dos signos em três categorias diferentes, sendo elas: ícone, índice e símbolo. Todas elas se relacionam com o nosso objeto de estudo, conforme veremos no quadro abaixo.

Quadro 01 – As categorias dos signos para a Semiótica

Categoria Conceito Exemplos

Ícone

signo cujo

significado é explícito, possui uma analogia com o que representa

Verbais Não-verbais

O personagem Corpo-Seco como exemplo da maldade humana

O nome da Serra do Corpo-Seco (toponímia) representa explicitamente a lenda

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mantém uma relação de causa e efeito com o que representa e induz reação ao observador

Corpo-Seco como

instrumento de coerção social, uma vez que orienta as ações por meio da moral cristã sentimento de medo ao se deparar com a paisagem amedrontadora da Serra do Corpo-Seco Símbolo

signo que possui relação de convenção com seu objeto,

o símbolo da cruz para os cristãos

A concepção de céu, inferno, pecado e vida pós-morte para os cristãos.

Fonte: Rocha, 2003 Organização: Wolf, 2019

Contudo, o significado de um signo depende da percepção e da vivência do observador. Mas o que é percepção? Segundo Tuan (1980), todos os seres humanos compartilham percepções comuns, justamente por possuírem órgãos sensoriais similares. Pelo fato de pertencermos à mesma espécie, nossas percepções do meio ambiente tendem a ser limitadas, embora cada indivíduo tenha percepções um pouco diferente, em alguns aspectos, de outros indivíduos. Ainda segundo o autor, percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na qual certos fenômenos são registrados ou bloqueados em nossa mente.

Embora todos os seres humanos tenham órgãos dos sentidos similares, o modo como as suas capacidades são usadas e desenvolvidas começa a divergir numa idade bem precoce. Como resultado, não somente as atitudes para com o meio ambiente diferem, mas difere a capacidade real dos sentidos, de modo que uma pessoa em determinada cultura pode desenvolver um olfato aguçado para perfumes, enquanto os de outra cultura adquirem profunda visão estereoscópica. (TUAN, 1980, p.14)

O fato de um individuo ou grupo desenvolver suas capacidades sensoriais diferentes de outros, faz com que tenhamos percepções diferentes sobre o mesmo objeto, espaço, lugar meio, etc. A Fenomenologia aborda a percepção como o elo entre a consciência e o objeto observado, sendo a consciência considerada um fenômeno, cuja existência é subjetiva, e o objeto como algo físico. Neste sentido, Husserl (1975) ainda afirma que

[...] a maioria das percepções dos estados psíquicos não pode ser evidente, já que eles são percebidos como localizados no corpo. Percebo que a tristeza me dá um nó na garganta, que a dor me dói o dente, de que a pena me dói o coração, no mesmo sentido em que percebo que o vento sacode as árvores, que esta caixa é quadrada e pintada de marrom, etc. Aqui estão presentes, sem dúvida, além das percepções internas, também as externas; mas nem por isso os fenômenos psíquicos percebidos existem tais como são percebidos. (HUSSERL, 1975, apud ROCHA, 2003, p. 70)

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Esses conceitos sobre percepção e Geografia dialogam com os conceitos de Platão sobre as realidades de mundo, na qual ele afirma que o mundo inteligível designa o mundo das formas e das ideias, e o mundo sensível corresponde ao plano acessível aos sentidos e à materialidade. Ou seja, enquanto o primeiro nos permite identificar os objetos estruturados conforme as ideias e as formas primordiais, o segundo apresenta uma realidade falsa pois é limitada aos sentidos subjetivos e humanos.

É com base nestes conceitos que surge a Geografia da Percepção, um ramo da Geografia Cultural, cujo o intuito é analisar o espaço, a paisagem, os lugares, os territórios e as relações sociais por meio das experiências e das vivências pessoais, permitindo assim uma gama de interpretações sobre um determinado assunto. Segundo Corrêa (2001), a Geografia da Percepção

Está assentada na subjetividade, na intuição, nos sentimentos, na experiência, no simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o particular ou o universal e, ao invés da explicação, tem na compreensão a base de inteligibilidade do mundo real (CORRÊA, 2001, apud PEREIRA, 2010, p. 175).

Outro conceito essencial para este trabalho é o de representação, pois é por meio da percepção e da representação que adquirimos um determinado conhecimento. Segundo Claval (2011),

Os homens não têm um conhecimento direto, imediato, das realidades terrestres, dos lugares e da organização do espaço. O seu conhecimento é sempre baseado sobre a percepção que eles têm da superfície da terra, e sobre as representações que eles partilham dela. (CLAVAL, 2011, p. 12)

Atualmente, o conceito de representação é muito amplo. O termo, por ser utilizado desde a Antiguidade até os dias atuais, possui diversas acepções. Segundo Monteiro (2010), o termo representação vem do latim, representationis, e indica uma imagem capaz de reproduzir alguma coisa. Pode também ser caracterizada como algo que é posto no lugar de outra coisa, afim de representa-la em sua ausência, ou seja, no sentido de “estar no lugar de”. Ainda há a concepção de analogia, imitação, no sentido de falar em nome de outras pessoas.

As representações podem ser classificadas como o conjunto de esquemas mentais formados a partir da vivência espacial nos âmbitos sociais e individual. Em outras palavras, representações são “ideias criadas do mundo em função da cognição humana” (MONTEIRO, 2010, p. 18). Assim, podem ser considerados como representações os conceitos abstratos, como as crenças, as lendas, as ideias e os sentimentos; como até mesmo os conceitos mais concretos, como as teorias científicas, representações cartográficas, etc. Essas representações se encontram na base do conhecimento sobre

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estudos culturais, consistindo em um sistema único de signos, de representações e de construções intelectuais. No que tange esse tipo de estudo, Soares (2007) afirma que

Mesmo as ciências baseadas na observação do mundo empírico se constituem de conceitos, modelos, diagramas, esquemas, teorias, sistemas, hipóteses, leis, explicações, interpretações, ou seja, de representações simbólicas do mundo, construídas. (SOARES, 2007, apud MONTEIRO, 2010, p. 18)

É neste sentido que surge a Geografia das Representações. Ela analisa o espaço por meio das representações, dos sistemas de signos, das construções intelectuais abstratas e concretas, como por exemplo, a literatura e a ciência, respectivamente. Deste modo, os mitos, a literatura, as pinturas e a linguagem verbal e não-verbal, são consideradas objetos de estudo da Geografia das Representações, pois elas são “responsáveis por dar significado ao algo percebido, representando fenômenos naturais e sociais, para a compreensão de acontecimentos ditos sobrenaturais e, principalmente para perpetuar a consciência humana de mundo” (MALANSKI, 2014, p. 36).

Para aprofundar esse debate sobre representação, o francês Serge Muscovici cria o termo representações sociais. Este termo engloba os conceitos e afirmações provenientes da comunicação e da linguagem. Portanto, as representações sociais “são equivalentes, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais; pode-se-ia dizer que são a versão contemporânea do senso comum” (MUSCOVICI, apud BONFIM, 2012, p. 13). Neste sentido,

Uma vez que se constitui uma organização de imagens e linguagem, a representação social realça e simboliza atos e situações cujo uso os torna comuns. São, portanto, modalidades particulares do conhecimento, que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. Assim, a representação social tanto fala quanto mostra, tanto comunica quanto exprime. (BONFIM, 2012, p. 14)

A percepção para o conceito de representações sociais é de fundamental importância, uma vez que a percepção, sendo considerada como resultado de nossas vivências, conota um caráter ideológico, pois segundo Bonfim (2012, p. 15), “a apreensão que o sujeito faz a partir dos referenciais, faz concluir que a racionalidade não está imune à ideologia”, ou seja, o ser humano é resultado das vivências e experiências, que, por sua vez, moldam o pensamento e, consequentemente, orientam suas ações.

De acordo com Claval (2011), a cultura pode ser caracterizada como os conjuntos de práticas, conhecimentos, atitudes e crenças que são adquiridos pelo processo de transmissão. Para ele, “a natureza e o conteúdo da cultura de cada indivíduo refletem os meios através dos quais ele adquire as suas práticas e seus conhecimentos” (Claval, 2011, p. 16). Ou seja, a construção da cultura é um

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processo social, lhe garante a formação de uma consciência em comum com os outros membros do grupo, formando assim as identidades individuais e coletivas.

Além disso, o meio influencia nossas escolhas a partir de um sistema hierarquizado de preferências e valores adquiridos pelas relações sociais. O que é permitido e o que é proibido, aquilo que é bom ou mal, ou o que é bonito ou feio variam de acordo com cada cultura. A memorização de esquemas de condutas, atitudes, práticas e conhecimentos, impostos pelo meio, normatizam a ação dos indivíduos, conforme nos explica Tuan (1980)

Em algumas sociedades esta estrutura dualista permeia vários níveis do pensamento: afeta a organização social de um povo assim como sua cosmologia, arte e religião. O próprio meio ambiente pode prestar-se a esta visão dualista: pode reforçar uma tendência, servindo como índice claramente visível de polaridade. (TUAN, 1980, p. 96)

Cada realidade social possui uma dinâmica própria, na qual as normas, os interesses coletivos, valores e princípios morais estão presentes. Contudo, os estudos sobre as representações sociais inferem um conjunto de significados que são transmitidos por meio da linguagem, possibilitando analisar o imaginário social como um aspecto cultural, pois segundo Bonfim (2012, p. 15), “o imaginário social regula os comportamentos recíprocos dos indivíduos”. De modo semelhante, Tuan (1980) afirma que a cultura não é conduzida pela imaginação, mas sim é um produto dela.

De acordo com Bonfim (2012), Sartre apresentou uma diferenciação entre imaginação e imaginário. Para ele, a imaginação é o ato de produzir imagens ou de visar um objeto ausente. Já o imaginário é a capacidade humana de deformar e modificar imagens, relacionando-as com experiências humanas. O imaginário possui o objetivo de buscar a liberdade interior, ou até mesmo a verdade divina, uma vez que o homem é livre, na sua intimidade, para procurar a sua verdade, bem como é livre para seguir preceitos religiosos ou morais. Ou seja, os preceitos religiosos e morais são resultados do imaginário popular.

Esses preceitos religiosos ou morais podem condenar aqueles que não as cumprem, mas tanto um como o outro não se diferenciam, pois, “o comportamento religioso e o comportamento moral, [...] na esfera da interioridade, rompem ao mesmo tempo com uma postura dogmática e com uma postura cética” (CROCHICK, 1994, s/p). Assim, a racionalidade do objeto de fé se torna subjetiva.

A relação entre imaginário social e ideologia resulta nas representações culturais, como os mitos por exemplo, que anunciam uma redenção futura ou uma promessa, um castigo ou o perdão, no sentido em que exprimem esquemas de conduta e de práticas, incluindo os valores sociais, cujo intuito é tornar as sociedades mais benevolentes a partir de uma representação mitológica ou folclórica. Desta forma, a Lenda do Corpo-Seco é resultado do imaginário popular, no qual possui

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uma ideologia cristã que anuncia um castigo para aqueles que, de alguma forma, não condizem com os valores impostos pelo cristianismo, alienando assim as ações e condutas de uma determinada sociedade.

Uma outra forma de representar uma determinada consciência humana de mundo são as cosmovisões. O termo cosmovisão surgiu na Alemanha durante o período Iluminista, no século XVIII, cujo intuito era afirmar que o homem é o sujeito ativo no processo de conhecimento. Esse termo indica um entendimento subjetivo do mundo, cujo resultado advém das nossas percepções, dos nossos valores e experiências. A cosmovisão busca respostas às questões filosóficas como ‘quem somos?’, ‘qual a finalidade da existência humana?’, e se ‘existe vida após a morte?’ por exemplo. (FONTES, 2018)

Embora não seja um termo teológico, a cosmovisão é bastante utilizada atualmente no âmbito religioso para designar um conjunto de práticas, ideias e crenças que tais grupos religiosos possuem, como por exemplo a cosmovisão cristã, que representa a maneira de atuar neste mundo segundo os conceitos de Jesus Cristo.

A cosmovisão cristã está presente no contexto da Lenda do Corpo-Seco, pois apresenta concepções cristãs sobre inferno, sobre os céus, sobre o julgamento divino pós morte e sobre a ideia de ressureição por exemplo. Todas essas concepções cristãs, de um modo geral, formam a base para os conceitos, atitudes e decisões tomadas por aqueles que se definem cristãos, ou que pelo menos participam de uma cultura eminentemente cristã, podendo ser considerada uma ideologia.

Neste sentido, Tuan (1980, p.5) afirma que a cosmovisão é “uma atitude ou um sistema de crenças; a palavra sistema implica que as atitudes e crenças estão estruturadas, por mais arbitrárias que as ligações possam parecer, sob uma perspectiva impessoal (objetiva)” (TUAN, 1980, p. 5). Ou seja, o que se percebe possui valor, e esse valor é determinante na forma que o observador vê, interpreta e interfere no seu meio. Tal valor, seja ele negativo ou positivo, está intimamente ligado pela cultura e pelas experiências do observador.

Embora os conceitos sobre cosmovisão, Geografia da Representação e Geografia da Percepção sejam bem parecidos, eles se diferem em alguns aspectos, conforme mostrado no quadro abaixo (Quadro 2).

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Quadro 2 – Quadro conceitual sobre Cosmovisão, Geografia da Percepção e Geografia das Representações

Fontes: (CLAVAL, 2011; TUAN, 1980; FONTES, 2018) Org: WOLF, 2019

Por fim, a Geografia Cultural vem se modificando ao longo do tempo, de acordo com suas possibilidades de pesquisa e contato com outras ciências, mudando assim seus métodos científicos e objetos de estudo. Atualmente, a Geografia Cultural possui algumas ramificações importantes, ramificações estas oriundas do contato com a Etnografia, Sociologia e Psicologia, surgindo assim a Geografia da Percepção e a Geografia das Representações, cujo entendimento se dá por meio da percepção, dos sentimentos, das ideias e das representações que fazemos do mundo. Com efeito, ao considerar as mitologias, mitos e lendas uma forma de representação do mundo, faz-se necessário compreender como elas podem carregar consigo uma simbologia, uma ideia de mundo na qual prevaleça o caráter de ordem social.

4 MITOS, MITOLOGIAS E LENDAS NA PERSPECTIVA DA GEOGRAFIA CULTURAL Consideradas como uma forma de representar o mundo, os mitos, as mitologias e as lendas (o folclore em geral) agora são fontes materiais importantes para as ciências que estudam cultura, sobretudo para a Geografia das Representações. Os estudos sobre os mitos buscavam, inicialmente, compreender a visão de mundo de um povo e a influência dos mitos nesse processo. Posteriormente, os estudos culturais sobre os mitos indicariam que eles estariam sendo utilizados como ferramentas de controle da sociedade, cujo intuito era de manter a ordem social (MARANGON, s/a., s/p).

O termo mito, de acordo com Simões (2008), vem da palavra grega mythos (μῦθος) que significa discurso ou narrativa. Neste sentido, o mito é

Cosmovisão Geografia da Percepção Geografia das Representações

É o entendimento subjetivo ou coletivo sobre o mundo;

É o entendimento subjetivo do mundo percebido;

São ideias subjetivas ou coletivas criadas do mundo em função da cognição humana;

Leva em consideração as experiências coletivas e individuais;

Leva em consideração os a singularidade dos sentidos, as experiências e as vivências;

Leva em consideração as representações, as artes e as analogias;

Possui como objeto de estudo as questões filosóficas de cunho teórico;

Se preocupa com a maneira de como percebemos o mundo;

Se preocupa com a forma que representamos o mundo;

Tenta explicar os fenômenos naturais, materiais e existenciais;

Não tenta explicar os

fenômenos, mas sim

compreender o mundo real por intermédio da percepção;

Tenta explicar o mundo através das representações

Possui caráter ideológico; Não está imune à ideologias; É ideológico; Teorias conspiratórias, crenças

religiosas, Ciência,

Lugares que acarretam no observador alguns sentimentos, como medo, fome, euforia

Pinturas rupestres, artes visuais, cinema, literatura, crenças e rituais religiosos, ciência,

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[...] uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo” ou as relações sociais. (ROCHA, 2016, p. 7)

Buscando conceituar o termo mito, Mirceia Elíade (2010) afirma que:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. (Eliade 2010, p.11)

Elíade (2010) afirma ainda que os mitos possuem por objetivo revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas, seja ela a alimentação, o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.

Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELÍADE, 2010, p. 11)

Os mitos, portanto, constituem a história dos entes sobrenaturais, considerando-a verdadeira e sagrada uma vez que exprime uma ideia de como algo veio a existir, seja ela um comportamento ou um objeto.

A racionalização dos mitos, segundo Simões (2008), tem origem no século VII a.C. a partir do pensador grego Hesíodo. A partir dele, outros pensadores, filósofos e poetas indagavam sobre a importância e a função dos mitos. Segundo o autor, foi só no século seguinte que Teógenes, o criador da corrente alegórica4, interpretou alegoricamente os mitos.

4 O significado de alegoria, segundo o Dicionário Google é modo de expressão ou interpretação que consiste em

representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada. Para a Filosofia, a corrente alegórica é um método de interpretação aplicado por pensadores gregos (pré-socráticos, estoicos etc.) aos textos homéricos, por meio do qual se pretendia descobrir ideias ou concepções filosóficas embutidas figurativamente nas narrativas mitológicas. (Dicionário Google)

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A interpretação dos mitos, segundo essa corrente de pensamento, ocorre em duas formas: alegórica física e alegórica moral. Segundo Simões (2008), Teógenes

[...] tentava buscar dois tipos de alegoria nos mitos: a alegoria física, que interpretava as divindades como elementos da natureza, e a alegoria moral, que enxergava as ações dessas divindades como disposições da alma. (SIMÕES, 2008, s/p.)

A interpretação alegórica dos mitos perdurou até o século XVIII, quando o filósofo alemão Friedrich Schelling propôs uma interpretação tautegórica5 dos mitos, ou seja, “os mitos deveriam ser analisados pelos seus significados próprios, internos, e não externos como fazem os alegóricos” (SIMÕES, 2008, s/p.). Desta forma, a moral e os ensinamentos que os mitos contêm, bem como ele próprio, se tornam simbólicos. Esse avanço na abordagem sobre os mitos foi fundamental para os estudos sobre representações.

Uma outra corrente surgiu depois das contribuições de Schelling, a chamada corrente simbolista. Essa corrente de pensamento, segundo Simões (2008, s/p.), “se propõe então a descobrir a visão de mundo própria do pensamento mítico, e por conseguinte do homem mítico, que possui categorias de pensamento próprias e diferentes do pensamento racional”. Essa corrente interpreta o mito como algo concreto, pois está ligado a formação de imagens mentais e coerção de condutas.

Na sequência, a corrente funcionalista propõe uma forma mais prática e funcional de analisar os mitos, relacionando-os com os ritos. Nessa perspectiva, a relação entre mito e rito ocorre de duas maneiras. Segundo Simões (2008), a primeira considera que os mitos são anteriores aos ritos, portanto os ritos explicariam os mitos. Já a segunda possui uma visão inversa, na qual os mitos são posteriores aos ritos, assim, “os mitos serviriam para organizar e explicar certas práticas sociais que já acontecia” (Simões, 2008, s/p.).

Por último, Levi-Strauss cria a corrente estruturalista em meados do século XX. Essa corrente visava buscar no signo, a convergência do pensamento mítico e do pensamento racional. O objetivo dessa corrente era compreender a lógica interna do mito através das narrativas míticas. Neste sentido,

[...] os signos que encontramos no mito fazem parte de outros campos da experiência humana no mundo. No mito, querem dizer algo mais e com sentido diferente do que significam corriqueiramente. Sua linguagem é metafórica, poética, cujos signos precisam ser decifrados para serem compreendidos. As histórias que os mitos contam são construídas com as palavras da própria língua que, no contexto particular constituído por cada mito, adquirem novos sentidos; também, os elementos concretos

5 A leitura tautegórica designa uma interpretação oposta à alegórica, ou seja, corresponde à leitura que não refere o

mito à algo de diferente dele mesmo, a análise estrutural tem em vista isolar a estrutura imanente a cada produção simbólica. (Dicionario Google)

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da natureza (os astros, as intempéries, os animais, as plantas, as montanhas, os rios, o céu, os cheiros, os sabores); e, ainda, as experiências da vida em sociedade (o parto, a morte, o sexo, a troca, a caçada, os filhos, as mães, os parentes) e as relações entre as pessoas (o comportamento, a obediência, a traição, a generosidade, a mesquinhez, a inveja), enfim, toda essa matéria prima usada na construção do mito. (MARANGON, s/a., s/p.)

Segundo Marangon (s/a.), os mitos possuem três funções essenciais. A primeira diz respeito a função explicativa, ou seja, diz respeito sobre as causas no passado nas quais os efeitos ainda permanecem. Está ligado àquilo que não se tem conhecimento da origem, do surgimento, como por exemplo, o trovão para os gregos, sendo este uma resposta da fúria de Zeus para com os humanos. Outro caso específico que exemplificaria essa função é a conservação dos cadáveres beatificados ou canonizados que, por algum motivo, estão preservados há séculos e presentes até hoje para visitação, como é caso da Santa Paula Frassinetti no Convento de Santa Dorotea, em Roma. A resposta mitológica para esse caso é de que a Santa foi tão benevolente em vida que seu corpo se preserva até hoje, entretanto, a ciência ainda não conseguiu explicar esse caso. (RINCON, 2017)

No que tange essa primeira função, a explicativa, algumas lendas podem ser caracterizadas como tal. Podemos citar por exemplo, a lenda do Saci-Pererê, que aparece no meio de um tornado de poeira e terra, e que é “responsável” por fazer tranças no cavalo de pirraça, embora saibamos que não são estes os motivos científicos para o surgimento desses fenômenos.

A segunda função, segundo a autora, legitima um sistema de permissões e proibições, as regras abstratas da moral e as crenças. É legitimada a partir da memorização de condutas, que pode ser realizada então de modo verbal. Por exemplo, um mito como o de Édipo tem a função de garantir a proibição do incesto, bem como garantir o sistema sociopolítico vigente em determinadas sociedades, baseado nas leis de parentesco e de alianças. Aqui também cabe inserir a função coercitiva para algumas lendas, como é o caso da lenda estudada neste presente trabalho por exemplo, pois a Lenda do Corpo-Seco possui a função de coagir aqueles que violentam suas mães, ou que negam alimentar os famintos e mais necessitados, como veremos em capítulos adiante.

Já a terceira função é compensatória, onde

o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária. (CHAUÍ, 2000, apud MARANGON, s.a.)

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FIGURA 01 – Localização da Serra do Corpo-Seco em Ituiutaba – MG
FIGURA 02 – Cidades com ocorrência da Lenda do Corpo-Seco
Figura 03 – Serra do Corpo-Seco
FIGURA 04 – Conglomerados e seixos rolados encontrados na Serra do Corpo-Seco, Ituiutaba,  Minas Gerais
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Referências

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