- Recurso Ordinário em “Habeas Corpus”. Trancamento de Ação. Concussão. Médico cadastrado no SUS. Justa causa para o prosseguimento do feito. Competência da Justiça Federal. Ampliação do conceito de Funcionário Público. Função delegada. Lesão ao interesse da União. Recurso desprovido.I - É incabível o trancamento de ação penal, via “habeas corpus”, quando o procedimento é baseado em elementos informativos que demonstram a prática, em tese, de crime, e indicam a autoria, configurando-se a indispensável justa causa para o seu prosseguimento.II - Compete à Justiça Federal o processo e julgamento de médicos cadastrados ao SUS que, no atendimento a segurados da Autarquia, exercem função pública delegada, “ex vi” do amplo enquadramento permitido pelo art. 327 do CP.III - Inserem-se no conceito de funcionário público todos aqueles que, embora transitoriamente e sem remuneração, venham a exercer cargo, emprego ou função pública, ou seja, todos aqueles que, de qualquer forma, exerçam-na, tendo em vista a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais.IV - Inobstante a descrição típica do art. 316 do CP não exigir o recebimento de vantagem indevida para a caracterização do delito de concussão que é de natureza formal, vislumbra-se a lesão ao interesse da União, no que respeita à fiel prestação de seus serviços, face ao preceito constitucional da gratuidade dos serviços de saúde pública, ressaltando-se, por outro lado, que o nosocômio particular efetivamente recebe verbas federais pelo convênio firmado.V - Alegações relativas às versões dos fatos não podem ser examinadas na via estreita do “writ”, por envolverem exame do conjunto fático-probatório.VI - Recurso desprovido. ( STJ – R em HC 8.271.RS/1999 (99.0004610-2) – Rel. Min. Gilson Dipp)
RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS” N. 8.271 - RS (99.0004610-2)
Quinta Turma (DJ, 21.06.1999)
Relator: Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp Recorrentes: Vinícius Mac Ginity e outro
Advogados: Dr. Leonel Luis Slomp Gonçalves e outros Recorrido: Tribunal Regional Federal da 4ª Região
Pacientes: Vinícius Mac Ginity e Delmo Ramos Amendola
EMENTA: - RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS”. TRANCAMENTO DE AÇÃO. CONCUSSÃO. MÉDICO CADASTRADO NO SUS. JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DO FEITO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. AMPLIA ÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO. FUNÇÃO DELEGADA. LESÃO AO INTERESSE DA UNIÃO. RECURSO DESPROVIDO.
I - É incabível o trancamento de ação penal, via “habeas corpus”, quando o procedimento é baseado em elementos informativos que demonstram a prática, em tese, de crime, e indicam a autoria, configurando-se a indispensável justa causa para o seu prosseguimento.
II - Compete à Justiça Federal o processo e julgamento de médicos cadastrados ao SUS que, no atendimento a segurados da Autarquia, exercem função pública delegada, “ex vi” do amplo enquadramento permitido pelo art. 327 do CP.
III - Inserem-se no conceito de funcionário público todos aqueles que, embora transitoriamente e sem remuneração, venham a exercer cargo, emprego ou função pública, ou seja, todos aqueles que, de qualquer forma, exerçam-na, tendo em vista a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais. IV - Inobstante a descrição típica do art. 316 do CP não exigir o recebimento de vantagem indevida para a caracterização do delito de concussão que é de natureza formal, vislumbra-se a lesão ao interesse da União, no que respeita à fiel prestação de seus serviços, face ao preceito constitucional da gratuidade dos serviços de saúde pública, ressaltando-se, por outro lado, que o nosocômio particular efetivamente recebe verbas federais pelo convênio firmado.
V - Alegações relativas às versões dos fatos não podem ser examinadas na via estreita do “writ”, por envolverem exame do conjunto fático-probatório.
VI - Recurso desprovido. ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Srs. Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em conformidade com os votos e notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Votaram com o Relator os Srs. Ministros José Arnaldo, Edson Vidigal e Felix Fischer. Custas, como de lei.
Brasília, 18 de maio de 1999 (data do julgamento).
Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Presidente - Ministro GILSON DIPP, Relator.
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP: - Adoto, como relatório, a parte expositiva do parecer ministerial, “in verbis”:
“Cuida-se de recurso ordinário constitucional interposto em favor dos pacientes Vinícius Mac Ginity e Delmo Ramos Amendola contra o v. acórdão do Egrégio
Tribunal Regional Federal da 4ª Região que denegou a ordem de “habeas corpus”, objetivando o trancamento da ação penal a que respondem perante o Juízo Federal da Comarca de Santa Maria/RS como incursos no art. 316 c/c. o art. 327, ambos do Código Penal.
Alegam, em síntese, que a matéria não é de competência da Justiça Federal, por não se enquadrar nas hipóteses previstas no art. 109, IV da Carta Magna, e por não serem os denunciados funcionários públicos, mas meros agentes da comunidade”.
A Subprocuradoria-Geral da República opinou pelo desprovimento do recurso. É o relatório.
Apresento, os autos, em Mesa. VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP (Relator): - Trata -se de recurso ordinário de “habeas corpus”, pelo qual se requer o trancamento da ação penal a que respondem os pacientes perante o Juízo Federal da Comarca de Santa Maria/RS, denegado pelo acórdão do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, alegando a incompetência da Justiça Federal para o feito.
Não merece prosperar a irresignação.
Vislumbra-se, pelo exame da peça pórtica, a demonstração da existência de crime em tese, assim como indícios de autoria, não restando evidenciado eventual divórcio entre a imputação fática e os elementos em que ela se apóia. Por isso, presente está a justa causa para a ação penal.
Por outro lado, a alegação de que a matéria não é da competência da Justiça Federal é imprópria, tendo em vista que, nos crimes de concussão cometidos por médicos que atendem a beneficiários do INAMPS/INSS/SUS, ou por administradores de hospital credenciado à Autarquia, os agentes se enquadram no art. 327 do Código Penal, pois a Administração Pública delega os serviços públicos de saúde do SUS aos particulares que, por sua vez, passam a exercer função pública delegada. Além disso, se o hospital recebe verbas federais, há o interesse da União Federal para apurar o suposto crime. Cabe a ressalva de que, efetivamente, há posição da 3ª Seção desta Corte, no sentido de que a competência para tal tipo de delito, seria da Justiça Estadual - entendimento que pode ser sintetizado no fato de que, em tais casos, ao SUS (União) não caberia qualquer prejuízo, pois este estaria restrito à esfera particular (beneficiário), ao efetuar o pagamento do que não devia.
No entanto, a primeira crítica a ser feita é no sentido de que se perde de vista o foco do tipo penal: o crime de concussão, de natureza formal, consuma-se com
a mera exigibilidade por parte do agente. O recebimento da vantagem exigida, consistente na diminuição patrimonial da vítima, é mero exaurimento do delito. Atentando-se à descrição típica do art. 316 do Código Penal, o que se depreende é que a exigência será efetuada por funcionário contra terceiro, levando em consideração a função que ocupa. Portanto, difícil seria vislumbrar-se no previslumbrar-sente, hipótevislumbrar-se de ocorrência de prejuízo material ao ente federal. Assim, a melhor técnica não poderia exigir a ocorrência de prejuízo ou dano à União.
Por outro lado, houve lesão ao interesse da União, no que respeita à fiel prestação de seus serviços, ainda que por agente delegado.
No caso do serviço de saúde (serviços médico-hospitalares), é preceito constitucional que o mesmo será gratuitamente prestado pelo Estado aos cidadãos. Uma vez que o agente tenha cobrado para a realização do serviço, que se requereu gratuito, sendo tal gratuidade negada ao beneficiário, nada há que se argumentar com o fito de afastar-se a lesão a interesse da União.
Dessarte, outro enfoque da questão consubstancia-se na qualidade de funcionário público que deve ser atribuída ao agente.
O Estado, devedor do serviço gratuito e universal de saúde pública a seus cidadãos (identificados como beneficiários do SUS), por nem sempre dispor do instrumental próprio para a realização do seu mister, vale -se da delegação de uma função precipuamente sua, a organizações ou agentes que, em seu lugar, a realizarão, arcando, entretanto, com as despesas daí decorrentes.
Inafastável, portanto, a idéia de que estes agentes exercem uma função pública delegada, face ao enquadramento amplo permitido pelo art. 327 do Código Penal.
É importante, nesta oportunidade, trazer o conceito de funcionário público. Não aquele constante no estatuto pertinente, mas sim aquele existente no Diploma Repressivo Penal.
Recita o art. 327 do CP: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. E o parágrafo desse dispositivo complementa: “Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.
Saliente-se que, conquanto este conceito esteja inserido no capítulo que cuida dos ilícitos cometidos por funcionários públicos contra a administração em geral, tem ele aplicabilidade e valor para as demais infrações contidas no Código Penal, bem como nas suas leis extravagantes.
Destarte, pela simples leitura do conceito de funcionário público adotado entre nós, observa-se com clareza meridiana que não só aqueles que ingressaram nos quadros da administração pública através de regular concurso, foram investidos em seus cargos e são remunerados pelos cofres públicos, estão sujeitos a praticar os delitos que ora examinamos. Antes, pelo contrário, todos aqueles que, embora transitoriamente e sem remuneração, venham a exercer cargo, emprego ou função pública (tarefeiros, diaristas, mensalistas, nomeados a título precário) também estão. E até mais, todos aqueles que, de qualquer forma, exerçam função pública.
Mercê desse instrumento legal, amplia-se o conceito de funcionário público para fins penais. Trata-se, como se vê, de importante mecanismo para o controle dos crimes contra a administração pública.
Nos termos de tal entendimento, transcrevo os fundamentos do voto do i. Juiz JARDIM DE CAMARGO, Relator do feito originário:
“Dispõe o art. 198 da Constituição Federal que:
“As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195 com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.
Nos termos do art. 4º da Lei n. 8.080/90 “o conjunto das ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde - SUS”.
Dispõe o art. 24 da referida lei, que “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde - SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convê nio observadas a respeito, as normas de direito público”.
Portanto, com a celebração do contrato ou convênio, a Administração Pública delega os serviços públicos de saúde do SUS aos particulares que passam, em
conseqüências, a exercer função pública, eis que realizam atividade estatal, enquadrando-se, pois, no conceito jurídico-penal do art. 327 do Código Penal. No julgamento do “Habeas Corpus” n. 92.04.26098-0/SC, decidiu a 1ª Turma desta Corte no sentido de que: “Administrador de instituição hospitalar que presta atendimento a segurados da Previdência Social, exerce função pública delegada, sendo, a teor do art. 327 do Código Penal, considerado funcionário público para os efeitos penais” (DJ de 25.11.92, p. 39.456) (fls. 110/111).
No mesmo sentido, o voto-vista do i. Juiz OTÁVIO ROBERTO PAMPLONA, “in verbis”:
“Com efeito, os autos dão conta de que o Hospital mantinha convênio com o INAMPS, autarquia federal, sucedida pela União. Em razão disso, à época dos fatos, recebia verbas federais. Os servidores do Hospital credenciado, por sua vez, equiparam-se ao funcionário público para fins penais, ante o conceito amplo inserto no art. 327, do Código Penal.
Considerando-se essa qualidade, e que o pressuposto é de que o serviço de saúde pública no caso deveria ter sido prestado sem quaisquer ônus para o usuário, não há como não se ter em princípio, afetado o referido serviço público, já que de responsabilidade, na época, da União, transferido, todavia, por convênio, ao nosocômio particular, que, frise-se, recebia verbas federais” (fl. 120).
Por fim, a análise das demais alegações apresentadas pelos recorrentes, relativas às suas versões sobre os fatos até então apurados, dependeria de acurado exame do conjunto fático-probatório, inviável em sede de “writ”.
Diante do exposto, não reconhecendo a apontada incompetência da Justiça Federal, nem tampouco ausência de justa causa para a ação penal, nego provimento ao recurso.
É como voto.
EXTRATO DA MINUTA
RHC n. 8.271 - RS - (99.0004610-2) - Relator: Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp. Recorrentes: Vinícius Mac Ginity e outro. Advogados: Dr. Leonel Luiz Slomp Gonçalves e outros. Recorrido: Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Pacientes: Vinícius Mac Ginity e Delmo Ramos Amendola.
Decisão: A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso (em 18.05.99 - 5ª Turma).
Votaram com o Exmo. Sr. Ministro Relator os Exmos. Srs. Ministros José Arnaldo, Edson Vidigal e Felix Ficher.