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Academic year: 2021

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(TRANS)NARRATIVAS DE FRONTEIRA

Cláudio Eduardo Resende Alves* Maria Ignez Costa Moreira** Resumo: O presente texto propõe uma reflexão sobre as histórias de vida de uma transexual e de uma travesti pertencentes a gerações, contextos familiares, econômicos e sociais distintos, além de possuírem trajetórias escolares díspares. O fio condutor das histórias se desenvolveu a partir de uma roda de conversa entre protagonistas e educadores da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG. O trabalho apresenta uma narrativa polifônica das subjetividades intercruzadas pelas categorias de gênero, idade, sexo, classe social, raça/etnia e formação profissional. Por fim, é feita a problematização das narrativas apresentadas à luz das teorias de gênero a fim de pensar a travestilidade e a transexualidade como formas de expressão da sexualidade localizadas na fronteira entre o masculino e o feminino.

Palavras-chave: Corpo. Gênero. Subjetividade. Travesti. Transexual.

1 Introdução: apresentação da narrativa

O texto se inicia com uma breve revisão da literatura sobre os termos “travesti” e “transexual”, resgatando historicamente suas respectivas origens e problematizando algumas concepções de teóricos do campo de estudos de gênero. Em seguida, é realizada a contextualização do trabalho pedagógico com as temáticas das relações de gênero e da sexualidade realizado pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, instituição promotora da roda de conversa em foco intitulada “Trajetória Escolar de Travestis e Transexuais: histórias, limites e direitos” realizada no primeiro semestre do ano de 2013.

Na sequência, são apresentadas as convidadas: 1. Letícia (nome fictício) que relata parte de sua história de vida como uma travesti de 58 anos, prostituta e ativista política dos direitos da população de travestis e transexuais; 2. Rebeca (nome fictício), uma mulher transexual (homem que se torna mulher), negra, 28 anos e estudante de graduação em Psicologia. Suas trajetórias de vida produzem reflexões significativas sobre os processos de subjetivação marcados pelas categorias de sexo, gênero, raça/etnia, idade, orientação sexual, classe social entre outras.

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Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas e integrante do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG.

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Pós-Doutora em Psicologia (UFRJ) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas.

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Nas considerações finais, o texto problematiza as narrativas apresentadas pelas protagonistas à luz das teorias de gênero, a fim de pensar as identidades de travestis e transexuais como possibilidades de ser sujeito no campo de produção de sentidos não normativos e de direitos humanos.

2 Travesti ou transexual? Narrativas em construção

Pensar em travestis ou transexuais é conceber possibilidades de expressão de gênero que escapam ao determinismo reducionista do sistema sexo-gênero. É difícil encontrar um consenso entre estudiosos do campo de gênero ou entre representantes do movimento social LGBT1 sobre uma possível distinção universal entre os termos “travesti” e “transexual”. Os conceitos são fluídos e, muitas vezes, personalizados, possibilitando diferentes abordagens, desenhos e contornos subjetivos.

Segundo Leite Jr. (2011), a discussão entre travesti e transexual se dá principalmente no campo, por ele nomeado, de “capital corporal” (LEITE JR., 2011, p.24). O autor problematiza a separação entre corpo, gênero e política, uma vez que não é possível analisar a origem dos conceitos de travesti e transexual sem considerar o pano de fundo político e científico e o quanto tais conceitos são baseados em normas sociais que organizam as diferenças de gênero.

A origem do termo “transexualismo” é historicamente controversa, sendo atribuída a diferentes autores do campo da saúde como Hirschfeld em 1910 ou Cauldwell em 1949, num artigo para a revista científica Sexology, ou ainda Benjamin nos anos 1950. Para o Código Internacional de Doenças (CID-10), “transexualismo” se refere ao desejo de viver como o outro gênero, à necessidade de receber intervenções hormonais e cirúrgicas e ao profundo mal-estar com o próprio sexo anatômico. Já o termo “travesti” é uma palavra francesa, com possível origem no século XVI, usada preferencialmente para designar a ideia de disfarce e rapidamente associada ao campo teatral e artístico. Gradativamente, os termos “transexual” e “travesti” passaram a integrar os livros biomédicos, os textos científicos, os debates militantes, a mídia e o imaginário social (LEITE JR, 2011).

Peres (2009) concebe travestis como sujeitos que se identificam com a imagem e o estilo do sexo oposto ao seu, apropriando-se de indumentárias e adereços estéticos do sexo

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oposto, realizando com frequência mudanças estéticas em seus corpos, enquanto transexuais apresentam uma incompatibilidade em relação ao seu sexo anatômico e desejam fazer uma transição de seu sexo de nascimento para o sexo oposto, por meio da cirurgia de redesignação sexual.

Bento (2006, p.13) problematiza o chamado “dispositivo da transexualidade”, qual seja, um conjunto de saberes que produzem verdades universais sobre os corpos transexuais. Sendo a travestilidade e a transexualidade quesitos de autodeclaração, existem múltiplas formas de ser e de sentir travesti ou transexual, independentemente da realização ou não da cirurgia de redesignação sexual. A autora ainda contrapõe as transexuais às travestis ao notar que os modelos de feminilidade em jogo são diferentes, enquanto para aquelas a feminilidade é considerada legítima, para estas a feminilidade é vulgar, exagerada e promíscua (BENTO, 2008). Os corpos construídos artificialmente sugerem concreta e simbolicamente as possibilidades de proliferação e multiplicação de formas de gênero e de sexualidade (BENTO, 2006). Os processos de estigmatização que travestis e transexuais sofrem são decorrentes do rompimento com os modelos previamente dados pela normatização, ficando com isso marcados negativamente e desprovidos de direitos a ter direitos, o chamado “corpo abjeto” (BUTLER, 2003, p.191).

O uso do termo “transformações de gênero” (BENEDETTI, 2005, p.17) é uma alternativa usada pelo autor para a complexa necessidade social de criar procedimentos de tipologização dos corpos e das identidades, pois abrange todas as personificações de gênero, tanto para travestis, quanto para transexuais. O contraponto entre a hermenêutica conceitual acadêmica sobre os sujeitos travestis e transexuais e as concepções vivenciadas pelos próprios sujeitos pode fornecer indícios de possíveis fissuras entre a teorização e a prática dos corpos e seus desejos. A diversidade na experiência de travestis e transexuais não implica na impossibilidade de uma definição ou conceito, mas, ao contrário, sinaliza para o risco de propor categorias teóricas enrijecidas e normativas que não deixam espaço para a subjetividade (PELÚCIO, 2009).

3 Contexto narrativo: o campo da educação

A Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte desenvolve ações e intervenções no campo da sexualidade humana desde o final da década de 1980. Inicialmente, os projetos ocorreram de forma esporádica, conforme as demandas da comunidade local e as

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situações vivenciadas pelo corpo docente e discente. A maior parte dos projetos apresentava uma abordagem biologicista e tecnicista da sexualidade, com enfoque primordialmente no campo da saúde reprodutiva e sexual.

Na década de 1990, o trabalho pedagógico com a Educação Afetivo Sexual nas escolas municipais ampliou o foco e a metodologia de abordagem a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (1998), especificamente no “Caderno Temas Transversais: Orientação Sexual” nos quais a sexualidade, o corpo e as relações de gênero são abordados e justificados como temas importantes no trabalho pedagógico, ainda que de forma preliminar (ALVES, 2013)2 . Historicamente, foi a primeira vez que a temática de gênero se apresentava institucionalmente ancorada por documentos nacionais do Ministério da Educação. A naturalização das concepções enrijecidas de masculinidade e feminilidade passa a ser problematizada do ponto de vista social, biológico e psicológico, uma vez que outras expressões da sexualidade começam a conquistar visibilidade no âmbito das políticas públicas nacionais.

No contexto nacional dos anos 2000, houve uma proliferação de inúmeros Planos e Programas Federais que versavam sobre as interfaces possíveis e necessárias entre educação, sexualidade e direitos humanos. As concepções de identidade de gênero e orientação sexual passam a ocupar lugar de destaque nas políticas públicas educacionais nacionais reverberando nos estados e municípios do país. Destacam-se o Programa Brasil sem Homofobia (2004), o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2006), o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007) e o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 (2010), além da 1a Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008 no Distrito Federal, com a presença do Presidente da República à época.

Simultaneamente a essa efervescência nacional, o Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG consolidou, ampliou e potencializou uma série de ações pedagógicas de formação docente no enfrentamento às práticas sexistas, homofóbicas e transfóbicas no ambiente escolar. Muitas delas inseridas numa lógica intersetorial com a Secretaria Municipal de Saúde, a Secretaria Municipal de Políticas Sociais, o movimento social LGBT e algumas universidades públicas e privadas do município de Belo Horizonte.

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Disponível em <http://afetivosexualpbh.blogspot.com.br/p/1989-projetos-de-educacao-sexual_1.html>.

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Nesse contexto de trabalho intersetorial, foi realizada, em parceria com o Centro de Referência LGBT, a roda de conversa intitulada “Trajetória Escolar de Travestis e Transexuais: histórias, limites e direitos” no primeiro semestre de 2013. O evento contou com a participação de uma travesti e uma transexual convidadas que debateram com educadores do Ensino Fundamental suas histórias de vida intercruzadas pelas categorias de gênero, idade, sexo, classe social, raça/etnia e formação profissional.

4 Primeira história: travesti Letícia

Letícia – travesti, 58 anos, branca, prostituta, ensino fundamental incompleto, militante e ativista política dos direitos da população de travestis e transexuais. Letícia inicia a roda de conversa com a autopercepção como travesti: “[...] estou em perfeita sintonia entre meu corpo, minha alma e minha mente, eu não tirei meu pênis e nem quero tirá-lo, quero morrer com ele [...] gosto de mim assim, desse jeito [...] sou mulher sem cirurgia!3

A necessidade de categorização, classificação e enquadramento de corpos e desejos evidencia uma busca por certo ordenamento da sexualidade, a fim de garantir uma manutenção de determinadas zonas de conforto perante o estranho, o não nomeável e o diferente. A travestilidade e a transexualidade são elementos propiciadores de relações de complexidade social e política, uma vez que a visibilidade e a materialidade desses sujeitos evidenciam o caráter fluído e instável das identidades sexuais (LOURO, 2000).

As inscrições corporais atuam, muitas vezes, como determinantes classificatórios normatizantes da distinção entre sexo e gênero. Porém, uma diferenciação baseada exclusivamente na manutenção ou não do órgão genital masculino, não evidencia traços de subjetividades e nem de singularidades que imprimem sentidos para seus sujeitos. O gênero se configura, nesse contexto, como uma importante categoria analítica de problematização das concepções de masculinidade e feminilidade que permeiam a sociedade. Ele inaugura uma cisão definitiva no sistema binário dos sexos. Segundo Butler (2003),

Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino (BUTLER, 2003, p. 24).

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O corpo, pensado como naturalmente dimórfico, reitera um discurso binarista que hegemonizou o corpo-sexo como matéria fixa. A essencialização das identidades está enraizada numa estrutura fisiológica de hierarquização das posições sociais e sexuais do homem e da mulher. Os processos de subjetivação são amplos, descontínuos e fluidos, resultando de um entrecruzamento de determinações coletivas sociais, econômicas, tecnológicas, políticas e midiáticas. Esses processos promovem a descontinuidade dos sujeitos e criam alternativas para visibilizar as diversidades, entre elas travestis e transexuais, muitas vezes obscurecidas na sociedade.

As travestis são estigmatizadas, entre outras razões, por apresentarem um trânsito entre os polos masculino e feminino, enfatiza Letícia, por isso, elas devem aprender a impor a presença, conhecer seus direitos e ocupar espaços como cidadãs. Esse é um dos motivos pelos quais ela assumiu o papel de militante política, a fim de lutar pela cidadania desses sujeitos historicamente alijados de seus direitos sociais e políticos. Em sua trajetória como militante, ela possui uma casa onde aluga quartos para travestis, em sua maioria, vindas de cidades do interior de Minas Gerais, que ali encontram acolhimento e segurança. Segundo ela, a independência financeira é fundamental, sobretudo, para iniciar, o mais rápido possível, o processo de modificação corporal (próteses de silicone, maquiagem, depilação, hormonoterapia, extensões nos cabelos, etc.) na busca por uma estética feminina. De acordo com Pelúcio (2009), as travestis se apropriam das tecnologias de modificação corporal, reapropriando e subvertendo o código normalizador, produzindo novas formas de inteligibilidade sobre os corpos. No dizer de Preciado (2004), uma incorporação desviante da matriz heteronormativa que transforma corpos de homens em outra coisa, que não o de mulheres, e que nem seguem sendo homens. “As travestis sabem que não são mulheres, nem desejam sê-lo. São ‘outra coisa’, uma coisa difícil de explicar [...]” (PELÚCIO, 2009, p.93). Para a autora, buscar definições não simplistas para o universo das travestis implica em seguir muitas trilhas, perseguir “códigos-territórios” e fixar-se nos corpos nômades que constroem certos femininos (PELÚCIO, 2009, p.42).

A maioria das travestis que reside na casa de Letícia manifesta o desejo por ser uma mulher com seios fartos, ancas largas, nádegas proeminentes, lábios carnudos, cabelos longos e loiros. Uma femme fatale brasileira! Existe uma necessidade, quase urgente, de adequação

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corporal à imagem feminina, mesmo que para isso o corpo se submeta a altas doses de hormônios por um curto espaço de tempo. As tecnologias de modificação corporal disponíveis no mercado promovem a aproximação entre o modelo corporal palatável ao consumo e o imaginário social e midiático da estética feminina.

O mercado de trabalho e produção de renda para a população de travestis é muito restrito, ainda mais em função da baixa escolaridade. A instituição escola está pouco preparada para lidar com a diversidade sexual de forma tão explícita, o que gera desconfortos e situações conflituosas que resultam na evasão escolar desses sujeitos. Letícia destaca ainda que o apoio da família da travesti pode ser um fator decisivo para a continuidade dos estudos e o investimento numa formação profissional. Se a escola do século XXI ainda está aprendendo a lidar com as singularidades de estudantes travestis e transexuais, no início da década de 1970, quando Letícia estava em período escolar, a invisibilidade e a inacessibilidade social dessa população era praticamente total.

A legalização do uso do nome social4 nos documentos internos escolares já é realidade em diversas instituições municipais, estaduais e federais de educação. Porém, há quatro décadas, o dito nome social nas escolas era “rosinha”, “bichinha” e “viadinho”, revela Letícia, com certo pesar por ter abandonado os estudos no início do Ensino Fundamental. Para ela o nome social é a primeira marca da travesti, o nome está associado ao bem-estar humano e ao reconhecimento social.

Letícia relatou ter enfrentado muitos problemas de saúde devido ao uso prolongado de estrógeno e progesterona (hormônios femininos), a ponto de ser necessária uma cirurgia de castração de emergência para a retirada dos testículos acometidos por uma grave disfunção orgânica. Esse fato diminuiu significativamente seu interesse sexual e sua libido, tornando-a mais letárgica e facilitando o rápido aumento de peso. Apesar de todos os percalços do caminho e de todas as perdas sofridas, “[...] quando você é travesti, você sofre e perde muitas coisas e as pessoas próximas de você (que a apoiam) também sofrem!”, a primeira protagonista termina sua participação com a descrição de um sabor na boca, “o sabor da rua”. O sabor de ser desejada como mulher, de ser quem você quer ser, o sabor da prostituição: amargo, mas prazeroso.

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Nome social, segundo a Resolução CME/BH Nº 002/2008, é entendido como o nome pelo qual sujeitos travestis e transexuais preferem ser chamados cotidianamente, uma vez que o nome civil ou de registro não reflete sua identidade de gênero.

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5 Segunda história: transexual Rebeca

Rebeca – mulher transexual, 28 anos, negra, estudante de graduação em Psicologia de uma universidade privada. Rebeca inicia sua história de vida demarcando seu território no campo conceitual:

Transexual é aquela que está no meio, não é mulher e também não é homem. [...] ser mulher transexual (ela enfatiza essa expressão, como um homem que se tornou mulher) não é um problema, o problema está com os outros e seus olhares inquisidores que julgam a priori os sujeitos.5

A produção dos sujeitos ocorre por meio de “agenciamentos que promovem bons ou maus encontros” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.16) entre o “eu” e o “outro”. O outro é um lugar que pode ser exercido pelo social, pela escola, pelas políticas públicas ou pela ausência delas, pela discriminação, pela violência, pela doença etc. Já por agenciar compreende-se o ato de se entregar ao estranhamento, momento que, dependendo do encontro, pode promover ou não o rompimento com os modos hegemônicos de ser. Os processos de subjetivação não são centrados nem em agentes individuais, nem em agentes coletivos, na realidade, tais processos são duplamente descentralizados (GUATTARI e ROLNIK, 1986).

O modus vivendi dos corpos e das sexualidades são inúmeros e intercruzam os processos de subjetivação na sociedade. Essa multiplicidade pode promover agenciamentos de novas maneiras de viver e pensar o social. Nesse contexto, as potencialidades corporais podem ser consideradas como signos de possíveis mudanças numa permanente (re)adaptação ao ambiente. Além disso, o potencial do corpo para ser reinventado está diretamente conectado ao desejo e ao processo identitário. No caso da transexualidade, possuir uma vagina e retirar o pênis são demandas significativas, apesar de não haver consenso quanto ao caráter sine qua non da cirurgia de redesignação sexual para se definir como transexual.

Segundo Rebeca, “a vagina não é um troféu, ninguém vai me amar mais por isso [...] mas a cirurgia vai me dar prazer e satisfação com meu próprio corpo [...] convivo com a minha verdade e não sou louca por isso!” Não existe um modelo universal de transexual, assim como não existem modelos universais de homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis e heterossexuais. A discussão da transexualidade como conflito identitário revela do processo de organização social das identidades. As travestilidades e as transexualidades são figuras de desordem e

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embaralhamento nesse sistema binário de masculinidades e feminilidades, de homem e mulher e de heterossexual e homossexual (BENTO, 2006).

Enquanto as travestis reservam um espaço fantasmático em seus corpos para o fluxo masculino-feminino, as transexuais que se submetem à cirurgia de redesignação sexual buscam a concretização da mulher em seus corpos. Muitas transexuais após a cirurgia afirmam serem verdadeiras mulheres, negando o fato de terem sido homens ou mesmo de terem pertencido ao universo da transexualidade. Algumas inclusive se sentem contempladas e representadas nas comemorações do Dia Internacional da Mulher6, enquanto outras preferem as comemorações do Dia da Visibilidade Trans7.

A fabricação das subjetividades se dá através de atos performáticos, linguísticos e corporais, que, pelo seu caráter permanente e incluso, concede vida aos sujeitos generificados. A performatividade é determinante na concepção de gênero, no interior do discurso hegemônico produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero (BENTO, 2006). Os atos e discursos, tidos como performáticos, assim o são no sentido de que a essência ou identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. Logo, as identidades de gênero se constituem na reiteração das narrativas e na prática discursiva (BUTLER, 2003).

Atos e discursos performáticos desviantes da matriz heteronormativa encontram pouco ou nenhum espaço na Instituição Escola, na qual o binarismo de gênero ainda prepondera, determinando o que é do universo da menina e do universo do menino. A escola reproduz a hierarquização presente na sociedade, criando regras e delimitando espaços. No caso de Rebeca, a relação com a escola passou por inúmeros momentos de conflito que predicaram seu processo ensino aprendizagem. Entretanto, ela não desistiu, enfrentou as resistências e contou com o apoio familiar nesse caminho. No Ensino Fundamental, ela ainda usava seu nome civil masculino e nunca se considerou “bicha” ou “viado” como era chamada por alguns colegas, pois sempre se percebeu como mulher e sofria por ter que frequentar o vestiário masculino e jogar futebol. Até o Ensino Médio pouco conhecia de si mesma e não se reconhecia como menino até ouvir a palavra transexual pela primeira vez, foi quando tudo mudou. Ao descobrir que existiam outras formas

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Dia oito de março

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de ser e estar no mundo perante a polarização sexual compulsória da sociedade, ela buscou informações, leituras, contatos e percebeu que existiam outras pessoas na mesma situação que a dela.

Na faculdade foi diferente; já como mulher transexual, ela teve o apoio de uma organização não governamental LGBT local na articulação com o colegiado acadêmico da universidade para conseguir o direito ao uso de seu nome social. Mesmo assim, todo semestre ela tinha que conversar com seus professores sobre o uso do nome social na chamada e nos trabalhos avaliativos, e nem todos aceitavam a situação. O uso legalizado do nome social na universidade se tornou possível para Rebeca a partir de um caso de jurisprudência baseado na Resolução CME/BH Nº 002/2008 da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte que legitima o uso do nome social para estudantes travestis e transexuais nos documentos internos da escola, ficando excluído do diploma e do histórico escolar. Rebeca renega seu nome civil, apesar de pronunciá-lo sem o menor constrangimento, o que não é o caso de Letícia que evita dizê-lo. Além de ser considerado politicamente importante por ser a primeira forma de acesso aos direitos civis, o nome social também revela dos processos de subjetivação que produzem sentidos e espaços de pertencimentos. A escolha e o uso do nome social dizem do processo de subjetivação vivenciado pelos sujeitos em seus contextos históricos de vida, bem como agrega valores identitários oriundos da vivência social, familiar, cultural e política.

Rebeca também relata outro tipo de preconceito vivenciado na faculdade, dessa vez como futura profissional de psicologia. Como uma psicóloga transexual pode atender um paciente? Existem critérios determinados para o atendimento psicoterapêutico por uma profissional transexual? A presença de Rebeca como estudante numa faculdade de psicologia coloca em questionamento a concepção tradicional de um profissional da saúde mental, pois o perfil do senso comum de uma psicóloga está muito conectado à imagem de uma pessoa centrada, equilibrada, segura e, como se escuta muito nos espaços de convivência escolar, com a “sexualidade resolvida”8

.

De acordo com a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

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A expressão “sexualidade resolvida” é comumente utilizada por educadores na Rede Municipal de Educação e, quando questionados sobre o sentido da mesma, afirmam possuir duas aplicações: 1. Quando um sujeito é heterossexual, ou seja, está dentro da norma do sistema sexo-gênero; ou 2. Quando um sujeito homossexual se posiciona social e politicamente como tal perante a sociedade, sem querer ocultar sua “verdadeira” identidade de gênero (Notas de diário de campo).

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Mentais (DSM-5, 2013) produzido pela Associação Americana de Psiquiatria a transexualidade não é mais considerada um transtorno psicológico e sim uma “disforia de gênero”, ou seja, uma angústia de que sofre uma pessoa que não se encontra identificada com seu sexo masculino ou feminino. Porém, apesar da mudança na terminologia – disforia de gênero ou transtorno psicológico ou ainda incongruência de gênero – a transexualidade continua patologizada. Sendo assim, como uma transexual pode atuar como psicóloga, uma profissional que lida com patologias no campo da saúde, uma vez que ela mesma é classificada como patologia? Questões como essa são levantadas constantemente entre colegas e professores de Rebeca. Entre polêmicas e desconfianças, ela segue atendendo seus pacientes na clínica da faculdade e usando seu nome social.

Por fim, Rebeca enfatiza sua condição de mulher transexual negra. A categoria étnico-racial adquire um importante papel em sua descrição identitária e em sua noção de pertencimento e representação social. Sobretudo nas demandas políticas de uma população expressiva no Brasil, mas ainda vulnerável ao preconceito racial. A categoria de pertencimento étnico se entrecruza com a categoria de gênero uma vez que as travestis e transexuais negras são as que mais sofrem ataques de violência transfóbica, segundo dados do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Belo Horizonte (2012)9. Ser mulher transexual e negra, estigmas que

reforçam as desigualdades e se configuram como um processo multifacetado de obliteração da produção de sujeitos.

6 Considerações narrativas: as fronteiras do gênero

Letícia experimentou transitar entre os sexos bem antes que Rebeca, quando o cenário nacional era hermeticamente fechado à diversidade sexual. Por isso, ela sofreu mais resistência, se expôs a mais violência, teve mais perdas e abandonos na vida e lutou mais para ser reconhecida como pessoa portadora de direitos. Entretanto, isso não quer dizer que a vida de Rebeca, décadas mais tarde, tenha sido fácil, e não o foi como visto em sua narrativa. Os movimentos sociais LGBT têm lutado para mudar essa realidade e muito já foi alcançado em termos de políticas públicas no campo da educação e da saúde. Mas, ainda há uma longa trajetória política pela frente na luta pelo direito à diferença, pelo direito de estar na fronteira, pelo direito às diferentes expressões de sexualidade. Tal demanda está onipresente na sociedade,

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ainda que não seja possível escutá-la o tempo todo, e por essa razão precisa cada vez mais ter voz e vez em um mundo no qual a diversidade é tomada mais como desigualdade do que como diferença.

Tomando as protagonistas Letícia e Rebeca como representantes da categoria de sujeitos travestis e transexuais ou simplesmente categoria “trans”, quais seriam as lógicas e os conflitos inferidos a partir de suas histórias? Por categoria entende-se: “[...] abstrações que se constituem a partir da realidade e que orientam a investigação de processos, procurando aprender as múltiplas determinações dos fenômenos e seus nexos. Relações contraditórias que não se manifestam diretamente” (KAHHALE & ROSA, 2009, p. 26).

As categorias sofrem atravessamentos constantes entre as histórias singulares e as histórias sociais. Do ponto de vista cronológico, a diferença existente entre Letícia e Rebeca é de trinta anos, mas esse dado não pode ser analisado isoladamente, pois inúmeros são os fatores que influenciam a noção de idade, bem como corroboram com sua regulação, como o fator biológico, jurídico, cultural, histórico e social. As experiências vivenciadas por elas são incorporadas pela interação e pela transformação e não pela lógica da soma e do acúmulo. Ressignificar o vivido é uma construção simbólica que permeia os processos de subjetivação.

Os indivíduos têm marcadores sociais indissociáveis que singularizam seus corpos como idade, sexo, identidade de gênero, raça/etnia e classe social. Esses signos de pertencimento seguem uma hierarquia social, na qual o modelo predominante é o homem, rico, jovem, branco e heterossexual. Os demais signos se diluem em outros modelos de hierarquia, modelos menores e excludentes, ocupados pelas mulheres, crianças, idosos e assim por diante. Seguindo esse raciocínio e após as narrativas apresentadas nesse artigo, pode-se inferir que as travestis e as transexuais negras ocupam os lugares inferiores nessa pirâmide da desigualdade social e econômica. Letícia e Rebeca se localizam numa linha tênue entre os universos masculinos e femininos. A travestilidade e a transexualidade são fronteiras do gênero (HEILBORN, 1998; LOURO, 2004):

Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados “próprios” de cada um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e

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isolados) como “minorias”. (LOURO, 2004, p. 87).

Os agenciamentos ocorrem e as subjetividades são produzidas. Travestis e transexuais personificam um jogo cênico do gênero no qual ficam evidentes a fabricação e a manipulação de seus corpos. Sujeitos ambivalentes e não adequados aos olhos do senso comum, mas que se diluem numa polissemia de relações nas quais sexo, gênero, corpo e desejo se combinam, se recombinam ou, ainda, não se combinam.

FRONTIER TRANS NARRATIVES

Abstract: The present text proposes a reflexion about the life stories of a transsexual and a transvestite belonging to different social, economic, generational and family backgrounds, having, in addition, experienced dissimilar school trajectories. The common thread of the stories has developed from a round of conversation between the protagonists and education workers of the Municipal Secretary of Education of Belo Horizonte/MG. This paper presents a polyphonic narrative of the subjectivities, intersected by the categories of gender, age, sex, social class, ethnics and professional assessment. Finally, a problematization of the narratives, in the light of the gender theories, is made in order to think of the transverstitility and transsexuality as forms of sexuality expression located on the masculine feminine frontier

Key words: Body. Gender. Subjectivity. Transvestites. Transsexuals.

Referências:

ALVES, Cláudio Eduardo Resende. Histórico do trabalho com educação afetivo-sexual na rede municipal de educação de Belo Horizonte. Disponível em:

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Referências

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