TEMPO-DOBRADIÇA:
DA CÂMARA OBSCURA À AMPULHETA
Denise Valeria Helfenstein1
Palavras-chave: Arte contemporânea. Fotografia pinhole. Câmara obscura. Temporalidade.
Vídeo.
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa trata de questões suscitadas na trajetória de elaboração da poética visual Tempo-dobradiça: paisagem na garrafa, enfocando diferentes possibilidades de registro do tempo nas imagens técnicas. A partir do trabalho com fotografia pinhole, investigam-se relações entre câmara obscura, captura de longa exposição e a ampulheta como instrumento de medição do tempo, em oposição à lógica dos aparelhos fotográficos convencionais, o instantâneo e o relógio de unidades de segundo. Tais relações se apresentam como fundadoras de um processo artístico materializado em projeção e vídeo, teoricamente articulado.
À medida que as tecnologias possibilitam a obtenção de fotos e vídeos de maneira cada vez mais “pronta”, mais automatizada, com uma infinidade de recursos como filtros e efeitos pré-configurados de fácil utilização, a elaboração das imagens técnicas torna-se cada vez mais acessível a todos. Ao mesmo tempo, pode haver uma perda do potencial reflexivo peculiar a tais meios, considerando que os automatismos distanciam o operador do conhecimento de como a imagem se faz no interior dos aparelhos.
Através fotografia pinhole, registros sonoros e, posteriormente, o vídeo, deparei-me com novas e importantes questões ligadas ao tempo da experiência e seus modos de registro.
A câmera pinhole não possui a lógica do relógio ou do cronômetro em seu interior. O que determina o tempo de exposição da imagem é o abrir e fechar manual de seu orifício. O tipo de registro temporal que elaboro através dela não recorta o tempo em frações de segundo, não
1 Mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV-UFRGS. Docente nos cursos de Artes Visuais e Tecnologia em Fotografia da Universidade Feevale.
congela o instante preciso (ou ‘pregnante’), mas abre-se a um prolongamento, uma expansão, envolvendo uma quantidade maior de tempo.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Nesta pesquisa, Jochen Dietrich (Câmara obscura. In: Porto Arte, Porto Alegre, v.9, n.
17, p. 61-72, nov. 1998) embasa os estudos sobre câmeras obscuras e câmeras fotográficas artesanais, enquanto promotoras de uma participação maior e mais consciente do operador em relação a todo processo de constituição da imagem.
A forma como se determina a obtenção da imagem na pinhole é posta em relação aos procedimentos dos primórdios da fotografia, quando as captações requeriam períodos prolongados de diversos minutos, ocasionando indefinição no registro de objetos móveis e o efeito ‘flou’. Os avanços da fotografia se deram no sentido de aumentar a sensibilidade das emulsões, e com a rapidez dos novos filmes, o controle mecânico do tempo tornou-se indispensável. Esta relação histórica, enfocando questões da temporalidade no fotográfico, estabelece-se no estudo de autores como Aaron Scharf (Arte y fotografía.
Madrid: Alianza, 1994), Annateresa Fabris (Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004), Jacques Aumont (O olho interminável:
cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004) e Michel Frizot (A New History of Photography. Köln: Könemann, 1998).
Considerando que o processo de obtenção do instantâneo fotográfico dialoga com a unidade de tempo do relógio mecânico (o segundo e suas frações), lógica incorporada pelos aparelhos em seu funcionamento interno, foram investigadas questões ligadas à diferentes concepções do tempo a partir dos estudos de G. J. Withrow (O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993). Através desta relação, e por oposição, encontro pertinência entre minhas proposições e um tipo diferente de medição do tempo: o da ampulheta. Esta aproximação define a ideia para a produção visual, decorrente e interligada à pesquisa teórica.
A partir disto, novas relações com a temporalidade se estabelecem, considerando as
Deleuze (Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999), onde todo passado coexiste em cada presente. Nesta poética, a ação desenvolvida no tempo é fixa em uma imagem, onde o trabalho da luz é o visível que aponta para o invisível: a duração em que as imagens se constituem.
3 METODOLOGIA
Esta pesquisa consiste em uma investigação teórico-prática, que parte de questões suscitadas em uma trajetória de trabalho com câmeras pinhole, e acompanha seus desdobramentos através da projeção e do vídeo. A prática visual com tais dispositivos é o contexto de emergência das questões que geram pesquisa, num pressuposto onde a busca teórica e plástica são inseparáveis, uma movendo e alimentando a outra. Nisso, o estudo das abordagens da arte e da fotografia constituem-se como principais aportes investigativos. A poética visual aqui apresentada é decorrente das relações de pesquisa estabelecidas em minha trajetória artística e, mais de forma mais específica, nas questões abordadas neste presente trabalho.
4 RESULTADOS
A investigação teórico-prática resulta na poética em vídeo Tempo-ampulheta:
paisagem na garrafa #1, a ser apresentada em modo de repetição contínua, em tela écran na posição vertical (fig. 01, fig. 02 e fig. 03). Uma série de vídeos está sendo constituída, a partir dos mesmos procedimentos de elaboração, porém utilizando imagens diferentes para as projeções.
Também se apresenta como resultado o artigo Tempo-dobradiça: da câmara obscura à ampulheta, a que este resumo se refere. O texto será publicado na próxima edição da revista Visor, da Pinacoteca Feevale.
Figuras 01, 02 e 03: Tempo-ampulheta: paisagem na garrafa #1(Stills de vídeo)
5 DISCUSSÃO
Na série de vídeos Tempo-ampulheta: paisagem na garrafa, garrafas e potes de vidro vazios vão sendo preenchidos, de modo gradual e contínuo, por um pequeno fluxo de areia clara e fina, que se precipita no interior do recipiente como uma pequena cascata. A areia, aos poucos, vai ocupando o interior da garrafa, e nisso também vai se tornando uma espécie de anteparo para a imagem que ali se forma: uma paisagem, um tanto nebulosa, provinda da projeção de um diapositivo colorido. Conforme a areia preenche o interior do volume, a paisagem projetada se completa.
No estreitamento do vidro, a ampulheta tem um lugar de passagem, de articulação entre o tempo que passou e o tempo que está por passar, onde se dita um ritmo. Nisso, aproxima-se simbolicamente à passagem da câmara obscura, ao furo que regula a entrada de luz - e também ao tempo de formação da imagem. O tempo da passagem é aquele que transforma a experiência em algo visível, uma imagem.
A passagem da ampulheta, de um espaço a outro, é tal como o orifício da câmera, uma via que une dois espaços diferentes (interior e exterior, claro e escuro) – e, ao mesmo tempo, os separa. Em uma espécie de agenciamento do tempo, a câmera se torna um lugar de articulação de sentido: a vivência do tempo que se transforma em imagem.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constituição desta poética em vídeo, a partir da projeção de fotografias sobre um fluxo de areia em um recipiente, provém diretamente dos processos de trabalho com câmeras obscuras que realizo, e foram constituídos como uma espécie de alegoria deste processo. As imagens projetadas são da série A captura da paisagem (2010), e são uma espécie de prolongamento de suas pesquisas, onde se articulam dois tempos diferentes: o da obtenção dos registros (tempo da captura, ação do artista) e o tempo dado pela imagem fixa projetada, como um resultado. Tempos diferentes, de naturezas distintas - e a tentativa de colocar-lhes uma dobradiça - para juntar-los, sem tirar-lhes a mobilidade. Unem-se duas pontas de concepção e percurso, na trama que envolve o tempo no giro da ampulheta, onde a sucessão se enlaça e os tempos co-habitam.
REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.
DIETRICH, Jochen. Camara obscura. Porto Arte, Porto Alegre, v. 9, n. 17, p. 61-72, nov.
1998.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1999.
FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
FRIZOT, Michel. A New History of Photography. Köln: Könemann, 1998.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Campinas:
Papirus, 1996.
SCHARF, Aaron. Arte y fotografía. Madrid: Alianza, 1994.
SCHÜLER, Donald. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trajeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo – 1893/1889. Rio de Janeiro: Rocco/Funarte, 1995.
WITHROW, G. J. O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
HELFENSTEIN, Denise. A Captura da Paisagem: entre apreensões fotográficas por câmera obscura e registros sonoros. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.