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7 A LENDA DO CORPO-SECO NO BRASIL

8 A SERRA DO CORPO-SECO: UM INSTRUMENTO CULTURAL SIMBÓLICO DE PODER E DE PATRIMÔNIO GEOMORFOLÓGICO

A história de Ituiutaba, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2018), está ligada ao processo de povoamento iniciado onde atualmente se chama Campina Verde, município vizinho à Ituiutaba. Segundo o mesmo Instituto (2018), os índios do grupo Caiapó foram os principais responsáveis pelo processo de povoamento desta região, cuja a aldeia se chamava “Aldeia Fazenda” e se localizava às margens do Rio Grande, no atual município de Campina Verde.

O primeiro contato que os Caiapós tiveram com os conquistadores ocorreu em meados de 1722, a partir das primeiras bandeiras, como por exemplo, a expedição de Bartolomeu Bueno Silva Filho, que partiu de São Paulo com destino à Goiás, fazendo o trajeto que posteriormente resultaria na Estrada do Anhanguera (FILHO, 2012).

Os caiapós meridionais, nome que designava grupos do tronco Macro-Jê linguisticamente aparentados, habitavam o Triangulo Mineiro e mais uma vasta área correspondente aos atuais estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, á época da chegada dos primeiros colonizadores luso- brasileiros (LOURENÇO 2005, apud FILHO, 2012, p. 2).

Pelo fato de o grupo Caiapó desta região ser pacíficos, os bandeirantes, por meio do Rio Grande, começaram a frequentar a Aldeia Fazenda. Esta inserção dos conquistadores na cultura indígena foi tão incisiva, que no dia no dia 29 de janeiro de 1825 foi realizada a primeira missa pelo Pe. Jerônimo Macedo, e como era dia de São Francisco de Sales, seguindo-se a tradição, foi dado ao local o nome do santo. Atualmente, o Distrito São Francisco de Sales é pertencente ao município de Campina Verde (IBGE, 2018).

A partir dessa aldeia, partiram algumas expedições missionárias, cujo objetivo era desbravar o Sertão da Farinha Podre7, região que se estende entre os rios Grande e Paranaíba, desbravando

consequentemente seus afluentes, os rios da Prata e Tejuco (FILHO, 2012).

Após a terceira tentativa dos bandeirantes adentrarem as terras indígenas, verificou-se “a transmigração dos caiapós para as margens do Grande e lado goiano do Paranaíba, ‘desinfestadas as

7 O termo “Sertão da Farinha Podre” teria surgido em 1807, em uma bandeira que invadiu os sertões do Pontal do

Triânulo Mineiro até às margens do Rio Grande, na qual se colocavam sacos de farinha no caminho para comê-los na volta. Quando voltavam, encontravam todos apodrecidos (FILHO, 2012)

terras’, uma avalanche de forasteiros afluiu para a região” (IBGE, 2018). Essa citação do IBGE é carregada de preconceitos, tendo em vista que trata os índios como pragas, como algo maléfico ao território, apresentando assim uma cosmovisão etnocêntrica europeia.

Em 1820 (IBGE, 2018), dois sertanejos que estavam vindo do sul de Minas Gerais, cujos nomes eram Joaquim Antonio de Moraes e José da Silva Ramos, chegaram ao local onde hoje seria Ituiutaba, expulsando os índios Caiapós. Novamente podemos encontrar um teor de preconceito em relação à maneira como o IBGE e o Senador Camilo Chaves abordam esse conflito:

Praticamente, não houve luta entre os ameríndios e o invasor branco civilizado, pois os silvícolas, tão logo verificaram a superioridade de armas dos desbravadores, ou se submeteram e foram agrupados na aldeia de São Francisco de Sales, ou foram escorraçados para Goiás e Mato Grosso (IBGE, 2018, s.p., grifo do autor)

Entretanto, o Senador Camilo Chaves, contrapondo essa visão, relatou

E o gentio declarou guerra aos posseiros. Houve luta, armaram-se tocaias, irromperam inopinados assaltos com morticínios. Concentraram-se os colonos para a defesa, que o agressor não dava quartel. Dalí irradiou-se a contra-ofensiva que havia de afastar os incômodos caiapós. Foram incendiados os aldeamentos mais próximos, o da Aldeã Velha, no salto do rio da Prata, e do salto do Gambá, no rio Tijuco, o de Santa Rita, e o da Queda, hoje conhecido por Salto Do Moraes (CHAVES, 1953, apud FILHO, 2012, p. 6, grifo do autor).

O Pe. Antonio Dias de Gouveia, que havia chegado ao local em 1830, a partir das bandeiras missionárias vindas pelos rios Grande e Paranaíba, conseguiu a partir de uma promessa feita por José da Silva Ramos e Joaquim Antonio de Moraes, algumas terras. Os sertanejos prometeram doar parte de suas terras ao Pe. Antonio Dias de Gouveia para a construção de uma capela e uma vila, caso vencessem a disputa contra os indígenas. O fato é que ambos pedem ajuda divina e proteção à São José, e dizimam os índios Caiapós a tiros, na região do Salto (FILHO, 2012).

No dia 16 de setembro de 1901, que o então Governador de Minas, Salviano de Almeida Brandão, concede a emancipação política e administrativa do Arraial, nomeando-a de Vila Platina através da Lei Estadual n° 319/01. Quatro anos mais tarde, em 1905, o então Governador de Minas, Delfim Neto, sugere a mudança do nome de Vila Platina para Ituiutaba, quando, dois anos mais tarde, em 25 de abril de 1917, a mudança de nome é oficializada (PREFEITURA DE ITUIUTABA, 2017). Deste modo, a lenda do Corpo-Seco presente no município de Ituiutaba pode ser analisada como um instrumento que reforça uma concepção cristã, presente nesta região de forma simbólica,

mas o contato dos bandeirantes com o grupo indígena Caiapó resultou no extermínio de vários grupos indígenas da região. Ituiutaba foi erguida à custa do genocídio, do derramamento de sangue indígena, e a presença da lenda do Corpo-Seco é um registro histórico desse contato.

As lendas do folclore mineiro, segundo Cascudo (1989, p.23), “é naturalmente um prolongamento, enorme, assimilado, com traços próprios, mas um prolongamento, do Folclore paulista.”. As lendas encontradas nessa região são traços culturais que os bandeirantes deixaram quando passavam por ela em busca de ouro, prata e índios para escravização. A proximidade de Ituiutaba com o interior paulista faz com que a Lenda do Corpo-Seco seja contada de forma semelhante nestes locais. Entretanto, a Lenda do Corpo-Seco contada em Ituiutaba possui uma especificidade, ela ocorre no Morro de São Vicente (coordenadas 18º 58’ 08’’ Latitude S; 49º 27’ 54’’ Longitude W), que popularmente leva o nome de Serra do Corpo-Seco (MIYAZAKI, 2018), nome dado ao relevo residual pelo fato de se acreditar que lá esteja enterrado o Corpo-Seco.

Figura 03 – Serra do Corpo-Seco

Fonte: WOLF, 2019.

O Rio Grande juntamente com o Rio Paranaíba foram as principais artérias para a chegada dos bandeirantes e suas expedições missionárias ao Sertão da Farinha Podre. O Rio Tejuco, afluente do Paranaíba, foi o principal vetor para a chegada dos colonizadores nestas terras onde, posteriormente, seria erguida a primeira igreja e, consequentemente, as primeiras vilas, as primeiras pontes, os primeiros comércios que dariam início à emancipação da Vila Platina, atual município de

Ituiutaba. Localizada à margem sul da área urbana da cidade de Ituiutaba (Figura 01), a Serra do Corpo-Seco está bem próxima do Córrego São José, afluente do Rio Tejuco.

A Serra do Corpo-Seco é um relevo residual tabular, formado por rochas sedimentares oriundas da formação Marília, pertencente ao grupo Bauru, e seus aspectos geomorfológicos, segundo Miyazaki (2018), são

[...] frequentemente encontrados em centros de bacias sedimentares e neste caso específico encontrado na Bacia Bauru, apresentando formas semelhantes às mesas ou tabuleiros com topo aplainado e vertentes íngremes, sustentados por camadas sedimentares que apresentam alternância quanto à resistência. (MIYAZAKI, 2018)

As rochas da formação Marília são compostas basicamente de arenitos grossos e conglomerados (FIGURA 04), e estas rochas, por conterem concreções como o silcrete e o calcrete, são responsáveis pelas feições geomorfológicas dos relevos residuais, uma vez que apresentam uma resistência maior aos agentes intempéricos. Este tipo de concreção está relacionado às alterações no nível do lençol freático, decorrente das oscilações climáticas. (MIYAZAKI, 2018).

FIGURA 04 – Conglomerados e seixos rolados encontrados na Serra do Corpo-Seco, Ituiutaba, Minas Gerais.

O domínio morfoclimático e fitogeográfico presente nesta região é o Cerrado, que se caracteriza pelas árvores esparsas e tortuosas, bem como a vegetação rasteira, e conta com a presença de grandes campos. Apesar de não ser um ponto turístico da cidade, a Serra do Corpo-Seco é muito visitada por jovens aventureiros que buscam o contato com a natureza. Nela, podemos encontrar vestígios de acampamentos e fogueiras (FIGURA 05).

FIGURA 05 -Vestígios de acampamento e fogueira na Serra do Corpo-Seco, Ituiutaba, Minas Gerais.

Fonte: WOLF, 2019

A Serra do Corpo-Seco possui um grande potencial para se tornar Patrimônio Geomorfológico, tendo em vista o caráter de Geodiversidade que ela possui. Para ser considerada um Patrimônio Geomorfológico, ou um Geossítio, a Serra do Corpo-Seco deve conter alguns valores relacionados à Geodiversidade, estabelecidos pelo Serviço Geológico do Brasil – CPRM. Segundo este instituto, Geodiversidade é a

[...] natureza abiótica (meio físico) constituída por uma variedade de ambientes, fenômenos e processos geológicos que dão origem às paisagens, rochas, minerais, solos, águas, fósseis e outros depósitos superficiais que propiciam o desenvolvimento da vida na Terra, tendo como valores intrínsecos à cultura, o estético, o econômico, o científico, o educativo e o turístico. (CPRM, 2006, s.p.)

Segundo Miyazaki (2018, s.p.), “porções da Geodiversidade que apresentem valor recebem o nome de Geossítios e sua totalidade, Geopatrimônio”. Desta maneira, no intuito de buscar a preservação destes locais, deve se considerar alguns valores, como veremos na tabela abaixo.

QUADRO 03 -Tipo de valores para a classificação dos patrimônios

Tipo de Valor Conceito Exemplos

Valor Intrínseco ou

existencial

É um valor subjetivo, refere-se ao valor, por si só, do elemento da Geodiversidade.

A Serra do Corpo-Seco e toda sua Geodiversidade.

Valor Cultural

É o valor colocado pela sociedade devido ao seu significado cultural e comunitário;

A lenda do Corpo- Seco como valor cultural.

Valor estético

Valor qualitativo dado à atratividade visual do ambiente físico;

A visão ampla

oferecida pela Serra do Corpo- Seco, bem como a paisagem presente nela.

Valor Econômico

Refere-se à possibilidade de uso dos elementos da geodiversidade pela sociedade;

O valor turístico, embora na Serra do Corpo-seco não há atualmente esse empenho.

Valor Funcional

É relacionado à função que a geodiversidade pode ter no seu contexto natural e com o seu valor no suporte dos sistemas físicos e ecológicos

Preservar a fauna e a flora do Cerrado, neste caso.

Valor científico e educativo

É relacionado a importância da geodiversidade para a investigação científica e para a educação em Ciências da Terra.

Tendo em vista o potencial educacional que a cidade de Ituiutaba oferece, esse é um dos principais valores a serem considerados.

Fonte: MIYAZAKI, 2018 Org: Wolf, 2019

A Serra do Corpo-Seco apresenta uma paisagem características do Cerrado, cuja vegetação é rasteira e as árvores apresentam uma certa tortuosidade, trazendo um clima sombrio e propício à criação de lendas (FIGURA 06).

FIGURA 06 – Fisiologia do Cerrado como valor estético

Fonte: WOLF, 2019

A Serra conta ainda com uma vista privilegiada do horizonte, na qual podemos ver outros relevos residuais, como os Morros do Estande e São Vicente, a Serra do Saltador, o Morro da Bocaína e a Serra da Aldeia, local onde está instalada a granja de porcos Mendonça, como é popularmente conhecido (PORTUGUEZ, 2018) (Figura 07)

FIGURA 07 – Vista panorâmica da Serra do Corpo-Seco, Ituiutaba, Minas Gerais

O valor cultural, neste caso, é explicitado em forma de lenda. A Lenda do Corpo-Seco é a principal lenda da região, e o fato do município de Ituiutaba conter uma serra com seu nome, justifica a preservação dos valores culturais dessa região. Ainda no contexto cultural, a preservação da Serra do Corpo-Seco como um patrimônio de valor religioso (Figura 08) se faz necessário, tendo em vista que

A Serra do Corpo Seco é também o palco para diversas manifestações religiosas, principalmente, as afro-brasileiras. Isso decorre do fato de que, para essas religiões, a natureza representa a materialização do divino, sendo o palco, o altar da adoração espiritual, existindo, inclusive, locais específicos para devoção dos Orixás (PORTUGUEZ, 2015, apud MIYAZAKI, 2018).

FIGURA 08 – Representações religiosas na Serra do Corpo-Seco

Fonte: WOLF, 2019

Contudo, a Serra do Corpo-Seco possui diversos valores que a possibilitam tornar um Patrimônio Geomorfológico, consequentemente, a Serra poderia ser utilizada como ponto turístico da cidade de Ituiutaba e região. Um outro fator que há de considerarmos é seu aspecto sombrio, medonho e assustador, sendo assim um potencial a ser desenvolvido tanto para o turismo, quanto para os estudos psicológicos sobre o terror.