C´
alculo
LCC 2006/2007 Ana Jacinta SoaresPrograma Resumido
Cap´ıtulo I T´opicos sobre o corpo dos n´umeros reais. Cap´ıtulo II Sucess˜oes e s´eries de n´umeros reais.
Cap´ıtulo III Limite e continuidade de fun¸c˜oes reais de vari´avel real. Cap´ıtulo III Derivadas e primitivas.
Cap´ıtulo IV Integrais.
Principais Referˆ
encias Bibliogr´
aficas
[1 ] J. Campos Ferreira, Introdu¸c˜ao `a An´alise Matem´atica, Gulbenkian, 1999.
[2 ] T. Apostol, C´alculo, Vol. 1, Editora R´evert´e, 1991.
[3 ] Fernando Miranda e Lisa Santos, Introdu¸c˜ao `a An´alise Real, DMat–UM, 2004.
[4 ] Lisa Santos, T´opicos de An´alise Real, DMat–UM, 2004.
Cap´ıtulo I
T´
opicos sobre o corpo dos n´
umeros reais
Este ´e um cap´ıtulo de base, onde introduziremos algumas propriedades do conjunto R dos n´umeros reais. Na primeira parte, enunciaremos propriedades alg´ebricas das quais resultam todas as regras de manipula¸c˜ao dos n´umeros reais. Na segunda parte, apresentaremos algumas no¸c˜oes sobre cardinalidade. Na terceira e ´ultima parte, intro-duziremos conceitos ditos topol´ogicos – relacionadas com a no¸c˜ao de proximidade – que conferem ao conjunto R a estrutura adequada para introduzir as no¸c˜oes de limite e de continuidade.
1
Estrutura¸
c˜
ao alg´
ebrica de
R
O conjunto R, quando munido das opera¸c˜oes usuais de adi¸c˜ao e multiplica¸c˜ao que, a cada par x, y∈ R, fazem corresponder a sua soma x + y ∈ R e o seu produto x · y ∈ R, respectivamente, constitui uma estrutura alg´ebrica dita corpo ordenado completo, que passaremos a descrever nas subsec¸c˜oes seguintes (para uma an´alise mais detalhada deste assunto, cf. por exemplo a referˆencia bibliogr´afica [1]).
1.1 O corpo ordenado R
A adi¸c˜ao e a multiplica¸c˜ao usuais deR verificam as seguintes propriedades, ditas axio-mas, que conferem aR a estrutura de corpo.
Axiomas da adi¸c˜ao. A adi¸c˜ao verifica as seguintes propriedades. A1. Associatividade
(x + y) + z = x + (y + z) , ∀x, y, z ∈ R (1a) A2. Comutatividade
A3. Existˆencia de elemento neutro (zero, representado por 0)
∃0 ∈ R : x + 0 = x , ∀x ∈ R (1c) A4. Existˆencia de sim´etrico (o sim´etrico de x representa-se por −x)
∀x ∈ R , ∃(−x) ∈ R : x + (−x) = 0 (1d ) Axiomas da multiplica¸c˜ao. A multiplica¸c˜ao verifica as seguintes propriedades. M1. Associatividade
(x· y) · z = x · (y · z) , ∀x, y, z ∈ R (2a) M2. Comutatividade
x· y = y · x , ∀x, y, z ∈ R (2b) M3. Existˆencia de elemento neutro (unidade, representado por 1)
∃1 ∈ R : 1 =/ 0 , x · 1 = x , ∀x ∈ R (2c) M4. Existˆencia de inverso (o inverso de x representa-se por x−1)
∀x ∈ R , x =/ 0 , ∃ x−1∈ R : x · x−1= 1 (2d ) Axioma da distributividade. Para as duas opera¸c˜oes, vale a seguinte propriedade. D1. Distributividade da multiplica¸c˜ao relativamente `a adi¸c˜ao
x· (y + z) = x · y + x · z , ∀x, y, z ∈ R (3) A adi¸c˜ao e a multiplica¸c˜ao verificam algumas propriedades entre as quais destacamos a unicidade de sim´etrico para cada x∈R e a unicidade de inverso para cada y ∈R\{0}. Outras opera¸c˜oes no corpo R
Definem-se mais duas opera¸c˜oes, uma subtrac¸c˜ao e uma divis˜ao, respectivamente por
x− y = x + (−y) , ∀x, y ∈ R (4a) x/y = x· y−1, ∀x ∈ R , ∀y ∈ R\{0} (4b) Ordena¸c˜ao de R
Em R ´e poss´ıvel destacar um subconjunto, que se indica por R+, constitu´ıdo pelos
elementos ditos positivos, que ´e fechado para a adi¸c˜ao e para a multiplica¸c˜ao, isto ´e
x, y∈ R+ =⇒ x + y ∈ R+ (5a) x, y∈ R+ =⇒ x · y ∈ R+ (5b)
O conjunto constitu´ıdo pelos sim´etricos dos elementos deR+ representa-se porR− e os seus elementos dizem-se os n´umeros reais negativos.
Dados x, y∈ R, dizemos que x ´e menor do que y, e escrevemos x < y, quando y−x ∈ R+. Analogamente, dizemos que x ´e maior do que y, e escrevemos x > y, quando x−y ∈ R+. As express˜oes x > 0 e x < 0 significam que x∈ R+ e que x∈ R−, respectivamente.
A rela¸c˜ao bin´aria < confere ao corpoR a estrutura de corpo ordenado. De facto, trata-se de uma rela¸c˜ao de ordem, por se verificarem as seguintes propriedades.
Axiomas de ordem O1. Transitividade
Se x < y e y < z ent˜ao x < z .
O2. Tricotomia
Dados x, y ∈ R , ou x = y ou x < y ou y < x .
O3. Monotonicidade da adi¸c˜ao (a rela¸c˜ao de ordem respeita a adi¸c˜ao) Se x < y ent˜ao x + z < y + z , ∀x, y, z ∈ R .
O4. Monotonicidade da multiplica¸c˜ao (a rela¸c˜ao de ordem respeita a multiplica¸c˜ao por elementos positivos) Se x < y e 0 < z ent˜ao x· z < y · z .
Se x < y e z < 0 ent˜ao y· z < x · z .
A propriedade tricot´omica dos n´umeros reais permite escrever
R = R+∪ R˙ −∪ {0}˙ (6)
e tratar, do ponto de vista geom´etrico, o conjuntoR como uma recta, a chamada recta real, onde se identifica um ponto privilegiado – o zero do corpo – a que se chama origem
r r t r r a b 0 c d -A A R + R−
Figura 1: Representa¸c˜ao geom´etrica do conjuntoR.
Outras nota¸c˜oes usuais s˜ao
x≥ 0 para indicar x = y ou x > y
1.2 N´umeros naturais, inteiros e racionais
O conjunto N dos n´umeros naturais ´e o menor subconjunto de R contendo a unidade e satisfazendo a propriedade indutiva, isto ´e, o menor subconjunto tal que
1∈ N e n ∈ N =⇒ n + 1 ∈ N (8) O conjuntoN ´e fechado para a adi¸c˜ao e para a multiplica¸c˜ao, mas n˜ao ´e fechado para a subtrac¸c˜ao nem para a divis˜ao.
O conjuntoZ dos n´umeros inteiros representa a totalidade dos n´umeros naturais reunidos com os seus sim´etricos e o zero, isto ´e
Z = N ∪ {0} ∪ {−n : n ∈ N} (9a)
O conjunto Z pode ainda ser definido como o subconjunto dos reais que se exprimem na forma
z = x− y , x, y ∈ N (9b)
sendo fechado para a adi¸c˜ao, para a subtrac¸c˜ao e para a multiplica¸c˜ao, mas n˜ao para a divis˜ao. Usamos as nota¸c˜oes
Z+=N , Z−={−n : n ∈ N} , Z+
0 =Z+∪ {0} , Z−0 =Z−∪ {0} (10)
para os inteiros positivos, os inteiros negativos, os inteiros n˜ao negativos e os inteiros n˜ao positivos, respectivamente.
O conjuntoQ dos n´umeros racionais ´e constitu´ıdo por todos os n´umeros reais que podem ser escritos na forma
u = p
q , com p, q∈ Z e q =/ 0 (11) sendo fechado para as quatro opera¸c˜oes que temos vindo a referir. Usamos as nota¸c˜oes
Q+=R+∩ Q , Q−=R−∩ Q , Q+
0 =Q+∪ {0} , Q−0 =Q−∪ {0} (12)
com sentido semelhante ao introduzido em (10). ´E imediato que
N ⊂ Z ⊂ Q ⊂ R (13)
onde todas as inclus˜oes s˜ao estritas. Em particular, os n´umeros reais que n˜ao s˜ao racionais constituem o conjuntoR\Q dos n´umeros irracionais.
1.3 Conjuntos limitados
Antes de passarmos `as defini¸c˜oes, refira-se que se sup˜oem conhecidos os significados de intervalo, intervalo limitado, intervalo ilimitado e ainda de intervalo aberto, intervalo fechado e intervalo semi-aberto (ou semi-fechado). Quando falarmos em intervalo de extremos a e b, suporemos sempre a < b, `a excep¸c˜ao do intervalo fechado e limitado em que admitimos a possibilidade de ser a = b; nesse caso, o intervalo [a, a] reduz-se ao conjunto{a} e diz-se um intervalo degenerado.
Conjunto limitado inferiormente
Dado um conjunto X⊂ R, dizemos que X ´e limitado inferiormente quando
∃a ∈ R : ∀x ∈ X , x ≥ a (14a) ou seja, quando
∃a ∈ R : X ⊂ [a, +∞[ (14b)
Nas condi¸c˜oes (14a-14b), diz-se que a ´e um minorante de X . Ser´a tamb´em um minorante de X todo o n´umero real c < a. Eventualmente, existir˜ao outros minorantes d > a. Quando X ´e limitado inferiormente, define-se o ´ınfimo de X, que se representa por inf X, como o maior dos minorantes de X. Assim, α = inf X se e s´o se
I1) ∀x ∈ X, x ≥ α (α ´e minorante de X)
I2) Existindo c∈ R tal que (∀x ∈ X, x ≥ c), ent˜ao c ≤ α
(α ´e o maior dos minorantes de X)
O ´ınfimo de um conjunto limitado inferiormente ´e ´unico. Quando, em particular, o ´ınfimo de um conjunto X ´e um elemento do pr´oprio conjunto, ele designa-se por m´ınimo
de X e representa-se por min X.
Conjunto limitado superiormente
Analogamente, dado um conjunto X⊂R, diz-se que X ´e limitado superiormente quando ∃b ∈ R : ∀x ∈ X , x ≤ b (15a) ou seja, quando
∃b ∈ R, X ⊂ ] − ∞, b] (15b)
Todo o n´umero real b que satisfa¸ca as condi¸c˜oes (15a)-(15b) diz-se um majorante de X . O menor dos majorantes de X diz-se o supremo de X e representa-se por sup X. Assim, tem-se β = sup X se e s´o se
S1) ∀x ∈ X , x ≤ β (β ´e majorante de X)
S2) Existindo d∈ R tal que (∀x ∈ X, x ≤ d), ent˜ao d ≥ β
(β ´e o menor dos majorantes de X)
O supremo de um conjunto limitado superiormente ´e ´unico. Quando, em particular, sup X∈X, o supremo designa-se por m´aximo de X e representa-se por max X.
Conjunto limitado
Um conjunto X⊂ R diz-se limitado quando X ´e, simultanemamente, limitado inferior-mente e limitado superiorinferior-mente, isto ´e, quando
ou, equivalentemente, quando
∃ a, b ∈ R, X ⊂ [a, b] (16b) Exemplo 1
Considere-se o conjunto X ={x∈ Q : x ≥ 0 ∧ x2 ≤ 10}.
Tem-se X = [0,√10 ]∩ Q , ou seja, X consiste no conjunto dos racionais do intervalo [0,√10 ].
X ´e limitado porque X⊂[ 0,√10 ]. O conjunto dos majorantes de X ´e o intervalo [√10, +∞[ e o conjunto dos minorantes de X ´e o conjunto ]− ∞, 0 ] .
Tem-se ainda sup X =√10 e como √10̸∈ X, conclui-se que X n˜ao possui m´aximo. Por outro lado, inf X = 0 e 0∈ X, pelo que min X = 0 .
1.4 Axioma do supremo
Vamos agora apresentar a propriedade do corpo ordenado R que, no actual contexto, melhor o distingue de Q. Note-se que o conjunto Q, munido com as mesmas opera¸c˜oes e com a mesma rela¸c˜ao de ordem, tamb´em constitui um corpo ordenado. No entanto, como se viu no Exemplo 1, Q n˜ao ´e fechado para a opera¸c˜ao de radicia¸c˜ao.
Axioma do supremo (ou da completude deR)
Qualquer subconjunto de R n˜ao vazio e limitado superiormente possui supremo em R. O axioma do supremo confere a R a estrutura de corpo ordenado completo. Do que se viu no Exemplo 1, ´e evidente que o corpo ordenadoQ n˜ao ´e completo, o que, do ponto de vista do C´alculo, constitui a “carˆencia mais grave” do conjunto Q.
Do axioma do supremo, extrai-se o seguinte resultado.
Propriedade 1
Qualquer subconjunto de R n˜ao vazio e limitado inferiormente possui ´ınfimo em R. Demonstra¸c˜ao
Seja X um subconjunto deR n˜ao vazio e limitado inferiormente.
Considere-se o conjunto Y constitu´ıdo pelos sim´etricos dos elementos de X,
Y ={y ∈ R : y = −x, x ∈ X}
´
E imediato que
Y⊂R , Y =/∅ , Y ´e limitado superiormente
Do axioma do supremo, sai que sup Y∈R. Como sup Y =−inf X, sai tamb´em que −infX ∈R. Consequentemente, inf X =−(−inf X) ∈ R .
2
Conjuntos finitos e conjuntos infinitos
Nesta sec¸c˜ao, vamos apenas introduzir algumas no¸c˜oes de cardinalidade. Para uma exposi¸c˜ao detalhada sobre este assunto, cf. as referˆencias bibliogr´aficas recomendadas.
Dado n ∈ N, representaremos por In o conjunto de todos os n´umeros naturais n˜ao
superiores a n, ou seja, pomos
In={1, 2, . . . , n} (17)
Dizemos que um conjunto X⊂ R ´e finito quando X ´e vazio, possuindo zero elementos, ou quando, para algum natural m, existe uma bijec¸c˜ao entre o conjunto X e o conjunto Im, caso em que X possui m elementos. Do ponto de vista intuitivo, uma tal bijec¸c˜ao
representa uma contagem dos elementos do conjunto X.
A propriedade que passamos a enunciar estabelece um resultado muito ´util que, do ponto de vista intuitivo, ´e bastante imediato. Omitimos aqui a sua demonstra¸c˜ao.
Propriedade 2
Seja X⊂R um conjunto finito possuindo n elememtos. Ent˜ao:
(a) qualquer conjunto A⊂X ´e tamb´em finito e possui, no m´aximo, n elementos; (b) existindo uma bijec¸c˜ao entre X e outro conjunto Y , tamb´em Y ´e finito e possui n elementos.
Um conjunto Y ⊂R diz-se infinito quando n˜ao ´e finito. Consequentemente, um conjunto Y ser´a infinito quando n˜ao for vazio nem existir, para qualquer n∈ N, uma bijec¸c˜ao entre Y e In. Para mostrar que um conjunto ´e infinito, podemos usar as seguintes
propriedades que n˜ao demonstraremos.
Propriedade 3
Um conjunto Y⊂R ´e infinto se e s´o se ´e poss´ıvel definir uma bijec¸c˜ao entre Y e um seu subconjunto pr´oprio1.
Propriedade 4
Sejam X, Y dois conjuntos tais que X⊂Y com X infinto. Ent˜ao Y ´e infinito. Exemplo 2
O conjunto N ´e infinito. De facto, designando por P o conjunto dos naturais pares, ´e f´acil verificar que a aplica¸c˜ao
φ : N −→ P n 7−→ 2n
constitui uma bijec¸c˜ao entre N e P. Da Propriedade 4 e da condi¸c˜ao (13), sai que Z, Q e R s˜ao tamb´em infinitos.
Um conjunto X diz-se numer´avel quando existe uma bijec¸c˜ao entre X e N. Notar que, assim, se X ´e numer´avel ent˜ao X ´e infinito.
Exemplo 3
(a) O conjunto N ´e numer´avel.
(b) Usando a defini¸c˜ao, n˜ao ´e dif´ıcil verificar que o conjunto Z tamb´em ´e numer´avel (exerc´ıcio da Folha 1).
Mostra-se ainda que:
• o conjunto Q dos n´umeros racionais ´e numer´avel; • o conjunto R dos n´umeros reais n˜ao ´e numer´avel;
• todo o intervalo n˜ao degenerado de n´umeros reais ´e n˜ao numer´avel; • o conjunto R\Q dos n´umeros irracionais ´e n˜ao numer´avel.
Para uma abordagem mais desenvolvida sobre este assunto, confrontar a bibliografia recomendada, nomeadamente a referˆencia [5].
3
Estrutura¸
c˜
ao topol´
ogica de
R
As no¸c˜oes que introduziremos nesta sec¸c˜ao ser˜ao essenciais no estudo das fun¸c˜oes reais de varivel real, nomeadamente no estudo de limite e de continuidade. Tais no¸c˜oes est˜ao fortemente relacionadas com o conceito de proximidade e, como tal, ´e essencial come¸car por definir uma distˆancia emR. Iremos definir essa distˆancia a partir da no¸c˜ao de valor absoluto ou m´odulo.
3.1 Valor absoluto
Dado x∈R, chamamos valor absoluto de x ao maior dos n´umeros x e −x. Escrevemos
|x| = max { x, −x } (18a)
Sai de imediato que |0| = 0 e que |x| =
{
x se x≥ 0
−x se x < 0 (18b)
O valor absoluto verifica as seguintes propriedades.
Propriedade 5
Sejam x, y, z∈ R. Ent˜ao:
(a) |x| ≥ 0 e |x| = 0 sse x = 0; (b) | − x| = |x|;
(c) |x| ≥ x e |x| ≥ −x; (d) − |x| ≤ x ≤ |x|;
(e) sendo a≥ 0, tem-se |x| ≤ a sse −a ≤ x ≤ a; (f) sendo a≥ 0, tem-se |x| ≥ a sse x ≥ a ∨ x ≤ −a; (g) |x · y| = |x| · |y|;
(h) x y
= |x||y| , sempre que y̸= 0; (i) |x + y| ≤ |x| + |y|;
(j) |x| − |y| ≤ | |x| − |y| | ≤ |x − y|; (l) |x − z| ≤ |x − y| + |y − z|.
3.2 Distˆancia
A no¸c˜ao de valor absoluto permite introduzir o conceito de distˆancia entre dois n´umeros reais. Dados x, y∈R, chama-se distˆancia de x a y ao n´umero d(x, y) definido por
d(x, y) =|x − y| (19)
A distˆancia assim definida verifica as seguintes propriedades.
Propriedade 6
Sejam x, y, z ∈ R . Ent˜ao
(a) d(x, y) ≥ 0 , ∀x, y ∈ R, e d(x, y) = 0 sse x = y (b) d(x, y) = d(y, x)
(c) d(x, y)≤ d(x, z)+d(z, y) (Desigualdade tringular)
Usando a no¸c˜ao de distˆancia, podemos exprimir o conceito de intervalo aberto (ou fechado) de centro a e raio ε da seguinte forma
]a− ε, a + ε[ = { x ∈ R : d(x, a) < ε } = { x ∈ R : |x − a| < ε } (20a) [a− ε, a + ε] = { x ∈ R : d(x, a) ≤ ε } = { x ∈ R : |x − a| ≤ ε } (20b)
3.3 No¸c˜oes topol´ogicas
Vamos introduzir as no¸c˜oes topol´ogicas come¸cando, em cada caso, com uma abordagem intuitiva referente ao conjunto
X = [0, 3[\{1} ∪ {4} t d d t
Conjunto Aberto
Comecemos por considerar, em X, os elementos
a = 0, b = 2, c = 4.
Notemos que, em rela¸c˜ao ao ponto b, para al´em de b pertencer a X, tamb´em pertencem a X todos os n´umeros reais suficientemente pr´oximos de b, o que se pode traduzir dizendo que ´e poss´ıvel definir um intervalo do tipo ]b− r, b + r[ totalmente contido em X. Relativamente ao ponto a, j´a n˜ao ´e verdade que os reais suficientemente pr´oximos de a s˜ao tamb´em elementos de X, pois qualquer intervalo do tipo ]a− r, a + r[ cont´em necessariamente elementos do complementar de X; os problemas colocam-se obviamente `
a esquerda de a. Relativamente a c, a situa¸c˜ao “agrava-se” porque os problemas se colocam de ambos os lados. No que se segue, iremos dizer que b ´e um ponto interior ao conjunto X e que a e c n˜ao s˜ao pontos interiores a X. Formalizamos esta ideia da seguinte forma. Dados um conjunto A⊂ R e um ponto x ∈ R, dizemos que x ´e ponto interior de A quando
∃r > 0 : ] x − r , x + r [ ⊂ A (22) Designamos por interior de A o conjunto int A constitu´ıdo pela totalidade dos pontos interiores a A.
Para qualquer conjunto A⊂ R, tem-se sempre intA ⊂ A, o que significa que o interior de A pode ser obtido de A excluindo, eventualmente, alguns pontos de A. Quando, em particular, for int A = A, dizemos que A ´e um conjunto aberto.
Exemplo 4
(a) Se C =R ent˜ao int C = R . Logo, C ´e aberto. (b) Se X =∅ ent˜ao int (X) = ∅ , Logo ∅ ´e aberto. (c) Se X =Q ent˜ao int X = ∅ , Logo Q n˜ao ´e aberto.
(d) Se D = ]0, 1]∩Q ent˜ao intD =∅, porque n˜ao existe um intervalo do tipo ]x−r, x+r[ constitu´ıdo exclusivamente por racionais. Logo, D n˜ao ´e aberto.
O resultado que se apresenta a seguir ´e relevante na caracteriza¸c˜ao dos abertos deR. Propriedade 7
A colec¸c˜ao dos abertos deR goza das seguintes propriedades: A1) ∅ e R s˜ao abertos;
A2) se A⊂R e B ⊂R s˜ao abertos ent˜ao A ∩ B ´e aberto; A3) se (Ai)i∈I ´e uma fam´ılia arbitr´aria de abertos ent˜ao
∪
i∈I
Demonstra¸c˜ao:
A1) Basta atender ao exemplo 4.
A2) Sejam A, B⊂ R abertos. Mostremos que todo o ponto de A ∩ B ´e ponto interior de A ∩ B. Seja x∈ A∩B. Ent˜ao x ∈ A e x ∈ B. Como A e B s˜ao abertos, x ∈ int A e x ∈ int B, pelo que, existem εa> 0 e εb> 0 tais que ]x− εa, x + εa[⊂ A e ]x − εb, x + εb[⊂ B . Tomando
ε = min{εa, εb}, resulta que ]x−ε, x+ε[⊂ A e ]x−ε, x+ε[⊂ B , donde ]x−ε, x+ε[⊂ A∩B
e x∈ int (A ∩ B) .
A3) Seja (Ai)i∈I uma fam´ılia arbitr´aria de abertos. Mostremos que todo o ponto de
∪
i∈I Ai ´e
ponto interior de∪i∈I Ai.
Seja x∈∪i∈I Ai. Ent˜ao x∈ Akpara algum k∈I. Como Ak´e aberto, tamb´em x∈ int Ak,
existindo ε > 0 tal que ]x− ε, x + ε[⊂ Ak⊂
∪
i∈I Ai. Logo x∈ int
(∪
i∈I Ai
) .
Observa¸c˜ao 1
Da Propriedade 7.A2), resulta que a intersec¸c˜ao de um n´umero finito de abertos ´e um aberto. No entanto, nada se pode concluir sobre a intersec¸c˜ao de um n´umero infinito de abertos. Tal intersec¸c˜ao pode n˜ao ser um aberto. Por exemplo, para cada n∈ N, o conjunto An = ] −1 n, 1 n [ ´ e um aberto em R. No entanto, ∩ n∈N An = {0}, que n˜ao constitui um aberto emR . Conjunto Fechado
Retomemos o conjunto X = [0, 3[\{1}∪{4}, que introduzimos no in´ıcio desta subsec¸c˜ao, e consideremos em R\X os pontos
α = 1, β = 3, γ = 6.
Relativamente ao ponto α = 1, podemos constactar que, apesar de α∈ R\X, `a sua volta, em qualquer intervalo do tipo ]α− r, α + r[ , existem elementos de X. Relativamente ao ponto β = 3, a situa¸c˜ao ´e an´aloga, podendo afirmar-se que em qualquer intervalo do tipo ]β− r, β + r[ existem elementos de X. Finalmente, em rela¸c˜ao ao ponto γ = 6, a situa¸c˜ao ´e diferente; n˜ao s´o γ n˜ao est´a em X, como at´e ´e poss´ıvel exibir um intervalo do tipo ]γ−r, γ+r[ que n˜ao possui elementos de X. No contexto da estrutura¸c˜ao topol´ogica de R, iremos dizer que α e β s˜ao pontos aderentes ao conjunto X e que γ n˜ao ´e ponto aderente a X. A caracter´ıstica dos reais α e β que fez deles pontos aderentes a X ´e comum aos elementos do pr´oprio conjunto X. Veja-se, por exemplo, que em rela¸c˜ao a c = 4, ´e ´obvio que qualquer intervalo ]c− r, c + r[ cont´em elementos de X, pois o pr´oprio c ´e um elemento de ]c− r, c + r[ ∩X. Desta forma todos os elementos de X s˜ao tamb´em aderentes a X. Formalizamos estas ideias como se segue. Dados um conjunto A⊂ R e um ponto x∈R, dizemos que x ´e ponto aderente a A se
O conjunto dos pontos aderentes a A designa-se por aderˆencia de A ou por fecho de A, e representa-se por A .
Para qualquer conjunto A⊂ R, tem-se sempre A ⊂ A, o que significa que o fecho de A pode ser obtido de A juntando-lhe, eventualmente, mais alguns pontos. Quando, em particular, for A = A, dizemos que A ´e um conjunto fechado.
Exemplo 5
(a) Se A = [0, 1[ ent˜ao A = [0, 1] . Logo, A n˜ao ´e fechado.
(b) Se B = [0, 1] ent˜ao B = [0, 1]. Logo, B ´e fechado.
(c) Se C =R ent˜ao C = R e, portanto, C ´e fechado.
(d) Se D = ]0, 1[∩ Q ent˜ao D = [0, 1], porque qualquer intervalo ]x − r, x + r[ centrado em x∈[0, 1] cont´em racionais do intervalo ]0, 1[. Logo, D n˜ao ´e fechado.
(e) Se E =∅ ent˜ao E = ∅ . Logo, E ´e fechado.
Uma quest˜ao pertinente seria a de indagar como se relacionam os conceitos de conjunto aberto e conjunto fechado. A resposta ´e dada pelo resultado que passamoas a enunciar.
Propriedade 8
Um conjunto F⊂R ´e fechado se e s´o se o seu complementar, R\F , ´e aberto. Demonstra¸c˜ao: Omitida.
Da Propriedade 7 sobre abertos e da Propriedade 8 , obt´em-se o seguinte resultado para fechados.
Propriedade 9
A colec¸c˜ao dos fechados deR goza das seguintes propriedades: F1) ∅ e R s˜ao fechados;
F2) se F⊂R e G⊂R s˜ao fechados ent˜ao F ∪ G ´e fechado; F3) se (Fi)i∈I ´e uma fam´ılia arbitr´aria de fechados ent˜ao
∩
i∈I
Fi ´e fechado.
Demonstra¸c˜ao: Exerc´ıcio. Observa¸c˜ao 2
(a) H´a conjuntos que n˜ao s˜ao abertos nem fechados. Por exemplo, [0, 1[ e ]0, 1[∩ Q . (b) H´a conjuntos que s˜ao, simultaneamente, abertos e fechados.
(c) Da Propriedade 9.F2), sai que toda a intersec¸c˜ao de um n´umero finito de fechados ´
e um fechado. No entanto, a reuni˜ao de um n´umero infinito de fechados pode n˜ao ser um fechado. Considere-se, por exemplo, X = ]0, 1[ , que ´e um aberto em R. Tem-se X =∪
x∈X
{x}, sendo cada {x} um conjunto fechado em R. Mas X n˜ao ´e fechado!
(d) ∀X ⊂R , int X ´e aberto e X ´e fechado. (e) Se X⊂Y ent˜ao int X ⊂int Y .
Fronteira
Novamente em rela¸c˜ao a X = [0, 3[\{1}∪{4}, ´e imediato que o ponto β = 3 ´e simultanea-mente aderente a X e ao seu complementar, R \ X = [−∞, 0[ ∪ {1} ∪ [3, ∞[\{4}. A situa¸c˜ao ´e an´aloga relativamente ao ponto c = 4. Diremos por isso que β e c s˜ao pontos fronteiros de X. Mais em geral, dado um conjunto A⊂ R e um ponto x ∈ R, dizemos que x ´e ponto fronteiro de A quando x∈ A ∩ R\A, ou equivalentemente quando
∀r > 0, ] x − r, x + r [ ∩ A =/ ∅ ∧ ] x − r, x + r [ ∩ R\A =/ ∅. (24) O conjunto de todos os pontos fronteiros de A chama-se fronteira de A e representa-se por f rA. Exemplo 6 (a) Se A = [0, 1[ ent˜ao f rA ={0, 1}. (b) Se B = [0, 2[\{1} ent˜ao frB = {0, 1, 2}. (c) Se C =]0, 1[∩ Q ent˜ao frC = [0, 1]. Propriedade 10
Seja X⊂ R. Ent˜ao X = fr X ˙∪ int X. (reuni˜ao disjunta) Demonstra¸c˜ao:
´
E imediato que intX⊂X e que frX ⊂X, pelo que intX ∪ frX ⊂X.
Resta mostrar que X⊂fr X ∪ int X . Seja x ∈ X . Ent˜ao, ∀r > 0 , ]x − r, x + r[∩X =/ ∅ . • No caso em que ∃r∗> 0 : ]x− r∗, x + r∗[⊂X , resulta x ∈ intX .
• Caso contr´ario, ter-se-´a tamb´em que ∀r > 0 : ]x − r, x + r[ ∩ R \ X =/∅ , pelo que x ∈ frX .
Pontos de acumula¸c˜ao
Mais uma vez, retomemos o conjunto X = [0, 3[\{1} ∪ {4} e consideremos os pontos a = 0, b = 2, c = 4,
todos elementos de X, e ainda os pontos
todos elementos deR\X. Para a no¸c˜ao que vamos introduzir, em nada importa o que se passa com o pr´oprio ponto, apenas ´e relevante o que se passa estritamente `a sua volta. Em primeiro lugar, relativamente ao ponto b = 2, tanto `a sua esquerda como `a sua direita, em qualquer intervalo ]b− r, b + r[, existem pontos de X distintos do pr´oprio b. A situa¸c˜ao ´e completamente an´aloga em rela¸c˜ao ao ponto α = 1. Iremos dizer que b e α s˜ao pontos de acumula¸c˜ao `a esquerda e `a direita de X. J´a a respeito do ponto a = 0, mas s´o `a sua direita, qualquer intervalo ]a−r, a+r[ cont´em pontos de X distintos do pr´oprio a. Diremos que a ´e ponto de acumula¸c˜ao `a direita de X mas n˜ao ´e ponto de acumula¸c˜ao `
a esquerda de X. Por raz˜oes an´alogas, iremos dizer que β ´e ponto de acumula¸c˜ao `a esquerda de X mas n˜ao ´e ponto de acumula¸c˜ao `a direita de X. Finalmente, em rela¸c˜ao a cada um dos pontos c = 4 e γ = 6, a situa¸c˜ao ´e totalmente distinta. `A volta de c, ´e poss´ıvel definir um intervalo ]c− r, c + r[ que n˜ao cont´em outros pontos de X e `a volta de γ, ´e poss´ıvel definir um intervalo do tipo ]γ− r, γ + r[ que n˜ao cont´em pontos de X. Ao ponto c, que est´a em X mas n˜ao ´e ponto de acumula¸c˜ao de X, chamaremos ponto isolado de X. Formalizemos estas ideias.
Dados um conjunto A⊂R e um ponto x∈R , dizemos que x ´e ponto de acumula¸c˜ao de A quando
∀r > 0 , ( ] x − r, x + r [ \{x}) ∩ A =/ ∅ (25) Em particular, dizemos que x ´e ponto de acumula¸c˜ao `a esquerda de A quando
∀r > 0 , ] x − r, x [ ∩ A =/ ∅ (26a) e que x ´e ponto de acumula¸c˜ao `a direita de A quando
∀r > 0 , ] x, x + r [ ∩ A =/ ∅ (26b) O conjunto dos pontos de acumula¸c˜ao de X designa-se por derivado de X e representa-se por X′. O conjunto dos pontos de acumula¸c˜ao `a esquerda de X representa-se por X−′ e o conjunto dos pontos de acumula¸c˜ao `a direita de X representa-se por X+′ . ´E claro que X+′ ⊂X e que X−′ ⊂X .
Propriedade 11
Seja X⊂R . Ent˜ao X = X ∪ X′. Demonstra¸c˜ao:
(i) J´a sabemos que X⊂X. Da defini¸c˜ao de X′, ´e evidente que X′⊂ X . Logo X∪ X′⊂ X .
(ii) Para mostrar que X⊂X ∪ X′, vamos mostrar que se x∈ X mas x ̸∈ X ent˜ao x ∈ X′. Consideremos ent˜ao x∈ X. A intersec¸c˜ao de X com qualquer intervalo ]x − ε, x + ε[ ´e n˜ao vazia, pelo que, em qualquer intervalo ]x− ε, x + ε[ existe pelo menos um elemento do conjunto X, ou seja,
Mas como x̸∈ X, podemos garantir que, para cada ε > 0, tal yε´e distinto de x, ou seja,
que
∀ε > 0, ∃yε∈ ]x − ε, x + ε[ ∩ X ∧ yε̸= x
e, portanto, que
∀ε > 0 : ]x − ε, x + ε[ \{x} ∩ X =/∅
significando que x∈ X′. A demonstra¸c˜ao fica completa.
Como consequˆencia da propriedade 11, dado X⊂R, tem-se que
X ´e fechado se e s´o se X′⊂X (27) Ponto isolado
Dizemos que x ´e um ponto isolado de A quando x∈ A mas x ̸∈ A′, ou seja, quando ∃r > 0 : ] x − r, x + r [ ∩ A = {x} (28) Exemplo 7
(a) Se A = ( [0, 3[\{1}) ∪ {4} ent˜ao A′ = [0, 3] e 4 ´e o ´unico ponto isolado de A. (b) Se B = ]0, 3[∩ Q ent˜ao B′ = [0, 3] e B n˜ao possui pontos isolados.
(c) Se C ={1, 2, 3} ent˜ao C′ =∅ e todos os pontos de CZ s˜ao isolados. (d) Se D =
{ 1
n : n∈ N }
ent˜ao D′={0} e todos os pontos de D s˜ao isolados.
Observa¸c˜ao 3
Os pontos de acumula¸c˜ao de um dado conjunto A s˜ao os candidatos ao estudo de limites, quando esse conjunto ´e o dom´ınio de uma certa fun¸c˜ao. Em particular, os pontos de A′ que n˜ao est˜ao em A conduzem, em geral, aos casos mais interessantes de limite. Por outro lado, os pontos isolados de um conjunto n˜ao servem para estudar limites. Registe--se ainda que os pontos de acumula¸c˜ao de um s´o lado aparecer˜ao no estudo dos limites ditos laterais.