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O mundo dos mortos sempre fascinou o ser humano. As representações sobre a morte e o além-vida estão presentes tanto nas tradições ocidentais quanto nas orientais, sendo transmitidas de geração em geração por meio das lendas. Muitas delas, inclusive, acreditam na possibilidade de o morto regressar à vida, seja para vingar-se de um enterro não digno, seja por não ter assimilado sua condição de morto, ou ainda pelo fato de ser tão pecaminoso em vida, que nem os céus e nem o inferno o quiseram.

Na literatura nórdica, por exemplo, acredita-se que os mortos-vivos formarão uma legião para acabar com os vivos durante o Ragnarök, uma batalha na qual conduzirá a humanidade ao fim do mundo. Podemos citar também o exemplo de K’uei, o morto-vivo chinês que, por não conseguir o mérito suficiente para adentrar o além-mundo após sua morte, vaga miseravelmente na terra, sempre à espreita dos pecadores para se vingar de forma maléfica e furiosa. (FILHO, 2013)

Para entender a origem deste tipo de lenda, faz-se necessário entender as antigas formas de representações dos mortos-vivos maléficos. De acordo com Page e Ingpen (1985), podemos separar essas representações em duas classificações. A primeira é o taxim, definido como o morto-vivo masculino que vagueia pela noite atrás de alguma vítima. A segunda é o revenant, termo originário da palavra francesa revenir e significa retornado, geralmente utilizado para caracterizar os vampiros, conforme nos explica, Page e Ingpen (1985):

[Taxim é um] epíteto proveniente do Leste Europeu para os mortos-vivos [...]: são restos mortais, ambulantes, cuja alma não pode descansar em paz. Em geral, uma pessoa afligida por essa sina encontra uma forma de escapar do túmulo, determinada a se vingar de algum mal sofrido durante sua existência mortal. [...] um taxim pode ter a aparência apavorante de uma pessoa enterrada já há algum tempo. [...] muitas vezes o terrível fedor de decomposição precede um taxim e antecipa sua chegada.

[Revenants significa] literalmente “retornados”, termo originário da palavra francesa revenir, que significa “voltar”. São os fantasmas inquietos que retornam eternamente às cenas de crimes mortais, dos quais podem ter sido vítimas ou perpetradores. As vítimas retornam para lamentar seu destino premature; os perpetradores porque seus atos sangrentos negam-lhe o descanso eterno. Os

“retornados” de assassinos podem ser muito perigosos para os vivos e devem ser afastados pelos ritos de exorcismo (PAGE, INGPEN, 1985, apud FILHO, 2013, p. 4).

A lenda do Corpo-Seco, por sua vez, possui origem nas sociedades medievais e está relacionada aos funerais e lutos que não puderam ser realizados corretamente, conforme nos explica Schmitt (1999)

Na sociedade medieval, assim como em muitas outras sociedades tradicionais, a forma particular de existência que se atribui aos defuntos depende do transcurso do “rito de passagem” da morte: os mortos voltam, de preferência, quando os ritos dos funerais e do luto não puderam efetuar-se normalmente, por exemplo, se o corpo de um afogado desapareceu e não pôde ser sepultado segundo o costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher no parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a comunidade dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente considerados maléficos (SCHMITT, 1999 apud FILHO, 2013, p. 4).

Neste contexto, Delumeau (1989) nos conta que:

Quando se desenterram os mortos suspeitos de ser esses espíritos maléficos, eles são encontrados como vivos, com um sangue ‘vermelho’. Então, sua cabeça é cortada e recolocam-se no fosso as duas partes do corpo, cobrindo-as de cal viva” (DELUMEAU, 1989, apud FILHO, 2013).

De acordo com Cascudo, (1983), esse tipo de rito funerário pode ser encontrado na Europa durante a epidemia de medo dos fantasmas no fim do século XVII e começo do XVIII. Segundo ele, os membros da família do morto-vivo apressam-se em “promover missas em sufrágio da alma exilada do julgamento final, distribuindo esmolas e tendo o cuidado de preencher o caixão de cal viva, para que o corpo-seco seja definitivamente corroído e, desaparecendo, mereça castigo ou prêmio” (CASCUDO, 1983, p. 259).

Certamente o Corpo-Seco deve ser considerado uma história de fantasma, pois “a deambulação é convergência do mito das almas penadas” (CASCUDO, 1983, p. 313). Neste sentido, as representações dos mortos-vivos induzem a interpretação de um “retorno do reprimido, uma “dessacralização” da figura humana por meio da dissolução de fronteiras entre o humano e o animalesco, o sagrado e o profano, o divino e o telúrico” (FILHO, 2013, p.9).

Para Filho (2013, p.2), “as crenças e o imaginário dependem, sobretudo, das estruturas e do funcionamento da sociedade e da cultura em uma dada época”. Portanto, o imaginário sobre a morte e, consequentemente, as representações sobre os mortos-vivos depende essencialmente da cultura e das religiões das sociedades, pois tendem a atribuir aos mortos representações do que esperam para si próprios de acordo com a cultura e o contexto sócio histórico em que vivem.

A criação de lendas que representem a morte é um indicio de que devemos lidar com o fato de que um dia morreremos. Todos, em algum momento, já pensaram sobre a morte por exemplo. Neste sentido, Ellard (2016) em seu livro Psicogeografia, explica que há três estratégias para lidarmos com o fato da morte. A primeira diz respeito à simples negação, ocorre geralmente quando pensamos na morte em momentos que não vemos mais sentido na vida cotidiana. Essa primeira negação se esvai quando disfrutamos de sensações boas, como férias, uma boa comida ou uma boa música.

A segunda maneira de lidarmos com a morte, segundo o autor, “é a crença de que nossa existência de um modo ou de outro sobreviverá à morte de nossos corpos” (ELLARD, 2016, p. 188, tradução nossa), ou seja, englobam as crenças sobre vida após a morte, como a reencarnação e o julgamento divino, presentes em algumas crenças cristãs. No caso deste trabalho, o Corpo-Seco é uma representação da reencarnação de um corpo pecaminoso, respeitado pelos vermes e negado pelo céu e pelo inferno.

A terceira estratégia, e não menos importante para esse trabalho, diz respeito tanto a uma forma de negação, quanto uma remodelação do nosso entendimento de mundo, pois para Ellard (2016, p.189, tradução nossa), “afrontamos o conhecimento de nossa própria morte construindo, literalmente ao parecer, um legado que sobreviva à nossa marcha”. É o impulso de construirmos templos religiosos, cujos signos estão presentes na paisagem com o intuito de, simbolicamente, representar uma determinada ideia de mundo; bem como a criação de lendas, como é o caso da Lenda do Corpo-Seco, cujo intuito é reforçar a ideia de que o pecaminoso terá o corpo negado tanto pelo diabo quanto por Deus.