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Da China Ming na Cultura Europeia: Os Pólos Português e Italiano (1499-1550)

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I

O objectivo deste estudo é acompanhar a constituição do banco europeu de textos sobre a China Ming entre 1499, época das cartas de Lisboa de Giro-lamo Sernigi aquando do regresso da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, e 1550, primeira edição em Veneza do Delle Navigationi et Viaggi de G. B. Ramusio (1485-1557).

São estes os primeiros anos de uma informação europeia sobre a China Ming. Informação dispersa, pontual, mesmo fragmentária que marca os hori-zontes do conhecimento alcançado pelos europeus.

Inícios de um saber europeu da China Ming desde as primeiras infor-mações de chineses e da China marítima e mercantil até aos primeiros enun-ciados, nos finais dos anos de 1540, de elogio ao valor da Cultura e da Civilização Chinesas.

Compreender as fundações que possibilitam as visões europeias da China é um exercício fascinante que coloca mil e um problemas. Fascinante antes de mais porque até meados do século XVIvemos surgir de uma forma

implí-DA CHINA MING NA CULTURA EUROPEIA:

OS PÓLOS PORTUGUÊS E ITALIANO (1499-1550)

por

LUÍSFILIPEBARRETO*

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* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

1 Henri CORDIERna Biblioteca Sinica: Dictionaire Bibliographique des ouvrages relatifs a l’empire chinois, Paris, 1904-1924, 5 vols., na pág. 2062 do vol. IIIcomeça com Galeote PEREIRA

a secção de «Voyageurs dans les temps modernes»: E. J. SPENCE, The Chan’s Great Continent:

China in Western Minds, Londres, Penguin Press, 1999, passa de Marco Polo a Galeote Pereira/

/«The Catholic Century», pp. 18/19. Também a mesma constante surge, embora atenuada, em obras como R. DAWSON, The Chinese Chameleon: An Analysis of European Conceptions of Chinese

Civilization, Londres, Oxford U. Press, 1967, e Donald F. LACH, Asia in the Making of Europe,

Chicago U. Press, 1965, vol. Ie isto só para citar alguns dos mais relevantes estudos sobre a

matéria. Por sua vez, N. CAMERON, Barbarians and Mandarins: Thirteen Centuries of Western

Travellers in China (1970), Hong Kong, Oxford University Press, 1993, passa directamente de

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cita e ainda larvar múltiplos dados, ideias e mecanismos que vão ser cons-tantes a partir dos finais do século XVIe ao longo do século XVII.

Os anos de 1499 a 1550 desenham pois fios de condução para paisagens que apenas na centúria e meia seguintes vão ser patentes.

Regra geral a historiografia tem votado pouca atenção a estes anos de informação europeia mais escondida e menos desenvolvida sobre a China Ming. Tudo se passa como se o conhecimento europeu moderno da China começasse nos anos de 1555-1556 com Galeote Pereira.

Múltiplas razões explicam esta penumbra na investigação historiográfica de referência. O nosso objectivo é contribuir para que os primeiros anos de quinhentos ganhem o lugar e função próprios na história do olhar europeu da China.

Vamos, antes de mais, reconhecer os textos fundamentais na sua ordem individual e rede de emergência e em seguida, procurar as constantes deste primeiro meio século de conhecimento europeu da China2.

II

Em Lisboa, a 10 de Julho e a 28 de Agosto de 1499 o mercador floren-tino Girolamo di Cipriano Sernigi (1453-depois de 1515) escreve para Flo-rença cartas com as novidades orientais trazidas no regresso da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia.

Cartas que vão ser impressas em Vicenza, em 1507, por Francazano de Montalboldo nos Paesi Novamente Retrovati et novo Mondo da Alberico Vesputio Florentino Intitulato. Os Paesi vão ter ao longo da primeira metade de quinhentos várias reedições italianas (Milão, 1508, 1512 e 1519 e Veneza, 1517 e 1522) 3bem como, em tradução latina em Milão, 1508, Itinerariu

Por-tugallésiu, reeditada no Novus Orbis, Basileia, 1532, e em Paris no mesmo ano com duas tiragens, bem como, de novo em Basileia, 15374. Em

Nurem-berga em 1508 surgem duas traduções alemãs e nova edição alemã em Estrasburgo, em 1534, a partir da tradução latina. bem como sete edições francesas em Paris, a partir dos anos de 1516 ou 1517. Ambas as cartas

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2 Tanto mais que nos últimos anos em línguas italiana e portuguesa surgiram estudos que

começam a pesar os anos até 1550 como é o caso de G. BERTOLUCCIOLIe F. MASINI, Italia e Cina,

Bari, Laterza, 1996, e Rui Manuel LOUREIRO, Fidalgos, Missionários e Mandarins – Portugal e a

China no século XVI, Lisboa, F. Oriente, 2000, obra de 1994 que apresenta um sistemático

inven-tário da massa documental portuguesa de quinhentos sobre a China.

3 Sobre este êxito editorial veja-se Francisco Leite de FARIA, Estudos bibliográficos sobre Damião de Góis e a sua época, Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1977, pp. 266 e segs., e

G. ATKINSON, La littérature géographique Française de la Renaissance. Repertoire bibliographique,

Paris, Picard, 1927, pp. 24-27 e 32-34.

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são também reeditadas em italiano no volume primeiro de G. B. Ramusio, Veneza, 1550.

Na carta de 10 de Julho de 1499 surgem as primeiras informações euro-peias sobre as expedições oficiais da China Ming comandadas por Cheng-Ho nos anos de 1405 a 1433. São informações genéricas e confusas sem identi-ficação da China e dos Chineses e que se referem a dados recolhidos em Cale-cute, que foi um dos portos do Índico visitados pelas armadas chinesas na primeira expedição de 1405-1407 bem como na terceira, de 1409-1411.

Girolamo Sernigi informa que:

«… e giá girca a 80 anni che nella detta cittá di Chalicut Vennono certi navili di cristiani brianchi co’capelli lunghi similli allí allamani, sanza barba, salvo intorno alla bocca come portano in chostantinopoli e cavalieri e corti-giani; e smontonno in terra armati di corazza e capazetti e bavieri e con certe arme in aste. E detti navili portavano bombarde piu’corte, che quelle que si costumano; e dipoi ogni 2 onni una volta vi tornano com XXe XXV

navili, e non sanno e detti che gente essi sieno né che mercantia portimo alla dita cittá,salvante panni lini molto fini e ottono lavoratti; e caricano di spezieri e vannoasene. Le quali navi portano 4 alberi cosi come queste di Spagna. Si fussino allamani mi pare ni aremmo qualche notizia puo esser che sieno rossi de Rossia, se gl’hanno porto di mare…» 5

Sem identificação da China e sem qualquer precisão a Europa conhece a existência de homens brancos semelhantes que em expedições marítimas oficiais trocam manufacturas por especiarias no Índico Ocidental.

No mesmo quadro de informação oral e geral encontra-se a entrevista dada em Roma pelo presbítero Nestoriano José Indiano, natural de Cran-ganor, inserta também nos Paesi Novamente Retrovati, Vicenza, 1507, e que se refere à «gente do cataio»6.

No quadro das informações orais recolhidas em Calecute entre os finais de Maio e de Agosto de 1498 e chegadas a Lisboa entre Julho e Agosto de 1499, bem como dos indianos trazidos para Lisboa, encontram-se também as bases das cartas do rei D. Manuel.

A carta de el-rei D. Manuel ao cardeal D. Jorge da Costa, de 25 de Agosto de 1499, segue de Lisboa para Roma dando notícia diplomática do êxito da expedição de Vasco da Gama e referindo a existência de informação esmiuçada sobre também «… da Índia pera o sartãã e Tartaria, atee o Mar Mayor…»7.

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5 Carmen M. RADULET, Vasco da Gama: La prima Circumnavigazzione del’Africa 1497-1499,

Reggio Emilia, Diabassis, 1994, p. 174.

6 Tradução portuguesa in Notícias de Missionação e martírio na Índia e Insuíndia, Ed. J.

M. Santos ALVES, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 61-74.

7 Carta de El Rey D. Manuel ao cardeal D. Jorge da Costa, de 25 de Agosto de 1499, de

Lisboa para Roma, in Documentação para a História das Missões do Padroado português do

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Um pouco menos imprecisa embora ainda muito genérica é a infor-mação sobre a «grande China»/Malchina8 na carta de D. Manuel para os

Reis Católicos de Lisboa, 28 de Agosto de 1501, dando conta da viagem de Pedro Álvares Cabral:

«… chama-se a terra Malchina, de onde vêm as porcelanas e almíscar e âmbar e lenho alois, que trazem do rio ganges que é aquém deles; e das porcelanas há vasos tam finos que um só vale lá cem cruzados…» 9.

Uma versão desta carta, juntamente com outros elementos, que faz uma espécie de balanço das informações e resultados mercantis-geográficos alcançados pela coroa portuguesa entre 1501 e 1505 vai ser impressa em Roma e Milão em 1505 com o título Copia de una littera del Re de Portugallo mandata al Re de Castella del viaggio e sucesso de India10.

A concorrência entre as rotas do Levante e Atlântica, bem como a neces-sidade diplomática de engrandecer a Rota do Cabo são as responsáveis por estas primeiras informações da Europa sobre a China Ming.

Informações manuscritas e impressas que circulam nos centros políticos e comerciais de Lisboa, Roma e Florença. Informações imprecisas sobre uma China marítima e mercantil e grande potência manufactureira que a impressão e a tradução em lugares como Vicenza, Nuremberga, Basileia, Paris vai começando a divulgar.

Neste primeiro andamento informativo europeu sobre a China Ming cumpre ainda destacar dois textos de 1508 e de 1510. Textos de natureza bem diversa que se traduz também na sua condição de manuscrito/impresso. O primeiro é o manuscrito regimento do rei D. Manuel para Diogo Lopes de Sequeira, capitão-mor da armada, para Malaca, passado em Almeirim, a 13 de Fevereiro de 1508.

Trata-se de um documento interno à orgânica do estado marítimo-mercantil em que a coroa de Lisboa ordena a recolha sistemática de infor-mação sobre a China a partir de Malaca:

«… pregumtarees pellos chys e de que partes veem, e de cam lomge, e de quamto em quamto vem a mallaca, ou aos lugares em que trautam, e as mercadarias que trazem, e quamtas naos delles vem cada anno…»11

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8 Maha em sânscrito significa Grande, daí o termo Malchina/Grande China; veja-se

H. YULEe A. C. BURNELL, Hobson-Jobson: A Glossary of Colloquial… (1903), N. Deli, Munshiran,

1994, p. 197.

9 Carta que el-rei nosso senhor escreveu a el-rei e à rainha de Castela seus padres da nova

da Índia in História da Colonização Portuguesa do Brasil, ed. C. Malheiro DIAS, E. VASCONCE -LLOSe R. GAMEIRO, Porto, litografia Nacional, 1923, vol. II, p. 167.

10 Ed. moderna por Carlos SANZ, Bibliotheca America Vetustissima – ultimas adiciones,

Madrid, L. G. Victoriano Suarez, 1960, 2 vols., no volume I, pp. 385-400 (Roma), e pp. 403-418

(Milão). Tradução portuguesa com o título «Relação Italiana sobre os Descobrimentos Portu-gueses», 1505, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central

1497--1840, Lisboa, C.E.H.U., 1962, vol. I(1497-1506), pp. 40 a 74.

11 Cartas de Afonso de Albuquerque seguidas de Documentos que as elucidam, Ed. A. Bulhão

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Depois do momento de arranque em que a recolha de informação sobre a China e a Ásia Oriental se fez em Calecute e no Índico Ocidental, a Europa sabe, por intermédio da Coroa de Lisboa, que Malaca e o Sueste Asiático permitem uma nova idade informativa sobre a China marítima-mercantil. As informações recolhidas em Calecute, Cochim, Cananor, Coulão, permitem o desejo de encontrar e concentrar em e a partir de Malaca um largo banco de dados. Permitem, ao mesmo tempo, elaborar um questio-nário, saber as perguntas a fazer em torno do universo marítimo-mercantil da China bem como sobre a sua condição social e política:

«… se teem mais de hum rey antre elles, e se vivem antre elles mouros ou outra alguma gente que nam vyva na sua lley ou crença, e se nam saam christãaos, em que creem, ou a que adoram…» 12

Em Roma, em 1510, é publicado o Itinerario de Ludovico de Varthema Bolignese nello Egypto, nella Surria, nella Arabia deserta et felice, nella Persia, nella India et nella Ethiopia, que fecha esta primeira década com a infor-mação menos imprecisa sobre a China Ming enquanto mundo marítimo--mercantil.

Ludovico de Varthema (c.1470-c.1517) partiu de Veneza para Alexandria nos anos de 1500 a 1502 e navegou no Índico recolhendo informação até às zonas de Malaca e Java, tanto nos circuitos asiáticos como portugueses regressando a Veneza em 1508 por via da Rota do Cabo13.

O Itinerário, de Ludovico de Varthema, teve na primeira metade do século XVI 12 edições italianas (em Veneza 7, em Milão 3 e em Roma 2). A tradução espanhola é de Sevilha, 1520, e aí volta a ser reeditado em 1523. A primeira edição alemã data de Augsburgo, 1515, com novas edições em Estrasburgo em 1516, Frankfurt em 1517, 1548, 1549, e de novo em Augs-burgo em 1518 e 1549. A primeira edição flamenga é de Antuérpia, 1549. Estas vinte e duas edições e traduções até 1550 e os centros editoriais em jogo que passam por Veneza, Sevilha, Frankfurt e Antuérpia revelam que estamos frente a um dos maiores êxitos editoriais da época. Sucesso editorial que envolve círculos de leitura políticos, mercantis e eruditos.

A obra apresenta uma abundante informação sobre as redes marítimo-mercantis chinesas e alguns dados sobre as relações tributárias do Sueste Asiático com o rei da China (Cini) sendo no entanto mais frequente o uso do termo equivalente «Gran Cane Cathai». É a propósito de Ayuthia, Pedir e Malaca que surgem as melhores informações sobre o comércio chinês de sedas e de especiarias:

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12 Cit., p. 416.

13 Vejam-se os estudos de P. GUIDICI, Introduzione a Itinerario di Ludovico de Varthema,

Milão, Alpes, 1929, e de Pietro BAROZZI, «Ludovico de Varthema e il suo Itinerario», Roma,

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«… Malaca…a dita cidade fica em terra firme e é tributária do rei da China, que fez edificar esta terra há oitenta anos, por ter um bom porto, o principal do Mar Oceano…» 14

III

Os anos que vão de 1511 a 1520 marcam, com a conquista portuguesa de Malaca em 1511 e o comércio regular dos portugueses entre Malaca e Cantão a partir de 1513, condições para uma nova idade informativa euro-peia sobre a China marítima e mercantil bem como sobre alguns elementos da organização política da China Ming.

O mercador florentino Giovanni da Empoli (1483-1517), ao serviço da companhia dos Gualterotti-Frescobaldi e nos circuitos asiáticos a partir da rota do Cabo dos portugueses nos anos de 1503-1504, 1510-1514 e 1515--1517, é o primeiro informador destas novas condições. Informações dadas através da carta de 12 de Julho de 1514 de Lisboa para o seu pai, Lionardo de Empoli, e da carta de Cochim para Lourenço de Medici, Florença, de 15 de Novembro de 1515, que será impressa em Florença, 151615.

Na carta de 1514, G. de Empoli fornece várias informações sobre o comércio chinês em Malaca e na Ásia do Sueste apontando as redes e produtos como o ruibarbo, almíscar, aljôfar e sedas. As informações finais da carta concentram-se no mundo marítimo-mercantil da Ásia Oriental com as ligações de «… Cini, Lechi e Chori…»16.

Nesta carta surge a identificação explícita entre o Cataio e a China: «… il re de Cini, che si chiama il gran chane di Chattaio…»17 Aquilo que em

L. de Varthema e em Tomé Pires é equivalência genérica de espaços entre a China Yuan e a China Ming torna-se nesta carta manuscrita de Giovanni da Empoli identificação.

As familiaridades entre o Cataio e a China, detectadas por estes autores, exprimem o peso e a circulação de manuscritos e impressos da obra de Marco Polo na Europa dos inícios de quinhentos desde a primeira edição em Nuremberga, 1477, até à edição de Santaella, Sevilha, 1503, passando pela versão latina de Pipino em Antuérpia, 1485, e pela edição portuguesa de Valentim Fernandes, Lisboa, 1502 18.

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14 Ludovico de VARTHEMA, Itinerario, ed. Vicenzo Spinelli, Lisboa, I. A. Cultura, 1949, p. 189. 15 Carta de Giovanni da Empoli a Lionardo da Empoli, Lisboa, 12 de Julho de 1514, in M.

SPALLANZANI, Giovanni da Empoli, mercante navegatore florentino, Florença, Scelte, 1984, p. 184. 16 Sobre a vida e obra deste mercador veja-se: Marco SPALLANZANI, Giovanni da Empoli, mercante navegatore fiorentino, Florença, Scelte, 1984; Laurence A. NOONAN, John of Empoli and

his relations with Afonso de Albuquerque, Lisboa, I.I.C.T., 1989, e G. BERTUCCIOLIe F. MASINI,

Italia e Cina, Bari, Laterza, 1996, pp. 84 e segs. bem como a bibliografia aí indicada. 17 Cit., p. 181.

18 Veja-se Juan GIL, El Libro de Marco Polo anotado por Cristoból Coloniel Libro de

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Na carta de 1515 de Cochim para Florença, e que é bom não esquecer aí foi impressa em 1516, G. Empoli amplia a informação sobre o mundo marítimo-mercantil chinês ao mesmo tempo que comunica à Europa a chegada dos portugueses ao litoral da província de Guangdong: «… anchori hanno discoperto la cina, ove é suto homini nostri che qui stanno… la quale vie la magior richetie et cose del mondo…»19

Um outro mercador florentino, Andrea Corsali (1487-depois de 1524), que embarcou de Lisboa para a Índia em 1515, escreve de Cochim, onde reside, nos anos de 1516 e 1517, duas cartas para Florença com também novidades sobre a China marítimo-mercantil e as actividades dos portu-gueses nos mares da China20.

Esta constante atenção informativa e editorial italiana, que veremos em seguida ainda mais reforçada através de traduções e edições de autores portugueses sobre a Ásia, está directamente ligada à concorrência entre as rotas do Levante e do Cabo, aos jogos diplomáticos de Lisboa, Roma, Veneza e à participação comercial e financeira italiana (bem como aos circuitos da prata alemã) na expansão portuguesa na Ásia. São estes vínculos económicos e políticos feitos de concorrência e de parceria entre diversos interesses e poderes europeus, que possibilitam a aceleração e a divulgação do novo e melhor conhecimento europeu das sociedades e economias asiáticas e neste caso específico da China marítima e mercantil.

A geografia europeia da concorrência e da parceria em torno do comércio euroasiático apresenta uma larga sintonia com a geografia edito-rial europeia de produções culturais e informativas sobre a Ásia.

A primeira carta de A. Corsali, de Cochim, em Janeiro de 1516, para Guiliano de Medici (1479-1516), será impressa em Dezembro do mesmo ano em Florença, Lettera di A.C. allo illustrissimo signore duca Iuliano de Medici. A segunda, de Cochim, completada em Janeiro de 1518 e enviada a Lorenzo de Medici (1492-1519), apenas será impressa em Veneza, 1550, por G. B. RAMUSIO (1485-1557), no primeiro volume do Delle Navigationi et Viaggi, a obra monumental da informação europeia sobre a Ásia21.

As cartas de A. Corsali transmitem mais alguns dados sobre aspectos da vida chinesa bem como a novidade da chegada dos portugueses ao comércio de Cantão:

«… Sono molto industriosi e di nostra qualitá, ma di piú brutto viso, con gli occhi piccoli. Vestono a costume nostro e calzano con scarpe e calza-menti come noi… quest’anno passato navigarano alla cina nostri Portog-———————————

19 Cit., pp. 202-203.

20 Veja-se Marco SPALLANZANI, Mercanti fiorentini nell’Asia portoghese (1500-1525),

Florença, Spes, 1997, pp. 81 a 96.

21 As duas cartas publicadas por Ramusio encontram-se nas páginas 176-188 do primeiro

volume da edição de 1563. Giovanni Battista RAMUSIO, Navigationi et Viaggi-Venice 1563-1606,

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hesi, quai non forno lasciati scentere in terra… forestieri non emtrimo nelle loro abitazioni…» 22

Informações pontuais sobre a China, impressas em língua italiana, «… popoli cini che son bianchi come noi…» (A. Zorzi), surgem também nos círculos humanistas, como vemos no caso da informação de Alessandro Zorzi, de Veneza, 151723. Alessandro Zorzi é um humanista e cartógrafo

veneziano que, pelo menos até 1538, elabora cinco códices de recolha siste-mática de informação geográfica sobre a expansão marítima de portugueses e de espanhóis.

Em Lisboa, Florença e Veneza a partir de Cochim e de Malaca concen-tra-se e organiza-se toda uma nova informação europeia asiática que con-templa cada vez mais dados sobre a dimensão marítima e mercantil da China Ming no Nanyang. O que vai chegando aos centros e aos círculos dos poderes político, económico e cultural da Europa é no entanto apenas uma parte da informação recolhida e organizada nos centros asiáticos do poder mercantil e informativo português como Cochim, Cananor e Malaca.

É nesses centros, e muito em especial nos círculos dos burocratas letra-dos do estado mercantil português, que a informação geográfica e antropo-lógica sobre a China atinge níveis superiores de quantidade e de qualidade. Pela primeira vez passamos de informações europeias isoladas sobre este ou aquele aspecto da aparência física de chineses ou das suas actividades mercantis e manufactureira para uma primeira formulação desenvolvida sobre a China Ming / O Grande Reino da China.

A China como entidade própria, como realidade individual e única no recorte global da Ásia, começa a emergir lentamente no saber dos europeus com as obras de Duarte Barbosa e Tomé Pires24.

O Livro das Coisas da Índia, do escrivão da feitoria de Cananor, Duarte Barbosa, e a Suma Oriental, do vedor da fazenda de Malaca, Tomé Pires, escritos respectivamente entre os anos de 1511-1516 e 1512-1515, são as primeiras geografias europeias sistemáticas e globais da Ásia.

Uma Ásia essencialmente marítima, litoral e mercantil, como é natural nos horizontes de informação e de interesse de funcionários da coroa ligados à lógica do «Estado da Índia». Mas uma Ásia também já com uma infor-mação política e cultural por vezes relevante.

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22 G. B. RAMUSIO, Navigazioni et Viaggi, ed. M. Milanesi, Turim, Einaudi, 1979, vol. II, p. 35. 23 Informatione havuto do Alexandre da Portogalese, 1517 In Venecia, ed. Francisco LEITE

e Teixeira da MOTA, Novidades Nauticas e Ultramarinas numa informação dada em Veneza,

1517, Lisboa, J.I.C.U., 1977, pp. 16-23.

24 Sobre a vida e a obra destes autores, veja-se Luís Filipe BARRETO, Descobrimentos

e Renascimento, Lisboa, I. Nacional, 1982, pp. 143-168, e Duarte Barbosa e Tomé Pires: «Os autores das primeiras Geografias Globais do Oriente», in Entre dos Mundos: Fronteras Culturales

y Agentes Mediadores, Coord. B. QUEIJAe Serge GRUZINSKI, Sevilha, CSIC, 1997, pp. 177-191,

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Obras, uma vez mais, manuscritas em português com uma circulação restrita de poucas cópias na corte de Lisboa e nos centros da Ásia (Cochim, Goa, Cananor, Malaca). Cópias manuscritas, que em especial no caso de Duarte Barbosa, circulam também por centros como Sevilha, Florença e Veneza.

Obras que vão ter, ao longo da segunda metade de Quinhentos, uma larga difusão europeia, graças à edição italiana que de Tomé Pires é tão-só parcial ficando manuscritos os dados mais relevantes sobre a China, no pri-meiro volume de G. B. RAMUSIO, Delle Navigationi et Viaggi, Veneza, 155025. O facto de estas obras globais da Ásia e do Índico litoral e mercantil terem sido criadas em tão poucos anos significa que existe já em Cochim, Cananor e Malaca um vasto conjunto de cartas-relatório, notas e apontamen-tos de viagem, materiais asiáticos de informação acumulados e organizados de forma satisfatória. Por outro lado, o ritmo rápido na elaboração e a segu-rança na informação destas sínteses portuguesas significa que as parcerias culturais com os saberes asiáticos começam a ser uma realidade produtiva.

Ao longo da segunda metade de Quinhentos, as obras de Duarte Barbosa e de Tomé Pires vão ter impacte em vários círculos de conhecimento europeu sobre a Ásia. São, antes de mais, altos instrumentos de informação para os centros de decisão e de risco político, comercial e financeiro. São, no entanto, também enciclopédias para os humanistas e os quadros eruditos que produzem geografia e história.

O facto de este nosso capítulo terminar em 1550 e de as obras de Duarte Barbosa e de Tomé Pires terem tido o grande impacto exactamente na segunda metade de quinhentos parece, à primeira vista, desaconselhar o tratamento das mesmas. Contudo, a escolha do ano de 1550 para fechar um primeiro andamento no conhecimento europeu sobre a China passa também e decisivamente pelo facto de as obras de Duarte Barbosa e de Tomé Pires atingirem então a impressão.

Passa também pelo facto de ser nas edições de G. B. Ramusio que se vai começar a constituir um conhecimento europeu impresso e alargado sobre as viagens europeias medievais à China Yuan com a importante edição de Marco Polo na edição de 1559 e a primeira impressão da Historia Mongo-larum, de Giovanni di Pian Carpino (1182-1252), na segunda edição do volume segundo do Delle Navigazioni et Viaggi, Veneza, 1574.

Para além desta difusão de uma China medieval na Europa da segunda metade de Quinhentos, acompanhando as informações sobre a China Ming, o post-1550 vê surgir os primeiros impressos europeus exclusivamente sobre a China Ming. Em Coimbra, 1555 aparece a «Informação Anónima», e em Veneza, 1561, o Tratado de Galeote Pereira, escrito em Malaca por volta de 1555.

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25 A obra de Duarte Barbosa com o título «Libro Diodoardo Barbosa Portoghese» ocupa

as páginas 349v-364r e a impressão, muito parcial e anónima de T. Pires, surge nas páginas 364v-371v, com o título «Sommario di Tutti il Regni, Citta, e Popoli Orientali».

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O fenómeno de as duas mais importantes e abundantes informações europeias sobre a China, ao longo da primeira metade de Quinhentos, terem sido alcançadas nos anos de 1511 a cerca de 1516 e apenas impressas em 1550 é para nós um factor decisivo. Decisivo não apenas na definição de uma data-limite de um ciclo do conhecimento europeu que é sempre relativa mas sobretudo de um fenómeno que vai progredir nas décadas seguintes. Trata-se da diferença entre a China manuscrita que a Europa dos restritos círculos dos poderes político, comercial, religioso vai conhecendo, e a China impressa feita de informações menos actualizadas e precisas que no post--1550 alcança círculos mais alargados de leitura.

O Livro das Coisas da Índia, de Duarte Barbosa, para além de variada informação sobre as redes mercantis de articulação do Índico e do Sueste Asiático à China apresenta um pequeno capítulo sobre «Il Gran Regno della China». Logo de entrada somos alertados para as condições de recolha informativa que permitem a Duarte Barbosa escrever este sumário sobre a China Ming.

O autor, radicado em Cananor, Calecute e Cochim, tem uma experiência pessoal do Índico Ocidental que não só lhe invalida a vivência do Nanyang e dos mares e litorais da China como lhe impossibilita o acesso a uma infor-mação escrita especializada:

«… la costa, che va da Mallaca alla China verso tramontana, delle quali no ha potuto havere quello particular noticia ch’io desideravo…» 26

A informação sobre a China, avançada por Duarte Barbosa, é resultante de uma recolha nos circuitos mercantis indianos, islâmicos e hindus, que estão activos no comércio do Índico com os mares da China:

«…ma di quello che sono per scrivere al presente, mi sono informatto da quattro, fra moro & gentili, huomini di gran credito, & gran mercanti, che sono stati piu volte nel paese della China li qauli mi hanno detto…»27

Nos anos de 1511 a 1516 a melhor informação europeia sobre a China alcançada no Índico Ocidental assenta em inquéritos, apontamentos reti-rados da oralidade, dos círculos mercantis asiáticos. Entrevistas condu-zidas por um europeu junto de mercadores indianos ligados ao comércio marítimo intra-asiático do Índico Ocidental para o Sueste Asiático e os mares de Cantão.

O que Duarte Barbosa comunica antes de mais é a grandeza da China, a Malchina do sânscrito, que a carta de D. Manuel de 1501 julgava ser topónimo:

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26 «Libro di Odoardo Barbosa Portoghese», in Delle Navigatione et Viaggi, G. Battista

RAMUSIO, Primo volume, Veneza, 1563, p. 320. 27 Cit., p. 320.

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«… China, nel quale vi’e un grandissimo signor di gentili, cosi lungo la costa del mare como dentro fra terra, che ha molte isole in mare habitate da gentili á sua obbedienza…»28

China politicamente organizada e hierarquizada através de uma dife-renciada burocracia estatal centralizada: «… nelli quali tien il re della China li suoi governatori, & officiali á sua elettione…»29

China politicamente organizada também no campo das relações externas através de alguma informação, ainda que bastante ligeira sobre as embaixadas tributárias e as intendências do comércio marítimo:

«… il re… fa residencia di continuo dentro fra terra in grandi & ricche cittá, alle quael nessunto forestter viu puo’andare, solamente puo negociare nei porti di mare & nel isole: & s’alcuno ambaciadore di altro re vuol venire á parlargli, bisogna che venga per mare, & che esso lo sappia perche ordina il luogo, dove ei debba andare a parlargli…» 30

As zonas de informação mais abundante neste capítulo de Duarte Barbosa sobre «O Grande Reino da China» dizem respeito à economia chinesa, em especial à mercantil e manufactureira que se estende para o Sueste Asiático e o sistema do Índico bem como a dados sobre as formas de vida e os padrões físicos e comportamentais das populações chinesas.

Em termos físicos e comportamentais os chineses surgem claramente valorizados: «… son huomini bianchi… & gentil’huomini di costumi cortesi & similmente sono le donne bella…»31

São sumariados também elementos sobre o vestuário, a língua e os modos de alimentação:

«… non toccano le viuande che gli sono posto avati co le mani, ma mangiano con una tanaglietta d’argento; ó di legno & il piatto, ó vero por-cellana, in che e la viuanda, la tengono nella mano sinistra molto apresso la boca, & con quelle tanagliette molto in fretta mágiano… mangiano simil-mente carne di cane, la qual hanno per molto buona…»32

Em Duarte Barbosa, através de exercícios comparativos e contrastivos, vai-se estabelecendo a ideia de uma China exótica mas de alto desenvolvi-mento. Uma China polida. No quadro da informação económica o destaque vai para os métodos de produção da porcelana:

«… fanno in questo paese gra quantitá di porcellane di diversi sorti, & molto belle & fine, che é apressi di loro gran mercantia per tuto le parti et le fanno in questo modo…» 33 ——————————— 28 Cit., p. 320. 29 Cit., p. 320. 30 Cit., p. 320. 31 Cit., p. 320. 32 Cit., pp. 320 e 321. 33 Cit., p. 321.

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O universo das sedas e dos restantes têxteis e manufacturas vai com-pondo a paisagem económica da China em Duarte Barbosa que finaliza com dados sobre os juncos e as margens de lucro na rede marítimo-mercantil que liga a China ao Índico:

«… Pepe di samatra, di Malabar del qual ne consumano gran quantitá nella China, & delle droghe di Cambai, et maxime e amfiam, che noi chia-miamo opio…» 34

No Livro das Coisas da Índia, de Duarte Barbosa, encontramos novos elementos informativos sobre a China Ming mas, acima de tudo, uma orga-nização sistemática de dados anteriormente dispersos e breves captados no Índico Ocidental.

A Suma Oriental, de Tomé Pires, escrita em Malaca e Cochim nos anos de 1512 a 1515, forma a mais abundante e precisa informação europeia da China ao longo de toda a primeira metade de quinhentos. E em certos aspec-tos é mesmo da melhor informação europeia sobre a China marítimo--mercantil, do Nanyang ao Guangdong, até ao século XVIII.

A quantidade e a qualidade destes dados numa obra dedicada ao Rei/ /Coroa indiciam uma espécie de enciclopédia do Estado português da Índia. A condição manuscrita da Suma Oriental é pois um objectivo estratégico para esse estado mercantil não admirando que as cópias manuscritas em circulação35 e o impresso sejam versões muito sintéticas e bem menos

valiosas informativamente.

A localização da recolha informativa em Malaca, a posição institucional e os interesses intelectuais do autor formam as razões-chave da riqueza informativa, no plano marítimo-mercantil, da Suma Oriental.

Tomé Pires é um aristotélico, «… naturallmentte os homees desejam saber como o testefiqa o mestre da filosofia…»36 afirma no início da obra,

no prólogo a el-rei, fazendo uma intertextualidade directa com o início da Metafísica de Aristóteles: «Todos os homens desejam naturalmente saber.» (Metafísica, A, 1, 980 a.)

O aristotelismo renascentista, feito de naturalismo empírico, atravessa toda a Suma Oriental. A filosofia económica da obra:

«… o quall trato de mercadoria he tam necessario que sem elle nom se sosteria o mundo este he o q nobrece os regnos que faz gramdes as jemtes & nobelita as cidades & o q faz a guerra & a paaz…» 37

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34 Cit., p. 321.

35 Veja-se Rui Manuel LOUREIRO, O Manuscrito de Lisboa da «Suma Oriental» de Tomé Pires (contribuição para uma edição crítica)», Macau, IPOR, 1996.

36 A «Suma Oriental» de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, ed. A. CORTESÃO,

Coim-bra, I. Universidade, 1978, Prólogo, p. 129.

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está presa à Ética Nicomaqueia de Aristóteles e em especial ao livro V, em que se afirma a moeda e o comércio como os elos de ligação da sociedade. Este peso dos «Sabedores datenas» (T. Pires) alia-se a um realismo empírico do passar, experimentar, ver, que leva a um criticismo em busca da verdade: «… e esta he a verdade que depois tirei a limpo…»38

Criticismo que se abate sobre o saber europeu dos antigos e dos modernos em torno da Ásia. Saber tradicional acusado de falta de verdade por ausência de conhecimento experencial directo que no terreno permite pesar e organizar os diferentes campos informativos39.

Criticismo e polémica cultural e erudita de Tomé Pires presente também nos dados sobre a China. A propósito do ritual das embaixadas ao imperador da China. Tomé Pires afirma:

«… Esta he a vrdade & nom como diziam q estavam quatro homeens assem-tados a vista & falava com todos sem saberem quall he o rey…» 40

A China alcançada pelos europeus é uma resultante dos acontecimentos económicos e políticos euroasiáticos, das concorrências e parcerias de inte-resses e de saberes asiáticos e euroasiáticos mas é também, e muito, nalguns casos, uma resultante do próprio quadro de conhecimento do europeu.

Tomé Pires é um burocrata mercador com alguma formação erudita do tipo humanista. Esse quadro prévio permite-lhe uma recolha informativa mais crítica e criteriosa do que outros, bem como uma superior capacidade organizativa e expositiva dos materiais.

Os pontos altos do conhecimento europeu sobre a China Ming resultam tanto da regularidade e dos contactos marítimo-mercantis entre europeus e chineses como da entrada na matéria de quadros europeus mais eruditos. Quadros com maior formação teórica e cultural, como já se nota com Tomé Pires e começaremos a ver ainda mais claramente a partir da década de 1540, com as elites universitárias humanistas e jesuítas.

A informação de Tomé Pires sobre a China assenta nas parcerias marí-timo-mercantis estabelecidas a partir de Malaca com malaios, javaneses, chineses ultramarinos radicados na Ásia do Sueste e gentes do Sião. Assenta também nos Luções (T. Pires), chineses no Luzon, e em Léquios, bem como em dados recolhidos pelos portugueses nos mares e litorais da Ásia do Sueste a Guangdong:

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38 Cit., Livro VI, p. 132.

39 «… discrepante a cosmogija Fradansellmo e Tolomeu e outros nom pareça novjdade

por que or taees mais por novas que por ptiga o sentirom nos qa tudo pasamos espementamos & vemos…», cit., p. 133.

40 Cit., p. 255. A falsa versão criticada por Tomé Pires surge, por exemplo, nas Cartas de

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«… as nosas náos a Jaõa a bamdam á china junco e a pacee e paleacate agora vam a timor por samdollos & vam a outras partés foy ja noso jumco a peguu ao porto de martamiane…» 41

A partir desta imensa rede informativa, sem qualquer paralelo anterior-mente, Tomé Pires organiza os dados sobre a China Ming desde uma pri-meira visão global e geral da China como entidade individual até ao sistema comercial de Cantão, que é pormenorizadamente exposto.

A grande China é o tópico de abertura. Grande e polida China que a comparação com Portugal apenas favorece e engrandece:

«… fazem as cousas da China gramdes asy na terra como jemtes riquezas pompas estados & contas outras que mais se creria com verdade averemse em noso Portugall q nom na Chyna…» 42

Seguem-se elementos básicos sobre o aspecto físico, a alimentação e o vestuário da população chinesa: «… sam de nosa alvura & delas tem os olhos pequenos & outs gramdes e narizes como ham de ser…» (Tomé Pires). Em seguida começam novidades para o horizonte europeu de informação sobre a China Ming. Surge o termo capital do norte, «Peqim», assim bapti-zada em 1403, e que é identificada a «Cambara»/Cambalique, a capital da China Yuan/Cataio. Surgem listas dos reinos tributários com, pela primeira vez também em línguas ocidentais, o termo «Jampon»/Japão palavra portu-guesa a derivar do chinês «Jipan» e do malaio «Jepun» para significar «sol nascente».

É dado um significativo passo em frente na informação sobre o comércio tributário:

«… el rey de Jaao ell rey de Siam ell rey de Paçée el rey de malaqa estes manndam seus embaixadores com o sello da China a ell rey da China de cimqo em cimqo annos & de dez em dez annos & cada huu lhe manda do melhor de suas terás do q sabem que la quere…» 43

A propósito das embaixadas e do sistema político chinês surge o termo «mandaris» e «mandarim» para definir os «oficiaes», a burocracia estatal44.

Em Tomé Pires, além de novos horizontes informativos sobre a China Ming, começamos a ver nascer todo um vocabulário português/europeu de foneti-zação do chinês, «… nantoo e quantom e chamcheo…»45. Um vocabulário

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41 Cit., Livro V, p. 437. 42 Cit., Livro IV, p. 252. 43 Cit., Livro VI, p. 254.

44 Sobre este termo, de provável origem mista sânscrito, malaio e português, veja-se

Henry YULE e C. BURNELL, Hobson-Jobson: A Glossary of Colloquial … (1903), N. Deli,

Mun-shiran, 1994, p. 5550 a 5552.

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e uma toponímia, com base nas línguas da Ásia do Sueste e da Ásia Oriental que objectivam os enunciados europeus. É na Suma Oriental de Tomé Pires que encontramos pela primeira vez uma fonetização sistemática em especial do cantonense (quantom, oquem, namtoo). Este fenómeno marca um grau mais avançado de objectividade e de especialização na informação europeia e revela, ao mesmo tempo, o peso das parcerias luso-asiáticas e a força do próprio conhecimento asiático na elaboração do conhecimento europeu sobre a Ásia.

A propósito de Cantão surge em Tomé Pires toda uma desenvolvida informação sobre o sistema marítimo-mercantil de ligação da Ásia do Sueste aos mares da China:

«… quamtom que he mór que todos e omde he o trato destas ptes…a cidade de quamtom he omde o regño todo da China descarregua suas mercadorias todas e asy da terra firme como do mar…aquem de quamtom pa malaqa trimta leguas estam huuas ilhas junto com a terra firme de namtoo homde estam os portos ja detremjnados de cada nação…» 46

Informação marítimo-mercantil dos produtos, taxas e moedas. Dos meca-nismos portuários, das rotas e das percentagens de lucro nos jogos da troca. Informações sobre «gramde mercadoria amtre os chijs… a pimcipal merca-doria he pimenta…». Dados sobre a potência manufactureira das sedas, porcelanas e mil e uma mercadorias que fazem do mundo litoral da Ásia do Sueste e da China um articulado sistema: «… atee qmtom porq esta he a chave do reino da Chyna…»47

Tanta riqueza e potencialidade marítimo-mercantil acaba por levar o funcionário do Estado da Índia a propor uma conquista militar dos litorais da província de Guangdong, uma investida ao estilo de feitoria-fortaleza do Índico e do estreito de Malaca:

«… nom tiramdo a groria a toda terra bem parecem as cousas da Chyna serem de terra honrrada & boa & riqa mujto & pa o sojugar o guoverfiador de Malaqa a obodiencia nosa avija mester nom tamto como dizem por que he jemte mujto fraca he ligeira de desbaratar e afirmam as pas capitáees que mujtas vezes foram la que com dez naaos sojugaria ho governador das jmdias que tomou malaca toda a china nas beiras do mar…» 48

Também no tópico da conquista dos litorais da China, conquista dese-jável e acessível segundo os dados, Tomé Pires abre caminhos de larga con-tinuidade ao longo de Quinhentos. O desejo da conquista, temporal ou espi-ritual, da China faz parte da imagem e do conhecimento europeu da China.

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46 Cit., Livro VI, pp. 360, 361, 362. 47 Cit., Livro VI, p. 368.

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Na Suma Oriental de Tomé Pires encontramos a melhor informação europeia sobre a China alcançada nos anos de 1512 a 1515 na Ásia do Sueste e nos mares e litorais de Cantão.

O Livro das Coisas da Índia e a Suma Oriental fundam uma primeira imagem europeia da China Ming. A China como entidade própria, como rea-lidade individual e única. Ambas as obras organizam e potenciam também os diferentes dados à mão existentes nos circuitos mercantis respectivamente do Índico Ocidental e do eixo Malaca-Cantão.

Estes anos de construção, no banco de dados europeu, de uma primeira individualidade da China, no plano da geografia descritiva e antropológica, são também, no plano da cartografia e da roteiristica, anos do nascimento de um saber individualizado e especializado sobre a China.

Não temos como objectivo neste momento o estudo da cartografia euro-peia dos litorais da China, que é uma cartografia náutica em estreita impli-cação com a roteirística49. Não podemos contudo deixar de assinalar que

em Malaca, cerca de 1512, o navegador e geógrafo Francisco Rodrigues compõe um, Livro de Geografia Oriental, onde se encontram as primeiras cartas europeias particulares do litoral da China, com destaque para Can-tão/«cidade Chyna». Francisco Rodrigues é também o primeiro europeu a escrever um roteiro sobre a navegação nos mares da China, de Malaca a Cantão, intitulado Camynho da Chyna.

Francisco Rodrigues recolheu estas informações na Índia, em Banda e Malaca. São dados concretos e precisos, fruto do contacto com pilotos e cartógrafos. Em especial, chineses e javaneses. As suas cartas são junções da cartografia chinesa com as cartas rumadas e o seu roteiro é uma tradução e versão portuguesa da roteirística asiática.

Com Francisco Rodrigues, Tomé Pires e Duarte Barbosa a China Ming ganha um corpo e lugar específicos no universo do saber europeu sobre a Ásia. Ganha cada vez mais uma individualidade própria, especializada e aprofundada enquanto China litoral, marítima e mercantil.

Os anos de 1518 a 1530 não trazem qualquer desenvolvimento significa-tivo no conhecimento europeu da China e dos chineses enquanto geografia descritiva e antropológica50.

As dificuldades no relacionamento político luso-chinês, o édito imperial de 1522 de expulsão dos «Fo Lang Chi», ou seja, dos violentos bárbaros por-tuguesas na terminologia oficial chinesa e o recuo do comércio marítimo

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49 Sobre a cartografia náutica portuguesa dos mares e litorais da China, veja-se Albert

KAMMERER, La Découverte de la Chine par les Portugais au XVI siècle et la Cartographie des

Portu-lans, Leida, E. J. Brill, 1944, e Luís Filipe BARRETO, Macau: Cartografia do Encontro

Ocidente--Oriente, Macau, CTCDP, 1995, e Cartografia de Macau – Séculos XVI e XVII, Lisboa, Missão

de Macau, 1997.

50 São no entanto anos de desenvolvimento na cartografia europeia manuscrita da China,

em especial em Sevilha com os Planisférios de 1525, 1527 e 1529, do cartógrafo português Diogo Ribeiro.

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entre portugueses e chineses para níveis muito baixos, anos de 1522 a 1528, e acima de tudo para redes asiatizadas e informais constituem as razões fundamentais para este quase grau zero de escrita.

Existe na ordem dos acontecimentos marítimos e mercantis uma situa-ção que inviabiliza, em larga medida, a regularidade e a frequência de contactos e que afecta as parcerias euroasiáticas que constituem os canais de abastecimento da informação europeia. Por outro lado, os mercadores letrados e acima de tudo os burocratas letrados do aparelho de estado mer-cantil português tinham chegado, no terreno, a um ponto máximo de explo-ração da informação asiática e portuguesa disponível sobre a China.

Fruto deste quadro de bloqueio voltamos a encontrar, ao longo desta década, um regresso da informação fragmentária sobre os chineses e a China. Dados ligeiros em cartas como a de Martim Afonso de Melo para o rei D. Manuel de Cochim, a 14 de Novembro de 152151. Informação ligeira

também obtida a partir da rede marítimo-mercantil islâmica do Sueste Asiá-tico como vemos, em Francisco António Pigafeta (1491-1534).

Pigafeta, natural de Vicenza, acompanha a expedição de circum-nave-gação do português Fernão de Magalhães ao serviço de Castela. As notas tomadas na viagem de 1519 a 1522 são desenvolvidas na relação impressa em 1522 em latim em Roma e Colónia em 1523, também com edição par-cial francesa, «Le Voyage de Navigation aux Ilés Molúque», Paris, 1522, e edição italiana em Veneza, 1536 com o título «Il Viaggio fate dali spagnoli atorno al mundo».

Nas cartas de Martim Afonso de Melo para o rei, de 1521 e 1523, como em outras cartas para o mesmo destinatário como a de Diogo Calvo de 1527 todas escritas depois de viagens aos litorais da China não encontramos qual-quer progressão, quantitativa ou qualitativa, na informação europeia sobre a China52. No entanto, estes pedaços de informação habitual e residual

repetida sob forma manuscrita ou impressa vão estabelecendo, cada vez mais, em Lisboa, Paris, Veneza, Sevilha o tópico da grandeza e riqueza da China: «… a grande China cujo rei é o mais poderoso príncipe da terra…» (F. Pigafeta), e «… debaixo do sol tão riqa terra não há como a China…» (Diogo Calvo).

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51 Informação marítimo-mercantil ligeira e pensada em termos estratégicos para a Coroa

de Lisboa: «… eu trabalhey quamto pude por saber asy de symao d andrade como dos que verão em sua companhia por alguas cousas da Chyna de que compria avisar vosa alteza», in Carta de Martin Afonso de Melo para o Rei de Cochim a 14 de Novembro de 1521 editada por Ralph Bishop SMITH, Martim Afonso de Melo captain major of the portuguese fleet which sailed in China

in 1522, Bethesda, Maryland, Decatur Press, 1972, p. 6.

52 Sobre as informações destes anos, veja-se J. Paulo Oliveira e COSTA, «Do Sonho

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IV

De 1531 a 1540 mantém-se o predomínio da informação pontual, fragmentária e repetida em torno da grandeza marítima e mercantil da China Ming. Mas nos anos 1534 e 1536 temos dois relatórios enviados de Cantão para certamente Malaca, Cochim e Lisboa que são as primeiras obras escritas por europeus na China Ming.

As cartas de Cantão de Cristóvão Vieira em 1534 e de Vasco Calvo em 1536 ficaram manuscritas na época53. Tiveram uma muito restrita

cir-culação e um quase nulo impacte no banco de dados europeus54.

Tirando a informação usada por João de Barros estas cartas pouco ou nenhum impacte informativo tiveram embora sejam os primeiros textos europeus escritos da China Ming que chegaram à Europa.

As razões para esta muito baixa difusão, manuscrita e impressa, pren-dem-se com a natureza dos próprios textos e a condição dos próprios auto-res. As cartas são relatórios clandestinos de prisioneiros. Relatórios confi-denciais-secretos do Estado marítimo-mercantil português. Relatórios em torno dos obstáculos no comércio português com o litoral da China e nas soluções para a abertura desse mesmo comércio marítimo.

Os autores são funcionários ou membros do Estado da Índia aprisio-nados em Cantão pelas autoridades chinesas. Cristóvão Vieira desembar-cou na província de Cantão em 1517 na embaixada de Tomé Pires e está prisioneiro na China desde 1521. Vasco Calvo é um nobre mercador aprisio-nado em Cantão também em 1521 e junto aos prisioneiros da embaixada de Tomé Pires.

Estas cartas relatórios não são inquérito geográfico-antropológico sobre a China e os chineses nem recolha de novidades sobre o tecido marítimo-mercantil. Possuem também esta informação mas são, sobretudo, relatórios

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53 O número de cópias manuscritas deve ter sido bastante reduzido pois apenas

conhe-cemos hoje a da B. N. Paris. Em Lisboa, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Fragmentos, maço 24) existe um importante fragmento da carta original de C. Vieira, escrita em Cantão, em papel chinês e a tinta da China, publicado por E. A. VORETZSCH, «Documento acerca da Primeira

Embaixada Portuguesa à China», in «Relações entre Portugueses e Japoneses», Boletim da

Socie-dade Luso-Japonesa, Tóquio, 1929, n.º1, pp. 50 a 69. O facto de ser apenas J. Barros e não

qualquer outro a referir-se às Cartas indicia a sua não circulação fora do restrito círculo do poder central da Coroa/Lisboa. É bom não esquecer que o humanista e historiador João de Barros foi, entre 1533 e 1567, feitor da Casa da Índia.

54 Na época apenas são genericamente conhecidas por via indirecta pois a elas se refere

João de Barros na Década III da Ásia, Lisboa, 1563. Referência impressa genérica, em 1563, e nada mais pois por via directa de cópias manuscritas, totais ou parciais, que tivessem ultrapas-sado o muito restrito círculo oficial da Corte, nada se conhece. Na época apenas são generica-mente conhecidas por via indirecta pois a elas se refere João de Barros na Década III da Ásia, Lisboa, 1563, e nada mais pois por via directa de cópias manuscritas, totais ou parciais, que tivessem ultrapassado o muito restrito círculo oficial da Corte nada se conhece.

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político-militares sobre um estratégia de avanço dos canhões e das velas portuguesas nos mares da China.

A carta de Cristóvão Vieira, dos finais de 1534, é antes de mais um rela-tório informativo para a Coroa sobre os incidentes da embaixada de Tomé Pires à China, a primeira embaixada europeia à China.

Um relatório que informa sobre razões político-diplomáticas do falhanço da embaixada a partir de argumentos e perspectivas oficiais chinesas:

«… dizião as sentenças; ladrões piquenos do mar enviados pollo ladrão grande falsamente vem espiar nossa terra mourão em troncos por ladrões…»55.

Os portugueses como Wako, o estatuto tributário de Malaca, os pro-blemas dos intérpretes e do protocolo na embaixada de Tomé Pires bem como o édito imperial de expulsão dos Folangji desfilam na carta de Cris-tóvão Vieira:

«… O rei da China manda carta aos grandes de Cantão que não recebão a nenhum embaixador de Portugal, a carta del rei de Portugal he queimada, o embaixador e sua companhia já foi preguntado de como se tomou Malaca; não o deixam hir… entreguem Malaca ao dito rei de Malaca, como o rei de Malaca for entregue Malaca e gente assi como lha tomarão ao rei de Malaca e como o rei de Malaca for entregue della deixarão hir ao embaixador e se não entregar Malaca ao dito rei averse ha outro conselho. Esta carta veio do rei da China ao Tutão…» 56.

As passagens citadas da carta são suficientes para se entender o destino manuscrito e quase silencioso da escrita de Cristóvão Vieira.

Trata-se de uma carta relatório da Coroa com dados sobre a perspectiva chinesa que são muito críticos para o quadro e os objectivos das relações internacionais do Estado Português na Ásia:

«… teem os chis os portugueses em pouco por dizer que não sabem pelejar em terra que são como pexes que como os tirão d’água ou do mar logo morrem…» 57

a sua não circulação, mesmo no plano manuscrito, é um objectivo estra-tégico na política da Ásia Portuguesa.

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55 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira», in Enformação das cousas da China – Textos do século XVI, ed. Raffaella d’INTINO, Lisboa, I.

Nacional, 1989, p. 15.

56 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira…»,

cit., p. 17.

57 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira…»,

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Fruto dos dezassete anos de estadia e de recolha informativa na China a carta de Cristóvão Vieira contém abundante informação, em português, da perspectiva e do mundo chineses no relacionamento dos portugueses com a China Ming: «… chamo a todo estrangeiro salvaje, a sua terra chamão o reino de Dó…» (Cristóvão Vieira.)

Dados relevantes porque informam do outro lado da fronteira cultural. Por exemplo, a introdução e a produção de armas de fogo do tipo português na China como a espingarda e o canhão bem como a construção naval ao molde português são noticiadas por Cristóvão Vieira:

«… hum chim… que sabia fazer pólvora bombardas e galees… começou em Cantão a fazer duas galles, fez duas acabadas de todo… acharão que algüa cousa sabia de polvora de bombardas mandaram no ao rei…» 58

Um dos presentes da embaixada de Tomé Pires em 1517 às autoridades de Guangdong foi uma espingarda, mas só no post-1522 é que houve inte-resse das autoridades chinesas pela tecnologia naval e militar portuguesa. Cristóvão Vieira informa sobre um chinês que conhece a tecnologia militar portuguesa de Cochim e de Malaca referindo-se a Yang San ou Dai Ming que, segundo as fontes chinesas, tinham vivido muitos anos com os portugueses e sabiam fazer navios e armas 59.

Para além de relatório político e diplomático a carta de Cristóvão Vieira contém abundante informação sobre a geografia da China Ming, em especial sobre os litorais da província de Guangdong.

Os dados sobre a vida marítima e mercantil da zona de Cantão, sobre a estrutura social e a organização do estado chinês estão organizados a partir de uma perspectiva de conquista militar portuguesa:

«… quequer que vier ora seja capitão com frota de dez ate quinze vellas, primeira cousa he desbaratar armada. se a tiveré, a que eu cuido que não tee, seja por fogo, sangue, medo cruel por este dia se dar vida a nenhua pessoa, todo iunco queimado e não se tome ningué por se não gastare os matimentos, que em todo tempo se acharão cem chis pera hu português… e isto feito despejarse ha nato e logo terão fortaleza e mantimentos se quisere porque logo he na mão e dar co toda armada e ainacha que esta a barra de tacoam de bo porto aqui se acorarao aos naos… queimarlhe o lugar por fazer medo aos chis…» 60.

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58 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira…»,

cit., p. 19.

59 Veja-se MAChujian, The Introduction of Western Artillery by the Jesuit Missionaries

and the Consequent changes in the wars between the Ming and the Qing In Martino Martini: A Humanist and Scientist in Seventeenth Century China, ed. F. DEMARCHIe R. SCARTEZZINI,

Trento, Universita degli Studi, 1996, p. 313.

60 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira…»,

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A totalidade da informação geográfica da carta de Cristovão Vieira está regulada pelo objectivo de saber para invadir e conquistar. Os dados escol-hidos, as áreas de acentuação e de aprofundamento temático estão ao serviço dos canhões e das velas, ao serviço de um projecto de conquista da feitoria-fortaleza em Cantão e de uma armada de costa nos litorais sul do mar da China.

Uma vez mais compreendemos o valor e a utilidade estratégicas desta carta para o centro político-militar da Coroa portuguesa e ao mesmo tempo a extrema necessidade de controlo da informação da carta num muito restrito círculo do aparelho de estado.

A ideia de Cristóvão Vieira é a da conquista de Cantão com o domínio das redes marítimo-mercantis da província. O domínio também das rendas e manufacturas e o aproveitamento da mão de obra cantonense em todas as feitorias-fortaleza do Índico:

«… deixar nella fortaleza e lugares que convem deixar gete portuguesa e malavares e tornesse co toda sua armada carregada de chis carpinteiros pedreiros ferreiros telheiros serradores e de todo outro officiio co suas molheres pera deixar por esas fortalezas…» 61.

A carta de 1536 de Vasco Calvo tem a mesma natureza de informação geográfica regulada pelo e para o objectivo da conquista militar dos litorais e mares do sul da China.

Existe alguma informação objectiva sobre a China Ming,

«… o geito da terra he chamare ao seu rei filho de Deus e a terra chamão terra de Deus e toda outra gente de fora a da terra chamão salvages que não conhecem Deos nem terra e que todo o embaixador que vem a sua terra que vem obedecer ao filho de Deus…» 62

Contudo estes dados sobre as ideias de «Tianchia» e «Shangdi» bem como outros informes geográficos, são elementos menores e não aprofun-dados. O essencial é a informação dos locais a atacar e a conquistar, dos pontos estratégicos para a navegação e a artilharia: «… irão pollo rio acima como levare soma de artelharia, irão queimando quátos paraos e juncos e cousas se achar de villas e lugares fazendose grandes estroições sem ficar cousa nenhua…»63

A carta de Vasco Calvo é um complemento e prolongamento da de Cris-tóvão Vieira em especial na ideia de conquista militar. Uma precisão nos dados e nas informações estratégicas para a conquista de feitorias-fortaleza e o estabelecimento de uma armada de costa nos mares da China.

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61 «Trelado de hua carta que da China veo a qual carta escreveo Cristovão Vieira…»,

cit., p. 36.

62 «Trelado de outra carta…», cit., p. 53. 63 «Trelado de outra carta…», cit., p. 43.

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Complemento e prolongamento que acaba por explicitar e precisar o programa de conquista. Agora, são propostas as províncias de Guangdong e do Fujian, «… governação deste Cantão e de Foquem…» (Vasco Calvo) como áreas estratégicas de uma rede marítimo-mercantil hegemonizada por armadas portuguesas numa trama de feitorias-fortaleza nos litorais destas províncias.

A ideia mais forte da carta de Vasco Calvo é a de que as províncias lito-rais do sul da China são uma nova e melhor Índia. Devem ser o centro de sustentação e de viabilidade do próprio Estado da Índia e da Rota do Cabo. O comércio marítimo, as rendas, os metais preciosos, as manufacturas e a abundante e especializada mão-de-obra de Guangdong e do Fujian são a solução para o poder português na Ásia e na relação Europa-Ásia:

«… se nesta terra se gastar hum ceitill del Rei nosso señor, senão levarão pera a Índia se fazerem os gastos e cargos de naos para Portugal… outra casa da Índia não trazendo de Portugal salvante daqui levarem nao carre-gada de prata e ouro pera na Índia fazerem cargo das naos pera Portugal e se fazer o gasto na Índia…» 64

V

Os anos de 1541 a 1550 vão marcar uma nova idade qualitativa no conhecimento europeu da China. Um conjunto múltiplo de factores, alguns vindos da década de 1530, vão gerar novas condições de possibilidade informativa.

Nos anos de 1530 a 1540 surgem em Portugal os primeiros jardins botâ-nicos de plantas exóticas asiáticas, as primeiras colecções sistemáticas de farmacopeia asiática e as colecções de livros impressos asiáticos. Novidades da Índia, do Sueste Asiático e da Ásia Oriental alimentam o coleccionismo de membros da casa real, como o Infante D. Luis, membros da alta nobreza como Brás de Albuquerque e D. João de Castro, médicos judaicos como Amato Lusitano.

Esta acumulação na Europa de matéria asiática mais erudita só é pos-sível porque a partir da década de 30 se assiste a uma melhoria qualitativa nos quadros portugueses na Ásia. Nobres letrados como Diogo de Sá, 1527, Lopo de Sousa Coutinho, 1533, e D. João de Castro, 1538, universitários como Garcia de Orta, 1534, ou soldados e funcionários letrados como Diogo de Sá, 1527, Fernão Mendes Pinto, 1537, Jorge Álvares ou o regressado Simão Álvares em 1533 são apenas a parte mais visível deste salto qualitativo.

A recolha no terreno por humanistas, nobres eruditos e funcionários letrados de toda uma informação cultural sobre a novidade asiática permite

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a acumulação e a organização da informação na Europa em colecções, bibliotecas e jardins botânicos.

É esta crescente circulação e recolha de informação na Ásia e em Lisboa que permite ao navegador e geógrafo português João Afonso, ao serviço da coroa francesa, num manuscrito de cerca de 1542, opor a tranquilidade e a sabedoria chinesas à guerra e instabilidade dos europeus65.

Um sinal bem manifesto desta nova idade qualitativa no conheci-mento europeu da China é dado pelas anotações e compleconheci-mentos a propósito da China numa das cópias manuscritas no Livro das Coisas da Índia de Duarte Barbosa.

O anónimo autor desta actualização da informação sobre a China no Livro de Duarte Barbosa esteve na Índia e na Ásia do Sueste entre os anos de 1535 e 1543, vivendo em Malaca e Banda pelo menos nos anos de 1540.

Provavelmente cerca de 1544-154566, na ou entre a viagem de regresso

e a chegada a Portugal realiza esta cópia actualizada do Livro de Duarte Barbosa a partir de uma modernidade informativa:

«… Bem parece que o autor fez esta memoria em tempo que a India não era muito trilhada de portugueses, e será mesmo que a fez por ouvidas que de vista…» 67

É esta nova idade informativa que surge de novo proclamada a propó-sito da própria China:

«… despois que o autor isto escreveo foram muitos portugueses a esta China e teem muito dela por a costa descoberta, a qual é muito grande terra…»68

Passados cerca de trinta anos o horizonte informativo do Livro de Duarte Barbosa pode ser melhorado e ampliado, como o fez o nosso anónimo autor ———————————

65 La Cosmographie avec l’esphere et le régime du soleil et du nord par Jean Fonteneu

dit Alfonse Saintonge…, ed. G. Musset, Paris, 1904. Sobre este tópico, veja-se G. CHINARD,

L’Exotisme Américan dans la Littérature Française du XVI Siècle, Paris, 1911, p. 47, e Sergio ZOLI, Lá Cina e la Cultura Italiana dal 500 al 700, Bolonha, Patron, 1973, p. 17. Sobre a vida e

a obra de João Afonso, consulte-se Luís de MATOS, Les Portugais en France au XVI Siècle,

Coimbra, I. Universidade, 1952.

66 O autor desta cópia anotada e actualizada do Livro de Duarte Barbosa esteve na Índia e

na Ásia entre cerca de 1535 e 1543. É provavelmente o conhecido cartógrafo Gaspar Viegas que na Ásia tem os irmãos Gaspar Viegas, João Viegas e Galvão Viegas. As anotações são escritas nos anos de 1540-1542 e concluídas cerca de 1544-1545 como se pode concluir do episódio de Hairun reconduzido no trono por D. João de Castro, em 1547: «… assi que quando parti da India, ano de 1543, ainda ficavam todos em Goa, com lhe dezer cada monção que pera o outro o levariam…», in Livro de Duarte Barbosa, ed. M. A. Veiga e SOUSA, Lisboa, I.I.C.T., 2000,

vol. II, p. 468.

Esta passagem foi escrita depois de 1543 e antes de 1547-1548.

67 Livro de Duarte Barbosa, ed. M. A. Veiga e SOUSA, Lisboa, I.I.C.T., 2000, vol. II, p. 452. 68 Livro de Duarte Barbosa, cit., p. 469.

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irmão de João Viegas, Galaz Viegas e Gaspar Viegas, sendo João Viegas, em 1512, o autor da primeira proposta de viagem mercantil portuguesa à China. O facto deste novo horizonte informativo desaguar também sob a forma de actualização e melhoria na obra de Duarte Barbosa significa que o Livro das Coisas da Índia funciona nos anos 40, nos sectores portugueses da Ásia e em Portugal, como manual básico de informação das coisas asiáticas, como enciclopédia actualizada do saber europeu do Oriente.

Ao longo destes trinta anos, o Livro das Coisas da Índia foi sob a forma manuscrita sobrevivendo, crescendo e actualizando-se, criando o caminho das cópias e das anotações manuscritas que possibilita a sua edição italiana em Veneza, 1550.

O mais importante nesta anotação e actualização da China no Livro de Duarte Barbosa é a informação mercantil sobre os litorais da província de Cantão: «… um rio, que se chama cantam, o qual é um dos grandes que em todas aquelas terras há…»69

Os dados recolhidos nos inícios dos anos 40 atestam um intenso comércio, também de portugueses, nos mares e nos litorais da província de Cantão:

«… e 50 ou 60 legoas ao mar da boca deste rio há i uas certas ilhas adonde vão sorgir todas as naos estrangeiras que vão tratar áquele reino. Vão ali ter porque, se veem à costa sem o rei saber, perdem as naos e mercadorias e eles mortos ou cativos…» 70

A novidade tão só mercantil da China reside nas condições do trato nas ilhas de Cantão «… se vendem ali muitas mercadorias que são muito falsi-ficadas…»71 e nos pormenores concretos que atestam a intensidade do

comércio português informal na província de Cantão.

Nos inícios da década de 40 do século XVI a China cultural começa a ecoar nas elites culturais europeias. Ao longo da década esta dimensão da China como grande civilização não pára de crescer tanto nas elites culturais europeias laicas como clericais.

Em Malaca, em 1547, surge a anónima Emformação da Chyna, mandada per huu homem a mestre Framçysquo. Informação manuscrita que resulta de uma parceria mercadores-jesuítas e que circula também nos corredores do poder oficial do Estado da Índia (Malaca e Goa).

Trata-se de um ponto de situação do conhecimento existente organizado a partir de um ponto de vista mais erudito e cultural. A Emformação é a escrita de recolhas orais e de vivências pessoais feita a partir de uma grelha e questionário propostos pelo jesuíta Francisco Xavier (1506-1552).

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69 Livro de Duarte Barbosa, cit., p. 469. 70 Livro de Duarte Barbosa, cit., p. 469. 71 Livro de Duarte Barbosa, cit., p. 469.

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De certa forma a autoria do texto e dos inquéritos que o sustentam resulta de uma encomenda de Francisco Xavier, em Malaca 1545, aos merca-dores portugueses nos mares e litorais da China:

«… de Malaca van todos los años muchos navios de portugueses a los puertos de la China. Yo tengo encomendado a muchos para que sepan desta gente, avisándoles que se informen mucho de las cerimonias y costumbres que entre ellos se guardan.» 72

O mais tardar nos meses de Setembro a Dezembro de 1545, por orien-tação dos jesuítas, o mundo à mão dos mercadores portugueses na China começa a orientar-se e a estruturar-se para também questões chinesas de natureza mais erudita e cultural.

A Emformação da Chyna foi provavelmente recebida por Francisco Xavier nos seis meses que passou em Malaca entre Julho e Dezembro de 1547 altura do encontro do jesuíta com o mercador Fernão Mendes Pinto73. Entre

os possíveis autores portugueses, mercadores escritores, da Emformação surgem os nomes de Afonso Gentil e de João Rodrigues de Carvalho74.

A hipótese de a autoria da Emformação ser de Fernão Mendes Pinto não deve no entanto ser posta de lado. O mercador-escritor deste texto é alguém que está envolvido nas redes mercantis do Sião ao Japão, «… serão de costa, se não mentem as cartas que os japões mostrão, quinhentas legoas ou mais…»75. Alguém que já esteve em Cantão uma vez e que está no circuito

de cruzamento dos mercadores e jesuítas em Malaca em 1547.

Estes elementos apontam para Fernão Mendes Pinto com alta probabili-dade. A dúvida nasce da data da estadia em Cantão, que no texto surge 1533 quando Fernão Mendes Pinto aí esteve em 1543, mas e se for erro do copista? De certa forma a Emformação é também um texto de autoria colectiva que assenta na recolha de testemunhos orais de chineses por um mercador português que junta a sua vivência pessoal e passa à escrita segundo um questionário de escolhas relevantes encomendado pelos missionários jesuítas.

A Emformação da Chyna está organizada em sete temas fundamentais que correspondem às perguntas maiores desejadas por Francisco Xavier, «… ao que vosa merce manda saber da Chyna…»

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72 Carta de Francisco Xavier de Amboíno a 10 de Maio de 1546 para os Jesuítas na

Europa, in Epistolae S. Francisci Xaverii, Ed. G. SCHURHAMMERe I. WICKI, Roma, M.H.S.J., 1996,

vol. I, p. 335.

73 Veja-se G. SCHURHAMMER, Francisco Xavier su vida y su tempo, Pamplona, Gobierno de

Navara, 1992, 4 vols., em especial o final do vol. IIe os vols. IIIeIV.

74 Sobre a possível autoria destes dois portugueses, veja-se Rui Manuel LOUREIRO, Fidalgos, Missionários e Mandarins – Portugal e a China no S. XVI, Lisboa, F. Oriente, 2000, p. 170.

75 Emformação da Chyna, mandada per hu homem a mestre Francysquo in Livro

que trata das Cousas da Índia e do Japão, ed. A. Almeida CALADO, Coimbra, I. Universidade,

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