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Um drama cibercultural

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL. UM DRAMA CIBERCULTURAL. JAMESON THIAGO FARIAS SILVA. São Cristóvão Janeiro de 2015.

(2) JAMESON THIAGO FARIAS SILVA. UM DRAMA CIBERCULTURAL. Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de Sergipe como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social. Orientador: Prof. Dr. Kleber Jean Matos Lopes. São Cristóvão Janeiro de 2015.

(3)

(4) Esta pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES..

(5) Agradecimentos Filosofia é ter amizade pelo pensamento; mais precisamente, é ter amigos no pensar, e no falar, no calar, no escrever e no ler. Esse exercício de amizade encontra referência em Sêneca e Lucílio, em Marco Aurélio e Frontão, em Sócrates e praticamente qualquer cidadão disposto a ser importunado com suas sandices; coisa de amigo, abrir concessões para que o outro cuide de você de uma maneira nem sempre agradável. O internauta e o parresiasta são amigos para o pensamento, e compõem justos, nesta dissertação, uma espécie de evolução paralela. Ambos também pedem concessões e condições para que essa amizade funcione. O primeiro aspecto a ser considerado pelo amigo leitor é que a escrita produzida por tão insólita intercessão é fragmentada, mas ainda assim coerente e linear. A fragmentação é apenas aparente, já que nem o internauta nem a parresía possuem essência definida. O segundo ponto de concessão são o excesso de notas e referências dispostos ao fim de cada capítulo. Eles servirão como um banco de dados ou um histórico de navegação para o leitor; a opção de abrir a aba e checar o seu conteúdo fica a cargo de ti, meu amigo. A escrita do internauta parece tomar uma via semelhante à adotada por W. Gibson, em seu ‘Neuromancer’: no universo do Sprawl, a tecnologia e mesmo a linguagem é uma fruição estética, uma potência para o imaginário, uma multiplicidade louca; a escrita de Gibson é multiestilizada, esburacada, quase confusa, saturada de apontamentos que se revelam à compreensão do leitor e de referências que a todo momento o confundem. Assim como o leitor possui o seu próprio inventário de gírias, referências, celebridades, restaurantes, logomarcas, instrumentos tecnológicos, comidas e bebidas, ideias etc., as personagens do.

(6) romance também o têm, obviamente; mas o digno de nota é que o texto que referencia um cenário desta natureza parte do pressuposto de que o leitor já faz parte daquele mundo, deve sem escolha se esforçar para compartilhar daquele futuro, e compartilhar do mesmo espírito e circuitos que os personagens. Pode-se dizer que a vida no universo de Neuromancer não se estanca, não para pra explicar as coisas ao estrangeiro – sendo “a morte o castigo aceito por preguiça, descuido, falta de sutileza, a incapacidade de atender às exigências de um intrincado protocolo1” – mas se pode dizer, igualmente, que o cibermundo é um mundo hiper-informatizado, impregnado de dados, e mesmo o melhor cowboy do ciberespaço não consegue, nem deveria, se conectar a tudo e a todos. Algumas sentenças de Neuromancer, tomadas em avulso, são ininteligíveis e, mesmo que estabeleçam algum sentido, sua razão-de-ser na obra não parece clara. O leitor só as vai entender quando aparecerem retomadas, capítulos à frente, quando ele, o leitor, não se perde na imensidão delirante da escrita ciberespacial (entende não por explicação, mas por conexão de sentenças, de umas com as outras; a transcendência do significado dando lugar ao plano de imanência). H. Bergson e William James, amigos no pensamento, já carteavam sobre esse modo de produzir conhecimento que demanda não só uma nova metafísica mas um novo modo de exprimí-la, deixando a dedução lógica à parte e investindo na metáfora, na criação de impressões de conjunto, intencionando levar o leitor para além dum simples convencimento, levá-lo a experimentar todas as nuances, cadências e tonalidades do pensamento, fazê-lo acompanhar os percursos e sinuosidades deste pensamento, recriando-os em seu espírito. Escrita musical, pictural, escrita-dança, imagem-movimento (e não simples imagem-emmovimento, simples coisa-que-muda). O caráter cinematográfico dessa escrita por ‘impressões de conjunto’ é salutar.. 1. GIBSON, Willian; Neuromancer, Trad. Fábio Fernandes – 4ª. Ed. – São Paulo : Aleph Editora, 2008, p.26..

(7) Montam-se imagens (quem as monta? é a própria imagem que se monta?). O seriado televisivo, no entanto, oferece uma cena – ou um modo de encenar – mais afim a esta escrita; episódio após episódio, dois planos de análise se revelam ao olho: um plano espacial (a que o internauta geralmente se filia), que nos remonta aos acontecimentos de um episódio específico, aos personagens que nele aparecem e ganham foco, aos enquadramentos e decupagens utilizados para a narrativa, às gags e jogos de cena, às piadas e sustos etc., e um plano temporal (ocupado neste texto, em geral, pela parresía), plano que atravessa episódio após episódio como um fio fino que, mesmo invisível durante uma e outra cena, ou mesmo um e outro episódio por inteiro, nunca deixa de lá estar, de compor o episódio e nele adicionar consistência e memória, tal qual uma bola de neve a se acumular instante a instante. Solicito um desprendimento de você, meu amigo leitor, meu alimento e companhia no pensar, para essas condições que o texto-seriado do internauta e da parresía enseja. Filosofar é ter amigos no pensar; eis os amigos que podem reclamar para si a autoria dessa escrita. Agradeço ao amigo Kleber, pela paciência quase infinita, pela dureza cristalina e pelo cuidado no dizer. Ao amigo Marcelo, pela leitura atenta e seminal. À amiga Leila, pela escrita carinhosa..

(8) Aos Amigos do Foucault: Bruninha, Daiana, Elen, Laís, Luiz Paulo,. Marcel, e tantos outros que passaram e compuseram esse grupo de viciados pela verdade; agradeço a cada um pelas vidas paralelas. À amiga Paula e à amiga Tati, pela conversa bem fiada, pelas tardes embebidas em alegria, pela risada fácil... e pelos testes; uma vida mal testada não merece ser vivida. Aos amigos Matheus e Ana Gabriela, por toda a prosa do mundo. Aos amigos Felipe, Roberto, Peter, Rafael, Jeferson e Milton, pelos espaços. À amiga Carmem, pelo tempo..

(9) Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havel-o escripto para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cincoenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra diffusa, na qual eu, Braz Cubas, se adoptei a fórma livre de um Steme, de um Lamb, ou de um de Maistre, não sei se lhe metti algumas rabugens de pessimismo. Póde ser. Obra de finado. Escrevi-a com a penna da galhofa e a tinta da melancholia; e não é difficil antever o que poderá sair desse connubio. Accresce que a gente grave achará no livro umas apparencias de puro romance, ao passo que a gente frivola não achará nelle o seu romance usual; e eil-o ahi fica privado da estima dos graves e do amor dos frivolos, que são as duas columnas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as sympathias da opinião, e o meio eíficaz para isso é fugir a um prólogo explicito e longo. O melhor prologo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um geito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro século. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo : se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. BRAZ CUBAS.

(10) RESUMO A condição cibercultural pode ser entendida como uma cultura de circunstâncias operadas por tipos específicos de tecnologia; tecnologias que perigam codificar o pensamento, exagerando a polarização das ideias num duplo frenesi ideológico, e tecnologias que possibilitam a mobilização das pessoas em nome de pautas ignoradas pelos espaços legitimados para o fazer político e a discussão de temas deixados de lado, ou adulterados, pelos meios tradicionais de produzir conhecimento e comunicação. Para o internauta, personagem conceitual caracterizado e definido pelas conexões que articula, é neste segundo sentido que se inserem a Mídia NINJA, o Episódio Cablegate, a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street. O OWS, mesmo, é coerente em seu manifesto: de fato, formalizar a política da esquerda é endireitar-se, é tornar-se direita, é transformar esse tempo criador em espaço. Mas, sem um espaço formal e estabelecido, como pode o tempo fruir e frutificar? Aí reside o problema do internauta ou, ao menos, o seu fundamento, problema que o internauta tentará encaminhar e, mesmo, recolocar com a noção de parresía. Através dum uso muito particular e peculiar da mesma feito por Michel Foucault, a noção repensa a relação entre verdade, política e sujeito, colocando o problema do discurso verdadeiro não nas famigeradas condições de possibilidade da veridicção, mas na questão do real da filosofia, da sua realidade. O parresiasta é aquele que, fora do estatuto social ou institucional, faz valer sua própria liberdade e coragem ao falar. Levado ao extremo, o parresiasta é o que aceita morrer pela verdade: aceita morrer em nome da verdade, por ter dito a verdade e por ter a verdade no dizer. O que interessa a Foucault e ao internauta, com a parresía, não é um estudo das performances e do sentido dos enunciados neste ou naquele contexto cibercultural, mas um drama, uma dramática dos discursos, um modo de dizer e pensar que revele o contrato do sujeito falante à verdade que enuncia, sua maneira de se vincular à verdade do que diz. Uma leitura cibercultural da parresía; uma leitura de Foucault por um internauta. Este drama cibercultural, aqui presentificado na escritura burocrática de um trabalho de dissertação, é uma tentativa do internauta em resolver o problema que o acomete, o registro institucional dessa tentativa e o próprio internauta. Palavras-chave: cibercultura, parresía, dramática do discurso, Michel Foucault, psicologia social..

(11) ABSTRACT Cybercultural condition is understood as a culture of circumstances operated by the specific types of technology; technologies which endanger to decode thinking, exaggerating the polarization of ideas on a double ideological frenzy, and technologies which enable the mobilization of people in the name of rulings ignored by legitimated spaces to political doing and the discussion of themes left aside, or adulterate, by traditional means of producing knowledge and communication. For netizen, conceptual personage characterized and defined by connections which articulate, it is in this second meaning that is inserted the NINJA Media, the Cablegate Episode, the Arabic Spring and the Occupy Wall Street. The OWS is coherent in its manifest: indeed, formalizing the left-winged politics turns it into right-winged politics, it is transforming this maker-time into space. However, without a formal space and established, how can the time possess and be fruitful? This is the problem of netizen or, at least, its foundation, problem which netizen will try to route and put back with the notion of parrhesia. Through a very particular and peculiar usage of it done by Michel Foucault, the idea rethink the relation between truth, politics and individual, setting the problem of unfeigned discourse not in infamous conditions of responsibility and veridiction, but in the real matter of philosophy, of its reality. “Parrhesiasta” is someone who even being outside of one’s social or institutional statute enforces one’s own liberty and courage when speaking. Taken to the extreme, “parrhesiasta” is someone who is willing to die in the name of the truth, for having said the truth or for having truth in the said. What comes to Foucault interest and the netizen, along with parrhesia, it is not the studies of the performances and the meanings of the enunciation in different cybercultual contexts, but the dramatic of the discourses themselves, a way of saying and thinking that reveals the relation of the speaker with the truth that one annunciates, one’s way of being bound with the truth. A cybercultural reading of Parrhesia; a Foucault’s reading by the netizen. This cyberculltural drama, presented in this bureaucratic thesis, it is an attempt of the netizen to solve the problem which one is attacked by, the institutional registry of this attempt and the netizen himself. Keywords: cyberculture, parrhesia, dramatic of discourse, Michel Foucault, Social Psychology..

(12) SUMÁRIO. Uma introdução, um internauta 13. Capítulo 1. “Nada além da Constituição”: Platão, o internauta e os blogueiros sujos 30. Capítulo 2. “Vinagre é o novo Anthrax”: Íon, o internauta e os sentidos da efervescência 44. Capítulo 3. “Pra quem vai o seu voto, Sócrates?”: Laques, o internauta e a desinformação viral 66. Capítulo 4. “Platão em Siracusa não se transformou em Maomé”: a ameba-internauta e as ilusões da escrita 88. Considerações ou “I am not afraid, because this is the choice I´ve made”: o internauta, um cão 100.

(13) UMA INTRODUÇÃO, UM INTERNAUTA.

(14) Pluga-se, um internauta Esse internauta será aqui tomado como um personagem. “O internauta”. A conexão, talvez, seja a sua primeira (e única) condição de possibilidade. Mas o internauta não está muito interessado nas definições que lhe representariam, ou do que caracteriza, ponto a ponto, os múltiplos espaços que ocupa. Os problemas que o acometem são outros. *** Website do ‘Observatório da Imprensa’. Um acadêmico enaltece a Mídia NINJA no tocante à sua coragem da verdade e ao seu modo de cobrir as manifestações de Junho de 2013, mas comenta que um jornalismo assim, tão ligeiro, tão cobertura das ruas, tão bruto e sem edição, tão sem mediação e ética, não produz textos e matérias adensadas, coesas, coerentes e que respeitem tudo isso a que se pode chamar de boa linguagem e bom jornalismo, linguagem e jornalismo estes que ajudam o seu leitor a bem compreender e interpretar o que está acontecendo através deste filtro de informações e pintor da realidade coerente que é o jornalista minimamente responsável com o seu ofício1. O internauta, que também é um leitor, logo se lembra de um e outro pensador da condição cibercultural, das novas mídias, do pós-jornalismo etc., e das novas maneiras de (se) escrever, de (se) ler e de produzir sentido que as tecnologias do virtual condicionam (condição, não causa). O internauta-leitor lembra também de Platão, o primeiro pensador a deixar uma obra escrita coesa e coerente, mas que, vez e outra, incita o leitor (internauta ou não) a pensar a escrita como simulacro, a não levar a sério nem a escrita nem o homem que escreve, e que nenhum dos dois pode conter e represar o pensamento, muito mais um exercício da alma na existência que um conhecimento técnico, muito mais um éthos, uma tribé, uma epimeléia, que uma tekhné. A deriva pelo platonismo se estanca – não sabe grego, o internauta. Mas se pergunta: como pode um acontecimento, sempre fugaz e intempestivo, produzir outro tipo de escrita que não essa escrita fragmentada, fractalesca, imagética, caleidoscópica que os "Ninjas" produzem? Apressadamente, responde e defende uma escrita que demanda de seu leitor mais do que a alfabetização e a consciência de ocupar um. 14.

(15) dos lados das guerrilhas frias de trincheira, uma escrita que dá trabalho para o leitor, que o põe pra trabalhar, pra montar e articular e criar sua própria narrativa. Sai a ideologia e, em seu lugar, entra o meme. Que é isto, o meme? Não sabe explicar, o internauta. O próprio meme é incapaz de dizer de si, já que diz de coisas muito distintas e de maneiras muito distintas, o tempo todo. Então... sai a ideologia e, em seu lugar, entra alguma coisa que o internauta ainda não sabe do que (se) trata. Para. o. internauta,. ao. invés. dum. tipo. de. escrita. que. respeite. a. “acontecimentalização”, a memética, o ‘Observatório...’ parece defender uma escrita de especialista, na qual uns e outros monopolizam os instrumentos para produzir – se não bens de consumo – sentidos, compreensões e subjetividades; acha muito estranho que a isto se chame de “responsabilidade do jornalismo”. O internauta logo se torna NINJA, embora ainda não tenha trocado seu notebook e seus livros de Platão pela rua. *** Numa rápida pesquisa – o Google lhe disponibiliza cerca de um milhão e cento e dez mil resultados em 0,23 segundos – o internauta-ninja encontra uma entrevista de Bruno Torturra e Pablo Capilé ao programa ‘Roda Viva’2; entusiastas da MN e do ‘Fora do Eixo’ (misto de casa cultural e coletivo, que intenta produzir artes, saberes e relações não mediados pelo dinheiro), ambos são o tempo inteiro alvo de comentários sobre a legitimidade do jornalismo que produzem, um jornalismo de suposições, mas não de apurações (sendo Alberto Dines, apresentador da versão televisiva do ‘Observatório...’, o único a não tentar encurralá-los); jornalismo de militâncias, verdade – a ponto de serem comparados aos próprios entrevistadores em suas épocas de panfletagem – mas muito pouco, ou quase nada, ou nada mesmo, refinado, além desta "modalidade jornalística" estar afiliada ao modelo de gestão do FdE, muito confuso aos presentes. No mesmo programa, Capilé afirma que as verbas públicas – como os financiamentos a festivais, fundos de incentivo a cultura etc. – compõem uma pequena porção do orçamento geral do FdE; a partir daí, o internauta-ninja-telespectador começa a identificar na grand mídia, a exemplo do blogueiro Andre Forastieri, o questionamento não só da qualidade das coberturas da. 15.

(16) MN, mas a sua autonomia, já que não há documentação que comprove essa independência financeira do FdE. Afirma Forastieri que Se é dinheiro de governos municipais e estaduais, governo federal e empresas públicas que bancaram e bancam a maior parte do orçamento do Fora do Eixo, não há como o FdE, ou a Mídia Ninja, se autoproclamarem independentes ou manterem a credibilidade que conquistaram3.. O que era, antes, uma simples questão pedagógica, uma questão de método (“isso é suposição ou apuração?”, pergunta Mario Sérgio Conti, apresentador do ‘Roda Viva’, a Torturra), passa a ser uma questão administrativa, interferindo a (falta de) autonomia administrativa (do FdE) na legitimidade metodológica (da MN). O internauta-ninja-leitor lembra de Descartes, e de como este pensa Deus, administrador do mundo e res publica, como algo de mesma natureza que o homem do cogito e da bona mens, homem que bem emprega a sua razão para assim adequadamente prever e controlar as coisas; há, aí, uma identidade entre pensar-as-coisas e agir-sobre-as-coisas, entre pensar e adequar(-se). A deriva pelo cartesianismo se estanca – não sabe latim, o internauta. *** Voltando a navegar, o internauta se esbarra numa entrevista realizada com Bruno Torturra pelo próprio Forastieri, na qual o jornalista NINJA diz, a despeito dele e do produtor cultural Capilé, que “se estamos nos tornando personagens é porque a polícia, e a imprensa, está vendo a MN como uma pauta em si. Mas, insisto, nunca foi nosso plano. Estamos na rua para cobrir e passar a notícia. Não para ser a notícia4”. Intui, o internauta, que a mídia tradicional passou a querer cooptar e dar sentido ao “Junho de 2013” quando esta percebeu que era correr contra o furacão a sua tentativa de moralizar e criminalizar as jornadas de Junho, visando sugar suas forças em pautas abstratas e insossas (a corrupção, o governo [municipal, estadual ou presidencial?], a PEC 37); da mesma maneira, essa mesma mídia parece focar agora a MN como a notícia nela mesma, como um personagem, uma celebridade, uma coisa, e não no que ela noticia e, mais importante, no seu modo de noticiar. O que está em pauta para o internauta não é a defesa da Mídia NINJA, da Universidade Fora do Eixo, do FdE ele mesmo, não é a defesa de cada um desses sujeitos e seus formatos, mas a iniciativa de se pensar um fazer distinto dos fazeres que já estão aí, dados, postos.. 16.

(17) Acessando o seu perfil no Facebook, o internauta vê a cineasta Beatriz Seigner causar um rebuliço ao denunciar o FdE como algo entre uma seita, uma quadrilha e um centro de trabalho escravo, tudo isso articulado pela mente pérfida de Capilé, um canalha que capitaliza em cima de seu público e dos demais integrantes do FdE5. Em resposta à postagem, Torturra escreve, em seu próprio mural, um texto que é a antítese da denúncia, uma defesa do Capilé/FdE e uma colocação outra do problema, o de "gente em geral passiva, cínica em seu emprego, insatisfeita com o status quo, ao mesmo tempo salivando com a possibilidade de minar um laboratório de algo novo6". O internauta se assombra ao perceber que a construção desse campo minado mobiliza tanto a literatura jornalística da esquerda governista quanto da extrema direita7. *** O termo “mídia tradicional” vai ficando cada vez menos opaco e menos óbvio para o internauta; no entanto, a “cobertura” (outro termo que começa a lhe causar estranheza) que a Mídia NINJA sofreu se assemelha com a já aparentemente esquecida discussão que os grandes jornais construíram sobre o “Episódio Cablegate”, no qual o ‘WikiLeaks’ publicizou mais de 250 mil documentos diplomáticos dos EUA e permitiu que civis de todo o mundo tivessem acesso à dinâmica do governo estadunidense em sua relação com o exterior, revelando como o país espionou seus aliados (e a própria ONU), fizeram lobby a favor de corporações nacionais, negociaram secretamente com Estados “neutros” e outros casos que revelam as contradições entre a imagem performática e pública dos EUA e suas atuações in facto8. O ponto em comum entre ambos, MN e ‘WikiLeaks’, é que o foco das discussões está nas dobradinhas Torturra-Capilé e Assange-Manning, nos sujeitos, nos atores individuais, nas pessoas físico-jurídicas e suas atribuições pessoais, e não no que é exposto e noticiado por eles, nem tampouco no modo de organização e exposição que poderia servir de incentivo e exemplo para outras maneiras de se noticiar e, mesmo, produzir o real. O ‘The Guardian’ apresenta um dossiê resumindo todos os documentos oficiais que acusam o fundador dos ‘WikiLeaks’ de assédio sexual 9 ; o ‘Independent’ apresenta uma matéria sobre como o comportamento e a procrastinação de Assange para com o caso agrava o sofrimento das vítimas de assédio, já que as investigações preliminares não podem proceder de acordo com o sistema penal suíço10; o site da BBC possui toda uma timeline voltada para as alegações sexuais contra Assange11. É isto, de fato, que deve. 17.

(18) estar em pauta!? O Assange e o Capilé que interessam para uma discussão pública que difira por natureza duma simples fofoca não são indivíduos, não são sujeitos psicológicos. O internauta, definido e possibilitado pela conexão, começa a perceber que ele mesmo não é um indivíduo, não é um sujeito psicológico. *** A condição cibercultural pode ser entendida simplesmente como uma cultura de circunstâncias operadas por tipos específicos de tecnologia, decerto: tecnologias que perigam codificar o pensamento, exagerando a polarização das ideias num duplo frenesi ideológico e empobrecendo as discussões ao colocá-las em termos de “Fla-Flu”, no qual as torcidas são separadas por arquibancadas virtuais (‘comunidades’, ‘amigos’) que só reforçam e extremizam as opiniões de seus partidários; e tecnologias – o outro lado da moeda – que possibilitam a mobilização das pessoas em nome de pautas ignoradas pelos espaços legitimados para o fazer político e a discussão de temas deixados de lado, ou adulterados, pelos meios tradicionais de produzir conhecimento e comunicação. Faz-se necessário abandonar esse trincheirismo comumente usado para se pensar a cibercultura – ela mesma um “Fla-Flu” – e perceber que tais críticas e beneficies não são exclusivas às “tecnologias do virtual”, podendo os mesmíssimos argumentos, qualificadores e desqualificadores, serem aplicados a outras tecnológicas intelectuais, como o livro (que não é só um encadernado à base de celulose, mas um modo de se organizar e gerir as coisas e o pensamento; a questão, assim sendo, não é tecnológica, não é de meio). Para o internauta, que ainda não sabe como resolver esse entrave dicotômico, é neste segundo sentido que se insere a Mídia NINJA e o Episódio Cablegate. É neste sentido, também, que parecem se inserir a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street, dois acontecimentos de pequena “cobertura” midiática, grande repercussão e maior incompreensão, visto levantarem mais questionamentos que formalizarem resultados. O OWS não parece ter articulado coisa muita para além de barracas armadas no parque Zuccotti, contas no Twitter e panfletos professorais e nem um pouco populares; o ‘Ocupar’ é coerente em seu manifesto: de fato, formalizar a política da esquerda é endireitar-se, é tornar-se direita, é transformar esse tempo criador em espaço; de fato, devem-se fazer greves que não reivindiquem nada, porque “reinvindicar” seria reconhecer a legitimidade deste Estado [de coisas] para quem se reclama 12 . Um militantismo sem intervenção direta, uma esquerda “problemática”, uma esquerda sem livro branco, sem. 18.

(19) partido, sem bandeira, sem agenda secreta, sem universais de pensamento. Mas, sem um espaço formal e estabelecido, como pode o tempo fruir e frutificar? Aí reside o problema do internauta ou, ao menos, o seu fundamento. O senso comum da política “vandaliza” os episódios do Junho de 2013 brasileiro e do OWS visto os manifestantes não usarem os meios e espaços de reivindicação e atuação tradicionais e legitimados para o fazer político. Vale lembrar que a juventude mobilizada da Primavera Árabe privilegiou as ruas e a timeline do Facebook como espaço de expressão política, mas, justamente por se recusar a adentrar na política tradicional – aquela mesma das eleições e campanhas – falhou na construção duma frente política quando as autocracias combatidas vieram ao chão, deixando um vazio que viria a ser aproveitado pela Irmandade Muçulmana (e esta, na figura de Mohammed Mursi, já retirada do poder via golpe militar, aquela mesma força militar que, outrora, apoiava Mubarak). O internauta imagina o OWS como um gigantesco twittaço, a Primavera Árabe como uma revolução de Facebook, e facilmente aloca no mesmo balaio cibernético as Jornadas de Junho. Há, em todas estas, um certo vitalismo latente: se aí o pensamento não se propõe intervir no real, é porque a busca por um pensamento que vise intervir diretamente no mundo é conservadora, é uma busca pela ação imediata, pela resolução ligeira dos problemas, pela adaptação, pelo encaixe, pelo funcionamento das coisas do mundo como elas se nos revelam, tais e quais; se não há um momento criador privilegiado ou uma ação pontual e reformista sequer caracterizando esses movimentos é porque esses “momentos” e “intervenções”, em geral, são a resposta de um sujeito psicológico pronto e terminado a um mundo igualmente pronto e terminado. Um interacionismo, pois. São, no máximo, a face visível da criação, o seu fenômeno. Uma intervenção criadora, neste sentido, não pode ser uma resposta, um ato de um sujeito pronto frente a outras realidades prontas – outro sujeito, um grupo, um objeto, a sociedade, todos entendidos como coisas –, mas a percepção das nuances e termos que possibilitam todos esses “indivíduos” e a sua problematização, que não se resume à postura duma questão, mas a inserir-se nesta tendência das coisas e, nelas inseridos, superar a condição atual, formal, intelectual, e mesmo humana13. A condição cibercultural não é instrumental, mas também não é espacial; o ocupante de Zuccoti Park, da Praça Tahir e das ruas brasileiras não é um simples “curtidor e compartilhador”, e a sua apropriação do ciberespaço e seus hiperlinks e sites é um ideado da apropriação do espaço efetivo e suas ruas e praças. Mesmo assumindo certo vitalismo no pensamento, o bug dualista do internauta permanece, ainda que recolocado: se o militante adentra na política formal, legitimada e dita. 19.

(20) corrompida tentando intervir concretamente em problemas que lhe acometem, periga, aí, ser engrenado pela máquina burocrática e pelo jogo de acordos e fazer parte do próprio problema a que queria ser solução; por outro lado, uma postura que escamoteie a lógica da representação e da correspondência e sustente uma ocupação que nada reivindique é operar um fazer que não realiza nada. “Se ajo, não problematizo; se problematizo, não ajo”, sentencia o internauta-aforista. Abre pela primeira vez uma conta no ‘Twitter’. *** Lê, o internauta. Embora ainda não saiba latim; grego, tampouco. Lendo, porém, encontra uma noção greco-romana, a parresía. Através dum uso muito particular e peculiar da mesma feito por Michel Foucault, a noção (e o internauta, junto da noção e de Foucault; internauta-Foucault) repensa a relação entre verdade, política e sujeito, colocando o problema do discurso verdadeiro não nas famigeradas condições de possibilidade da veridicção (“em que circunstâncias posso, eu, enunciar um discurso que seja verdadeiro, e não falso?”), mas na questão do real da filosofia, da sua realidade (“em que circunstâncias se pode enunciar um discurso, seja ele verdadeiro ou falso, que intervenha diretamente no contexto ao qual se refere14?”). O pensamento visa dizer do real, dizer algo, problematizá-lo, sim!, mas também ser realidade e engrená-la. Pode-se fazê-lo de maneira performática, codificada e articulada de antemão: o juiz que abre a sessão, o padre que reza a missa, o pedido formal de desculpas; esses exemplos são levantados por Foucault para opor uma pragmática do discurso (análise da mudança de sentido do discurso em função da situação ou do estatuto do sujeito falante) à parresía (na qual o enunciado altera o modo de ser do sujeito, fazendo com que este sujeito se vincule ao fato de tê-lo dito)15. Esta tal “pragmática do discurso” anunciada por Foucault em muito se assemelha à postura política do “ator” criada pelo internauta; e esse sentido parresiástico da veridicção – o de uma veridicção que implica, para o sujeito, modalidades e técnicas de relação consigo mesmo ao intervir nos procedimentos de governo – parece resolver o problema que o internauta se colocou e constantemente, ininterruptamente, se coloca. A noção de parresía opera a junção entre problematizar e agir de uma maneira que até mesmo o vitalismo, aos olhos ciborgues do internauta, não deu conta.. 20.

(21) *** Embora a primeira metade de seu Curso de 1982 – intitulado A Hermenêutica do Sujeito – seja praticamente dedicada ao Alcibíades, de Platão, nela vemos Foucault usar o diálogo como chave de leitura do pensar grego no sentido de marcar a indissociabilidade entre filosofia (entendida como uma forma de pensar que busca, sobretudo, determinar as condições, possibilidades e limites do sujeito em seu acesso ao que é verdadeiro) e espiritualidade (todo um conjunto de exercícios e de práticas que transfiguram o sujeito, fazendo-o "pagar um preço" para ter acesso a esta verdade), que, à exceção de Aristóteles, nunca foram abordadas em separado no pensamento antigo. É apenas n´O Governo de Si e dos Outros (curso de 1983) que vemos, via Platão, uma definição mais elaborada e um trabalho histórico-filosófico mais detalhado por parte do próprio Foucault sobre a parresía, sobre essa verdade que passa tanto pelo plano da lógica (e dos espaços que a legitimam e que por ela são legitimados) quanto pelo plano da ética. A menção ao curso de 1982, no entanto, é salutar, pois nele o internauta encontra outra noção que em muito lhe ajudará nesse percurso de leituras e conexões, a saber, a noção de epiméleia (cuidado, souci). Essa ponta permanecerá solta, por enquanto, para ser reatada mais a frente neste exercício de escrita. *** Merece a atenção do internauta, na noção de parresía, tanto a longa duração do seu uso no correr da Antiguidade – em textos gregos (Platão, Isócrates, Demóstenes, Políbio, Plutarco), latinos (Marco Aurélio, Máximo de Tiro, Luciano, Sêneca, Quintiliano) e cristãos (João Crisóstomo, Doroteu de Gaza) – quanto a pluralidade de registros nos quais Foucault a encontra (direção individual, campo político, experiência religiosa), assim como a sua valorização ora como virtude e qualidade ora como vício e indiscrição. Além disso, Foucault 16 menciona que, afora o tratado de Filodemo e alguns artigos e verbetes modernos (Phillipson, Scarpat, Marcelo Gigante), a noção nunca foi diretamente abordada e refletida. A parresía é uma noção-aranha, uma noção que lança e estende seus fios em espaços diversos, abarcando sentidos diversos e operando práticas diversas; assim como o internauta.. 21.

(22) Dada a polissemia da palavra “parresía”, o internauta sente-se livre para manuseá-la na resolução de seu problema sem incorrer em anacronismo, já que está ciente de que a mesma não é simplesmente um conceito resultante de uma cadeia de razões e premissas, e que representaria uma solução pronta para um problema igualmente pronto; a parresía, o internauta percebe, é um nome prosaico e rotineiro para os que lhe são contemporâneos, assim como lhe são prosaicas e rotineiras, ao internauta, palavras como ‘liberdade’, ‘saudade’, ‘cadeira’ ou ‘hiperlink’. Sua leitura e uso do termo – o internauta procura deixar isto claro para ele mesmo – não visa encontrar uma resposta nos porões da antiguidade e atualizá-la para o seu problema “existencial”, nem, somente, fazer-se entender que contingências históricas distintas produzem noções distintas. A aparente viagem no espaçotempo que o internauta realiza é uma tensão de seu próprio ser de sujeito, é um exercício de si, uma experiência modificadora de si que, ao se encontrar com uma noção que articula regimes do verdadeiro, poderes que regulam a sua prática e modos de ser sujeito – articula, enfim, modos de se estar junto –, coloca o internauta na “vertical de si mesmo17”, num trabalho crítico sobre seu próprio pensamento. O trabalho de leitura que o internauta realiza sobre a noção de parresía é, ele mesmo, uma parresía; e a parresía, justamente por isso, é uma “noção” para o internauta, um “foco de experiência”, e se por vezes, muitas vezes, ele a lê e a utiliza como conceito, não o faz como a um universal. Esse seu modo de entender a leitura e mesmo a escrita encontrará ecos no estoicismo romano. Aparece solta, aqui, uma outra ponta que, posteriormente, também será aparada e reatada pelo internauta. É no Íon de Eurípides, de qualquer maneira, que Foucault 18 atesta a primeira aparição da palavra ‘parresía’, designando o direito do cidadão autóctone de tomar a palavra e exercer o poder na cidade de maneira não-tirânica, num jogo agonístico que persuada e comande os demais e, ao mesmo tempo, dê liberdade aos outros que também querem comandar; já aí, porém, a parresía vai sendo caracterizada como um discurso de verdade contra o poder, mas um discurso emitido fora do mesmo, fora de qualquer posição formalizada e legitimada pela estrutura de poder; a personagem Creusa, ainda mais que o protagonista Íon, serve como modelo para esse dizer “com justiça” a injustiça dos outros, um dizer que de modo algum quer virar a situação em benefício do que blasfema a imprecação, mas quer, isso sim, atrair sobre si a denúncia das desgraças sofridas num mundo de meias verdades e ilusões19. ***. 22.

(23) A primeira aula dada por Michel Foucault em 1983 é dedicada a Kant20: fala sobre Aufklärung, de seu contraponto com a Hascalá judaica, das condições de publicação à época de Kant, da interessantíssima ideia de minoridade, fala sobre emancipação intelectual, sobre o uso público e privado da razão (recolocando, aí, Foucault e Kant, Foucault-Kant, as próprias noções de público e de privado) etc. Nenhum desses apontamentos interessa ao internauta na resolução de seu problema. É nessa primeira aula de 1983, porém, que Foucault retoma alguns temas percorridos por ele durante seus últimos dez, doze anos de pesquisa. Recorda, para ele e para o auditório lotado que lhe serve de plateia, alguns pontos de referência que estabeleceu para si mesmo na construção de seu método, de sua “história do pensamento”, distanciando-se, primeiramente, de dois outros métodos “também perfeitamente legítimos” na historiografia das ideias; seu trabalho não é nem uma história das mentalidades (uma análise. dos. comportamentos. às. expressões. que. podem. acompanhar. esses. comportamentos) nem uma história das representações (análise das funções representativas e dos sistemas que lhes servem de referência). Por “pensamento”, Foucault entende uma análise que articule as formas de saber, as matrizes normativas e os modos de existência possíveis para os sujeitos de uma experiência. Embora esses três focos de experiência (saber, poder, sujeito) possam ser facilmente alocáveis dentro de sua trajetória intelectual (o próprio Foucault é quem situa seus trabalhos: no eixo do saber, aloca seus trabalhos sobre loucura; no “poder”, seus trabalhos sobre criminalidade e disciplina; no eixo da subjetivação, seus atuais trabalhos sobre essa prática do sujeito para consigo mesmo 21 ), é necessário remarcar que o deslocamento não se dá somente de um eixo de experiência a outro, mas principalmente dentro de cada eixo que, em articulação com os demais, produzem o que Foucault chama de “história do pensamento”. No eixo da formação dos saberes, Foucault desloca a discussão de um certo desenvolvimento ou progresso dos conhecimentos para a análise das práticas discursivas que constituem as regras de veridicção desses saberes. Quanto à análise das normas de comportamento, passa-se da análise das instituições de poder e das formas gerais de dominação para as análises do exercício desse poder e dos procedimentos de governamentalidade. Em terceiro, trata-se de deslocar a discussão de uma teoria do sujeito para as tecnologias de relação consigo que levam o indivíduo a se constituir como sujeito.. 23.

(24) Estabelecer a correlação entre esses eixos é o campo problemático do curso de 1983; a questão norteadora do curso seria a de como o indivíduo se constitui como sujeito na relação consigo e na relação com os outros (subjetivação) quando da obrigação e da possibilidade do dizer-a-verdade (saber) nos procedimentos de governo (poder)22; é ao colocar esta complicada questão que Foucault utiliza a ‘parresía’ como conceito. Reutiliza, de fato, pois já em seu curso anterior, de 1982, Foucault esboçava algumas articulações com o termo grego parrhesía, sem muitas pretensões. A palavra aparece em fragmentos de Filodemo, relacionada a certa “abertura de coração” entre amigos necessária à direção de consciência23; aparece nas citações de Foucault a algumas cartas de Marco Aurélio a Frontão, sendo empregada como o oposto da lisonja e da hipocrisia quase inerentes ao exercício do poder, e apontando para uma nova postura da relação verbal com o outro24; a parrhesía é levantada também, através da Sentença Vaticana de Epicuro, como uma técnica, uma “fisiologia” que permite ao mestre utilizar o verdadeiro e o útil no ofício de transformar o seu discípulo25; aparece também como um exercício de subjetivação do discurso verdadeiro, apresentando um êthos e uma tékhne tanto para o aluno que deve aprender a escutar, a silenciar, a ler e a escrever quanto para o mestre que deve tudo falar a este aluno26. Pode-se dizer que é na aula de 10 de Março de 1982 que a ‘parresía’ deixa de ser uma palavra com aparições avulsas nos cursos de Foucault e passa a ser empregada para caracterizar técnicas, datações, organizações, acontecimentos específicos, experiências, possuindo ela mesma uma história própria; no curso do ano seguinte, dedicado a estudar o dizer-a-verdade nos procedimentos de governo, a parresía já está consolidada como um conceito para o próprio Foucault; em 1984, ano do derradeiro curso de Michel Foucault, as interrogações do ano anterior ganham corpo através de uma leitura do platonismo e do cinismo que apontam para uma prática da verdade não mais através do enunciado, da “tomada arriscada da palavra”, mas pela manifestação do verdadeiro através da própria existência, instaurando um outro sujeito, um outro mundo e uma outra vida possíveis. Ao mesmo tempo em que a noção vaga de parresía vai sendo transformada em conceito rigoroso por Foucault (mas não em um “universal”) no correr de seus três últimos cursos, já que desta feita vai encaminhando o campo problemático de suas pesquisas, o termo serve também de fio fino e condutor de sua obra no sentido de elucidar seu modus operandi, sua maneira de entender o fazer-pesquisa e seu próprio trabalho pregresso. A elaboração conceitual que Foucault realiza sobre a noção de parresía é, ela mesma, uma parresía, uma ética da verdade.. 24.

(25) A ‘parresía’ já tinha aparecido ao internauta como uma saída possível de seus dualismos, ao menos “em teoria”; agora, a noção lhe serve como uma excelente chave de leitura dos trabalhos de Michel Foucault. *** A parresía é o ato e o fato de dizer a verdade, com todos os riscos e efeitos que tal fato acarreta. Talvez por isso, pensa o internauta, Foucault tenha se dedicado a criar uma espécie de quadro comparativo e marcar as diferenças irredutíveis entre ‘parresía’ e a ‘teoria dos atos de fala’, ou ‘teoria dos enunciados performativos’, cujos principais expoentes são John Austin e seu aluno John Searle27. Podemos dizer que enquanto “o [enunciado] performativo se consuma num mundo que garante que o dizer efetua a coisa dita28”, num contexto plenamente institucionalizado, cujo sujeito falante possui o estatuto requerido e numa situação já definida, o parresiasta é o que se levanta, toma a palavra, diz a verdade diante do tirano e instaura um risco para o tirano, para a corte e para a sua própria vida. A diferença capital entre um ato de fala performativo e o conceito de parresía assim como exposto e construído por Foucault é que no performativo os elementos da situação estruturam um efeito regulado e codificado de antemão para o enunciado verdadeiro, enquanto que na parresía o dizer-a-verdade “abre a situação”, possibilitando efeitos que são desconhecidos, inesperados e indeterminados. Para além, o estatuto do sujeito que enuncia a verdade performativa é irrecusável, indispensável, mas pouco importa se esse sujeito privilegiado está vinculado “pessoalmente” ao que ele anunciou; para a parresía, essa indiferença é não só impossível como a parresía se define, justamente, pelo pacto do sujeito-que-fala com o falado, tanto no nível do “conteúdo do enunciado” quanto no ato da fala, visto que o parresiasta é o que diz a verdade e, ligado a ela, assume todos os riscos consequentes à sua enunciação. O parresiasta é aquele que, fora do estatuto, faz valer sua própria liberdade ao falar. Levado ao extremo, o parresiasta é o que aceita morrer pela verdade: aceita morrer em nome da verdade, por ter dito a verdade e por ter a verdade no dizer. Ao invés de estatuto social ou institucional, a coragem. O que interessa a Foucault e ao internauta (Foucault-internauta? InternautaFoucault?) neste quadro comparativo é o seu caráter metodológico: se a análise dos atos de fala em termos de performativo visa as mudanças de sentido do enunciado em decorrência. 25.

(26) da situação ou mesmo do sujeito falante, bem aos moldes de uma pragmática do discurso29, tem-se agora, com a parresía, um outro contexto de enunciação e outro contexto de análise dos atos e fatos do discurso, que mostraria como o próprio acontecimento da enunciação pode afetar o enunciador em seu ser de sujeito. A este modo do fazer-pesquisa, “eliminando tudo o que pode haver de patético na palavra30”, Foucault chama parodicamente de “dramática31” do discurso verdadeiro. *** Articular a parresía e a condição ciborgue do internauta ganha, assim, uma nova dimensão. Ao invés de um estudo das performances e do sentido dos enunciados neste ou naquele contexto – uma semiótica, uma pragmática dos discursos –, está em jogo nessa articulação parresía-cibercultura um drama, uma “dramática” dos discursos, um modo de dizer de ambos que revele o contrato do sujeito falante no seu dizer-a-verdade: o profeta judeu, o cidadão grego, o orador romano, o sacerdote cristão, o alquimista, o cientista, o revolucionário, o ciberativista etc. não compõem um desenrolar progressivo rumo ao esclarecimento e ao aprimoramento tecnológico; compõem, melhor dizendo, distintas maneiras de se vincular, como sujeitos, à verdade do que dizem. Uma leitura cibercultural da parresía; uma leitura de Foucault por um internauta. Seria de grandiosa importância dimensionar o que está sendo entendido por “cibercultura” neste trabalho, de maneira semelhante ao trabalho realizado pelo internauta sobre a noção-aranha/conceito de ‘parresía’; como o internauta se define pela conexão, no entanto, uma definição ponto a ponto do que lhe representaria ou dos múltiplos espaços que ocupa não é discussão de seu interesse. Tudo o que sabe no momento é que seu nome – “internauta, o navegante-entre-espaços” – é horrível. O internauta participa de narrativas, de “crônicas”, já que ele mesmo é um tempo e se faz no tempo. Os espaços narrados só existem enquanto narrados, e ele mesmo, o internauta, só se constitui enquanto narrativa e crônica. Muito mais que uma pessoa ou um indivíduo, o internauta é um personagem, e um personagem que não é exatamente alguém entre espaços, entre sites, entre livros, entre notícias, entre conversas, entre documentos, entre coisas e estados de coisas já constituídos. Ao invés do prágma, o drama. O internauta é muito menos um internauta e muito mais um kybernetes, assim como o timoneiro de Platão. Manterá o seu nome de registro, contudo.. 26.

(27) Embora se tome a interface cibercultural como plataforma privilegiada para a construção do campo de pesquisa deste trabalho, e embora se tomem temas e questões que, ao menos tangencialmente, são temas e questões ditos “de internet”, é necessário reafirmar que a internet não está sendo entendida nem como um espaço alheio ao espaço real nem simplesmente como um instrumento técnico utilizado por indivíduos neste mesmo mundo real, mas como um modo de organização do real, um modo de se estar junto, de veridiccionar, de governar(-se) e de ser; a internet como uma condição antropológica. Logo, as já velhas questões – são velhas desde o seu nascimento – que procuram saber das intervenções de mobilizações de internet em espaços off-line ou do modo como os acontecimentos “reais” repercutem nos “espaços virtuais” está mal colocada. Seria, utilizando o mesmo raciocínio para a plataforma livro, questionar se a escrita de um enunciado numa superfície de papel pode causar, por si só, uma alteração na realidade a qual se refere, ou se o real, mobilizando-se, causa alterações diretas na bibliografia que a ele representa. Este drama cibercultural, aqui presentificado na escritura burocrática de um trabalho de dissertação, não toma a forma de um tratado estrutural sobre o dizer-a-verdade sob a forma de rede. Para aquém dessa empreitada idealista, o internauta, leitor de Foucault, aparece como o sujeito dessa prática da verdade e narrador de algumas experiências que lhe constituem; só se constitui, inversamente, enquanto narrador de si. Os capítulos seguintes são, ao mesmo tempo, uma tentativa do internauta em resolver o problema que o acomete, o registro institucional dessa tentativa e o próprio internauta. A escrita do problema e a resolução de um problema dessa natureza coincidem, aqui. ***. 27.

(28) Notas e referências da introdução.. 1. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed756_a_militancia_e_as_responsabilidades _do_jornalismo; MORETZSOHN, S. D.; “A militância e as responsabilidades do jornalismo”; texto publicado em 23 de Julho de 2013. 2 http://www.youtube.com/watch?v=vYgXth8QI8M; entrevista realizada em 05 de Agosto de 2013. 3 http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2013/08/06/uma-pergunta-e-um-convite-para-pablocapile/; FORASTIERI, André; “Uma pergunta e um convite para Pablo Capilé”; texto publicado em 06 de Agosto de 2013. 4 http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2013/07/31/uma-entrevista-com-bruno-torturra-damidia-ninja/; idem; “Uma entrevista com Bruno Torturra, da Mídia Ninja”; texto publicado em 31 de Julho de 2013. 5 https://www.facebook.com/beatriz.seigner/posts/10151800189163254; postagem realizada em 7 de Agosto de 2013, às 17:39. 6 https://www.facebook.com/bruno.torturra/posts/10201623820543095; postagem realizada em 8 de Agosto de 2013, às 11:26. 7 A título de exemplo, http://www.cartacapital.com.br/sociedade/fora-do-eixo-6321.html; BOCCHINI, Lino, e LOCATELLI, Piero; “Fora do Eixo”; texto publicado em 16 de Agosto de 2013; às 19:15 do mesmo dia, o texto é repostado por Reinaldo Azevedo no seu blog, hospedado no site da Revista Veja. 8 Cf. http://wikileaks.org/cablegate.html. A divulgação de tais documentos pode ser lida como combustível para as explosões da Primavera Árabe, revolução que, já assentada, foi apoiada pelo governo dos Estados Unidos. O fundador do Wikileaks, Julian Assange, discute esse “apoio” numa transmissão para a ONU em 26 de Setembro de 2012, enquanto refugiado na embaixada equatoriana em Londres. A transcrição e a tradução desta fala podem ser encontrados em http://midiacrucis.wordpress.com/2012/09/27/assange-o-tempo-das-belas-palavras-acabou/. 9 http://www.theguardian.com/media/2010/dec/17/julian-assange-sweden; DAVIES, Nick; “10 days in Sweden: the full allegations against Julian Assange”; texto publicado em 17 de Dezembro de 2010. 10 http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/dont-forget-about-my-rights-says-julianassange-sex-victim-8630046.html; RAWLINSON, Kevin; “Don´t forget about my rights, says Julian Assange ‘sex victim’”; texto publicado em 23 de Maio de 2013. 11 Cf. http://www.bbc.co.uk/news/world-europe-11949341. 12 O movimento, seguindo a sua própria esteira, não possui liderança e literatura que o representem formalmente; no entanto, suas narrativas podem ser acompanhadas e montadas através de websites produzidos durante e na ressonância da ocupação da Praça Zuccotti. Sugerimos o www.occupy.com/, o www.occupytogether.org/, o occupywallst.org e o twitter.com/OccupyWallSt. 13 “BERGSON, Henri; O Pensamento e o Movente, In Os Pensadores; trad. Franklin Leopoldo e Silva – São Paulo: Editora Abril, 1974, pp.105-158.” 14 FOUCAULT, Michel; Aula de 16 de fevereiro de 1983, primeira hora; In Governo de Si e dos Outros; trad. Eduardo Brandão – São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, pp.203-222. A partir desta nota, nos referiremos a esta edição do livro apenas como GSO. 15 Cf. GSO, Aula de 12 de janeiro de 1983, segunda hora; p.59-70. 16 “GSO, Aula de 12 de janeiro de 1983, primeira hora, pp.41-58”. 17 “Tal é a ironia desses esforços feitos a fim de mudar-se a maneira de ver, para modificar o horizonte daquilo que se conhece e para tentar diferenciar-se um pouco. Levam eles, efetivamente, a pensar diferentemente? Talvez tenham, no máximo, permitido pensar de modo diferente o que já se pensava e perceber o que se fez segundo um ângulo diferente e sob uma luz mais nítida. Acreditava-se tomar distância e no entanto fica-se na vertical de si mesmo. A viagem rejuvenesce as coisas e envelhece a relação consigo.” (idem; História da Sexualidade II – O uso dos prazeres; trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque – Rio de Janeiro : Edições Graal, 1984, p.18). 18 “Aula de 08 de fevereiro de 1984, primeira hora; In Coragem da Verdade; trad. Eduardo Brandão – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011, pp. 31-50. A partir desta nota, nos referiremos a esta edição do livro apenas como CV. 19 Para uma análise detalhada dessa tragédia de Eurípedes, cf. as Aulas de 19 e 26 de janeiro de 1983, In GSO, pp.71-138. 20 O desenvolvimento dessa sessão é baseado na Aula de 5 de janeiro de 1983; In GSO, pp. 3-39.. 28.

(29) 21. Op.cit., cf. pp. 4-7. Cf. GSO, Aula de 12 de janeiro de 1983, p. 42. 23 Cf. FOUCAULT, Michel, Aula de 27 de janeiro de 1982, primeira hora, In Hermenêutica do Sujeito, trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma annus Muchail, 3ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 123. A partir desta nota, nos referiremos a esta edição do livro apenas como HS. 24 Cf. toda a segunda hora da Aula de 27 de janeiro de 1982, In HS, pp. 135-151. 25 Cf. HS, Aula de 10 de fevereiro de 1982, pp. 215-217. 26 Ver a segunda hora da Aula de 3 de março de 1982, In HS, pp. 325s. 27 Cf. a primeira nota da Aula de 12 de janeiro de 1983, segunda hora, In GSO, p. 70. Os livros indicados na nota como “referência essencial” para entender enunciados performativos são How to do things with words, de J. L. Austin, e Speech Acts: an essay in the philosophy of language, de J. Searle. O esquema comparativo entre enunciado parresiástico e enunciado performativo é o mote dessa segunda hora de aula. 28 Op. cit., p. 59. Anotação do manuscrito não lida por Foucault em sala. 29 Op. cit., p. 65. 30 Op. cit., p. 66. 31 Op. cit., pp.65s. 22. 29.

(30) CAPÍTULO 1 “Nada além da Constituição”: Platão, o internauta e os blogueiros sujos.

(31) O que assistimos é uma ruptura com os pilares de sustentação do regime militar e dos três governos que lhe sucederam. O que resta à grande imprensa? Sufocar financeiramente quem denuncia seu modus operandi, esboçar cenários eleitorais contando com quadros partidários sem qualquer organicidade fora de suas bases regionais (...). A extensão do grotesco é tão acentuada que seus ‘bons propósitos’ não enganam a mais ninguém. Estão todos na ordem do riso. E da exclusão social1". 31.

(32) “Uma tia ninfomaníaca e suas sobrinhas estão de luto por causa da morte de um cachorro. Diretor de famosa rede de TV e seu amigo pilantra fingem que são primos e vão consolá-las2” – escreve o Sr. Cloaca, pseudônimo do editor do blog ‘Cloaca News – as últimas do jornalismo de esgoto’, como sinopse ao filme ‘Solar das Taras Proibidas’; abaixo do texto, o vídeo em questão extraído do ‘Youtube’. A piada estava pronta: o nome do ator principal da película pornô é Ali Kamel. O Diretor Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo, homônimo do ator, mobiliza um processo contra o titular do blog por “campanha difamatória”. Oito advogados trabalham no processo3. Rodrigo Vianna, do blog ‘O Escrevinhador’, aproveita a tirada do ‘Cloaca News’ e escreve uma série de textos sobre a homonímia, afirmando que “pornográfico, sim, é o jornalismo que Ali Kamel pratica tantas vezes à frente da Globo4”. Munindo-se de um “furor processório” – termo cunhado por Rodrigo – Kamel (o diretor, não o ator) iniciou ações judiciais contra o Sr. Cloaca, contra o próprio Rodrigo, e mais um punhado de blogueiros empenhados em “difamá-lo” (Luiz Carlos Azenha, do ‘Viomundo’; Marco Aurélio, do ‘Doladodelá’, Luiz Nassif, Paulo Henrique Amorim e outros). Rodrigo Vianna teoriza que a estratégia de Kamel é o contra-ataque, mas fora do debate público, de conteúdo, como foi iniciado, partindo para a revanche judicial e o sufoco financeiro. O Sr. Cloaca, acima da coluna lateral de sites amigos do seu, sites “por quem botamos a mão no fogo”, dispõe o seu IP5 – 201.37.94.163 – e, acima do seu IP, uma chamada em letras garrafais: PROCESSE O CLOACA NEWS. Miguel do Rosário, do blog ‘O Cafezinho’, sugere algum tipo de associação organizada para que os blogueiros progressistas possam se defender de ataques como esse; e coloca que Ali Kamel, o ator, “é que deveria nos processar por compará-lo a um sacripanta6”. *** Curioso disso tudo, o internauta tenta descobrir o nome de registro do Sr. Cloaca, e só o encontra no blog de Augusto Nunes7, hospedado no site da Revista Veja. William. William Barros. “O que ele, o internauta, ganhou ao identificar o Sr. Cloaca?”, pergunta-se.. 32.

(33) “A que (ou a quem) interessa essa identificação?”, recoloca sua questão. “O Sr. Cloaca é um indivíduo ou, assim como ele, o internauta, tem a conexão como sua primeira condição de possibilidade?” *** O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, informa à Rádio do Moreno: “É inadmissível que esses blogueiros sujos recebam dinheiro público para atacar as instituições e seus representantes. Num caso específico de um desses, eu já ponderei ao ministro da Fazenda que a Caixa Econômica Federal, que subsidia o blog, não pode patrocinar ataques às instituições”. E emenda: “O direito de crítica, de opinião, deve ser respeitado. Mas o ataque às instituições é intolerável”. Jorge Bastos Moreno acrescenta: “O ministro explicou que, nem de longe, sua decisão visa atingir a liberdade de expressão. Pelo contrário, é em defesa que se luta contra as pessoas que não se acostumaram a viver dentro de um regime democrático8”. Paulo Henrique Amorim, “um desses” blogueiros sujos, chama o ministro para um “mano-a-mano”, que ele “dispa-se da toga do ‘foro privilegiado’ e venha para a arena da democracia (...), aqui na planície, debater ideias e confrontar fatos9”. O dizer-a-verdade suscita contra-ataques que se dão num outro registro que não o do discurso: o internauta descobre que PHA já foi indiciado e condenado em duas ações morais movidas pelo magistrado10. *** Nos textos posteriores ao Íon (final do séc. V, começo do séc. IV a.C.), a parresía vai aparecendo cada vez menos como um direito, menos como o exercício de uma liberdade, do que como uma prática perigosa, ambígua; no auge da democracia ateniense começa a surgir toda uma literatura que demonstra a passagem de uma prática da verdade em relação à cidade para um outro tipo de veridicção voltado à maneira de ser, fazer e se portar dos sujeitos, a transformação de uma parresía orientada para e indexada na pólis (uma parresía política, uma parresía que tem o seu lugar nas instituições democráticas) numa parresía orientada para e indexada no éthos (parresía ética)11. Se antes a democracia, orgulhosa de si e de suas instituições, aparecia como lugar privilegiado para o exercício da verdade, agora, ao contrário, aparece como o lugar em que a parresía vai se tornar cada vez. 33.

(34) mais perigosa, ou mesmo impossível; a impossibilidade do dizer-a-verdade na cidade democrática se dá visto ser a liberdade, dada a todos e a qualquer um, de tomar a palavra e dizer qualquer coisa, e não mais como o exercício de um privilégio estatutário dos capazes, justapondo e indissociando as opiniões verdadeiras e úteis à cidade das opiniões falsas e nocivas12; aqui, Foucault usa Platão (República, Livro VIII) e faz a evocação da cidade democrática como cidade repleta de eleuthería e parresía, cidade variada, heteróclita, sem unidade, na qual cada um dá sua opinião, segue suas próprias decisões e se governa como quer; faz também uma leitura de Isócrates (Discurso sobre a Paz, parágrafo 13), para quem a liberdade parresiástica na democracia, entendida como latitude dada a todos os indivíduos de falar, e falar o que quiser, justapõe discurso verdadeiro e discurso falso, opiniões úteis e opiniões nefastas. O elitismo anti-democrático de Platão e Isócrates, e a desqualificação do exercício individual da parresía coincidente a esse elitismo, começam a incomodar o internauta, embora ele ainda não saiba aonde. Imagina que o Sr. Cloaca – nada sabe, o internauta, da pessoa de William Barros – também se incomodaria com isso, embora nem o internauta nem o editor do ‘Cloaca News’ sejam indivíduos. Destrinchando esse elitismo, Foucault evoca mais uma vez Platão (República, Livro VI) e sua famosa imagem do barco, segundo a qual os oradores se enfrentam entre si no controle da cidade, mas os que serão aprovados, seguidos e amados são aqueles que lisonjeiam o piloto (o povo, numa democracia), e os outros, os que dizem a verdade, ao contrário, suscitaram reações negativas e serão expostos a vinganças e punições; num segundo exemplo evoca a Apologia, outro escrito de Platão, na qual Sócrates objeta o porquê de, se ele mesmo se pretender tão útil à cidade, nunca ter agido publicamente, nunca ter atuado nos espaços democráticos (a resposta de Sócrates é que, se tivesse se dedicado a essa política de tribuna, estaria morto de há muito; aqui, o internauta interroga o porquê de Sócrates não ter praticado essa parresía de Assembleia, já que o mesmo não abriu mão de seu modo particular de parresiar, modo este que igualmente o expôs a riscos e à própria morte); como terceiro exemplo, temos mais uma vez Isócrates e o seu Discurso sobre a Paz. A periculosidade da parresía – o segundo aspecto dessa crítica, e o aspecto que, certamente, mais interessa ao internauta – é que, na democracia, a parresía também é perigosa para o sujeito que tenta exercê-la13. ***. 34.

(35) “E, por mais que isso me doa profundamente no coração e na alma, devo admitir que perdemos. Não no campo político, mas no financeiro. Perdi. Ali Kamel e a Globo venceram. Calaram, pelo bolso, o ‘Viomundo’14”. Cesar Kloury, advogado de Azenha, o proíbe de falar das minúcias e detalhes da sua condenação – a saber, 30 mil reais ao diretor da Central Globo de Jornalismo por “campanha difamatória”. A base para a decisão judicial são 28 postagens em que Azenha cita Ali Kamel em seu blog pessoal. Azenha faz uma conta ligeira: tendo feito 8.140 postagens até então, a sua “campanha difamatória” consiste na menção a Kamel em 0,0034% dos textos publicados15. Edson Roberto Nunes, na sessão de comentários, se solidariza: “Fecha não Azenha. Seu trabalho é importante para o Brasil. Abra uma conta. Vamos manter o ‘nosso’ site!!!”. Imediatamente, 40 pessoas “curtem” o seu comentário. *** O internauta recapitula: o verdadeiro na ordem do político não pode ser dito na forma da democracia (entendida como direito de todos à palavra), já que não há uma marcação, uma institucionalização dessa distinção essencial entre bons e maus; ou melhor, a verdade não pode ser dita num campo político que é definido, justamente, pela sua indiferença entre os sujeitos falantes, campo este que não pode reconhecer, não pode abrir espaço para uma diferenciação ética a partir da qual o dizer-a-verdade é possível, tudo isso não passando do efeito da impossibilidade fundamental, estrutural, de a democracia abrir espaço para o dizer-a-verdade; é a partir daí que Foucault insere o que chama de reversão platônica, a validação do dizer-a-verdade como princípio de definição duma politeía, duma estrutura política, da qual, precisamente, a democracia será cuidadosamente banida (ou democracia, ou dizer-a-verdade)16. Foucault identifica, aí, “duas parresías”; uma ruim, que se caracteriza por ser a latitude, “dada a todo o mundo e a qualquer um, de dizer tudo e qualquer coisa”, parresía esta perigosa para a cidade; e uma boa parresía, entendida como a coragem generosa de fazer uso da verdade desagradável, parresía esta perigosa para o indivíduo que a ela se vincula; de qualquer maneira, “não há lugar para ela na democracia17”.. 35.

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