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Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003) e o silêncio na obra de Kim Ki-Duk 1

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1 “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003)” e o silêncio na obra de Kim

Ki-Duk 1

Júlia Figueira e PERROTTI2 Érika SAVERNINI3

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG

Resumo

O trabalho tem como objetivo comentar sobre os conceitos de silêncio como elemento estético e significativo, tanto no sistema sonoro quanto narrativo e de construção de personagens, realizando uma reflexão sobre sua aplicação no cinema Sul-Coreano. Com base nisso, este trabalho comenta sobre a utilização do silêncio nas obras do diretor sul-coreano Kim Ki-Duk, analisando sua escolha e construção estética no filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003). Por meio da silenciação, Kim Ki-Duk reflete sobre as manifestações das chagas carregadas por membros oprimidos da sociedade, materializando no silêncio dessas personagens a carga de seus conflitos morais.

Palavras-chave: Silêncio; Cinema; Cinema Sul-Coreano.

Introdução

O silêncio sempre foi algo que gerou uma gama de emoções no ser humano. Dependendo da situação, sentimo-nos incomodados em não conversar com alguém, o que causa constrangimento; não ouvimos nada em um lugar antes barulhento, o que nos dá medo ou insegurança; ou quando nossos pais se calam e sentimos a reprovação ou o desapontamento. Não seria justo considerar o silêncio como um vácuo, um vazio, uma lacuna, já que esse elemento pode representar mais do que uma simples ausência, é capaz de ser articulado, construído, munido de significação e potência de atingir e gerar sensações em diferentes contextos e indivíduos.

1 Trabalho apresentado no IJ04 – Comunicação Audiovisual, da Intercom Júnior – XVI Jornada de Iniciação Científica em

Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação

2 Estudante de Graduação do Curso de Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.

e-mail: juliaperrotti@hotmail.com

3 Professora Doutora do curso de Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.

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Algumas produções audiovisuais exploram esse lado do silêncio como elemento narrativo e criador de sensações. Muitos diretores, como Haneke, por exemplo, conseguem misturar esses momentos silenciosos com pontos profundos de suas narrativas. Em “Amour” (2012), o apartamento silencioso nos diz muito sobre o momento que o casal principal do filme vive, uma atmosfera de melancolia, que transforma tudo ao redor em um relicário, antes animado por música clássica. Os orientais, seguindo uma vertente mais contemplativa, exploram os momentos sem som como uma dilatação do tempo e do espaço da narrativa, como podemos observar nos filmes como “Café Lumière” (2003), de Hou Hsiao Hsien, quebrando não só com a sonoridade explícita cinematográfica, mas também com o ritmo narrativo com o qual estamos acostumados.

Nesse contexto, o diretor sul-coreano Kim Ki-Duk nos propõe uma outra forma de enxergar o silêncio, como manifestação de uma ferida aberta, de palavras não ditas e sujeitos oprimidos em sua sociedade. O silêncio vem aqui como o espaço preenchido por uma potência, a potência de se fazer dito, das lembranças, das mágoas e dos comportamentos instintivos, silenciados por forças externas às das próprias personagens. Mais uma vez, o silêncio não é um vazio, e sim, um espaço preenchido por algo não verbalizado, mas que existe como essência concreta e narrativa.

O Som Sugerido

No início, o cinema nasce silencioso. As películas dos Irmãos Lumière que se popularizavam na Europa e depois em todo o mundo não contavam com manifestação audível de sons por parte do próprio filme, ou seja, o som síncrono ainda não se encontrava registrado na película cinematográfica. Apesar disso, por meio da duração dos planos, da dinâmica de pessoas e objetos em tela e do próprio trabalho de montagem, a noção de ritmo e movimentos já estavam presentes nas imagens projetadas.

O acompanhamento musical no cinema começa a ser utilizado para que o espectador não seja distraído ou sinta incomodado com os ruídos causados pelo projetor. Não se tratava de um artifício que roubasse a atenção, mas que servisse como uma maneira de “melhorar o filme, de aperfeiçoá-lo” (ROSENFELD, 2010, p. 27). Boa parte dos acompanhamentos musicais eram feitos por improviso, por uma orquestra ou pianista que já possuía repertório prévio, o qual poderia ser aplicado em diversas situações. O músico aguardava o começo da projeção e então escolhia a partitura que acreditava ser mais conveniente para a cena na tela. Nasce assim, uma

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preocupação dos grandes diretores para que “[...] o filme falasse por si próprio, sem depender da trilha [sonora]. ” (ADELMO, 2010, p.31).

Mesmo nascido silencioso, o cinema já apresentava a noção de movimento embutida à noção de ritmo. “A Chegada do Trem” (1895), dos irmãos Lumière, é um exemplo desse fenômeno: “Os elementos visuais, plásticos, o movimento em direção à plateia, são ali acrescidos (sob aspecto memorial) da lembrança do som do trem, do ritmo de suas rodas, com o intuito de provocar a sensação até então inédita da eminência da colisão”. (ADELMO, 2010, p.32). A mera noção do som seria um mecanismo de despertar a consciência do espectador para um possível som que deveria estar ali, um processo de sugestão movido pela memória e sensação. Adelmo (2010, p. 42) comenta uma citação de Eisentein, comparando a ideia da indução visual/sonora com a atuação de um ator, o qual não representa caricatamente as emoções, de resultado imediato, mas procura proporcionar às pessoas que as emoções surjam e se desenvolvam nelas próprias, acionando uma condição pessoal e interna.

Com base nisso, pode-se começar a compreender o que indicamos como montagem e criação de sensações sonoras. Eisenstein4 correlaciona a montagem no cinema com a criação literária, nesse caso tendo como exemplo “Bel Ami”, de Maupassant, no qual um homem espera por sua amada para que possam fugir à meia noite. Ele aponta que o escritor não se limita a indicar a badala de meia noite do relógio, mas faz com que vários relógios batam individualmente em diferentes lugares, criando uma sensação geral de meia-noite, articulada à inquietude da personagem e que é sensorialmente projetada no leitor. O cinema pode induzir, portanto, não só a ideia de um som, como também a sensorialização por meio da imagem. “As cenas devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de experiências anteriores, mobilizar sentimentos e emoções, atiçar a sugestionabilidade [...] conduzir permanentemente a atenção para um elemento importante e essencial - a ação”. (MÜNSTERBERG, 2018, p. 25)

Ensaio Sobre O Silêncio

O som e o silêncio andam lado a lado, seja nos filmes ou no cotidiano, criando sensações únicas e que variam dependendo do contexto e aplicação. Com a modernidade, vivemos imersos em uma gama de ruídos, ocasionados pelos fluxos contínuos de aparelhos, maquinários e próprio cenário urbano que se desenvolve. Convivemos, portanto, na era dos sons, na qual

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estamos cercados de inúmeras manifestações sonoras, que nos acompanham. O silêncio aparentemente pode perder espaço para a configuração opressora do audível, mas muitas vezes encontra na contradição dessa vertente, um modo de manifestação mais marcante e munido de significado. Silenciar na era do ruído, é uma forma de intenção e tentativa de propor os espaços e significados de outra forma.

Diferente do que se crê no senso comum, o silêncio não é uma ausência. “O silêncio, [...], é existente e material. Trata-se de uma faixa acústica que nosso organismo não é capaz de identificar e traduzir, devido à uma especificidade orgânica. ” (FLUSSER, 2007, p. 109). De forma alguma o silêncio é um “vazio” da forma como imaginamos, ligado a uma falha, a uma inexistência, e sim a algo que não captamos auditivamente. Ruschel e Moraes (2015, p. 13), apontam que as tonalidades criadas entre som e silêncio “[...] tornam-se tradução de um sentido de espera, de expectativa de o silêncio surgir nas imagens sonoras presentes no audiovisual [...]”, criando assim, a experiência estática de ambientes, que combinados à realidade cotidiana, ruidosa, tornam o silêncio tema central. “O modo dominante de escutar é o da repetição de som e ruído”, dessa forma o silêncio se porta como uma forma de oxigenação. Por meio do contraste, a evidência do silêncio se materializa aos nossos sentidos, abrindo espaço para nos distanciarmos da oferta sonora e experienciarmos essa pausa, uma ruptura entre os ruídos. “Escutar o silêncio sob uma reserva de atenção, com uma escuta diferenciada, sutil, tátil [...] Wisnik situa o silêncio como modelador de objetos interiores” (RUSCHEL;MORAES, 2015, p. 5).

Na abordagem de Orlandi (1997, p.13) em “As formas do Silêncio”, a reflexão sobre silêncio atinge um campo mais metafísico, e deixa ser trabalhada como apenas algo material, mas também imaterial. Para a autora, o silêncio “atravessa as palavras”, tornando-se elemento fundante da linguagem, uma “respiração de significação”, necessário para que algo seja absorvido e só então a significação se faça presente e haja sentido. Portanto, silêncio também é essa forma de linguagem, capaz de transmitir e evocar determinadas impressões e discursos não verbalizados, fazendo-se presente na linguagem, mas arraigando sua potencialidade na memória. Orlandi aponta, adotando a orientação wittgensteineana que é o silêncio que torna possível toda a significação e todo o dizer.

O desenho de som, em conjunto com o trabalho de montagem em alguns filmes, consegue potencializar o efeito do silêncio. Partindo do princípio da indução de sensações, anteriormente comentadas nesse trabalho, o arranjo das cenas e variações sonoras, ajudam a compor a materialidade, o sensível, experienciado pelo espectador. “[...] trata-se de uma sensação de silêncio na vibração corporalmente afetada [...]; o silêncio pode reforçar, completar

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ou contradizer e até controlar as sensações sonoras com uma imagem fílmica”. (RUSCHEL; MORAES, 2015, p. 12). Essa atmosfera do silêncio está sempre ao nosso redor, de forma palpável, mas que se evidencia no trabalho cinematográfico, atingindo como um corpo quem usufrui da obra e munindo de significado uma imagem, um momento ou um acontecimento em cena. A criação dessas sensações corporais causadas pela articulação do silêncio que possibilita ao espectador sentir de forma mais intensa o objetivo daquele momento presente da narrativa. A arte sempre encontrou obstáculos na realidade concreta. A subjetividade dos impulsos criativos e a materialidade da vida comum se chocam na tentativa física de expressão dos pensamentos e sentimentos do criador, o qual recorre à arte como meio canalizador de suas ideias. O pensamento utiliza a arte como corporificação, porém, choca-se com o caráter material da própria arte, uma vez que ela não é possibilitada de abarcar completamente e dar forma ao intangível. “Portanto, a obra passa a ser considerada como algo que deve ser superado. Um novo elemento ingressa na obra de arte individual e se torna parte construtiva dela: o apelo (tácito ou aberto) à sua própria abolição – e, em última instância, à abolição da própria arte”. (SONTAG, 1933, p. 13).

O silêncio desempenha esse papel, como os artistas, na criação e ruptura de sua própria arte. Há um ponto em que verbalizar, gritar, não são capazes de expressar as sensações e sentimentos das personagens, suas angústias e dilemas. Como Sontag defende em “A Estética do Silêncio”:

A linguagem é rebaixada à condição de um evento. [...] Nesse modelo, a atividade do artista é a criação ou estabelecimento do silêncio; a obra de arte eficaz deixa o silêncio em seu rastro. O silêncio, administrado pelo artista, é parte de um programa de terapia perceptiva e cultural, calcado frequentemente mais no modelo de terapia de choque do que na de persuasão. Ainda que o meio do artista sejam as palavras, ele pode participar dessa tarefa: a linguagem pode ser empregada para conter a linguagem, para expressar o mutismo. (SONTAG, 1993, p. 29-30)

Dessa forma, pode-se levantar a existência de uma estética do silêncio aplicada aos contextos fílmicos, ou a criação de uma espécie de silêncio visual, composto pela silenciação da trilha, das personagens e da atmosfera do filme, confinando o universo narrativo a um “presente eterno” que nos convoca à contemplação e comunhão. ” (WITHERS, 1997, p.351 apud ALMEIDA, 2010, p.36). O cinema continua uma arte visual, mas que se baseia em um tríplice, verbal-visual-sonora, capaz de potencializar uma outra instância a fim de criar a atmosfera desejada. Pode-se pensar assim, na ideia de um silêncio visual, tátil, como outros processos que operam através das modalidades sensórias.

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O Cinema De Kim Ki-Duk

Segundo Almeida (2010, p.37), “o silêncio, para experiência estética ocidental moderna, é uma noção complexa com uma gama de usos”. Ao passo do defendido por Sontag (1933, p.26), encontramos alguns artistas que usam da linguagem para conter a linguagem, usam do silêncio nesse afastamento voluntário da prática artística, como forma de criar uma obra, ou uma “ausência da obra”, que propõe aos expectadores refletir sobre sua configuração como “[..] um procedimento mágico ou mimético nas relações sociais repressivas [...]”.

Uma das influências artísticas que propõe esse estudo do silêncio como “reinvenção dos modos de ver, ouvir e dizer [...]” (ALMEIDA, 2003, p.39), está Kim Ki-Duk, um cineasta nascido em Boghwa, província rural da Coréia do Sul, em 1960. Kim Ki-Duk mudou-se para Seoul, capital do país e passou a trabalhar no ramo da indústria e sua formação e estudo em cinema foram tardias. Por volta dos anos 1990, estudou Bellas Artes em Paris e descobriu as possibilidades que o cinema poderia lhe trazer. De volta ao seu país, porém, Kim5 se confronta com uma realidade dura, com reflexos dos anos de guerras e opressões sofridas pelo povo sul-coreano. Seu primeiro filme, “Crocodile” (Ag-o, 1996), já começa a mostrar traços do que seria a abordagem do diretor: indivíduos oprimidos por uma força invisível, marginalizados; um trabalho que se reflete nas imagens e silêncios dos filmes.

Em “A Casa Vazia” (3-Iron, 2004), as personagens principais não conversam ou trocam qualquer insinuação de palavras. Os acontecimentos os cercam e eles a tudo observam, interagindo sem exprimir uma verbalização com o universo exterior. A opressão do discurso nesse caso, potencializa a atenção e desenvoltura dos corpos em cena, transformando-os no centro da comunicação, ao contrário de apenas um aparato para que a voz se projete. Dúvidas, conversas, sentimentos, são expressados por meio das ações e comunicação corporal, muitas vezes traduzidas ora a gestos tímidos e delicados, ora a manifestações mais enérgicas e compulsivas, que atingem o espectador e o inserem no conflito narrativo, não pelo convite sonoro/verbal mas pelo impelir dos corpos e o não-dito.

A fala e o diálogo das personagens são elementos subtraídos nos filmes de Kim Ki-Duk, fruto da eclosão do Novo Cinema Coreano, que

[...] surge nas últimas décadas de um século de sucessivos traumas nacionais vividos pela Coréia do Sul (subjugação colonial ao Japão, divisão da península

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7 da Coreia, guerra da Coréia e regimes autoritários e brutais) e que abrem uma perspectiva democrática a partir da qual se pode falar mais livremente sobre experiências traumáticas vividas. (ALMEIDA, 2010, p. 39)

Outro fator gera questionamentos que se refletem na produção fílmica: libertos das mazelas da guerra, os coreanos acabam sob influência dos ocidentais, principalmente os Estados Unidos, a partir do fim da Guerra da Coreia em 1953. Uma sociedade tradicional, baseada em costumes e tradições se vê fortemente influenciada pelo capitalismo e cultura exterior. O cinema de Kim, mostra personagens frequentemente sujeitas a forças exteriores, como a personagem Sun-hwa de “A Casa Vazia” (2004). Bonita, juvenil, porém humilhada e oprimida por seu marido. Kim transpõe para o universo de seus filmes o reflexo de um país e comunidade silenciados, cerceados por agentes de fora e pelo seu próprio desenvolvimento.

Mais uma característica do cinema de Kim Ki-Duk são os ápices de violência, externalização das personagens. Em “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), o monge quando mais velho, cegado pela ilusão e ciúmes, ataca sua esposa a facadas. A cena não é mostrada, mas o ódio e ira acompanham a personagem do monge quando ele retorna ao templo onde cresceu. Quando confrontados por situações extremas, os indivíduos de Kim Ki-Duk transgridem os limites do socialmente polido, aceitável e manifestam-se de maneira explosiva e agressiva. Tratam-se, portanto, imagens fílmicas munidas de significado, transmissoras da carga sensorial de situações em que o instinto humano se sobressai, revelando o homem oprimido em seu interior e exterior. Esses momentos servem como uma espécie de catarse, um impulso físico das personagens para a libertação do corpo e aprisionamento e repressão do psicológico, causados por um meio que os condiciona brutalmente.

Kim Ki-Duk explora o silêncio dessas personagens, justificado como a manifestação de uma chaga, um espaço aberto onde antes habitava a crença em algo, em outras pessoas. “Compreender o que é efeito dos sentidos, em suma, é compreender a necessidade da ideologia na constituição dos sentidos e dos sujeitos” (ORLANDI, 1977, p.21). São indivíduos feridos, que tiveram suas expectativas e esperanças destruídas e renegadas, restando para eles agora, apenas o silêncio e projeção de seus sentimentos de mágoa e abandono.

O Silêncio Das Estações6

Em “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), Kim Ki-Duk transfere para o ambiente sereno das montanhas as questões humanas, o amadurecimento e a índole

6 Primeira versão da análise fílmica apresentada na mostra “Som no Cinema” de 2018 do Projeto de Extensão Cineclube

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próprios de cada ser. O filme acompanha quatro etapas da vida de um jovem monge: sua infância, juventude e vida adulta, divididas conforme as quatro estações, primavera, verão, outono e inverno. Inspirado na filosofia budista, Kim cria um cenário aberto, repleto de natureza e reflexão. No templo isolado em um lago, o jovem monge é criado por um monge mais velho que o transmite ensinamentos e guia seu crescimento, às bases da disciplina e serenidade, porém, o mais novo se revela inquieto e malicioso.

“Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), apresenta o silêncio e vazio como ritmo e nos convida à contemplação. “A contemplação, do ponto de vista estrito, acarreta o auto esquecimento por parte do espectador: um objeto digno de contemplação é aquele que, com efeito, elimina o sujeito que a percebe” (SONTAG, 1933, p.23). Assim, ao mostrar uma grande paisagem aberta, preenchida por um calmo e parado rio cercado de árvores, Kim Ki-Duk transmite a sensação de um silêncio não sonoro apenas, mas imagético, fruto da imensidão tranquila que se estende à nossa frente e que, por meio da contemplação, “elimina o sujeito que a percebe” e cria esse silêncio também visual. Nesse filme de Kim, ao contrário do silêncio oprimido dos outros filmes, o silêncio se mostra como uma reinvenção do modo de ver e ouvir, como se estivéssemos imersos no ambiente e serenidade meditativa da natureza e do ambiente que nos cerca na tela.

O filme também trabalha o silêncio para emoções literalmente indescritíveis, para as quais não temos palavras, mas mesmo assim sabemos conter algo significativo. “Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante” (ORLANDI, 1977, p.23). Podemos notar esse silêncio significante na cena em que o jovem monge amarra os animais em pedras (Figura 1). Compreendemos a brutalidade do ato e vemos o olhar de repreensão do monge mais velho, mas ele nada diz ou interfere no que acontece.

Figura 1 - Jovem monge amarra cobra em uma pedra.

Fonte: Modificado de “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), de Kim Ki-Duk

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Outro momento marcante do filme é quando o jovem monge retorna, depois de ter atacado sua esposa e renega Buda, escrevendo o ideograma de “fechado” em papéis colados em seus olhos e boca (Figura 2). O mestre então o repreende, atingindo seu corpo com golpes de bastão. A cena combina o silêncio significante, rebelde, furioso do jovem monge, com a potência do corpo, também silenciosa, do mestre, os quais moldam a cena, trazendo a importância contextual e forças imagéticas do momento narrativo.

Figura 2- Ideogramas de "fechado" utilizados para renegar a imagem sagrada de Buda.

Fonte: Modificado de “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), de Kim Ki-Duk

Em cenas como essa, as ações mudas do corpo servem de suporte para a construção narrativa, que por ausência de diálogo explícitos e diretos, se baseia na manifestação não verbal dos gestos e olhares. O corpo, portanto, se transforma mais uma vez, nesse receptáculo para o silêncio, que ao invés de se comportar como uma ausência, é preenchido palavras não ditas e sentimentos guardados. Nas palavras de Baitello Jr. (1998 apud ALMEIDA, 2010, p.41) é um ato de “Reinventar o corpo, como instância fundante para o processo comunicativo”, e também de criação de sensações e estímulo de afetos no corpo observador.

[...] [os] filmes de Ki-Duk exploram as ações mudas do corpo como suporte para construção da narrativa. A restrição do elemento verbal oral não limita a interação entre as personagens nem a narrativa implícita do filme, que se constrói potencializando fortemente a imagem, as ações do corpo e todos os elementos sonoros não-verbais, ruídos que ganham relevo no calar das personagens [...] (ALMEIDA, 2010, p. 42)

Apesar de trabalhar com o silêncio verbal, imagético e de ritmo, Kim Ki-Duk acrescenta sons que auxiliam na construção da atmosfera característica do filme. Instrumentos típicos asiáticos demarcam a rotina e alguns momentos dramáticos do filme, barulho de pássaros e ruídos da natureza ajudam a estabelecer a sensação de quietude e calmaria do ambiente. Os

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instrumentos e a música típica também são colocados por Kim no lugar de diálogos, como se substituísse as palavras que deveriam estar ali.

Kim Ki-Duk, em sua inspiração budista para o universo narrativo de “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), sugere a ideia de Samsara, ou “roda da vida”, que gira em torno da humanidade e está ligada aos processos de aprendizado e amadurecimento. Para que se chegue ao conhecimento, são necessárias meditação e paz interior, alcançadas por meio da tranquilização do corpo e da mente. Ao voltar transtornado após ter atacado sua mulher, o aprendiz de monge é colocado por seu mestre para entalhar ideogramas no chão de madeira. Ele realiza todo o processo em silêncio, como uma forma de acalmar o estado turbulento e devastado de seu interior. Tempo, pausa e observação, bases do aprendizado, são mostrados para o espectador contextualizados na narrativa, mas também contam com a mobilização da imagem, do silêncio e atmosfera de tranquilidade criados no filme para demonstrar a modificação do jovem monge.

A imagem inventa a tela como um vazio estrutural, no qual o silêncio atua para que haja o espaço de fabulação. O silêncio funciona como esse espaço no qual projetamos o não dito e o que se poderia dizer e que opera na nossa sensorialidade e criação de sentidos, torna-se contestador do discurso. Ele possibilita a significação de processos que não teriam a mesma intensidade quando verbalizados ou explicados, e que só funcionam quando sentidos.

Kim Ki-Duk em “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), mostra o ser humano oprimido e silenciado de seus filmes por uma vertente mais contemplativa, na qual o silêncio não é uma forma de fuga e reflexo de opressão, mas um modo de observar e aprender com o mundo. Esse “vazio” ganha um potencial transformador e presente, manifestado nas ações, na materialidade do corpo, atmosfera do ambiente e circunstâncias criadas para a percepção e imersão do espectador dentro da narrativa e dos conflitos, criados em um meio silencioso, mas preenchido pelas falas dos gestos, pensamentos, escolhas e sentimentos das personagens. O filme se comporta como um espaço, uma obra digna de contemplação, articulada e preenchida pelos não ditos, ao passo que o silêncio não é um complemento de linguagem, e sim, elemento que possui significância própria.

Referências bibliográficas

ADELMO, Luiz; MANZANO, Fernandes. Som-imagem no cinema: a experiência alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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11 ALMEIDA, Julia Maria Costa. Falas, silêncios e imagens: o cinema de Kim Ki-Duk. Ponto de Acesso, Salvador, v.4, n.1, p.30-44, abril 2010.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naif, 2007.

MÜSTEMBERG, Hugo. A atenção, em A Experiência do Cinema. Org. Ismail Xavier. – 1ªed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2018.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

RUSCHEL, Magda Rosi e MORAES, Cybeli Almeida. Breve ensaio sobre os constructos de silêncio

no audiovisual. XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação- Rio de Janeiro, RJ – 4 a

7/9/2015.

SEPÚLVEDA, Claudia Carmona. Kim Ki-duk y la narrativa del silencio. Gramatha: servicios profesionales em escritura. Disponível em: < https://gramatha.wordpress.com/2017/11/04/kim-ki-duk-y-la-narrativa-del-silencio/>. Acesso em 17 de jan. 2018.

SONTAG, Susan. A estética do silêncio, em A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Referências

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