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Mitologia e genealogia: Barthes e Nietzsche sobre linguagem e ideologia

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Academic year: 2020

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Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 9, n. 16, p. 132-139, jan./abr. 2017 132

MITOLOGIA E GENEALOGIA: BARTHES E NIETZSCHE SOBRE LINGUAGEM E

IDEOLOGIA

Enrique Nuesch

Resumo: Este artigo ensaia uma aproximação entre o pensamento de Friedrich Nietzsche e o de Roland

Barthes, considerando que ambos se posicionaram criticamente, em seus respectivos contextos, diante dos mecanismos através dos quais o poder institucional (classe, religião, moral) se propaga pelas distintas esferas da sociedade. São comparadas as posições de Barthes em sua obra Mitologias e às de Nietzsche ao longo de algumas de suas obras. Trata-se de destacar alguns aspectos da inquietação de ambos pensadores sobre a mediação semiológica entre o indivíduo e a realidade e o papel desta mediação nas relações de poder na sociedade.

Palavras-chave: Semiologia, mitologia, genealogia, burguesia, moral.

Mythology and genealogy: Barthes and Nietzsche on language and ideology

Abstract: This study aims to relate Friedrich Nietzsche’s and Roland Barthes’ thoughts, having in mind that both

had, in their own contexts, a critical position regarding mechanisms by which institutional power (class, religion, morals) propagates over the spheres of society. It compares Barthes’ positions in his book Mythologies with Nietzsche’s positions in some of his works. The objective is to highlight some aspects of concerns of both thinkers on the semiological mediation between individual and reality and the role of this mediation in the power relations of society.

Keywords: Semiology, mythology, genealogy, bourgeoisie, morals.

Mitología y genealogía: Barthes y Nietszsche sobre lenguaje e ideología

Resumen: En este artículo se ensaya una conexión entre el pensamiento de Friedrich Nietzsche y Roland Barthes,

teniendo en cuenta que ambos se posicionaron críticamente, en sus respectivos contextos, ante los mecanismos por lo que el poder institucional (clase, religión, moral) se propaga a las diferentes esferas de la sociedad. Se comparan las posiciones de Barthes, en su obra Mitologías, y Nietzsche, a lo largo de algunas de sus obras. Se busca destacar algunos aspectos de las críticas de ambos pensadores en la mediación semiótica entre el individuo y la realidad, y el papel de la mediación en las relaciones de poder en la sociedad.

Palabras clave: Semiótica, mitología, genealogía, burguesía, moral.

Pode-se figurar a relação entre a mitologia barthesiana e a genealogia nietzscheana com a parábola, dada por Nietzsche, da flecha que é lançada mais adiante por aquele que a recolhe. Com efeito, Nietzsche, ao finalizar a primeira dissertação da Genealogia da moral, propõe que se leve adiante o que ele acaba de fazer naquela dissertação; ele diz que é necessário investigar “Qué indicaciones nos proporciona la ciencia del lenguaje, y en especial la investigación etimológica, sobre la historia evolutiva de los conceptos morales?” (NIETZSCHE, 2004d, p. 56). Vê-se que o filósofo tinha uma intuição forte acerca do peso que uma investigação sobre a linguagem poderia ter sobre as questões que se propõe a levantar. Barthes não se propõe ao estudo da evolução dos conceitos morais, mas adota os estudos da linguagem que o seu tempo lhe proporcionam como perspectiva da sua investigação. As suas Mitologias não têm como objetivo o estudo da moral estritamente, porém apontam para o procedimento pelo qual uma moral é capaz de instaurar-se no seio das relações significantes entre os indivíduos de uma sociedade.

Nietzsche, como bem lembra Foucault (1985, p. 15), não procede estando-se unicamente a refletir, num exílio especulativo, o que seria manter-se no que ele chama de “azul dos conceitos”. Para

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ele a genealogia é uma investigação cinza: “el gris, quiero decir, lo fundado en documentos, lo realmente comprobable, lo efectivamente existido, en una palabra, toda la larga y difícilmente descifrable escritura jeroglífica del pasado de la moral humana (NIETZSCHE, 2004d, p. 16).

A investigação seria o decifrar nos diversos textos esse grande texto, o qual se escreve, como ele o diz, “en caracteres que han permanecido legibles a lo largo de la historia entera de la humanidad” (NIETZSCHE, 2004d, p. 53), texto escrito pela tensão entre as forças ativas e reativas, ou seja, escrito pelas diferenças entre as forças. E isto quer dizer ainda que não se trata de uma escrita estritamente gráfica, trata-se antes de uma escrita generalizada, pela qual se inscreve uma multiplicidade de relações. Escrita generalizada, porque para Nietzsche todo pensamento se dá linguisticamente, todo pensar é lidar com signos: “Deixamos de pensar quando não queremos fazê-lo na obrigação lingüística; [...] O pensamento racional é um interpretar segundo um esquema, do qual não podemos nos desfazer” (NIETZSCHE, 2005, p. 228).

Barthes se posiciona, por sua vez, também como um decifrador. A generalização do caráter sígnico das relações humanas é para ele um fato, por isso tudo pode tornar-se um mito: “Todas as matérias-primas do mito, quer sejam representativas quer gráficas, pressupõem uma consciência significante” (BARTHES, 1987, p. 133). E como tudo pode tornar-se um mito, o mitólogo também não pode restringir-se ao azul da contemplação, ele necessariamente irá ao encontro dos mitos efetivamente existentes: os corpos e gestos dos lutadores, a crítica literária, a propaganda de sabão em pó, serão documentos a serem analisados, espreitados “lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos” (FOUCAULT, 1985, p. 15). Foucault se refere, nesta passagem, evidentemente a Nietzsche, mas remeter as suas palavras às de Barthes mostra que vale lembrar-se como este aponta para o esvaziamento da história que o mito pratica sobre aquilo de que se apodera: “o mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas: nele, as coisas perdem a lembrança de sua produção” (BARTHES, 1987, p. 163). É que a naturalização de um estado de coisas feita pelo mito não deixa de ser mais uma das máscaras do que Nietzsche considera ser o pensamento metafísico a ser combatido, o pensamento de tudo o que é fixo, imutável e já dado naturalmente: “Es imprescindible decir que todo ha evolucionado; no existen hechos eternos ni verdades absolutas” (NIETZSCHE, 2004c, p. 18).

Pode-se estender a Barthes a tipologia nietzscheana, a saber, a distinção entre ativo e reativo, nobre e escravo (NIETZSCHE, 2004a, p. 7-56)? Não, ele definitivamente não falaria nesses termos. É o ano 56, quando Barthes circula mais entre ideias marxistas1. Burguês, pequeno-burguês, proletariado, são parte do léxico barthesiano de então. Ainda assim, pode-se encontrar em sua própria tipologia algo da já traçada por Nietzsche, não exatamente na caracterização dos tipos em si mesmos, mas sim no que seriam os efeitos das práticas desses tipos. Pense-se no tipo burguês traçado por Barthes (BARTHES, 1987, p. 149): ele é o produtor dos mitos, já que é possuidor dos meios de comunicação, a imprensa. Ora, como ficou dito, o mito esvazia de sua história aquilo do que ele se apodera, e desta forma entrega um estado de coisas atual como se este fosse natural, quer dizer, como se assim sempre tivesse sido. Isto quer dizer que, a partir deste estado, instauram-se valores, uma avaliação, e constrói-se um ideal a ser seguido e perpetuado. Segundo Barthes, o produtor do mito é um cínico e a sua atividade só pode causar repulsão (BARTHES, 1987, p. 47). O que seria para

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Nietzsche cínico e repulsivo? Sem dúvida, o tipo reativo, aquele que instaura o ideal ascético e o mundo metafísico, ou seja, avaliações segundo as quais há um ideal fixo, eterno, de homem e mundo, a ser seguido e perpetuado, em uma palavra: conservação. Barthes, de fato, não se detém no que seria o tipo ativo. Talvez porque seu texto tem o objetivo de denunciar um mecanismo que a seu ver é funesto, e este provém do tipo reativo. E já que este mecanismo é aquele do qual se utiliza o burguês, o tipo reativo, é nele que há de se concentrar. Assim mesmo, Nietzsche, que se detém sobre tipo ativo, também o faz bastante, na Genealogia da moral, sobre o tipo reativo; como em Barthes, há um olhar em derredor, fala-se de uma conjetura atual, e fala-se criticamente sobre ela.

Qual é essa conjetura em cada caso? Barthes: domínio do ideal burguês; Nietzsche: domínio do ideal ascético, do pensamento metafísico; ambos: domínio do tipo reativo. Para ambos também se tratará, então, de proceder, por um lado, combativamente, e por outro expressando um misto de desgosto e conformismo perante a situação. Este conformismo não é contraditório com a atitude combativa. Não é um conformismo inativo. Ele tem muito mais a ver com o fato de que a situação perante a qual cada autor se depara mostra que por um lado ela é repulsiva, mas por outro ela sempre foi uma possibilidade, dada a constituição e desenvolvimento das relações humanas. Barthes tem como base uma concepção semiológica da consciência humana, assim como Nietzsche. Em última análise, as situações perante as quais cada um deles se posiciona são as possibilidades da linguagem, quer dizer, o que é capaz de se fazer com ela. São conhecidos hoje tanto a qualidade opressiva da linguagem segundo Barthes – ao lembrar, com Jakobson, que um idioma não só “permite dizer”, mas também “obriga a dizer” (BARTHES, 2004, p. 12) –, como os constrangimentos lógicos que a linguagem impõe ao pensamento segundo Nietzsche (NIETZSCHE, 2004d, p. 44).

O lado combativo pode ser lido, assim, em tudo o que diz respeito à exposição dos conceitos e métodos operatórios de cada um. Barthes, afinal, tenta elaborar um procedimento para decifrar o mito: expõe o que há de saussuriana na sua visão da questão, traça o lugar do decifrador e anuncia: ele é um desmistificador (BARTHES,1987, p. 149). Nietzsche, sabe-se principalmente graças a Foucault (1985), está reformulando o que para ele seria o “espírito histórico” e traçando o método genealógico. Na Genealogia da moral especificamente, ele é bastante categórico ao anunciar suas hipóteses: “La indicación de cuál es el camino correcto” (NIETZSCHE, 2004d, p. 23. Cursiva nossa). Sabe-se que a sua invectiva trata de combater justamente o que ele chama de “utilitarismo inglês”, o qual termina por errar nas suas pesquisas pela origem dos sentimentos morais. O outro lado, do desgosto e da conformidade, pode ser lido onde há descrição de como foi possível a situação perante a qual cada um dos autores está posto. Ou seja, o que em Barthes é a descrição do procedimento pelo qual o mito naturaliza o real, em Nietzsche será o que se passa com a “rebelião escrava na moral” (NIETZSCHE, 2004b, p. 95; 2004a, p. 32-38) e no que ele chama de “fábrica dos ideais” (NIETZSCHE, 2004a, p. 46-48).

“Naturalizar o real” é a fórmula reduzida de Barthes para falar, de entre outros procedimentos, do torniquete pelo qual funciona a significação do mito:

torniquete incessante, que alterna o sentido do significante e a sua forma, uma linguagem-objeto e uma metalinguagem, uma consciência puramente significante e uma consciência puramente representativa; esta alternância é, de certo modo,

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Barthes fala da capacidade do mito de fazer com que coexistam arbitrário e natural, o que é arbitrário passando por natural (BARTHES, 1987, p. 152-157). Naturalização do real também se refere ao roubo e restituição da linguagem que é o mito, e igualmente se refere à “ex-denominação” da ideologia burguesa através do mito (BARTHES, 1987, p. 158-162) ou ainda a despolitização do real (BARTHES, 1987, p. 162-165), ainda que neste último caso, segundo Barthes, sempre restará um resíduo político numa porção de realidade. Esta síntese das formas de atuar da linguagem mítica é possível justamente porque há um movimento geral do mito, que é aquele pelo qual o produtor do mito (o burguês) domina ideologicamente e de forma silenciosa (gritante, é claro, na ótica de Barthes) a sociedade. Barthes usa termos figurativos para falar desse movimento: “literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere, uma evaporação; em suma, uma ausência sensível” (BARTHES, 1987, p. 163), e não duvida em referir-se ao mecanismo mítico como a uma arte ou um jogo habilidoso: “Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a faze-las significar uma insignificância humana” (BARTHES, 1987, p. 163). Ele, certamente em função da seriedade de sua empresa, descreve rigorosamente o funcionamento do mito, e isto deixa claro que, por um lado, o mito é um golpe de extrema inteligência (daí a prestidigitação), e por outro, não deixa de ser, num todo, repugnante: “o que é repulsivo no mito, é o recorrer a uma falsa natureza, é o luxo das formas significativas. Esse desejo de oferecer à significação o peso, a caução de toda a natureza, provoca uma espécie de náusea” (BARTHES, 1987, p. 147).

Barthes, decifrador, ao passo que enxerga além da superfície dos signos2, vê demais, e isto lhe causa a “repulsa” a que se reporta. Se a “fábrica dos ideais” denunciada por ele causa repulsa, aquela que descreve Nietzsche também não deixa de fazê-lo. Toda uma adaptação da vista é necessária: “¿Quiere alguien mirar um poco hacia abajo, al misterio de cómo se fabrican ideales en la tierra? [...] – Espere usted un momento, señor indiscreto y temerario: su ojo tiene que habituarse a esa luz falsa y cambiante” (NIETZSCHE, 2004d, p. 46). Porém, nenhuma adaptação pode atenuar a repulsa: “¡Basta! Ya no lo soporto más. ¡Aire viciado! ¡Aire viciado! Ese taller donde se fabrican ideales – me parece que apesta a mentiras” (NIETZSCHE, 2004d, p. 46), é o que diz em seguida o “senhor temerário”. A visão que tanto afeta o interlocutor do pequeno diálogo com que Nietzsche introduz o caráter pestilento da fábrica dos ideais é, claro, a do mecanismo pelo qual o tipo reativo se apodera da sociedade europeia. Mecanismo que, para Nietzsche, foi um refinadíssimo golpe de inteligência. Viu-se que, em Barthes, é um golpe que age no plano Viu-semiológico; em Nietzsche, não deixa de Viu-ser assim: para a instauração dos ideais ascéticos, e sobre tudo, para a elevação dos escravos na moral, nada mais inteligente que agir na base sobre a qual se constrói o pensamento consciente, a saber, a crença nos conceitos, fundada no pensamento obrigatoriamente sígnico – conceitual do ser humano: “nada tiene de extraño el que las reprimidas y ocultamente encendidas pasiones de la venganza y del odio aprovechen en favor suyo esa creencia” (NIETZSCHE, 2004d, p. 45). Como se sabe, a fórmula com que Nietzsche anuncia este golpe genial e subterrâneo é “transvaloração” (umwertung): “con una

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consecuencia lógica aterradora se han atrevido a invertir la valoración aristocrática de los valores” (2004d, p. 31). Tal golpe se caracteriza também por ser um longo processo (“magia negra de una política verdaderamente grande de la venganza [...] de amplias miras, subterránea, de avance lento, precalculadora” (NIETZSCHE, 2004d, p. 31), de dois mil anos, dirá Nietzsche. Barthes também não deixará de sugerir um acontecimento para situar a elevação do tipo reativo. Desde 1789, diz ele, “diversos tipos de burguesia se sucederam no poder” (BARTHES, 1987, p. 158). Isto é algo sugestivo para a leitura da genealogia nietzscheana, já que nesta uma nova vitória do ressentimento e da reatividade é associada a tal acontecimento3.

Genial, repugnante, mas, para ambos, consequência de uma possibilidade, dado o meio onde se desenvolve a moral e os mitos: um meio semiológico. Sabemos que no esquema do funcionamento do mito (BARTHES, 1987, p. 136-177), o que é denominado por ele como “sentido” é a união entre significante e significado do sistema semiológico primeiro, sentido este que vem a ser recolhido pela “forma” do mito (significante do sistema semiológico segundo) e associado ao conceito do mito (significado do sistema semiológico segundo), dando-se assim o esvaziamento da história: o “sentido” se relaciona diretamente com o “conceito” mítico. Quando o mito se apodera do sistema semiológico primeiro, o conceito mítico se acrescenta ao sentido, ele é capaz de infiltrar-se em tudo o que funciona significando. Ora, isto procede assim porque, segundo Barthes, há um “torniquete” do sentido, e o conceito mítico “é uma espécie de nebulosa, condensação mais ou menos ‘fluida’ de um saber” (BARTHES, 1987, p. 143). É que há algo como um sistema de canos ou canais por onde circulam, mais bem, fluem (Barthes fala em termos de hemorragias e vazamentos), os sentidos e as significações. Um torniquete do sentido, justamente para cortar um fluxo, fechar uma válvula para abrir outra: a do conceito mítico. Pode-se figurar, pois, em Barthes, uma fluidificação dos signos; de fato, o mesmo esquema por ele colocado postula virtualmente um englobamento infinito entre os sistemas semiológicos, estabelecendo-se assim puras trocas de fluidos. Nietzsche, por sua vez, tem alguns esquemas que se podem dizer semiológicos e, como já colocado, ele se dizia um decifrador de signos. Na Genealogia da moral, ele anuncia: “la forma es fluida, pero el sentido lo es todavía más” (NIETZSCHE, 2004d, p. 85), e por isso, nada é dado de antemão, tudo está sempre fluindo (1970, p. 601). Fluxos entre formas e sentidos, sem isto a transvaloração não seria possível; sobre tudo, há um fluxo do real, fluidificação total que faz com que tudo esteja conectado4: englobamento infinito.

Ora, pode-se dizer que nessa fluidez, tanto em Barthes quanto em Nietzsche, está dada a possibilidade da ascensão do tipo reativo. O que caracteriza, em ambos, essa ascensão? Ela se dá por uma espécie de ocupação topológica. Acompanhando Barthes: “A ideologia burguesa pode portanto preencher tudo [...], tudo na nossa vida cotidiana é tributário da representação que a burguesia criou, para ela e para nós, das relações entre o homem e o mundo” (BARTHES, 1987, p. 159-161), isto é, uma ocupação que se dá em qualquer ponto, dada, potencialmente, em toda parte: “O mito pode facilmente insinuar-se, crescer dentro do sentido: é um roubo por colonização” (BARTHES, 1987, p. 153); há uma verdadeira propagação sem que seja possível apontar-lhe uma direção; ela vem de e vai para todas as direções: “O mito pode atingir tudo, tudo corromper, até o próprio movimento que se lhe opõe, de modo que quanto mais a linguagem objeto [sistema semiológico primeiro] resiste no início,

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tanto maior é a sua prostituição final: quem resiste totalmente cede totalmente” (BARTHES, 1987, p. 153).

O panorama colocado por Nietzsche não é muito diferente. A transvaloração já não tem um lugar certo, ela é levada a cabo em todas partes. Assim, o que poderia dizer-se um acontecimento territorial, é, em seguida, um acontecimento global: “En un tiempo Dios no contaba más que con su pueblo, con su pueblo “elegido”. Luego, al igual que su pueblo, llevó una existencia trashumante y ya no se estableció en parte alguna, hasta que al fin, como un gran cosmopolita, se encontraba bien en todas partes y tenía de su lado a un ‘gran número’, es decir, a toda la humanidad” (NIETZSCHE, 2004a, p. 39). Há, então, na ascensão do tipo reativo, um movimento de desterritorialização. Graças à fluidez do meio5 e a sua conectividade total, a propagação da moral e do mito dá-se de forma rizomática6, quer dizer, através da criação de um espaço liso. A onipresença de Deus e o roubo por colonização se tratam de uma ocupação estatística, “um movimento que tome o espaço e afecte simultaneamente todos os seus pontos” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 28). Pode-se figurar novamente o que seria a “magia negra” (Nietzsche) e a “prestidigitação” (Barthes), pensando-se em como, por um lado, o tipo reativo se abre um espaço liso para propagar o mito e a moral, sendo que estes últimos, por outro lado, operam efeitos contrários aos princípios do espaço liso e do rizoma, na medida em que tratam de enraizar um modelo ou arquétipo imutável como sentido da vida. Enraizar, para dar a compreender de forma arborescente, quer dizer, anunciar origens e destinos a serem seguidos e aos quais submeter-se7.

Passando pela repugnância dos mecanismos e estratagemas do tipo reativo, o mitólogo e o genealogista permitem-se anunciar, por fim, um diagnóstico; a saber, o mito e a moral causam a doença do corpo, a moral e o mito instauram uma contradição fisiológica. O mito burguês, diz Barthes, introduz um imaginário, um ideal coberto por uma “pasta ‘natural’”, que é praticado em contradição com toda condição material, ou seja, de existência efetiva: “as normas burguesas são vividas como leis evidentes de uma ordem natural [...] o grande casamento burguês, fruto de um rito de classe (a apresentação e consumpção das riquezas), não pode ter nenhuma relação com o estatuto econômico da pequena-burguesia” (BARTHES, 1987, p. 181). O ideal propagado pelo mito é por tanto uma doença mortal, que age por sufocamento: “a cada instante e seja onde for, o homem é bloqueado pelos mitos; estes o reenviam ao protótipo imóvel que vive por ele, no seu lugar, que o sufoca como um imenso parasita interno” (BARTHES, 1987, p. 154).

Porém, não é uma morte definitiva. Como o pintor Titorelli (do romance kafkiano O processo) diria, é um “adiamento indefinido” da morte. O mito é uma linguagem “que não quer morrer: arranca aos sentidos, de que se alimenta, uma sobrevivência insidiosa, degradada, provoca neles um adiamento da morte [...], faz deles cadáveres falantes” (BARTHES, 1987, p. 154). Da mesma forma que o mito age com o sistema semiológico primeiro, neste ponto, ele age com o consumidor do mito.

Nietzsche, por sua vez, não deixará de apontar a moral como um adoecimento. A “interiorização do homem”, a contenção de seus instintos e a reversão destes contra o próprio homem o levam à “doença mais grave”, “una dolencia de la que la humanidad no se ha curado hasta hoy, el sufrimiento del hombre por el hombre” (NIETZSCHE, 2004d, p. 95). Esta doença consistirá em, justamente, avaliar a realidade efetiva pautando-se num mundo metafísico, além-mundo a ser atingido pela “passagem” por “este” mundo seguindo os caminhos do ideal ascético. Uma contradição fisiológica que, porém,

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antes de uma debilitação progressiva até a morte, trata-se da conservação da debilidade (NIETZSCHE, 2004d, p. 142), já que, no que tange às forças ativas e reativas, não se trata de eliminação de uma pela outra, mas sim de superposição; as forças reativas apenas minimizam as ativas, não as destroem. É disto que se trata na doença do homem, no olhar cansado que olha para trás: conservação da vida em sua condição mínima: preferir “querer la nada a no querer” (NIETZSCHE, 2004d, p. 190).

Mitologia barthesiana, genealogia nietzscheana: uma intuição acerca dos poderes da linguagem as aproxima, e urge seus autores a elaborarem um diagnóstico da linguagem enquanto um campo de batalha e um método para nele denunciar e combater as estratégias discursivas que visam historicamente a instaurar a hegemonia de uma visão única. No horizonte deste campo, repousam as questões disputadas ainda hoje, em torno do fechamento ou abertura de uma concepção de humanidade e de seus destinos.

Notas

1 E as citações de Marx surgem em momentos importantes, onde se explica o funcionamento do mito e os efeitos

do mito sobre a sociedade. Assim, Marx ajuda a responder qual é o alcance do fato de ser, segundo Barthes, o mito uma fala despolitizada (BARTHES, 1987, p. 164). Mais importante é a remissão a Marx quando Barthes traça as figuras retóricas do mito, sendo uma delas a “omissão da história” (BARTHES, 1987, p. 170).

2 Porque há um jogo óptico, uma certa focalização para, no decifrar do mito, poder perceber o significante mítico:

“focalizar a paisagem ou a vidraça” (BARTHES, 1987, p. 145).

3 “En un sentido más decisivo incluso y más profundo que en la Reforma protestante, Judea volvió a vencer outra

vez sobre el ideal clásico com la Revolución francesa: la última nobleza política que había en Europa, la de los siglos XVII y XVIII franceses, sucumbió bajo los instintos populares del resentimiento” (NIETZSCHE, 2004d, p. 55).

4 “Supondo-se que o mundo dispusesse de um quantum de força, é evidente que todo deslocamento de poder

para qualquer local condicionaria todo o sistema e, por tanto, junto à causalidade de uma coisa por trás da outra haveria uma dependência de uma coisa junto à outra e com a outra” (NIETZSCHE, 2005, p. 227).

5 Em Barthes seria o meio semiológico, já em Nietzsche haveria que dizer, em vez de meio, algo como um campo

de forças, que não deixa de ser semiológico na medida em que Nietzsche diz frequentemente estar lidando com uma sintomatologia: “Mi tentativa de definir los juicios morales como síntomas y signos que denotan procesos fisiológicos de logro o malogro, así como la conciencia de condiciones de supervivencia y crecimiento” (NIETZSCHE, 1970, p. 470).

6 Os princípios de uma “rizomática” e dos espaços liso e estriado foram avançados por Deleuze e Guattari (1995a,

p. 7-22; 1995b, p. 179-190), assim mesmo, desenvolveram a contraposição entre rizoma e árvore/raiz (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 16).

7 A arte, por sua vez, também não escapa, em nenhum dos casos. Para Barthes, a ex-denominação do nome

burguês, uma das estratégias no uso do mito, garante o crescimento endógeno do ideal burguês em toda manifestação artística: “tudo o que não é burguês é obrigado a pedir emprestado à burguesia. A ideologia burguesa pode portanto preencher [pré-enchimento, note-se, enchimento de antemão, pois] tudo e, sem qualquer risco, perder seu nome: ninguém lho irá devolver; pode, sem encontrar resistência, apresentar o teatro, a arte, o homem burguês, como o teatro, arte, o homem eternos” (BARTHES, 1987, p. 159). Nem os movimentos de vanguarda podem, segundo Barthes, subtrair-se ao mito, já que “provêm de um fragmento da própria burguesia, de um grupo minoritário de artistas e intelectuais, sem outro público que a própria classe que contestam, e que dependem, ainda, do dinheiro dessa mesma classe para se poderem exprimir” (BARTHES, 1987, p. 160). A arte, estaria, pois, a serviço da propagação dos ideais do tipo reativo. Nietzsche também o percebera: “Los artistas han sido en todas las épocas los ayudas de cámara de una moral, o de una filosofía, o de una religión” (NIETZSCHE, 2004d, p. 118).

Referências

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1987. _____. Aula. São Paulo: Cultrix, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, v. 1. São Paulo: 34, 1995a. _____. Mil platôs, v. 5. São Paulo: 34, 1995b.

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Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 9, n. 16, p. 132-139, jan./abr. 2017 139 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: _____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 12-22.

NIETZSCHE, Friedrich. El anticristo. Buenos Aires: Gradifco, 2004a. _____. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia. das letras, 2004b. _____. Humano, demasiado humano. Buenos Aires: Need, 2004c. _____. A gaia ciência. Lisboa: Guimarães, 1984.

_____. La genealogia de la moral. Buenos Aires: Libertador, 2004d. _____. La voluntad de poder. Buenos Aires: Prestígio, 1970.

_____. Sabedoria para depois de amanhã. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Recebido em: nov. 2016. Aceito em: fev. 2017.

Enrique Nuesch: Doutor em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Docente da Universidade Estadual do Paraná, Câmpus Apucarana (Unespar). E-mail: enriquenuesch@gmail.com

Referências

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