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O ensino de História e as Sensibilidades

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Academic year: 2021

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O ensino de História e as Sensibilidades

Cléria Botêlho da Costa1 A História, como as demais ciências sociais, ainda vagueia por entre a dúvida e a certeza quanto à incorporação das sensibilidades e das emoções na construção do conhecimento. A assepsia dos sentimentos do desejo ainda continua em voga para muitos historiadores. Diante disto, nossa preocupação, neste artigo, é argumentar que as sensibilidades são partes constitutivas do ser humano, portanto, não devem ser excluídas do conhecimento histórico e enquanto tais devem ser trabalhadas no ensino de História.

Partiremos das diferentes interpretações teóricas do que é o homem. Para os racionalistas (Kant, Descarte, entre outros), o homem se configura, apenas, como um ser que pensa, que tem raciocínio lógico, esta é, em geral, a primeira concepção de homem que nos é repassada nos primeiros anos do ensino básico. Todavia, ela alija do conhecimento acadêmico as emoções, como se o homem fosse um autômato guiado pela

razão e, assim, destituído de sensibilidades. Todavia, outras interpretações fizeram embate

com a anterior, Merleau-Ponty (2006), por exemplo, filósofo francês, parte da compreensão de que o homem, embora portador de razão é também portador de intensa sensibilidade, ele então o conceitua como um ser sensível. Já Castoriadis (1982), outro filosofo francês, argumenta que o que torna o homem diferente dos demais animais é a sua capacidade de

criação, que está intimamente vinculada ao sentir, é a capacidade de ser sensível que

permite que o novo não seja mera repetição do velho. Essas diferentes concepções filosóficas do homem orientam diferentes interpretações da História e, consequentemente, os múltiplos caminhos do ensino de História.

A História: uma construção humana e sensível

Neste artigo nossa ancoragem epistemológica repousa em Ponty, que compreende o homem como um sujeito com corpo, porta de entrada das sensações e de alma ou psique. Portanto, dotado de matéria e espírito que se interpenetram. Assim, o referido autor foge do antagonismo excludente entre razão e emoção. Sob a ótica de Ponty (2006, p. 26), os seres humanos dispõem de um corpo físico, carnal, porta de entrada das sensações, local onde o sentir inicia-se. Assim, o conhecimento sensível emerge dos sentidos, vem do íntimo de cada indivíduo, lida com o emocional, com a subjetividade, com os valores, os sentimentos e as emoções, que obedecem a outras lógicas e princípios que não os racionais, e a sensibilidade é uma forma de ser e estar no mundo sob o signo da alteridade (RICOEUR, 1994). Desse modo, os sujeitos humanos, por serem sensíveis, se comunicam com o outro, com a natureza, se abrem para o mundo, são seres sociáveis.

Em relação à História vale lembrar que, em geral, a primeira que aprendemos é a História grandiloquente de Hegel, aprendemos a vê-la em vastos panoramas em que o homem se dilui e se eclipsa diante de forças tão infinitamente superiores às suas que esquecíamos que essas estruturas colossais eram e são vividas pelo homem. E essas forças monumentais eram e são vividas pelo homem, em longa duração, que os levam

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Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), em nível de graduação e pós-graduação.

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irremediavelmente a um destino, a uma finalidade. Logo, trabalhamos com uma História linear e sem sujeito. Contudo, hoje, século XXI, para os historiadores que se ancoram na percepção de Ponty e próximos dele, a História saiu das armadilhas da história universal, construção pura da razão humana e é apreendida como uma construção de sujeitos: de homens de carne e osso, que amam, sofrem, padecem de desilusões, mas também trilham por entre alegrias e esperanças. Assim, são edificadores da História tanto os reis e as rainhas, quanto o sem-terra, o estudante, as mulheres, os índios, os letrados, os não letrados, entre muitos outros. Os artífices da História são os sujeitos humanos. Em livro recente, Ranciére (1992) analisa como foi possível, na França, numa era democrática, Michelet substituir reis e outros personagens históricos tradicionais pelas massas, ao narrar a Revolução Francesa. Foi esse fato, segundo Ranciére, que possibilitou o surgimento da nova História com Bloch e Lucien Febvre já no século XX. Nessa trilha ganharam relevo temas como a cultura popular, o corpo, a criança, a morte, as minorias, os sentimentos, entre outros.

Por outro lado, a História, ao fugir do universalismo, se apoia na ciência pós-moderna que proclama narrativas fragmentadas e o trabalho de pesquisa a partir de micros acontecimentos, aparentemente, sem relevância, mas que compõem o dia a dia dos homens. Isso me faz lembrar Benjamin (1989, p. 211), ao colocar que nenhuma prática cotidiana pode ser considerada perdida para a História porque ela é essencialmente humana. Pensamento bem expresso no poema de Ferreira Gullar, o qual transcrevo um trecho abaixo:

A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas escolas, nas usinas, nos namoros de esquina. Disso eu quis fazer minha poesia (FERREIRA GULLAR, 1994, p. 26).

Desse modo, entendemos que a História no presente, século XXI, deve se ater aos fatos corriqueiros da vida humana porque a partir deles podemos construí-la levando em conta as experiências do cotidiano dos sujeitos. Todavia, o cotidiano é algo mais do que a simples descrição dos fatos miúdos e corriqueiros do dia a dia, de uma comunidade, de um bairro, ele o é porque nele se integra um imaginário, uma sensibilidade, vivido com a mesma intensidade dos fatos miúdos, e que serve para conferir-lhes um significado nem sempre apreendido de maneira direta (ODÁLIA, 1994).

Trabalhar a História levando em conta o cotidiano é fazer o que os italianos chamaram de micro-história. No entanto, vale lembrar que, até recentemente, quando se falava em trabalhar o cotidiano dos sujeitos na História, a expressão trazia consigo uma herança pesada de desconfiança e mesmo de desprezo, como se tratasse de uma História de baixo nível acadêmico, pois ela se contrapunha ao que se chamava de história cientifica. O cotidiano era visto como um folhetim, um romance, que tinha por finalidade descrever da maneira mais íntima possível o dia a dia dos homens do passado, criando o que se chamava de cor local. Seu maior charme estava no fato de descrever usos e costumes de sociedades passadas, realçando tanto quanto possível o aspecto exótico deles em relação ao nosso.

Outra dimensão que consideramos importante na escrita da História é a compreensão do homem integral, em sua dimensão econômica, social, política e afetiva, uma visão global do homem. É no quadro desta compreensão que o sentir humano confere

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um colorido à História, à medida que busca, por meio da narração de eventos, fatos, imprimir-lhes um sentido, um significado, que os tornem compreensíveis. No entanto, o sustentáculo, a raiz que sustenta a História, que a diferencia das demais ciências sociais, é o tempo – presente, passado ou futuro, sob o qual se emolduram diferentes sentidos e significados para os fatos. Tempo que, na esteira de Ricoeur (2004), é uma construção humana.

Todavia, diante do quadro sedutor do mundo pós-moderno, mas muito complexo, pensamos que a relação ensino-aprendizagem traz em seu bojo a reconstrução das identidades, o conhecimento do passado é tornar a educação um instrumento de formação para a cidadania e, assim, uma forma de torná-la um direito de todos, um direito humano. Conhecer o passado para ajudar a melhor entender o presente e planejar o futuro, conhecer passado e presente para conhecer a nós mesmos, a nossa escola, o nosso bairro, o nosso país, para nos tornarmos sujeitos da história brasileira. Para Paulo Freire (1968), o papel fundamental da educação é a formação para a cidadania, formação crítica que só será empreendida via pesquisa e entendemos a relação ensino/aprendizagem de História excelente oportunidade de formar nossos alunos como críticos, como cidadãos. Com isso queremos dizer que a cidadania é um espaço a ser conquistado, requer luta e, sobretudo, participação coletiva. Desse modo, entendo que quando realizamos pesquisas com os alunos sobre a escola onde estudam (bairro, famílias) estamos estimulando não somente a pesquisa, a busca de novos conhecimentos, mas também o exercício da cidadania.

É dentro deste quadro de uma sociedade que supervaloriza a especialização, que direciona seu olhar, fundamentalmente, em direção ao futuro, que apreende o passado como ruína, como destroços de outro tempo, e que por isso é rotulada, na cotidianidade dos homens, como “sociedade sem memória”, que a reflexão sobre a História se impõe como uma necessidade fundamental no processo educativo. Pois o que a educação pode oferecer de melhor ao aluno é o saber pensar politicamente. A escola básica deve propiciar ao aluno a oportunidade de ascender à condição de sujeito autônomo e com esta compreensão ele pode ser capaz de se confrontar coletivamente organizado. Eis a relação mais direta entre educação e cidadania.

Ensinar e aprender: uma relação dialógica e sensível

A relação cotidiana entre professores e alunos de História, em sala de aula, é por nós compreendida como uma relação dialógica, ela ocorre entre sujeitos com vozes, vontades, desejos, experiências e poderes diferenciados. A partir desse entendimento, professores e alunos são sujeitos com vozes e direitos de aceitar, reclamar, criticar, são sujeitos da produção do conhecimento histórico, em sala de aula. Ensinar e aprender se configuram, então, como um diálogo entre sujeitos. Desse modo, tanto o professor muito aprende com os alunos, quanto os alunos ampliam seus conhecimentos com os professores. Com esta compreensão, concordamos com as criticas de Paulo Freire à educação bancária, modo de educar no qual o aluno não passa de um depósito dos conhecimentos do professor, permanece inerte na relação como se o ato de educar coubesse apenas ao professor. Todavia, no cotidiano de nossas escolas, a relação ensino x aprendizagem, em geral, se apresenta carregada de tensão, o professor, detentor de

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maior experiência e de conhecimento acadêmico, monopoliza a relação pelo argumento de autoridade e o aluno se percebe como inferior, como uma tabula rasa, a ser moldado pelo professor. Assim, na maioria das vezes, esta relação ensino x aprendizagem, por ser tão desigual, se torna fastidiosa, desprovida de prazer.

Todavia, ensinar e aprender é uma relação de mão dupla, pois quem aprende não é só o aluno que houve a preleção do professor, mas este também enriquece com a experiência, com a cultura do aluno, em geral, bem diferente da sua. Ensinar é uma forma de comunicação com o outro. E esta relação está permeada pelo imaginário, pela sensibilidade tanto do professor, quanto do aluno. Sensibilidade que é expressa pelo aluno em gostar ou não gostar da aula de História, em estudar ou não a disciplina, em matar ou não a aula de História, entre outros, e do professor em desrespeitar o aluno com palavras ou gestos em sala de aula, em não estimular o gosto pela disciplina, com gestos ou olhares de desprezo, inferioridade do aluno, entre outros. Cabe ao professor criar o clima e a atmosfera necessários ao despertar de emoções e sentimentos apropriados na sala de aula, que deverão evocar os estados desejados da mente e do espírito, que são obtidos pela qualidade da universalidade destas manifestações. Assim, podemos entender que a relação ensino x aprendizagem se constitui como uma relação de coletivos e indivíduos, permeada por diferentes visões que a cercam, atravessam o mundo e os gostos em diferentes versões, pois é natureza humanizada em que a razão e emoção devem se cruzar.

O ensino de História, hoje, vem evocando com muita propriedade a capacidade do sujeito, no caso, o aluno perceber o mundo que o circunda por meio da sensibilidade. Desse modo, a visão de mundo do sujeito aluno de “ver” e “refletir” sobre sua família, sobre o bairro, a cidade, o país onde vive, busca no passado elementos de ancoragem que possibilitam àquele aluno a compreensão do presente. Com essa compreensão, o sujeito aluno é um sensível interpretador da realidade fugidia e fugaz. Assim, o ensino de história precisa estar atento para as diferentes nuances da sociedade contemporânea. Precisamos ensinar a captar a realidade por meio dos novos objetos, de novos documentos e das abordagens, que, nas práticas educativas, ainda estão sendo parcialmente utilizados e ainda eivados de preconceitos. Na maioria das vezes, temos um grande comodismo em permanecer no campo do tradicional, do pragmático, ou seja, na zona do conforto.

A partir da perspectiva apontada acima tentaremos desvendar alguns caminhos possíveis do ensino de História em suas mais variadas formas – escritas, audiovisuais e digitais. Em outros termos, como o historiador poderá comprometer-se sensivelmente com um tempo e extrair-lhes os significados? Pensamos que entram em cena novos atores com sensibilidades mais tangíveis como professor e aluno, pessoas de carne e osso, com tristezas, dores, mas também alegrias e prazeres a buscar. Assim, a História deixa de ser uma sucessão linear de grandes eventos, tais como Segunda Guerra Mundial ou a Revolução Francesa, de grandes vultos - Caxias, D. Pedro I, Princesa Isabel, entre muitos outros, e passa a ser compreendida como uma construção de todos os homens, seja branco preto, rico, pobre, doutor ou lavrador. Nesse sentido, o aluno é responsável pela construção de uma parcela da história de sua família, de sua escola, de seu bairro, de sua cidade e de seu país. Nesse sentido, o aluno é também sujeito do processo de ensino-aprendizagem.

Esta compreensão do homem/aluno como sujeito de sua história, de sua aprendizagem, está aportada em teóricos como Edgar Morin (2000), entre outros que

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concebem o homem como sujeito inteiro, constituído por distintas dimensões: biológica, afetiva, relacional e racional, que interagem entre si, com o ambiente natural e sociocultural e possibilita o advento do “conhecer” a si mesmo e do conhecer a alteridade, os outros, a sociabilidade. Assim, entendemos que as discussões sobre a prática do ensino de História tornam-se indissociáveis do viver e do “ser” sujeito da própria história. Como sujeitos aprendentes, passíveis de sensibilidades, é que tentamos transformar as leituras da realidade numa prática sociável.

O entendimento sobre a complexidade dos conceitos de sensibilidade e sociabilidades devem fomentar práticas pedagógicas voltadas para uma aprendizagem significativa do ensino de História. Tais práticas devem dar a devida atenção às mudanças que se processam na produção do conhecimento histórico, fazendo a relação entre saber histórico e saber escolar. A constante troca de experiências se dá no campo dos debates e das críticas, embora este terreno ainda seja movediço, ele promove a interação, fornecendo as possibilidades para o uso de novas linguagens no ensino desta disciplina. Pensamos que para ocorrer uma aprendizagem significativa faz-se necessário “tocar” nas sensibilidades do educando e do educador – sujeitos do processo de ensino-aprendizagem. Todavia, como concretizar a sensibilidades na aprendizagem do ensino de História? Antes de tudo, é preciso deixar claro o que entendemos por ser sensível, é aquele que é capaz, por via das emoções, de perceber a existência do outro. Todavia, apesar de a sensibilidade fazer parte da natureza humana, cabe-nos educá-los para que o aflorar e a aceitação dos sentimentos também são parte da constituição humana e também parte do conhecimento científico.

Nesse sentido, como trabalhar o sensível em sala de aula? Apresentaremos, a seguir, algumas formas possíveis, entre muitas outras: o cinema, as entrevistas orais com familiares, com líderes da escola, do bairro, o teatro, passeios no bairro, entre outras, são formas em que a sensibilidade do aluno e do professor podem se misturar e fazer do ensinar e aprender uma relação de prazer.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas (Volume 1). São Paulo: Brasiliense, 1989.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. GULLAR, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

ODÁLIA, Nilo. O saber e a história. Georges Duby e o pensamento historiográfico contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RANCIÈRE, Jacques. Les mots de l’Histoire – Essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1989.

Referências

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