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FEIRA DE SÃO CRISTÓVÃO:PATRIMÔNIO (I)MATERIAL DO NORDESTE NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

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Academic year: 2022

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FEIRA DE SÃO CRISTÓVÃO:PATRIMÔNIO (I)MATERIAL DO NORDESTE NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Palavras-Chave: Cultura Popular - Migração - Patrimônio Imaterial GT 11 - Patrimônio Imaterial e Folclore

Fernando Cordeiro Barbosa - Doutorando em Antropologia da UFF - Universidade Federal Fluminense, Rua Valparaíso, 63 apto 202 Tijuca Rio de Janeiro - RJ, Telefone 21 98422116, fernandocordeiro@uol.com.br .

Nicolas Alexandria - Doutorando em Antropologia Unicamp - Universidade Estadual de Campinas, Rua Almirante Rodrigo da Rocha, 12 São Cristóvão Rio de Janeiro - RJ, Telefone 21 25688686, antropologias@gmail.com, Laboratório de Estudos Marxistas e Educação - LEME/ UERJ/ISERJ

RESUMO:

A presente comunicação tem por objetivo analisar a importância de um espaço da cidade do Rio de Janeiro tido em sua origem como pertencente a um grupo social específico: a dos migrantes de origem nordestina. Este espaço social é a Feira de São Cristóvão, também denominada de Feira Nordestina e Feira dos Paraíbas. A Feira, recebendo investimentos contínuos, inclusive por adesões decorrentes de sua consagração, ao longo de sua história, permitiu a intensificação dos princípios de pertencimento desses migrantes, que no Rio de Janeiro são chamados geralmente de paraíbas. Para eles, por eles e com eles é que a Feira se consagrou socialmente. É nesse espaço social que os paraíbas, ao se sentirem acolhidos por estarem entre iguais, vivendo a conversão momentânea a seu pretendido antigo modo de vida, viabilizaram a construção de um patrimônio particular que aos poucos foi se estendendo a outros grupos sociais. Nesse processo de construção e transmissão de patrimônio, a Feira passou por modificações permanentes, onde certos elementos se construíram e se dissolveram noutros. Desde o seu início, na década de 1940, ocorreram nesse espaço práticas que colocaram em cena complexas movimentações de trajetórias e de interesses de agentes sociais distintos, que culminaram na transformação de um espaço originalmente peculiar e exclusivo em um patrimônio extensivo a grupos sociais mais amplos, embora não sem exclusões. Esta comunicação tem por objetivo justamente analisar como a Feira se constituiu socialmente e como se submeteu a situações que viabilizassem a sua constituição como patrimônio da cidade do Rio de Janeiro.

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FEIRA DE SÃO CRISTÓVÃO:PATRIMÔNIO (I)MATERIAL DO NORDESTE NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Fernando Cordeiro Barbosa (Universidade Federal Fluminense - UFF) Nicolas Alexandria (Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP)

A presente comunicação tem por objetivo analisar a importância de um espaço social da cidade do Rio de Janeiro tido em sua origem como pertencente a um grupo social específico: os migrantes de origem nordestina. Este espaço social é a Feira de São Cristóvão também denominada de Feira Nordestina e Feira dos Paraíbas1. A Feira, recebendo investimentos contínuos, inclusive por adesões decorrentes de sua consagração, ao longo de sua história, permitiu a intensificação dos princípios de pertencimento desses migrantes, que no Rio de Janeiro são chamados geralmente de paraíbas.

É nesse espaço social que os paraíbas, ao se sentirem acolhidos por estarem entre iguais, vivendo a conversão momentânea a seu pretendido antigo modo de vida, viabilizaram a construção de um patrimônio cultural particular que aos poucos foi se estendendo a outros grupos sociais. Nesse processo de construção e transmissão de patrimônio, a Feira passou por modificações permanentes, onde certos elementos se construíram e se dissolveram noutros, e isto é típico de um espaço que se constituiu a partir de um processo de transformação social. O próprio fenômeno migratório é fundamentado no dinamismo social e cultural. Desde o seu início, na década de 1940, ocorreram nesse espaço práticas que colocaram em cena complexas movimentações de trajetórias e de interesses de agentes sociais distintos, que culminaram na transformação de um espaço originalmente peculiar e exclusivo em um patrimônio extensivo a grupos mais amplos, embora não sem exclusões. Esta comunicação tem por objetivo justamente analisar como a Feira se constituiu socialmente e como se submeteu a situações que viabilizassem a sua constituição como um patrimônio. Contudo, é necessário explicitar logo de início que a concepção de patrimônio cultural adotada nesse trabalho não é a concepção do patrimônio como um conjunto de bens ou relíquias, mas do patrimônio como conhecimento, único elemento da cultura que pode ser parcialmente preservado e transmitido.

Considerar a Feira de São Cristóvão como um patrimônio significa concebê-la como um espaço social capaz de representar simbolicamente uma identidade social, no caso a dos nordestinos que migraram para o Rio de Janeiro. Como salienta Prats (1997), o patrimônio é uma construção social, no sentido de que não é algo dado, natural, e sim um artifício idealizado, consciente ou inconscientemente, por alguém ou em um processo coletivo, em algum lugar e em algum momento, com um determinado fim, que pode ser historicamente modificado, de acordo com novos critérios e interesses, que determinam novos fins e novas circunstâncias (Prats,1997: 19-20). A Feira de São Cristóvão, nesse sentido, pode ser pensada como um patrimônio cultural, pois sua origem se dá a partir de um processo de construção simbólica que sintetiza o modo de viver desses migrantes nordestinos, tanto em relação às práticas culturais e sociais de seu lugar de origem, como de sua condição social de migrante que vive no Rio de Janeiro, ou melhor, de sua condição social de paraíba, que representa a troca de experiências comuns entre aqueles que passaram por um processo de redefinição social.

Visando compreendermos o processo patrimonialístico da Feira de São Cristóvão, estruturamos o trabalho em três fases distintas. A divisão proposta, todavia, tem uma dimensão metodológica, por serem essas fases de certa forma complementares e justapostas umas as outras. Primeiramente, daremos destaque à fase que consideramos como de criação

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simbólica, que se dá com o início da Feira nos anos 40. Em seguida, analisaremos a fase de consolidação desse universo simbólico, quando a Feira ganha visibilidade para além do grupo social que a originou, seja positiva, pela adesão de pessoas que a concebiam como um espaço autêntico e alternativo de lazer, sociabilidade e cultura, seja negativa, pelo conflito com outros grupos sociais. É, portanto, um período de legitimação e de (re)afirmação de valores, quando o que está em jogo são os diversos interesses de diferentes setores da sociedade relacionados direta ou indiretamente a esse espaço social.

Por último, após termos enfocado a construção e a consolidação da Feira como um patrimônio cultural, passaremos a analisar a transmissão desse patrimônio. É o período em que acontece a transmutação da Feira de São Cristóvão em Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, um pretendido pólo de lazer e turismo da cidade do Rio de Janeiro, quando a Feira deixa de ser quase exclusivamente dos "paraíbas" para ser um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro, incluindo-se como um de seus cartões postais, aberto à adesão de todos, sejam eles: nordestinos, cariocas ou turistas; peões de obra ou engenheiros; porteiros ou morados da zona sul do Rio de Janeiro, empregadas domésticas ou patroas.

Antes de prosseguirmos a análise da Feira como um legado dos migrantes nordestinos no Rio de Janeiro é fundamental apresentar a relação existente entre os pesquisadores e sua pesquisa, pois os observadores são parte obrigatória da observação, não sendo o quadro que eles fornecem objetivo, no sentido de que o sujeito dele estaria ausente;

é, outrossim, o quadro de alguma coisa vista por alguém (DUMONT, 1993 , p. 13). Temos uma estreita relação com o objeto de estudo desta comunicação. A origem desta interação está relacionada à nossa própria condição social de filhos de migrantes nordestinos. Sua consolidação, no entanto, está vinculada à nossa qualificação como antropólogos. Foi a partir do aprendizado desse ofício que pude compreender, mediante o exercício do estranhamento do familiar, a importância da Feira na vida social dos migrantes.

Este espaço social permeou a nossa formação antropológica. No intuito de obtermos material para a análise em pesquisa de campo, desde a graduação, e também durante o mestrado freqüentávamos habitualmente a Feira de São Cristóvão nas noites de sábado e no domingo de manhã. Assim que chegávamos observávamos a movimentação da feira:

quem freqüentava, o que se vendia, os tocadores de sanfona, os dançarinos de forró, os repentistas etc. Depois escolhíamos uma barraca que servia comida típica, como sarapatel ou feijão de corda, de preferência com pouco movimento, para fazer observações e entrevistas2.

Nosso vínculo com a Feira não cessou com a conclusão de trabalhos acadêmicos.

Continuamos a pesquisar a Feira em outras ocasiões, possibilitando o material obtido a produção de diversos artigos, comunicações e um documentário3. Além disso, vez ou outra ainda a freqüentamos, ou por referência ou por reverência, uma vez que ali repousa tanto a nossa origem familiar como alguns destinos do nosso trabalho antropológico.4

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A construção da Feira de São Cristóvão como um patrimônio cultural

A Feira de São Cristóvão surgiu em meio ao processo de industrialização e de urbanização ritmados pela estratégia de desenvolvimento da economia capitalista na sociedade brasileira5. O fenômeno migratório é um dos reflexos dessa nova ordem econômica, sendo que da região Nordeste para a região Sudeste migrou-se cerca de 70% do volume total de migrantes inter-regionais (PORTO, 1987). A sua origem está diretamente atrelada a um dos primeiros atos concretos da migração: a viagem. A longa e difícil viagem era feita através de caminhões denominados “paus-de-arara”. Estes caminhões saiam do

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interior da região do Nordeste e tinham como ponto de parada, no Rio de Janeiro, o Campo de São Cristóvão, onde antigos casarões serviam de abrigo para pernoites daqueles que se dirigiam para São Paulo, enquanto outros aqui desembarcavam. Neste sentido, o Campo de São Cristóvão tornou-se, ao mesmo tempo, ponto final da viagem de “paus-de-arara” e marca de entrada, na década de 40, das primeiras correntes migratórias de nordestinos para a cidade do Rio de Janeiro.

O Campo de São Cristóvão passou então a ser um ponto de encontro e sociabilidade de migrantes de origem nordestina. Logo que chegavam, ali mesmo obtinham informações de emprego e de moradia, bem como eram recepcionados por parentes e amigos quem já estavam no Rio de Janeiro. Nesse encontro de conterrâneos, os migrantes trocavam informações, falavam sobre a terra natal, recebiam cartas e encomendas dos familiares, parentes e amigos que ficaram no Nordeste. Além disso, eles reafirmavam redes sociais e ampliavam o capital acumulado de relações sociais, podendo, a partir do contato com quem tem capacidade de informar e indicar trabalho, conseguir emprego, especialmente na construção civil, na portaria de edifícios, em restaurante ou em casa de família. Além disso, ali podiam ser escolhidos por agenciadores da construção civil que, naquela época, iam especificamente no Campo de São Cristóvão recrutar aqueles que iriam se tornar peões-de- obra. No Campo de São Cristóvão os migrantes também negociavam os produtos que traziam na bagagem, como fumo de rolo, farinha de mandioca e rapadura. Estes produtos eram expostos em lona no chão do campo de São Cristóvão ou ainda em pequenos caixotes.

Ali também se aglomeravam para ouvir repentistas, cordelistas e tocadores de sanfona que em performances peculiares lembravam a distante terra natal. E assim começou a Feira6.

O Campo de São Cristóvão passou então a ser um espaço sintetizador e polarizador das caricaturas dos hábitos culturais dos trabalhadores migrantes de origem nordestina, tornando-se um lugar de desfrute de diversas formas de lazer, criadas sob referências de características regionais. Ali puderam encontrar e vivenciar diversas manifestações culturais do espaço social de origem, como a música, a dança e os hábitos alimentares, reafirmados pelo acesso a produtos típicos, assegurados por esta própria feira. Trata-se, portanto, de um espaço que se estabelece como ponto de encontro de pessoas valorizadas sob a condição de conterrâneos, em contraposição a um suposto anonimato ou impessoalidade. Conforme Bourdieu (1997, p.160), a apropriação de certas porções do espaço por determinados grupos sociais é feita para se dar forma a modos de sociabilidade particulares. Como o espaço social é definido pela exclusão mútua das partes, ou seja, pela distinção entre seus ocupantes e outros agentes sociais, a feira que estava se constituindo no Campo de São Cristóvão permitiu o distanciamento entre diferentes e as aproximações entre iguais, exibindo um jogo de identidades (BARBOSA, 2000b, p.26).

Na feira em formação no Campo de São Cristóvão os migrantes nordestinos se reuniam para festejar e expressar um estado de reencontro, exaltando emoções e sentimentos fundados na convivialidade. Nesse ambiente teatralizavam as relações de familiaridade personalizadas pela constituição de um estado de ser que é dado na experiência ou na vontade de se estar juntos, porque entre iguais. Antigos laços de amizades são reatados e estes amigos, ao se reencontram nesse espaço, procuram aprofundar relacionamentos e vivenciar novas experiências comuns. É na condição de participantes da Feira de São Cristóvão que eles podiam celebrar um estado de comunhão e assim se relaxar, estado facilitado pela afirmada irmandade e, inclusive, pelo consumo, para alguns abusivo, de bebida alcoólica. No tempo e no espaço da Feira, laços sociais se reafirmam, abrindo alternativas para novos encontros e celebração de novas amizades:

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redes sociais que possibilitam trocas matrimoniais e a abertura para novos ambientes, como o de trabalho, o de moradia e o de lazer. Portanto, a Feira de São Cristóvão é o espaço que confere distinção àqueles que se vêem ou querem ser vistos como portadores de uma mesma trajetória coletiva e que desejam, nesta situação, se sentir irmanados por sentimentos subjetivos comuns de uma mesma condição social.

A Feira, nesse sentido, se apresenta como o lugar ideal para se reproduzir a condição social de ser paraíba, uma reconhecida comunidade de condição, negociada sob relações pessoalizadas (família, parentesco e amizade). Ela é, portanto, um lugar criado por eles e para eles, visando o encontro daqueles que investiram para serem entre si e diferencialmente reconhecidos como paraíbas, pois ali mesmo se reuniram e criaram formas próprias de sociabilidade, além de estarem supostamente libertos de desconsiderações sociais. Os que aí se integram, investem no sentido e dão sentido a uma forma de distinção, que lhe é imposta de fora para dentro, segundo usos discriminatórios, e, por tal recurso, restabelecem universos próprios de significação.

Referimo-nos aos investimentos empreendidos no reconhecimento e na conversão de atributos negativos em positividades sociais, na auto-reafirmação como paraíbas, mesmo que seja essa uma categorização genérica, que secundariza as distinções por local ou estado de origem, mas ressalta a definição identitária da condição de desenraizado, que deve então socialmente se assentar ou criar raízes. Empreendimentos que, por sua vez, se contrapõem aos olhares externos que atribuem inúmeras significações providas de discriminações, referindo-se à categoria paraíba não a todo e qualquer migrante nordestino, mas, predominantemente, aos trabalhadores que, no Rio de Janeiro, se afiliaram às ocupações da construção civil, de prestação de serviço em portarias de edifícios e no serviço doméstico.

Os trabalhadores que se deslocaram do interior da região Nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro investiram no (re)estabelecimento de universos próprios de significação, sobretudo pelo empenho na reafirmação de estilos de sociabilidade e outras formas de pertencimento comunitário. A Feira de São Cristóvão, portanto, apresenta-se como o lugar síntese da trajetória social vivenciada por quem passou por um processo de redefinição social ao sair de seu local de origem e inserir-se em um outro universo social.

A consolidação da Feira de São Cristóvão como patrimônio do Rio de Janeiro.

A Feira de São Cristóvão em seu período de construção patrimonial é essencialmente freqüentada pelo trabalhador migrante de origem nordestina que lhe deu origem. Todavia, isto não significa que esse espaço não estivesse nesse período sob o olhar, vigilante e disciplinador, dos agentes dos poderes públicos. Desde sua origem na década de 1940, houve inúmeras tentativas de intervenção na organização da Feira por parte do poder público. A criação da primeira associação da Feira, fundada em 1961, está ligada justamente à reação por parte dos feirantes frente às várias tentativas dos agentes do poder público em coibir e proibir a funcionalidade da Feira no Campo de São Cristóvão. Após uma dessas suspensões, foi formado um grupo para, junto ao governador do Estado da Guanabara, pleitear o retorno da funcionalidade da Feira, surgindo nesse momento a União Beneficente dos Nordestinos do Estado da Guanabara. Entidade que passou, a partir de então, a controlar e organizar a Feira. Além da tarefa organizativa, a associação tinha também o objetivo de manutenção da ordem, controle econômico, cobrança de taxas de aluguel e do uso do solo, bem como da tarefa assistencialista de auxiliar os migrantes recém-chegados ao Rio de Janeiro.

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O controle da Feira por essa associação, todavia, não foi consensual entre os feirantes, que reclamavam da cobrança abusiva de taxas, pois além de ser cobrado o aluguel de tabuleiros sublocados aos feirantes, era exigido o pagamento de anuidade para se poder comercializar na Feira. Esse descontentamento e o interesse de outros grupos em controlar a Feira fizeram surgir, em 1969, a Associação de Proteção aos Nordestinos do Estado do Rio de Janeiro, que tinha basicamente os mesmos objetivos da organização já existente.

Aliás, as formas de domínio exercidas na Feira pelas duas associações não apresentavam diferenciações significativas. As duas associações conseguiam manter seus domínios graças às práticas assistencialistas desempenhadas. Tanto uma como a outra tinham além da função organizativa da Feira, a orientação e indicação do migrante recém-chegado ao mercado de trabalho, bem como o encaminhamento dos mesmos aos albergues mantidos pelo poder público, que os acolhiam e os ajudavam na obtenção de documentos. Ambas, portanto, tinham como marca constitutiva a relação personalizada, prática essa que era mantida graças às articulações político-institucional que ofereciam o suporte para os serviços assistenciais.

Apesar da pretensão dos agentes do poder público em regular a feira que se estabelecia no Campo de São Cristóvão desde a década de 40, foi apenas em 1982 que a Feira de São Cristóvão foi oficializada. A partir daí, houve inúmeros atos administrativos por parte dos agentes da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro visando regulamentar a funcionalidade da feira, como estabelecimento de regras de horário de funcionamento, de padronização das barracas, de uniforme dos feirantes e listas de produtos que poderiam ou não ser comercializados. Isto, todavia, não foi feito sem críticas e oposição por parte dos feirantes. Havendo, inclusive, períodos bastante críticos. Em 1984, por exemplo, os gestores da prefeitura, utilizando-se de um discurso de resgate de tradições, tentaram disciplinar e moralizar, segundo a sua visão, a funcionalidade da Feira, proibindo a venda de certos produtos, inclusive de um dos mais consumidos na Feira: a cachaça. Esta interdição gerou protestos e descontentamentos por parte dos feirantes e freqüentadores.

Sob tais circunstâncias a lei não foi cumprida e acabou sendo revogada.

A relação dos participantes da Feira com os moradores da vizinhança também foi marcada pela tensão. Alguns moradores do bairro, organizados em distintas associações comunitárias, juntamente com determinados comerciantes do bairro estiveram sempre a exigir do poder público uma intervenção no sentido de disciplinar a funcionalidade da Feira ou mesmo solicitar sua transferência para outra localidade7. Argumentavam que a Feira era mal freqüentada, sendo comum a ocorrência de roubos, assaltos e brigas, além de a considerarem anti-higiênica e foco de lixo, ou seja, ela estragava o ambiente familiar, colocava em risco a vida social do bairro e desvalorizava os imóveis dos moradores vizinhos do Campo de São Cristóvão. Não é à toa que um dos principais estigmas pelo qual historicamente passou a Feira e seus freqüentadores é o de ser um lugar de indivíduos que freqüentemente acabavam bêbados, caídos na sarjeta ou metidos em confusões8, contagiando, assim, aquele espaço e gerando discursos contra a Feira. Situações, contudo, que são relativizadas pelos feirantes e freqüentadores da Feira, não sendo razão de desqualificação do ambiente, mas que valorizavam inclusive a bravura do grupo e demonstravam uma certa cultura da valentia, como revela a expressão "cabra da peste"

utilizada por eles.O relato transcrito a seguir de seu José, feirante com mais de 25 anos de Feira, obtido em outro trabalho (BARBOSA, 2001), também demonstra esse tipo de visão:

"Olha só! O cabra chega do nordeste, vem prá cá matá a saudade, ver a nossa tradição... É tudo cabeça chata, da roça. Faz sua bagunça, briga na faca... Mas tudo se

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resolve. Aqui não é lugá pra bacana. O que o bacana vem fazer aqui? Ele não vai querer se juntar, ficá num lugá que só tem paraíba. Quando vem é uma vez ou outra. O freguês mesmo é o trabalhador que pega no pesado na obra... Vem prá cá dançá mais as empregadas... Ai compra um produto da terrinha, come um sarapatel, toma sua cachaça, é isso.”

O tencionamento da relação entre feirantes da Feira de São Cristóvão e moradores, empresários e gestores do poder público se agudizava nas situações em que se colocava como questão a concorrência entre a Feira de São Cristóvão e o Pavilhão de São Cristóvão.

O Pavilhão, que se localiza no centro do Campo de São Cristóvão, foi projetado para ser um centro de exposição da cidade do Rio de Janeiro. Seu apogeu ocorreu nos anos 60 e início da década de 70, quando ocorria exposições e festivais em seu interior. Entretanto, em meados da década de 70, o Pavilhão de São Cristóvão perdeu a sua condição de principal espaço de realização de eventos para o Riocentro. A grandeza e a infra-estrutura deste novo centro de exposição, localizado em uma área em expansão da cidade, conjuntamente à decadência do bairro de São Cristóvão e sua vizinhança com a estigmatizada Feira de São Cristóvão desprestigiaram o Pavilhão como centro de eventos.

Nos anos 80 acabou sendo ocupado como barracão de escolas de samba, até que, em 1991, um vendaval destelhou o imóvel e causou sérios riscos à sua estrutura. O Pavilhão, então, tornou-se abrigo de mendigos e depósito de ferro velho.

Projetos, no entanto, não faltaram para revitalizar o Pavilhão de São Cristóvão.

Estes planos, vislumbrados por diversas administrações da prefeitura do Rio de Janeiro, estão associados ao jogo de interesses de diferentes agentes sociais que estão, direta ou indiretamente, relacionados com este espaço social, como moradores, feirantes, freqüentadores da Feira, políticos e empresários de distintas áreas, como da construção civil, comércio, indústria e turismo.

Dentre alguns desses projetos estava o de tornar o Pavilhão de São Cristóvão um shopping. Em 1992, os gestores municipais da prefeitura cederam a área em comodato à Federação Fluminense das Pequenas e Médias Empresas (FLUPEME), que criaria o

“Pavilhão Center”. O Projeto, todavia, encontrou barreiras para sua efetivação. Para que se viabilizasse, era necessário remover a Feira do Campo de São Cristóvão. Para atrair investidores e, posteriormente, a clientela, era necessário que o ambiente, no qual o shopping ia ser instalado, fosse convidativo para um empreendimento de tal investidura. A localização do “Pavilhão Center” e da Feira num mesmo espaço físico era incompatível, pois os estigmas que recaiam sobre Feira e seus freqüentadores afastariam possíveis comerciantes e consumidores.

Para não contrariar interesses do setor empresarial, a solução vislumbrada pelos gestores do poder público era de remover a já tradicional Feira do Campo de São Cristóvão.

Diversos lugares foram cogitados para abrigar a Feira: Sambódromo, Praça XI, Avenida Brasil, Cais do Porto, Calçadão da Praia de Ramos, Terminal Rodoviário da Barra da Tijuca e até mesmo outras praças localizadas no próprio bairro de São Cristóvão.

Contudo, houve um movimento de reação à transferência da Feira de seu antigo local. E não foi apenas de feirantes e de freqüentadores de origem nordestina. A essa altura de sua história, a Feira de São Cristóvão já atraía um público distinto do que lhe dera origem, ou seja, apesar de seus freqüentadores serem majoritariamente de paraíbas, estes não tinham mais a exclusividade do lugar, como em sua origem. A Feira, especialmente a partir da década de setenta, passou a ser um lugar alternativo principalmente para artistas,

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intelectuais e estudantes universitários, além de ser um espaço privilegiado para se levar turistas estrangeiros que esperavam encontrar na visita ao Brasil um ambiente considerado ainda exótico e peculiar.

Os feirantes, com apoio de freqüentadores de origem nordestina, além dos simpatizantes de outros grupos sociais, fizeram protestos e pressionaram políticos e administradores para a permanência da Feira no Campo de São Cristóvão. Os jornais da época registram esse movimento de resistência. A reportagem do Jornal do Brasil de 23/12/1992 noticia a assembléia dos feirantes que rejeita a transferência da Feira. No jornal O Globo, de 22/05/1993, há uma reportagem sobre um protesto original dos feirantes na sede administrativa da prefeitura, realizado à base de forró, com tocadores de sanfona, zabumba e triângulo. Com a manchete "Nordestinos protestam contra despejo", O Globo, de 05/06/93, noticia o protesto dos feirantes nas escadarias da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, ao som de desafios dos repentistas. Em 11/08/1993, jornalistas de O Globo cobrem a solenidade ocorrida na Câmara dos Vereadores em apoio à reivindicação dos feirantes, destacando a presença no evento de cantores nordestinos consagrados.

Toda essa movimentação, feita de forma organizada e bem atípica em relação a outras manifestações políticas, atraiu a atenção de parte da imprensa, ganhou apoio popular e exerceu forte pressão política sobre os representantes da sociedade responsáveis por deliberar sobre a transferência ou não da Feira do Campo de São Cristóvão. O resultado de toda essa pressão foi a aprovação, no dia 07/10/1993, na Câmara dos Vereadores do Município do Rio de Janeiro, da lei 2052/93 que garantia a permanência da Feira em seu local embrionário.

A continuidade da Feira garantida em lei municipal, aliada a outros fatores, impediu que o projeto do “Pavilhão Center” fosse adiante. Entretanto, em 1997 já havia outra idéia de empreendimento para o Pavilhão: o de transformá-lo numa arena para realização de espetáculos e jogos. Nesse projeto, o imóvel seria demolido e um novo pavilhão seria reerguido. A área vizinha ao Pavilhão, inclusive aquela ocupada pela Feira, também passaria por transformações. Nova ameaça de despejo. Novos protestos. O projeto acabou sendo engavetado, mas ressurgiu em 1999, com uma outra formulação. A versatilidade seria a sua característica principal: além de quadras de esporte, haveria locais para feiras, convenções e eventos. Do lado de fora estava prevista a instalação de um centro comercial e a construção de um hotel. Novamente a proposta colidiu com a Feira dos Paraíbas. Os feirantes, todavia, resistiram mais uma vez. Mobilizaram-se, colhendo abaixo-assinado e fazendo uma grande passeata do Campo de São Cristóvão até o centro da cidade, em direção à Câmara dos Vereadores. Foram vitoriosos novamente.

Todo esse movimento de resistência ainda está bastante vivo na memória dos feirantes, sendo recorrente em suas falas. Ele é cantado pelos violeiros e repentistas como uma verdadeira saga. Enaltecem em sua arte a bravura e a resistência dos que estavam envolvidos no processo, sobretudo dos líderes do movimento de resistência.

Da mesma forma que não existe patrimônio sem poder (Prats, 1997: .35), a demonstração de força nesse período de resistência consolidou a Feira de São Cristóvão como um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. Ela agora não pertencia mais unicamente aos seus originários fundadores, mas cada vez mais a própria cidade, podendo ser desfrutada por quem quisesse ouvir e dançar um bom forró, quem desejasse comer feijão- de-corda, carne-de-sol e beber cerveja e tomar uns goles de cachaça. Nesse período de consolidação patrimonial, a Feira de São Cristóvão ganhou proporções antes já mais visto.

Houve um aumento absoluto do número de barracas, de feirantes e de freqüentadores, o

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horário de funcionamento da Feira se ampliou e ela ainda, algumas vezes, serviu de palco para apresentação de artistas consagrados na música popular brasileira de origem nordestina. Enfim, esse foi um período de ameaças à existência da Feira, todavia a resistência a essa ameaça a consolidou como um patrimônio a ser preservado.

A transmissão de um patrimônio: a transmutação da Feira de São Cristóvão em Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestina

Após o período de construção patrimonial da Feira de São Cristóvão, houve um processo de legitimação e de consolidação desse patrimônio que culminaria posteriormente em sua consagração. A transmutação da Feira de São Cristóvão em Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas em 20/09/2003 representou tanto a consagração desse espaço como um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro como foi um evento ritualístico de transmissão desse patrimônio.

Como visto, a resistência ocorrida frente às tentativas de mudança da Feira do Campo de São Cristóvão aumentou ainda mais o seu prestígio e lhe conferiu ainda mais visibilidade e público. Por outro lado, as queixas dos moradores vizinhos à Feira também se ampliaram. Segundo eles, o aumento indiscriminado da Feira causou ainda mais desordem e suscitou também mais violência. Os agentes dos poderes público, ao perceberem que as tentativas de remoção da Feira do Campo de São Cristóvão não tiveram êxito, deixaram de se contrapor a ela. Mudaram o discurso: como patrimônio cultural, a Feira tinha que ser mais bem aproveitada e protegida, havendo a necessidade de eliminar de vez os seus antigos estigmas, sendo necessário para isso um maior controle e regulamentação por parte do poder público. A alternativa dos gestores do poder público não foi mais de antagonizar a Feira ao esqueleto do já assombrado Pavilhão. O projeto não poderia ser de oposição entre ambos, mas sim de complementaridade. O Pavilhão, assim, teria um destino mais digno e a Feira, diferentemente do que ocorrera nos últimos anos, não mais seria ameaçada de despejo. A solução encontrada então seria a da transportação da Feira para o interior do Pavilhão.

O projeto, no entanto, não consistia apenas no deslocamento da Feira, haveria ainda uma redefinição daquele espaço social. O Pavilhão não abrigaria a antiga Feira, mas o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, um pólo de turismo, eventos culturais e lazer de grande dimensões, atraindo um público de origem social distinta daquele que deu origem à Feira de São Cristóvão. O projeto em seu nível mais amplo era de controlar a Feira e inseri-la nos códigos de urbanização racionalista, fundados em livro de boas maneiras e de boa forma consignada nas posturas municipais coetâneos da modernidade.

A proposta da criação deste centro, aparentemente, contemplou um interesse triádico: o dos feirantes, que continuariam a trabalhar no Campo de São Cristóvão, mantendo suas origens; o dos moradores do bairro, que contariam com um espaço mais disciplinado e, assim, menos ameaçador à moral e à ordem da vida social, uma vez que se realizaria em um ambiente fechado e controlado, tornando a Feira invisível e enclausurada;

e o do poder público, que teria dado um fim a uma polêmica antiga, que tanto atormentou diferentes administrações, além, é claro, de contabilizar rendimentos políticos para aqueles que participaram da idéia deste novo empreendimento, bem como econômicos para quem estivesse presente nessa parceria, como os empresários da construção civil.

Desse modo, apesar dos contentamentos mencionados e do glamour que um empreendimento de tal investidura suscita, existiram opiniões discordantes. Em relação aos moradores de São Cristóvão, houve resistência por parte daqueles que não concordaram

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com a decisão da cessão do espaço do Pavilhão para a Feira. Por seu turno, a parte que tem sido apresentada como a vencedora nesta longa batalha - os feirantes e freqüentadores da Feira - não apresentou um discurso homogeneamente vitorioso e empolgante. Se existiu entusiasmo por parte de alguns, houve reticência, desconfiança ou mesmo descontentamentos por parte de outros.

Os feirantes que foram favoráveis à passagem da Feira para o interior do Pavilhão foram aqueles que incorporaram o discurso da mudança a partir da passagem para uma nova posição e condição social, a de micro-empresários e não mais de feirantes. Este grupo é constituído principalmente pelos feirantes que possuíam as maiores barracas da Feira e que eram os lideres das manifestações de resistência contra a remoção da Feira do Campo de São Cristóvão, estando ligados a uma esfera de poder associativa. Os feirantes contrários à passagem da Feira para o interior do Pavilhão eram principalmente pequenos barraqueiros que acreditavam que a Feira ao tornar-se Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas perderia sua autenticidade, pois ficaria estilizada e elitizada, trazendo uma série de custos econômicos adicionais. Houve descontentamentos também entre os freqüentadores que tinham com a Feira uma estreita relação de pertencimento, os paraíbas, ou entre aqueles que buscavam na Feira um tipo de lazer peculiar e distinto de outras formas de diversão.

Todavia, esses grupos de descontentes não conseguiram acumular forças para resistir à mudança, pois eram desprovidos de uma organização que os conduzissem à uma resistência mais efetiva, e acabaram, portanto, se submetendo à uma nova situação ou foram excluídos do novo espaço.

A criação do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas representou não só a pretensão de codificar o espaço de uma nova forma, mas também torná-lo um empreendimento cuja finalidade seria agregar valor de modernidade e universalidade. A Feira, na sua consagração como um patrimônio a ser transmitido a todos, tinha que ganhar o mundo e atrair pessoas pertencentes aos mais variados grupos e classes sociais, não podendo ficar restrita ao grupo social que lhe deu origem e sustentabilidade.

O dia de inauguração do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas foi marcado por um mega-evento, sendo notícia antes, durante e após o famoso acontecimento.

O dia 20/09/2003 foi a consagração da Feira de São Cristóvão como um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. A cerimônia oficial ocorreu em um dos dois palcos no Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Nesse palco discursaram o presidente da Cooperativa dos Comerciantes da Feira de Tradições Nordestinas do Campo de São Cristóvão , o prefeito da cidade, o secretário de obras, o vice-prefeito, o Governador do Estado de Alagoas e um cordelista da Feira.

As práticas cerimoniais oficiais da inauguração do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas se assemelham aos rituais de passagem e de iniciação praticados em outros eventos, isto porque a escolha de um cerimonial é orientada pela busca de similaridade de significados e a seleção de ações é feita segundo os protocolos disponíveis em um repertório comum ( JAKOBSON, 1956). Os discursos políticos, os agradecimentos, as homenagens, o cortar fitas, o desvelar de estátuas e a benção religiosa são rituais geralmente acionados para institucionalizar e conferir significados aos eventos. São ações consagratórias e legitimidadoras de algo e representavam a realização de promessas e efetivação de projetos, sendo marco de fundação ou refundação, simbolizando a criação e/ou a passagem de uma coisa para outra, de uns para outros, no tempo, no espaço, na forma, nos sentidos e nas suas finalidades.

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Em regra, estas cerimônias são celebradas por autoridades imbuídas de legitimidade e representação, seja política, associativa ou religiosa,. Mesmo cada um tendo papéis distintos, todos cumpriam um ritual de legitimação do próprio evento pela representatividade que gozavam. E mais: eram eles mesmos signos icônicos por representarem nitidamente as idéias do projeto. O prefeito, seu vice e seus secretários representavam a ordem, o controle e a organização, além da própria cidade acolhedora dos migrantes nordestinos, o Rio de Janeiro. O Governador de Alagoas representava o Nordeste e os nordestinos. O velho cordelista, por sua vez, simbolizava a história e a tradição da Feira, como fica exposto em sua emotiva narração, onde relembrou o início da Feira e todo o seu processo de legitimação e consolidação. O presidente da associação dos feirantes, por seu turno, se confundia com a própria ambigüidade do projeto de criação do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Pois ao passo que demonstrava organização, era ele mesmo sinal de irreverência. Ambigüidade que se expressou na sua forma de vestir. Além de ser o único dos oradores que usava chapéu de sertanejo, era o único também que vestia terno, gravata e usava abotoadura de ouro. A combinação de vestimentas de caráter oficial e regional é representativa do hibridismo entre o moderno e a tradição e entre o regionalismo e a universalidade que pautou não só o projeto de transmutação da Feira como a própria história da Feira. Enquanto o terno traduzia o universalismo, a formalidade e a ordem desejada, o chapéu de couro revelava o seu caráter regionalista e informal.

Por sua turno, é necessário relativizar a leitura de que o processo de modernização ocorrido na Feira eliminou as tradições, pois, se esse movimento tencionaram o local através da imposição de regulação de padrões nas organizações sociais e culturais seletivamente autônomas, provocaram, por outro lado, a reafirmação da tradição no moderno, através de lutas de resistência, declaradas ou veladas. Hoje, passado um bom tempo depois da inauguração do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas ele está muito longe de ser o que foi idealizado. Se houve exclusão, e não foram poucas, inclusive de antigos feirantes que tiveram suas barracas substituídas por elegantes restaurantes, cujos donos não tinham a mínima referência com a Feira, também houve movimentos que impediram uma ruptura radical com uma forma peculiar de se expressar e de viver. A organização modernizadora não encontrou eco por toda parte e por muito tempo e teve que ceder espaço a antigas formas de expressão. O espaço continua, senão do mesmo jeito, uma feira no sentido da confusão de cores, odores, sons e estilos, sendo ela própria um legado dos migrantes nordestinos para a cidade do Rio de Janeiro.

Conclusão

O objetivo de analisarmos a Feira de São Cristóvão a partir da perspectiva sociológica que investe nos estudos sobre patrimônio cultural foi de compreender, sob tal ótica, os variados e complexos princípios de afiliação social dos trabalhadores que migraram da região Nordeste para o Rio de Janeiro. Ao se estabeleceram em um outro universo social, esses trabalhadores produziram novos significados valorativos e incorporaram novas práticas culturais a antigas formas de pensar e agir socialmente. A Feira de São Cristóvão, nesse sentido, seria o principal símbolo do processo de redefinição social desses trabalhadores, pois foi intrinsecamente definido em seus princípios e em sua consolidação representar simbolicamente os nordestinos que migraram para o Rio de Janeiro.

A principal virtude de um símbolo é a sua capacidade para expressar de uma forma sintética e emocionalmente efetiva a relação entre idéias e valores de um grupo identitário

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(Prats, 1997:.29). Todavia, toda formulação de identidade é unicamente uma versão dessa identidade, que representa essencialmente a busca da continuidade do grupo social em questão, podendo existir diversas versões que podem se articular em relação de complementariedade ou oposição, dependendo dos valores, dos sistemas de crenças e dos interesses em jogo. As sociedades sendo dinâmicas, os conteúdos identitários também os são, e esse dinamismo implica mudanças de significados, havendo ajustamentos a novos valores e idéias, com supressão de determinados elementos, incorporação de outros e modificação de outros tantos. As versões de identidade são, portanto, uma construção social dinâmica, ainda que elas tenham um razoável nível de durabilidade e os ajustes para reorientar a sua definição sejam graduais.

Por sua vez, se as representações identitárias não podem estar alijadas do pensamento social, as representações patrimoniais também não, uma vez que elas são representações simbólicas dos valores e das idéias dessas mesmas versões de identidade.

Nesse sentido, as relações sociais e as manifestações culturais existentes na Feira de São Cristóvão não podem, e não deixam, de corresponder às afiliações sociais do grupo que lhe deu origem: os migrantes nordestinos. Logicamente, há, portanto, na Feira de São Cristóvão, uma dinâmica de significações permanente de valores e de práticas sociais que coincidem com a intensa interconexão de diferentes universos sociais vivenciados por esse grupo social, havendo inclusive conseqüentes alterações de versões identitárias (nordestino, migrante, migrante nordestino, paraíba, cearense, pau-de-arara, carioca, favelado, trabalhador etc). Nesse sentido, a eficácia simbólica da Feira de São Cristóvão está ligada diretamente à capacidade de se reorientar contextualmente, conforme os discursos das versões de identidade em jogo, uma vez que, mesmo sendo hegemônicas na Feira as relações sociais entre os paraíbas, há outras formas de relações, conforme os diferentes agentes sociais que dividem esse espaço, as variadas configurações articuladas entre eles, os interesses em questão e os sentidos em ação. Desse modo, ao se analisarmos as relações sociais existentes na Feira de São Cristóvão, pode-se descobrir a existência de mais de uma feira, no sentido de um espaço diferenciado e multidimensional, onde pode coexistir diferentes formas que uma feira pode assumir e, paradoxalmente, permanecer distintamente como uma única e singular feira, que tem como sua característica principal ser um símbolo e um legado dos migrantes nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro

Referências Bibliográficas

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PRATS, Llorence. Antropologia y patrimonio. Barcelona. Ariel : 1997.

1 A Feira é realizada em São Cristóvão, na zona norte do Rio de Janeiro, antigo bairro imperial que abrigou a família real no século XIX e que se consagrou, até meados do século XX, como bairro industrial.

2 A dissertação que desenvolvi teve como objeto de estudo a articulação casa e trabalho como estratégia de reprodução social de migrantes nordestinos que passaram por um processo de descampesinação, caso típico de empregadas domésticas e empregados de edifício que residem no próprio emprego (Barbosa, 2000a).

3 O documentário "Turmalina Paraíba", que está em fase de edição, é um projeto realizado em parceria por Fernando Cordeiro Barbosa, Nicolas Alexandria, Rico Cavalcante, Rosinalva Alves e Plural Filmes (http://www.pluralfilmes.com.br).

4 O objeto de estudo que estou desenvolvido por Fernando Cordeiro no doutorado da UFF refere-se à análise da construção, por parte dos trabalhadores que se deslocaram do interior da região Nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro, de outras referências sociais. Trata-se, assim, de uma investigação e reflexão sobre os investimentos dos trabalhadores que, em situações e redes sociais específicas empenharam-se na reafirmação de estilos de sociabilidade e outras formas de pertencimento comunitário. Já o trabalho de Doutorado de Nicolas Alexandria, desenvolvido na Unicamp, é uma reflexão biográfica sobre a obra de Luís da Câmara Cascudo e suas vinculações ao acervo imaterial do folclore e da cultura popular do nordeste disperso Brasil afora e sintetizado em obras deste seminal autor.

5 Estudos etnográficos sobre a Feira foram realizados por Pandolfo (1987) e Morales (1993 ).

6 Há diferentes construções de mitos fundadores da Feira, a mais recorrente está ligada à figura de João Gordo. João Batista de Almeida foi um dos tantos paraibanos que migrou para o Rio de Janeiro na década de 40 para trabalhar na construção civil. Ao receber uma indenização, por ter sofrido um acidente de trabalho, retornou a terra natal para trazer produtos “típicos nordestinos”. Estabeleceu-se, então, aos domingos, debaixo de uma árvore no Campo de São Cristóvão e passou a vender seus produtos. Foi o começo da Feira.

7 É necessário esclarecer, todavia, que nem todos os moradores do bairro de São Cristóvão percebiam a Feira negativamente, sendo muitos inclusive seus freqüentadores. Da mesma forma, as lideranças das associações de moradores não apresentavam um discurso homogêneo contrário a funcionalidade da Feira no bairro, apesar de ser consensual a visão de necessidade de sua regulamentação por parte dos agentes do poder público.

8 Nesse sentido, são significativas as reportagens: Feira dos Nordestinos: cordel, carne-seca, assaltos e brigas, de O Globo, de 25/07/1985, e Tumulto envolve 200 na feira, do Jornal do Brasil, de 26/01/1987.

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