JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI
A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA PUBLICIDADE DE PERFUME
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
JOSÉ RODRIGO PAULINO FONTANARI
A IMAGEM DO CHEIRO: O PARADOXO NA PUBLICIDADE DE PERFUME
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação do(a) Prof.(a), Doutor(a) Norval Baitello Júnior.
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTO
Ao CNPq – Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Ao Prof. Dr. Norval Baitello Jr., orientador sempre presente e entusiasta com esse orientando.
Á grande amiga, Marcela Benvegnu que se tornou figura mestre nesse percurso acadêmico com sua leitura atenta e carinhosa com os meus delírios e seu entusiasmo mesmo nos momentos mais complicados desse percurso acadêmico.
Ás amigas inesquecíveis que fiz durante este mestrado, Cymara Apostólico, Cynthia e Priscila Magossi. A elas meu muito obrigado.
A Tânia Cosci Nascimento e Maria Elisa Granschi, se cheguei aonde cheguei é porque me apóie sobre ombros de gigantes.
EPÍGRAFE
FONTANARI, José Rodrigo Paulino. A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume. Dissertação (Mestrado): Departamento de Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica, 2008.
A presente pesquisa aborda a modalidade comunicativa que denominamos “comunicação olfativa”. Compreendemos o perfume como forma de mídia. Investigamos a história do perfume em diversas civilizações e seu uso nos rituais. Inserimos algumas descobertas a respeito do olfato na comunicação do ser humano desde seus primeiros anos de vida. Uma vez que a civilização contemporânea tem privilegiado os sentidos de distância (a visão e a audição) em detrimento dos sentidos de proximidade (o olfato e o paladar), procuramos verificar como se dá a tradução do perfume para o código visual. Para tanto, são analisadas peças publicitárias veiculadas nas revistas femininas Claudia, Elle, Marie Claire e Nova no período de 1993 a 2004. O trabalho apóia-se nos conceitos de “ecologia da comunicação” proposto por Vicente Romano, de etologia da comunicação de Boris Cyrulnik e também de mídia primária, secundária e terciária de Harry Pross. Na mesma proporção do padecimento dos sentidos de proximidade, observa-se o esmaecimento dos vínculos do afeto. Para a elaboração desta pesquisa, elegeu-se a Semiótica da Cultura, que entende o corpo, o perfume e o olfato como textos da cultura possuidores de grande capacidade informativa em sentido amplo. Por meio dessa semiótica, serão constituídos os paradigmas para focar o objeto de estudo e alinhavar as três esferas de pesquisa (corpo, perfume e olfato). Essa tríade revela-se como uma das possíveis maneiras de manter os vínculos comunicativos interpessoais de proximidade.
The current research approaches the comunicative modality we name: “olfactory communication”. We understand the perfume as a media form. We have investigated the history of the perfume in several civilizations and its use in the rituals. We have inserted some discoveries regarding the smell in the communication of the human being since their early age. As the contemporary civilization has privileged the senses of distance (the sight and the hearing) to detriment of the proximity senses (the smell and the taste), we have attempted to verify the translation of the perfume for the visual code. In such a way, therefore executives advertising propagated in the feminine magazines Claude, Elle, Marie Claire and Nova in the period of 1993 the 2004 are analaysed. The work is supported in the concepts of “ecology of the communication” proposed by Vicente Romano, of the ethology of the communication by Boris Cyrulnik, as well the concepts of primary, secondary and tertiary media of Harry Pross. In the same proportion of the suffering of the proximity senses, we observe of the bonds of the affection. To carry out of this research, Semiotics of the Culture was chosen, wich understands the body, the perfume and the smell as cultural possessing texts of great informative capacity in ample direction. Through this semiotics, the paradigms will be constituted as object of study object and to tack the three spheres of the research (body, perfume and smell). This triad shows as one of the possible ways to keep the interpersonal communicative bonds of proximity.
INTRODUÇÃO...10
CAPÍTULO I UMA PEQUENAHISTÓRIA DO PERFUME 1.1 Um pouco de história: do faro ao olor...14
1.2 A história do perfume...20
1.2.1 A Antiguidade ...20
1.2.2 A Idade Média e o Renascimento...26
1.2.3 Século XVIII ...28
1.2.4 Do Século XIX até os dias de hoje...29
1.3 Perfume e Religião ...34
CAPÍTULO II OS SENTIDOS NA COMUNICAÇÃO 2.1 Comunicação e seus sentidos ...42
2.2 A ambiência comunicacional...49
2.3 Corpo e perfume: o perfume como mídia...51
2.4 Perfume e a imagem do cheiro ...58
CAPÍTULO III CORPO, PERFUME E OLFATO: TRÊS FOCOS PARA UMA COMUNICAÇAO INTERPESSOAL DE PROXIMIDADE 3.1 Comunicação olfativa ...66
3.2 Por uma arqueologia olfativa...76
3.3 Fisiologia olfativa: o processo de decodificação da mensagem olfativa ...81
3.4 Olfato e sexo...84
3.5 Olfato e civilização...98
CAPÍTULO IV A IMAGEM DO CHEIRO: UMA ANÁLISE DA PUBLICIDADE DE PERFUME 4.1 Das escolhas ...109
4.2 O que dizem as imagens? ...111
4.3 Imagem: superfície refinada ...121
4.4 Metonímia: uma parte que fala pelo todo...124
4.5 O corpo reconhecido...129
4.6 A civilização do olfato...131
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa nasce de uma incessante observação deste pesquisador sobre
os textos publicitários que a mídia brasileira veicula. Tal olhar sobre esse mundo segue
motivado pela grande importância e desempenho da publicidade na sociedade contemporânea.
Atualmente, os meios de comunicação, juntamente com a publicidade, tornaram-se
verdadeiros balizadores do gosto e do desejo de uma sociedade e de uma cultura. Numa
investigação preliminar, constata-se que, na maioria das vezes, os anúncios impressos de
perfume contêm uma possível representação do cheiro. O cheiro propriamente dito, isto é, a
imagem olfativa que convida a conhecer a fragrância e a essência do perfume, não aparece. A
partir dessa observação, investigaram-se essas representações elaboradas pelos anúncios, na
busca de compreender esses cenários. Esta pesquisa também se preocupa em discutir se essas
representações são dotadas de algum traço mimético (verbo-visual) que as remetam ao cheiro,
ou se esses cenários surgem simplesmente como suscitadores para o consumo. Nesse sentido,
o projeto de pesquisa visa lançar luz sobre essa zona de opacidade, representação do cheiro
presente na comunicação contemporânea. Discute-se, sobretudo, a questão da comunicação
por meio de um sentido corporal de proximidade: o olfato. Direcionamos nossos estudos
sobre a olfação e sua capacidade comunicativa para o mundo humano e para o
estabelecimento de uma comunicação interpessoal de proximidade.
A dissertação órbita em torno de três esferas: publicidade, perfume e comunicação
olfativa. Uma vez que não há, até o presente momento, nenhuma pesquisa que trate
integradamente desses três temas, partimos dos estudos isolados sobre cada um dos assuntos.)
Quanto ao estado da arte da presente pesquisa, muito pouco ou nada se tem escrito
em relação à comunicação de proximidade, sobretudo no que se refere ao olfato e à
mencionado por outras áreas do saber, como a Etologia, com destaque para Borys Cyrulnik,
de quem cito a obra Os alimentos do afeto. No entanto, não é somente nessa obra, que se
encontrarão vestígios capazes de sustentar a pesquisa. Entre outras, merecem também
destaque Do sexto sentido, Sob o signo do Afeto e Memória do macaco, palavra de homem.
Cabe ressaltar que nesta pesquisa não haverá referência à obra literária de Patrick
Süskind, Perfume – A História de um assassino. O livro é a odisséia de um anti-herói
convertida em uma questão de sentido: nascido em um mercado na Paris de 1738, em meio a
restos de peixe e dejetos diversos, Jean-Baptiste Grenouille não tem cheiro. Pelas inúmeras
pesquisas que se basearam nesse livro, entendemos desnecessário tratar dessa mesma obra.
Acreditamos que a opção por novos caminhos literários possibilitaram enxergar a matéria de
outro prisma. Esperamos, assim, contribuir mais para essa área multi-interdisciplinar de
pesquisa denominada Semiótica da Cultura.
Pretendemos lançar luz sobre a comunicação humana enfatizando um dos sentidos
de proximidade, o olfato. Portanto, este trabalho dedica-se a estudar o sentido do olfato e do
perfume para a comunicação interpessoal de proximidade e o sentido da comunicação no
texto publicitário de perfume. Para tanto, selecionamos 29 peças publicitárias de perfume
feminino veiculadas de janeiro a dezembro, ao longo dos anos de 1993 a 2004, em revistas
femininas brasileiras. A seleção de 29 peças dentro de um universo de mais de 1000 anúncios
de perfume feminino deve-se à sua representatividade, uma vez que os anúncios escolhidos
são aqueles que apresentam expressivo conteúdo de elementos icônicos e verbais que
possibilitam verificar um dos objetivos desta pesquisa, que é saber se há ou não uma justa
amarração entre o cheiro do perfume garantido pelos elementos químicos que o compõem, e a
representação imagética que a publicidade faz do perfume, ou seja, uma possível
representação do cheiro.
Levou-se em consideração também o fato de que elas dedicam a maior parte do
sobretudo de perfume feminino. Optou-se por estudar a mídia impressa pelo seu caráter mais
intimista e pela permanência propiciada pelos tais veículos em comparação aos audiovisuais.
O método predominante na fase de observação empírica será o dedutivo, partindo
de vários princípios tidos como verdadeiros para chegar àquilo que se quer provar. A partir do
conhecimento de outros, buscaremos o conhecimento particular. Segundo esse método, as
explicações científicas devem ter uma forma de dedução lógica.
Entre os procedimentos metodológicos utilizaremos a documentação indireta
obtida através de pesquisa bibliográfica, a partir de referências publicadas em livros, revistas
especializadas e sites na Internet, analisando dados científicos existentes sobre a publicidade,
o perfume e o olfato como importante meio de comunicação de proximidade no ser humano.
Fez-se um mapeamento empírico dos textos publicitários a fim de revelar traços miméticos
das imagens do cheiro com o cheiro do perfume propriamente dito. Para tanto, utilizarmos
ferramentas conceituais apresentadas nos fundamentos teóricos para cortar, analisar, decifrar,
inquirir e, se possível, até interpretar os dados empíricos encontrados.
As representações dos cheiros veiculadas nos anúncios publicitários serão
analisadas como textos culturais, tais como os define Ivan Bystrina em Tópicos de Semiótica
da Cultura. O autor considera que “textos são complexos de signos com sentido”. Os textos
em si preenchem uma função comunicativa, uma função de participar, de informar, no sentido
amplo da palavra. Mas eles preenchem também outras funções, como por exemplo a função
estética ou emotiva, a expressiva, ou ainda outras funções sociais” (BYSTRINA, 1995, p.4).
Portanto os paradigmas norteadores deste trabalho virão da Semiótica da Cultura.
Será por meio dessa ciência que buscaremos concatenar as três esferas (publicidade, perfume
e comunicação olfativa).
Procuramos abordar, primeiramente, um pouco da história do perfume, e de como
os sentidos, em especial o olfato, têm servido como meio de comunicação para o homem).
transformações e adaptações pelas quais esse sentido passou com a evolução da espécie
humana e a passagem para uma vida social.
No capítulo I, “Uma pequena história do perfume”, abordamos os principais
momentos históricos que marcaram a evolução e a transformação da elaboração dos odores
desde os sistemas mais rudimentares até os processos mais sofisticados e industriais.
Juntamente com essa evolução, procuramos demonstrar como a cultura humana vem
construindo sua relação com o mundo dos odores. Para tanto, revelamos como os
perfumes/odores servem de elo entre os mundos pagão e religioso
Em “Os sentidos na comunicação”, segundo capítulo da pesquisa, procuramos
expor os paradigmas da Semiótica da Cultura, que busca estudar o sentidos da comunicação e
os sentidos na comunicação. É nesse modelo que todo o texto se baseia, buscando demonstrar,
de acordo com o pensamento do semioticista Harry Pross, que o corpo é a primeira mídia,
servindo muitas vezes de suporte de significação para o perfume.
O capítulo III, “Corpo, perfume e olfato: a tríade para uma comunicação
interpessoal de proximidade”, traz um estudo do sentido do olfato desde o processo de
decodificação do cheiro pelo nariz até as transformações culturais pelas quais esse sentido
corporal passou com o processo de evolução da espécie humana para a vida em sociedade.
Por fim, no capítulo IV, “A imagem do cheiro: uma análise da publicidade de
perfume”, observamos como o texto publicitário lida com esse sentido corporal, que não
aparece de maneira explícita no anúncio, e como recorre de maneira indireta aos recursos
CAPÍTULO I
UMA PEQUENA HISTÓRIA DO PERFUME
1.1 Um pouco de história: do faro ao olor
Ao propormos fazer uma viagem à história do perfume e da higiene não
pretendemos ser totalmente fiéis à linha cronológica. Tomamo-la somente como base para a
elaboração de um panorama histórico sobre o assunto e como os costumes de banhar-se e
perfumar-se tornaram-se um ritual nas diversas sociedades. Para isso, elaboramos um recorte
em períodos, considerando os principais momentos que possibilitam pensar o perfume como
mídia do homem desde seus primórdios.
Nesse sentido, a questão do cheiro passa pela história da higiene do corpo. A
limpeza do corpo confunde-se com a utilização dos cosméticos, dos perfumes e das roupas,
pois consagra o olhar e o olfato. Seja em que período for a limpeza, a higiene tem como
objetivo privilegiar a aparência.
Durante vários séculos, especialmente entre os séculos XV e XVII, quando grande
parte da Europa era assombrada pela peste, a higiene do corpo era tida como meio facilitador
do contágio, pois acreditava-se que o corpo era um organismo poroso e que, à medida em que
fosse feita a higienização, os poros se abririam e facilitariam a contaminação do organismo.
Tinha-se a crença de que a água, principalmente a morna, abria os poros aos ares nocivos. E
mais: a água era acusada de tornar os órgãos frágeis. Durante muito tempo, a higiene esteve
intimamente associada a uma idéia negativa, muito diferente da que temos atualmente. Assim
nos apresenta Georges Vigarello, em sua obra O limpo e o sujo, a questão da limpeza: “(...) O
medo restringe a prática da água. A imagem do corpo permeável, com o seu contexto de
As práticas de higienização do corpo, durante grande parte do século XVII,
restringiram-se a uma limpeza a seco. Em vez da lavagem, utilizavam-se toalhas brancas
umidecidas que eram friccionadas pelo corpo. O que era permitido e higiênico um século atrás
era a utilização da água para lavar o rosto e as mãos. No século XVII, o líquido passou a ser
algo não-utilizado: a água prejudicava a visão, provocava dores de dentes, de garganta. De
certa maneira, ainda persiste a idéia de que a pele porosa é suscetível a males.
(...) O uso da água restringe-se. Mas em benefício de uma vigilância e de um sentido do pormenor que preservam a norma e até a reforçam. A higiene assim comentada pode, rigorosamente, constituir uma nova exigência. O gesto de limpeza não foi abolido. Apenas se inflectiu e é diferente. A representação do corpo influiu. Mas, para o ter em conta, é com certeza necessário esquecer qualquer relação com critérios de hoje, admitir, em particular, a existência de uma higiene que percorre vias diferentes da ablução. (VIGARELLO,1985, p. 23).
É preciso ressaltar que, durante a Idade Média, o banho nas denominadas estufas
de banho não tinha a finalidade de limpeza; estava muito mais associado à transgressão, ao
jogo, à água como um elemento festivo. A água é explorada como um prazer, ligada à
sensualidade.
O banho é, sem dúvida, uma cena de divertimento social: ágapes em que os convivas comem e se divertem. (...) A água permite fruir melhor dos sentidos. (...) esta prática aproxima-se da arte da hospitalidade, da diversão e, afinal, da sensualidade. Estas festas públicas ou secretas confirmam que a água é explorada, em primeiro lugar, como um prazer. É calor e comunicação mais ou menos sensual. (VIGARELLO, 1985, p. 36).
No século XVIII, o conceito de limpeza altera-se totalmente. Está intimamente
associado à idéia da aparência: o que importa é o que se vê. Nesse tempo, valorizam-se os
critérios aristocráticos da aparência e do espetáculo. Prevalecem as idéias de civilidade e não
as de saúde, e é inegável que a aparência prevaleça nesse jogo. As roupas deveriam ser
brancas, porque o branco se impregna da sujidade do corpo, servindo como uma esponja que
Quanto ao vestuário, a moda e a limpeza acabam por se confundir no século XVII. A higiene é, em primeiro lugar, o respeito pelos cânones. Esta sobreposição de sentidos entre linha e limpeza só se produziu porque a aparência desempenhou um papel fundamental. Foi preciso atribuir um privilégio sistemático ao exterior para alterar a própria definição. A limpeza tinha de ser essencialmente a dos tecidos para que a palavra pudesse incidir no vestuário até o próprio se modificar. O sucesso dessa nova definição não vem senão confirmar a visão da higiene no século XVIII: esta participa de uma arte da representação. Mais geralmente, integra-se num modelo social circunstanciado: a corte como exemplo e espetáculo. Não se trata apenas de oferecer sinais vestimentares ostensivos. Trata-se de cultivar, quase conscientemente, uma prática de ilusão. A arte da corte é claramente uma arte de representação. (VIGARELLO, 1985, p.69).
Já no segundo terço do século XVIII, os cenários, no que se refere à higienização
do corpo, mudam consideravelmente: os banhos ocorrem com a imersão total do corpo. No
entanto, isso não quer dizer que a higiene tenha se tornado seu objetivo primeiro, pois nem
mesmo ocorrera a familiarização com esse ato. Esse súbito interesse pelo banho, utilizando-se
da água, deve-se principalmente às inúmeras monografias médicas a seu respeito. O banho era
tido como um meio de aliviar os humores. Passa-se a exigir uma higiene setorial, segundo as
partes do corpo, em que o suor permanece e produz um odor desagradável. Neste período já
existe uma relação mais íntima entre o indivíduo e suas parte do corpo; isso se deve ao
aparecimento de espaços privados para efetuar a higiene pessoal e, principalmente, ao
aparecimento de objetos próprios à limpeza, tais como o bidê, a bacia e o jarro de porcelana
que ornamentavam os quartos de banho da época.
Dessa forma afirma Vigarello:
Neste século, ainda ocorre uma delimitação entre a natureza e o artifício, que
demarcou uma crítica aos códigos aristocráticos de higiene que impunham os artifícios, os
trajes demasiadamente ostensivos, para uma condição mais espontânea, simples, contra aquele
excesso de simulação. “Só há fraqueza e vaidade nestes pós e pomadas odoríferas que a
presunção teve a infelicidade de inventar e que a sensualidade dos ricos emprega nos seus
preparos com a profusão tão perigosa quanto condenável. É também objeto de crítica social
que a cosmética significa moleza e debilidade.” (VIGARELLO, p.108).
Essa alteração da visão de higiene, mais voltada para o “interior” do corpo, fez
com que o conceito de higiene se modificasse, colocando em xeque a idéia de que a esta
correspondia somente a esfera do visível, da aparência e dos adornos.
(...) foi precisamente a transformação dos critérios que deslocou a visão de higiene. Foi a atenção explícita ao interior da aparência que veio pôr em causa a ligação durante muito tempo aceita entre a higiene e os adornos, impondo ao vestuário outras referências que não as do espetáculo. A superfície e o perfume não podem ser exclusivos. O cenário se altera. A distinção clássica, a do século XVII e do início do século XVII, já não é atingida unicamente nos seus perfis é-o também estruturas. (...) Altera-se o próprio sentido do termo higiene. (...) A higiene não está ligada unicamente aos sinais do ajustamento do vestuário. Diz respeito a um objecto mais directamente corporal. (...) A higiene depende tanto menos da aparência imediata quanto é capaz, precisamente, de alterar a sua composição. (VIGARELLO, 1985, p.110).
No início do século XIX o termo higiene já adquire um significado mais
científico: não se refere somente à qualidade de ser saudável (hygeinos significa, em grego, o
que é sadio), mas “(...) Trata-se de realçar as suas ligações com a fisiologia, a química, a
história natural, insistindo nas raízes eruditas.” (VIGARELLO, 1985, p.134).
A partir de então, inicia-se a prática de uma higienização mais completa, em que
há a utilização do sabão como instrumento de limpeza. É por meio dele que se remove a
sujeira do corpo. O cosmético por excelência passa a ser o sabão. A higienização ganha
trocas gasosas tão importantes para a pele. Vigarello aponta que “a pele mais limpa é mais
leve, funciona e respira melhor (...) e o sono, nessas condições, produz um repouso mais
reparador, que proporciona a todo o organismo um novo vigor, uma nova energia.” (1985,
p.135).
No início do século XX, quando das descobertas de Pasteur sobre os
microorganismos que não podem ser vistos a olho nu, o comportamento higiênico altera-se
muito. Os indivíduos passam a realizar não só a limpeza das partes externas, mas também das
as regiões mais secretas, tudo para se livrar do inimigo invisível. No fim do século XX, o
desenvolvimento científico que abarcou todo esse século configurou um novo panorama da
higiene corporal, que muito se aproxima da realidade atual. Nesse tempo, a limpeza atinge
toda pele, nas zonas mais invisíveis e ocultas, aprimorando aquela higiene da Idade Média,
que se concentrava somente nas partes visíveis (mão e rosto); é necessário limpar o oculto e o
visível também.
Por fim, é necessário dar voz mais uma vez ao autor que, de maneira clara e
concisa, define bem o comportamento higiênico que indiscutivelmente ainda se aplica ao
nosso tempo:
O espaço íntimo escavou-se até à vertigem, apoiado em publicidade de boa forma, em fantasias consumistas, em desejos de mais bem-estar. Cuidados pessoais cada vez mais interiorizados, e simultaneamente cada vez mais explicitados, muito distantes, em todo o caso, do utilitarismo higiênico. Promoção de práticas narcísicas em que a casa de banho permite secretos relaxamentos. E também prazer que se anuncia. Por fim, multiplicação de produtos e objectos, codificando esse mais bem viver para alimentar subtis misturas entre ilusão e realidade. O banho é atravessado pela alquimia complexa dos publicitários. É o seu objecto, sofrendo as suas modas e as suas imagens. A insistência em valores personalizados, a afirmação de um hedonismo, muitas vezes de encomenda, vieram substituir laboriosas explicações higiênicas. Esta higiene actual necessária para ser bem entendida, de um olhar atento sobre o individualismo contemporâneo e os fenômenos de consumo. (VIGARELLO, 1985, p. 175-176).
Nesse trecho fica evidente como a publicidade contemporânea focou-se na vida e
ao certo se se referem a um sonho, uma fantasia, ou se tratam da realidade e aplicabilidade à
realidade. Os meios de comunicação, sobretudo a publicidade, tornaram-se um grande
sincronizador da vida social, estabelecendo os parâmetros do bom, do bonito e do belo, como
se fossem mercadorias prontas na prateleira dos boticários e perfumarias. No pensamento de
Harry Pross (1987), tem-se que os meios de comunicação acabam por conferir uma violência
simbólica e criar um ritual que sincroniza o tempo de vida com o tempo da mídia.
Observando a história da higiene, percebem-se dois momentos distintos:
primeiramente, um todo voltado à luxúria e à aparência (o que importa é o que é visto); em
seguida, uma segunda fase em que o importante é a higienização, como um dispositivo do
saber que possibilita a conservação da saúde. Na atualidade, parece que isso se mesclou de tal
forma que é necessário estar limpo, estar cheiroso, estar em ordem. Porém o que prevalece e
qualifica o outro é aquilo que se vê nele e se reconhece como bom, bonito e belo. Nesse
contexto, é pertinente pensar no perfume, no quanto ele tem servido ao corpo, à luxuria, e
muito pouco à comunicação. O importante na era midiática é a marca, o valor de status
agregado ao produto por meio da publicidade. O cheiro propriamente dito muito pouco
importa. Afirma Renata Ashcar: “Nos dias de hoje, saturados de sexo com tanto consumo
erótico, talvez seja o tempo de voltarmos ao excitante universo do olfato: inalar
profundamente o rastro perfumado do amante, deixando que seu perfume excite o desejo e
crie imagens voluptuosas.” (2005, p.53).
Talvez seja conveniente retomarmos à história do perfume e resgatar os
1.2 A história do perfume1
1.2.1 A Antigüidade
Na busca pelo resgate histórico do perfume, remontamos ao significado da palavra
perfume, que vem das palavras latinas per (através) e fumum (fumaça), e quer dizer: “através
da fumaça”. Segundo a crença, os incensos aromáticos produziam densas nuvens de fumaça
através das quais orações e pedidos viajariam mais rápido até os deuses, bem como evocariam
as almas dos mortos. Os incensos atraíam bons fluídos, da mesma maneira que conectavam os
humanos às divindades, encaminhando suas preces e agradecimentos aos deuses2.
É no Egito que se encontram registros escritos e pictóricos que relatam
informações a respeito dos costumes da época em que já existiam dados sobre a arte da
perfumaria. Os egípcios produziam aromas extraídos da maceração de pétalas e folhas que
serviam como aromatizadores que, misturados com óleos, leite ou mel, produziam pomadas e
loções que prometiam, já naquela época, eterna juventude ou simplesmente uma pele macia,
hidratada e protegida do sol escaldante do Egito. Para os egípcios, o perfume tinha
fundamental importância para o campo da higiene pessoal. O cuidado com a higiene do corpo
era muito valorizado. Usava-se maquiagem colorida, por meio da qual se realizavam
verdadeiras obras-primas de pintura cosmética.
Na Ilha de Creta, onde se desenvolveu por volta de 3000 a 1100 a.C. a cultura
cretense, foram encontradas pinturas que revelam uma sociedade bastante elegante. As
1 As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005. ARCKERMAN, D.. Uma história natural dos sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996. BARRILLÉ, E.; LAROZE, C.. The book of perfume. Paris: Flammorion, 1995.
2 Cabe aqui citar George Duby (2001) em sua obra Eva e os Padres, que lembra a aversão da Igreja do século XII
aos cosméticos, e o perfume não é senão um tipo de cosmético. Maquiagens, pastas depiladoras e tinturas falsificam o corpo, enganam os sentidos e fazem com que Deus não mais reconheça as criaturas que criou. As prostitutas romanas eram apelidadas de rufias por causa da cor exuberante dos cabelos tingidos. O latim rufus
mulheres usavam jóias e vestidos finos e penteados bem elaborados, e os homens
comungavam dessa mesma apreciação, exibindo seus corpos com porte atlético. Essa
sociedade era conhecida por suas elaboradas toaletes, composta por banhos, depilação e unção
com perfumes e óleos. Esta cultura teve contato com os egípcios e gregos. No fim de seu
período, Creta recebia barcos com produtos de luxo do Egito. Esses barcos traziam perfumes,
dentre os quais os de lírios e rosas eram os favoritos dos habitantes da ilha.
A cultura grega também era apreciadora dos incensos e aromas, acreditando atrair
por meio desses artifícios a atenção dos deuses. Há várias passagens na “Ilíada”, de Homero,
em que há referência a perfumes e a deuses que recorriam a eles para fascinar outros deuses
ou outros homens. Um exemplo disso é a descrição que Homero faz do banho de Hera, esposa
de Zeus. Ela untava todo seu corpo com óleos aromatizados, na presença de Zeus, e o olor
expandia-se por “toda a terra e todo o céu”. A história da deusa Afrodite também está
intimamente interligada com o perfume, uma vez que, segundo a crença, ela emergiu nua das
espumas perfumadas do mar, dentro de uma concha, levitando sobre ervas fragrantes.
A história grega confirma muito daquilo que a mitologia conta a respeito da
importância do perfume para essa cultura. Por volta de 800 a.C., as cidades de Atenas e
Corinto exportavam óleos de flores e plantas maceradas. Desde então, os aromas tornaram-se
populares entre os gregos, que eram verdadeiros cultores da arte de misturar essências
perfumadas a resinas, gomas e bálsamos. Os aromas também influenciaram os atletas, que
adoravam impregnar seus corpos, bem como os poetas, que os amavam, e, por fim, as
mulheres, que se tornavam ainda mais atraentes e belas.
Por volta de 700 a.C., Sólon, legislador ateniense, tentou de maneira vã banir o
uso de perfumes, tido como sinal do luxurioso estilo de vida da Pérsia. Mais tarde, com a
conquista de Alexandre, o Grande, muito dessa cultura influenciaria a Grécia e seus costumes.
Ao conquistar a Grécia, Alexandre colecionou sementes e plantas, entregando-as a
autor dos primeiros tratados sobre cheiros, escrito por volta de 330 a.C. Nesse livro ele
apresenta detalhadamente receitas de preparados aromáticos e perfumes, indicando prazos de
validade e a finalidade terapêutica à qual cada formulação se destinava, seja para fins
emocionais ou estados mentais. Relata-se ainda que os perfumistas gregos procuravam os
sótãos, que são lugares escuros e frescos, pois o calor e a luz solar despojavam os perfumes de
seu olor. Essa é uma lição válida até hoje. Na vida daquela época, os temperos e os
condimentos utilizados na culinária continham pétalas de rosas moídas. O vinho era
aromatizado com mirra, essências de flores e mel perfumado. As pessoas ungiam seus corpos
com perfumes antes e depois das refeições. Segundo a lenda, Dionísio, o deus do vinho,
adorava adicionar à bebida um buquê constituído de violetas, rosas e jacintos.
Os romanos não tinham o costume de utilizar cosméticos. Porém, quando
entraram em contato com as culturas: etrusca, fenícia e grega, passaram a apreciar seu uso. Na
era do Império Romano, o uso de perfumes excedeu todos os limites: o consumo de mirra e
incenso durante este período causou desequilíbrio na natureza. No século I a.C.,
importaram-se da Arábia em torno de quinhentas toneladas de mirra e incenso, que eram utilizados em
todas as cerimônias importantes. O imperador romano Nero queimou a produção de um ano
de incenso no funeral da imperatriz Poppaea. Os famosos banhos romanos usavam muitos
perfumes. Estabelecem os registros que, no século IV d.C., Roma contava com onze banhos
públicos e oitocentas e cinqüenta casas de banho privadas. Os romanos banhavam-se e
utilizavam em abudância cremes, rouges e cosméticos para os cabelos. Alguns aplicavam
vários ungüentos para diferentes partes do corpo. Havia até para as solas dos pés.
Os perfumistas usavam essências naturais da própria Itália e, com a extensão do
Império, tiveram contato com produtos provenientes de outras regiões. A flor preferida dos
romanos era a rosa. Essa planta exerceu um enorme fascínio nesse povo. Com ela, Roma
Roma, tal com a Grécia, preparava verdadeiros banquetes que deveriam, sem
dúvida, saciar todos os sentidos, privilegiando o do olfato. Nos banquetes, além de receberem
a oferta de alimentos, os convidados eram saudados com deliciosas fragrâncias de flores,
ungüentos perfumados e espirais de incenso. Recebiam, ainda, fragrantes grinaldas de flores e
folhas para colocar na cabeça, como uma coroa, ou no pescoço, como um colar. Antes e
depois das refeições,queimavam-se incensos. Durante o banquete, eram postas pequenas
tigelas de água-de-cheiro intercaladas entre os pratos para que os convidados pudessem lavar
os dedos entre uma iguaria e outra. Vale ressaltar que Roma contribuiu para a indústria do
perfume, estimulando a criação de rotas de tráfego comercial com a Arábia, a Índia e a China,
além de contribuir para o incremento da indústria de fabricação de vidros.
Na cultura indiana, a utilização do perfume permeou cada religião e cada faceta da
cultura. O país era o jardim do mundo, com vasta lista de aromas utilizados com fins
religiosos e medicinais. Os jardins, foram introduzidos no século XVI por Babur, primeiro
soberano mongol, cuja dinastia reinou na Índia de 1526 a 1858. O imperador Jahangir,
descendente de Babur, restaurou um antigo jardim indiano na Caxemira para sua esposa Nur
Jahan. O jardim foi nomeado Shalimar, que significa “residência do amor”. O ensinamento de
identificar odores faz parte até do Kama Sutra, célebre livro indiano a respeito da arte de viver
e amar que data do século IV, abordando a utilização de fragrantes bálsamos nos rituais de
banho e na arte da sedução.
É inegável a variedade de flores e fragrâncias indianas, devido às condições
geoclimáticas extremamente favoráveis das selvas úmidas que ocupam grande parte das
pradarias do Himalaia. Há vários cheiros associados à Índia: o sândalo, com seu óleo
fragrante e suave, que faz lembrar o delicado toque de uma rosa; o patchuli, considerado
ingrediente chave para a perfumaria moderna; o vetiver, muito presente nas fragrâncias
masculinas. O jasmim é uma planta típica do vale da Caxemira. Diversificou-se em mais de
Os árabes favoreceram muito a difusão de fragrâncias, devido ao talento para o
comércio com que os conhecimentos foram espalhados, favorecendo a perfumaria e
oferecendo ao mundo sua imensa variedade de inventos químicos e farmacêuticos. No século
II a.C., eventos coletivos, tais como jogos atléticos promovidos pelo rei sírio Antíocos
Epifanes, eram abertos com um desfile em que duzentas mulheres traziam ânforas com
perfume para ser borrifado na platéia e nos participantes. Foram eles os inventores do
alambique (árabe al-lanbīq), que fazia uso da serpentina de resfriamento. Esta foi criada pelo
alquimista Ibn-Sina, conhecido como Avicena (980-1073), que preparou a primeira água de
rosas do mundo, isolando o perfume das pétalas em óleo. Essa invenção representou um
grande avanço na história da perfumaria e culminou, na Idade Média, com o desenvolvimento
das técnicas de destilação de plantas em larga escala.
No século I a.C., os estudos avançados sobre química, principalmente os relativos
à destilação, foram registrados no Livro das Ervas assírio. Dele constam as matérias-primas
mais utilizadas na época: madeiras odoríferas que compunham a estrutura dos templos onde
eram realizadas as oferendas aromáticas aos mortos e aos deuses, com incenso e fumigação.
As fragrâncias faziam parte do cotidiano da cultura islâmica. Trata-se de um povo
que tinha uma notável higiene e cultivava o prazer pelos sentidos, principalmente pelo olfato.
Eram queimados incensos nas casas, nos palácios e nas tendas, e não podiam faltar em
comemorações.
Na busca comercial das especiarias revelou-se a rota da seda, que inclui a China
nas transações transcontinentais (século I a.C.), ligando-a ao Mar Negro. Essa cultura também
valoriza os aromas e seus efeitos terapêuticos e prazerosos. Como exemplo, tem-se a cânfora,
que era apreciada como estimulante gástrico, chá calmante, tempero culinário ou sachês para
perfumar as roupas. Os perfumes estavam presentes nos rituais religiosos e nos espetáculos de
dança. Os chineses também aromatizavam a comida das cortesãs com almíscar, para que,
A sofisticação da cultura chinesa chegou ao Japão entre os anos 600 e 1300. Os
japoneses realizavam o koh-do (“caminho do cheiro”), ritual que elevava os odores à
categoria da arte no qual era associada uma seqüência de incensos a poemas. Ou seja, cada
um dos participantes criava versos perfumados a partir das memórias olfativas a que cada um
deles era remetido ao cheirar o incenso. Os japoneses acabaram por elaborar 54 ideogramas
que representam cheiros, criando uma linguagem escrita para os aromas.
No que se refere ao cotidiano, os quimonos eram aromatizados numa caixa
especial. As mulheres dormiam com uma touca cheirosa para os cabelos. Os incensos eram
utilizados como relógio, pois, pela sua qualidade, era possível calcular o tempo que levava
para queimar. As gueixas cobravam seus clientes pelo número de incensos queimados.
No período que corresponde à Alta Idade Média, entre os séculos V e X, a
perfumaria foi abandonada no Ocidente, depois do fim do Império romano. As ervas e aromas
eram utilizados nos mosteiros para fins medicinais e farmacêuticos. A Igreja Cristã condenou
o uso de incenso, considerado instrumento de idolatria, e os perfumes, como acessórios
frívolos da luxúria. Nesse período, portanto, as ervas eram utilizadas com fins medicinais. A
primeira faculdade de medicina da Europa foi fundada em 1220 em Montpellier, na Provence
francesa, cujo solo e situação climática eram perfeitos para o cultivo de ervas aromáticas.
Em 1320, os italianos aperfeiçoaram o processo de destilação do álcool. Assim,
logo surge a primeira destilaria de Módena. A partir disso foi possível a criação das spirituous
waters, “esplêndidas águas” ou “águas espirituosas”, como eram denominados os primeiros
perfumes e as bebidas alcoólicas. Em 1370, inspirada na beleza da rainha da Hungria, surge
aquela que seria a precursora da água-de-colônia: a chamada “Água da Rainha da Hungria”,
1.1.2 A Idade Média e o Renascimento
O que restou da arte com a queda do Império romano no século V não foi a
perfumaria diretamente, mas vestígios de farmacologia e medicina preservados pelos monges
nos jardins dos mosteiros até o século XI. As ervas eram tinham uso na medicina, mas não na
perfumaria. Em 1220 em Montpellier, na Provence francesa, cujo solo e clima eram perfeitos
para o cultivo de ervas aromáticas, foi fundada a primeira faculdade de medicina da Europa.
O processo de destilação de álcool foi descoberto em Alexandria no século II.
Porém, em 1320, em Modena, os italianos, aprimoraram o processo a ponto de isolar o álcool
a 95%. Deram a esse líquido o nome de aqua mirabilis. Os primeiros perfumes verdadeiros,
essências diluídas em álcool e não mais em leite, mel ou óleo, surgiram nesta época.
Após cinqüenta anos da descoberta do álcool, Elizabeth da Hungria inspirou o
nome do primeiro perfume, o Hungary Water, feito com extrato de rosa e lavanda diluído em
álcool. Segundo a lenda, o eremita que fez o perfume garantiu que ele preservaria beleza da
rainha até a morte. Parece que funcionou, pois, aos setenta e dois anos, ela casou-se com o rei
da Polônia. Os métodos de destilação continuaram se desenvolvendo e possibilitaram a
extração das mais variadas essências. Por um longo período os perfumes à base de álcool
eram bebidos para refrescar o hálito.
A expansão do comércio com o Oriente resultou no aparecimento de muitos
produtos exóticos nos mercados europeus, inspirando artesões, tecelões e ceramistas.
Chegaram do Oriente informações sobre as ciências e sobre a saúde, renovando o interesse
pela higiene. Membros de classes mais abastadas da Itália adquiriram o hábito de tomar banho
e lavar seus cabelos uma vez por semana. Veneza tornou-se o berço dessas renovações graças
a seu privilegiado lugar geográfico, que centralizava as rotas comerciais. Nessa região,
encontravam-se as novidades aromáticas que se espalharam pela Itália e tornaram-se moda
pomanders, contendo essências. Leonardo da Vinci realizou experimentos como infusões de
flores e de ervas em álcool, botões de flor-de-laranjeira e óleo de amêndoa. A rosa voltou a
tornar-se popular. Nos jantares italianos, usava-se água de rosas com lavanda para as mãos até
que o garfo e a faca viessem a ser utilizados, no final do século XVII. As águas de rosas e
outros perfumes eram feitos nos monastérios.
Em 1533, Francis I, filho de Henrique II, casou-se com a florentina Cartarina de
Médici, que trouxe à França a arte e a sofisticação da Renascença italiana. Seu perfumista
particular Renato Bianco veio com ela para Paris, onde estabeleceu uma loja e ensinou à
França a arte da perfumaria. Nesse século a França, principalmente, a cidade de Grasse, na
Provence, especializou-se na arte dos perfumes mais do que qualquer outro lugar do mundo.
O interesse pela higiene e pelos cuidados com o corpo cresceram entre os franceses, que até
então os negligenciavam.
Luis XVIII (1601-1643) introduziu o hábito de usar perucas perfumadas com
talco e luvas aromatizadas. A peste só seria vencida no final do século, o que manteve em
voga os hábitos de higiene, além de profiláticas simpatias populares como usar laranja
recheada de alho para evitar doenças ou sair às ruas com um buquê de flores aromáticas ou
um lenço embebido de perfumes. Os jardins franceses eram elaborados para repelir os
sórdidos odores pestilentos. Luís XIV (1638-1715) era muito sensível a odores e seu
perfumista particular foi incumbido de criar um perfume para cada dia da semana. Assim, a
indústria de perfumaria crescia na França.
No século XV os ingleses apreciavam os aromas trazidos pelos mercadores de
Veneza. No século XVI, sob o reinado da rainha Elizabeth I, renasceu o interesse pelos odores
e outras artes renascentistas. As damas utilizavam sachês e pomanders de rosas secas nos
decotes. No palácio de Elizabeth, haviam quartos destinados à fabricação de fragrâncias e
muitas pessoas eram incumbidas dessa tarefa. A soberana banhava-se uma vez por mês. Num
pessoa devia esfregar-se com óleo e pomadas. Em seguida, devia ficar duas horas no banho, e
depois enxugar-se com uma toalha impregnada de aroeira, mirra e açafrão para provocar a
respiração dos poros. Após passar 24 horas enrolada nessa toalha, a pessoa aplicava pelo
corpo ungüento de óleo, sal e açafrão. Textos de Shakespeare focalizam com freqüência as
lavandas, violetas, mentas e outros aromas, principalmente as rosas. Com a fundação da
Companhia das Índias Orientais, a Inglaterra diversificou seu comércio de fragrâncias.
1.2.3 Século XVIII
Nos séculos XVI a XVIII, quando o Renascimento se expandiu, a perfumaria
pôde se desenvolver. A receptividade de coisas exóticas e dos aromas instigantes, que
simbolizam a luxúria e o prestígio, também propiciou o desenvolvimento do perfume.
A água de colônia foi o mais celebrado aroma do século. Sua origem está na
Itália e na Alemanha, mas sua reputação foi criada na França. Um barbeiro italiano nascido
perto de Milão mudou-se para Colônia, na Alemanha, para melhorar de vida. Em 1709,
começou a produzir a Aqua Admirabilis a partir de flores e ervas típicas da Itália. O produto
foi bem aceito pelos moradores de Colônia e o negócios começaram a prosperar, incentivando
que outros negociantes abrissem lojas de perfumes na cidade. As tropas francesas que
paravam na Colônia durante a Guerra dos Sete Anos levaram a água de colônia à França.
O século XVIII ainda foi marcado pelo estilo rococó que viu durante o reinado de
Luís XV e sua amante Madame de Pompadour a moda das saias armadas e dos cabelos
empoados. Pela influência que tinha, Madame Pompadour inspirou toda a corte de Versailles,
popularizando o banho com sabonetes de lavanda e outras flores com um toque herbáceo.
Com as novas técnicas de extração de essências, muitas fábricas desenvolveram-se na região,
desenvolveu-se uma técnica conhecida como enfleurge, por meio da qual era possível extrair
óleo de sementes como amêndoa e damasco. Na França, a literatura também privilegiou o
tema, dando lições de alquimia com receitas práticas e econômicas.
1.2.4 Do século XIX até os dias de hoje
Após a Revolução Francesa, a indústria de perfume e de outros produtos
cosméticos consumidos pela aristocracia sucumbe. Mas, quando Napoleão Bonaparte é
nomeado imperador da França e torna sua mulher Josefina imperatriz, os perfumistas,
vidreiros e artesãos, que fabricavam as mais finas iguarias, vendiam seus produtos tanto para
a aristocracia quanto para a classe média. Nesse momento, o país passa a ser o maior produtor
de artigos de luxo. O governo ainda deu incentivo para pesquisas científicas, incluindo estudo
de óleos essenciais. Josefina ditou tendências de moda feminina que remetiam à Grécia, com
seus modelos decotados, fluidos e de cintura alta. Ela gostava do aroma do patchouli, adorava
o perfume das rosas e apreciava o almíscar mais que qualquer outro. Napoleão ditava moda
também para os homens, com suas calças justas e seus casacos alongados. O imperador era
neurótico com relação à higiene. Colocou o banho na moda, bem como os cuidados com o
corpo.
Luís XVIII retoma ao poder, e a França entra em inúmeras crises internas. Mesmo
assim, as cidades francesas de Grasse e Paris, que eram cidades complementares da
perfumaria, foram ganhando reputação na produção de perfumes de alto estilo. Os perfumes
eram produzidos artesanalmente, desempenhavam sua fórmula social como parte do luxo
diário e necessário de toda mulher, encantando a nobreza e a alta burguesia européias com
Com a desastrosa queda do império de Napoleão III e com o fim da desastrosa
guerra franco-prussiana, em 1877, Paris se abala, mas recupera e inaugura a fascinante Belle
Époque. De 1870 até a Primeira Guerra Mundial, a arte de viver podia ser desfrutada por mais
pessoas do que em épocas anteriores. Essa era testemunhou o nascimento da aviação, a
invenção dos automóveis, do telefone, da energia elétrica e do cinema. Paris foi inundada com
visitantes, que vinham em luxuosos navios visitar a capital artística do mundo, que exibia
esculturas de Rodin, quadros de Monet e músicas de Debussy. Em 1830 haviam sido
descobertos os solventes químicos, que possibilitaram aos perfumistas compor aromas a partir
de essências florais nunca antes utilizadas, dando um toque especial à Belle Époque, com uma
variedade maior de aromas. Com o desenvolvimento da química orgânica, os perfumistas
puderam criar essências sintéticas.
No ano de 1868, o inglês William Perkin criou o coumarin, um aroma sintético
precursor de muitos outros que o seguiram mais tarde, como a baunilha, o almíscar, a cânfora,
a violeta e os demais aromas que podiam ser extraídos de flores naturais a partir de um
método conhecido de extração dos lírios do vale, da gardênia e da lilás.
O século XX foi marcado por dois grandes estilistas: François Coty, conhecido
pela sua impressionante capacidade de distinguir os elementos que compunham um perfume,
e Paul Poiret, que foi um dos maiores estilistas de Paris, realizando a associação entre moda e
perfumaria. Essa união propagou-se durante os anos 1920. Os grandes estilistas incluíam em
suas coleções uma fragrância exclusiva como o Channel nº. 5. Tendência que se mantém até
os dias de hoje.
Atualmente, a tecnologia tem auxiliado muito na sofisticação e no
desenvolvimento da perfumaria. Os computadores ajudam a analisar as moléculas
responsáveis pelo aroma das plantas, o que permite ao perfumista recriar aromas cada vez
Os parágrafos acima sintetizaram a história do perfume. Daqui em diante,
analisaremos o que mudou no imaginário do homem com a entrada em cena das mais
diferentes fragrâncias.
Observamos que no decorrer de toda a história da higiene do corpo e a do próprio
perfume, este tem a função de jogar com a aparência e encobrir a natureza, como que para
manipular melhor um resguardo entre o olhar e o corpo. “O perfume é um utensílio modelo
nesta arte da aparência: é tanto mais enganador quanto escapa às referências visíveis. (...) Este
uso permitia mesmo, em certas condições, adiar a mudança quotidiana da
camisa.”(VIGARELLO, 1985, p. 72).
Vigarello também aponta um pensamento de certo modo instigante, citando
Bomare em sua obra Dictionaire d’histoire naturelle (1964): o olfato limitado dos homens,
em comparação com os animais, deve-se aos “excessos de odores fortes de que os homens
estão constantemente rodeados.” (BOMARE, apud VIGARELLO, 1985, p.111).
Resta pensar que talvez seja pelo excesso de olores que tenhamos perdido, ou
melhor, amortecido, o nosso canal de comunicação olfativa com o mundo e, portanto,
tornamo-nos incapacitados de caminhar, semioticamente, pelo mundo do cheiro.
No século XVII, com as mudanças na higiene, as roupas brancas assumem
importância. O requinte e o bom gosto tornam-se os pilares de um paradigma social. Entram
em debate, portanto, os odores fortes, advindos de um costume da época de comer alho e
outros condimentos para espantar a fadiga e combater certas doenças. Esta crença está
encerrada. Cria-se nesse momento a distância entre os odores requintados e os outros tidos
como mais baixos. (VIGARELLO, 1985, p.73).
Essa passagem demonstra que o cheiro/olfato é um universo puramente cultural,
que em certa medida nos escapa, porque nem tudo que temos para sentir é culturalmente
aceito. “(...) todo sentido tem um sentido. O olfato é profundamente cultural e, no entanto,
É inegável o papel de simulador, de disfarce e de aparência, que o perfume
desempenha. Porém, também, é tido como purificação. Assim, afirma Vigarello:
O perfume desempenha (...) todas as funções. Está directamente associado a um objecto de higiene. Seduz o olfato. Mas é ao mesmo tempo, purificador. O inverso imediato de sujo e também correção. Todos os valores da aparência passaram para os do operacional. O perfume limpa. Elimina e apaga. A ilusão tornou-se realidade. (1985, p.74).
Os olores completam os jogos de aparência, tornam-se espetáculo, prolongam a
imagem da roupa e das partes visíveis da pele. Andar perfumado pelas ruas é questão estética.
Porém, revestir o corpo com um perfume, por exemplo, Yves Saint Laurent, cumpre um papel
de seguir a moda.
Na segunda metade do século XVIII, os critérios de distinção mudaram: “a
higiene não é feita só para o olhar”, diz Vigarello. “Foi a atenção explícita ao interior da
aparência que veio pôr em causa a ligação durante muito tempo aceita entre higiene e os
adornos, impondo ao vestuário outras referências que não a do espetáculo. A superfície e o
perfume não podem ser exclusivos.” (1985, p.110).
Portanto, nesse século o jogo da aparência perde força à medida que a crença de
que “os odores pertencem menos à higiene do que certos gostos depravados ou a um certo ar
da moda (...)” (VIGARELLO, 1985, p.111). Todo o poder mágico de dissimulação agregado
ao perfume é questionado. Até então, acreditava-se que os perfumes eram capazes de corrigir
os odores do corpo, mudando sua matéria íntima e, num certo sentido, até eliminando-os. Essa
crença chega ao fim. As práticas higiênicas requerem outros métodos. O perfume desempenha
a função de máscara. Além disso, ganha o significado de gosto para o prazer.
Acreditamos que, atualmente, o perfume assume a função de simulador, de
máscara do corpo, dos seus odores naturais, suprimindo nossa assinatura natural em
detrimento de uma assinatura cultural em que o odor exalado só é o do socialmente aceito, à
nosso tempo e que a mídia, sobretudo a publicidade, tem sustentado e reforçado no imaginário
coletivo. O papel do perfume na sociedade contemporânea pode ser apresentado desta
maneira: “Vivemos hoje (...) em um mundo em que o perfume não desempenha um papel de
destaque, como ocorreu na história mais remota da humanidade. Emanações indefinidas de
odores se confundem, dificultando a interpretação da sutil linguagem dos cheiros – dotada do
poder de capturar a essência exata do momento (...)” (ASCHAR, 2005, p.15).
Essa passagem nos faz pensar como fica a questão dos cheiros nas grandes
metrópoles, como São Paulo, onde temos a incessante exalação de odores que advêm da
queima de combustível, das chaminés das indústrias, das próprias ruas, dos lixos e dos corpos
das pessoas aglomeradas. Pensamos na possibilidade da perda lastimável, nessas grandes
metrópoles, da capacidade comunicativa profunda dos cheiros, uma vez que sua “linguagem”
é muito sutil e a exalação de diferentes odores acaba por confundir a recepção desse código
olfativo. Assim, é possível imaginar que nosso processo de civilização recalcou o sentido do
olfato, como veremos mais adiante com o auxílio de Freud (1997). cujo pensamento talvez
permita lançar a hipótese de que nos tornamos, num certo sentido, um ser anósmico.
O perfume não está associado somente ao paganismo, mas também ao mundo do
divino. Por isso, torna-se importante analisar os rituais humanos que buscam ligar o homem
ao divino por meio dos cheiros, para então analisar o papel do perfume na comunicação
1.3 Perfume e rituais3
Não é só ao significado pagão e referente ao mundo baixo dos homens mortais
que tem servido o perfume. Nas mais diversas civilizações, tribos e povos, existem indícios
que atestam o uso do perfume, ou melhor, do olor exalado pela queima de ervas, plantas e
incensos em rituais religiosos. O perfume é o meio de religar o homem ao sagrado.
É fato que o perfume assume, em vários povos, a função de um canal de
comunicação com os céus, um verdadeiro aliado do homem na busca pelo divino. Mais do
que isso, é o próprio sinal da presença divina no mundo: “inalar um perfume corresponde a
nutrir-se espiritualmente com a força do cosmo.” (ASCHAR, 2005, p.15).
Essa presença do sinal do divino no perfume perpassa o imaginário de vários
povos de diversas épocas. Dessa forma, não é por acaso que as palavras “espírito” e
“essência” fazem parte da nomenclatura do perfume. Consultando os registros históricos,
entendemos o papel divino desempenhado pelo perfume nas mais variadas épocas e
civilizações.
Assim, retornamos ao período paleolítico e à descoberta do fogo, pois, é com o
domínio desse elemento se registram os mais antigos cheiros advindos da fumaça produzida
pela queima de madeira, especiarias, ervas e incensos. As sepulturas neanderthalesas indicam
que os mortos eram enterrados com todo um ritual com flores e outros ornamentos. É possível
pensar que, nesses rituais fúnebres, as flores tivessem a função de afugentar os odores do
corpo morto e conduzir a “alma” mais rapidamente aos céus, à esfera do divino.
Na civilização egípcia, que era politeísta, homenageavam-se as divindades em
ricos rituais. Nesses rituais, o perfume desempenhava uma função importante. Queimavam-se
3 As informações foram extraídas dos livros:
ASHCAR, R.. Brasilessência: a cultura do perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
incensos, resinas e madeiras preciosas como meio de purificação dos altares. Também se
utilizavam óleos perfumados, que glorificavam as estátuas sagradas. Os egípcios
consideravam que “o perfume era o néctar dos deuses, e com ele a alma dos mortos podia ser
tocada.” (2005, p.21).
Seguindo a crença na eternidade, os corpos dos mortos eram mumificados e
envoltos por perfumes. Portanto, os olores eram reservados não só para os deuses, mas
também para os mortos.
Na história da cultura grega também encontramos intensa relação entre o perfume
e a religião. Acreditava-se que, por meio da utilização de incensos e fórmulas aromáticas,
podia-se atrair a atenção dos deuses. Na Ilíada, de Homero, faz-se referência a essa alusão de
que o perfume atraía a atenção dos deuses e também dos outros homens. Há uma passagem
belíssima em que Homero descreve o banho de Hera, esposa de Zeus: “ela untava seu
‘desejável corpo’ com óleos aromatizados; na presença de Zeus, o perfume expandia ‘por toda
a terra e todo o céu’” (2005, p.33). É ainda na mitologia grega que encontramos a deusa
Afrodite, cujo nome em grego significa “nascida da espuma”. Segundo o mito, essa deusa
surge da espuma do mar, considerada o sêmen do céu; sai de concha em forma de vulva,
levitando sobre ervas de intensa fragrância, que exalam intenso erotismo. É considerada a
deusa que desperta não o amor sublimado, mas o carnal, e que freqüentemente rouba os
sentidos dos homens mais sensatos. Por isso, denominam-se afrodisíacas as poções capazes de
despertar os desejos mais intensos.
A correspondente romana é a deusa Vênus, mãe de Cupido, que por sua vez
corresponde ao deus Eros, o deus do amor sublime. Conta a lenda que as fragrâncias mais
doces servem para atrair o amado e o próprio amor, representado por Eros.
Para os gregos, os aromas exerciam forte atração, pois eram entendidos como
ampliadores do canal de comunicação com o divino. Tanto que eles ungiam os mortos para
Na Índia, também nos deparamos com pontos em que há o cruzamento entre
perfume e religião. No Hinduísmo, a deusa Shiva ocupa o centro do panteão. Jasmim e
sândalo correspondem à sua identidade aromática. Usava-se para a construção dos templos o
gandhakuti (casa de fragrância). Essa madeira era muito usada na cultura hindu. As estátuas
dos deuses eram lavadas com sândalo e almíscar.
No ano de 1500 a.C., a religião védica foi introduzida na Índia. Seu nome deriva
de veda, palavra sânscrita que significa “saber sagrado”. Essa religião pregava a utilização do
perfume durante as orações para que as palavras alcançassem os deuses, envoltas por uma
atmosfera de intensos aromas.
Em 1560 a.C., o Budismo surge na região, impulsionando os banhos mais
freqüentemente, bem como os rituais de limpeza e de purificação por meio de pomadas e pós
aromáticos que eram aplicados ao corpo. Segundo o Budismo, a passagem para (a) outra vida
é como uma “montanha fragrante”.
Na Bíblia hebraica também se nota a relevância do perfume para a religião. O
maior exemplo pode ser encontrado no Cântico dos Cânticos, destinado ao rei Salomão. Esse
texto relata o encontro amoroso, repleto de referências aos cheiros mais íntimos:
Ela: Enquanto o rei repousa em seu leito, meu perfume exala sua fragrância. Meu amor se assemelha a um sachê de mirra entre os meus seios. Meu amado é como um ramo de henna colhido na vinhas de En-Gadi.
Ele: Os teus seios são como duas crias gêmeas de uma gazela, que se apascentam entre os lírios. Antes que refresque o dia e fujam as sombras, irei ao monte da mirra e ao outeiro do incenso.
Ele: Qual lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas. Ela: Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens; desejo me sentar à sua sombra e saborear o seu fruto, tão doce ao meu paladar.
Ela: Levanta-te, vento morto! Desperta, vento sul! Sopra no meu jardim, para que se derramem os seus aromas. Vem, oh meu amado, para o teu jardim, e deleita-te com seus doces frutos!
Ele: Já entrei no meu jardim, minha irmã, noiva minha. Colhi minha mirra com especiarias. Sorvi meu favo com mel. Bebi meu vinho com leite. Comei e bebei, amigos! E ficai embriagados de amor!
Ele: Melhor é o teu amor do que o vinho, e o aroma de teus ungüentos do que toda sorte de especiarias!
Ele: Teus brotos são pomar de romãs, com frutos suaves, de flores de alfena e nardo; nardo e açafrão, bambus aromáticos e canela, com todas as árvores de incensos; mirra e aloés, com todas as principais especiarias aromáticas. Ela: Tuas faces são como eira de espécies aromáticas, como fragrantes flores; teus lábios, como lírios que destilam mirra fragrante.
Ele: Os teus lábios destilam mel, mel e leite escondidos sob tua língua. A fragrância de teu vestido é como a do Líbano. Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada. Teu jardim é fonte de águas vivas, torrentes que correm do Líbano. (apud ASHCAR, 2005, p.23).
Na Bíblia também se encontram episódios profanos com a utilização do perfume.
Judite utilizou-se dos aromas com o intuito de matar Holofermes: “Lavou-se toda, ungiu-se de
preciosos cheiros (...), trançou os cabelos e enrolou um turbante na cabeça; então vestiu-se de
gala.” (Judite 10:3). Ainda nas Escrituras Sagradas, há outra passagem que faz referência ao
cheiro, quando Samuel aludia aos direitos dos hebreus: “Tomarás as vossas filhas para
perfumistas.” (Samuel, 8:13). Outro trecho elucidativo é encontrado em Ester, ao narrar o
preparo das virgens para o harém de um rei: “Seis meses com óleo de mirra e seis meses com
doces odores, para a purificação da mulher.” (Ester, 2:12-13).
A Igreja Cristã condenou o uso de incensos e de perfumes, considerados
instrumentos de idolatria e artigos de luxo, respectivamente. Porém, lentamente, os incensos
foram reincorporados aos rituais, passando a desempenhar um papel importante a partir do
século VI.
Tempos mais tarde, na Europa atingida pelo flagelo da peste, os templos da Igreja
impregnavam-se de um ar carregado de diferentes aromas de perfumes, bálsamos, sais e
ervas. O poema Apius e Virgínia descreve um banco de igreja reservado aos fidalgos: “O
banco de milady estava alegremente juncado de prímulas e doces violetas, cujos aromas se
uniam aos da alfazema, do cravo-da-índia e da manjerona.” (2005, p. 40).
O Cristianismo utilizou os perfumes como meio de comunicação entre Deus e os
relação entre o perfume e a vida de Cristo pode ser observada já no episódio bíblico que narra
o nascimento do menino Jesus. (GRAU-DIECKMAN, 2006, p.2).
Segundo consta, os reis magos ofereceram como presente a Jesus os perfumes
mais valorizados. Assim está descrito em Mateus (2:11): “Entrando na casa, acharam o
menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, o adoraram. Depois, abrindo seus
tesouros, ofereceram-lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.”
Ao menino Jesus foram ofertados os mais valiosos objetos da época. A
preciosidade do ouro, metal almejado e de valor para todas as culturas, é inegável. Mas
quanto ao incenso e à mirra é preciso fazer algumas considerações, sem que nos esqueçamos
dos valores existentes na sociedade antiga.
A palavra incenso advém do latim incendere, que significa “queimar” e designa
una substancia aromática que se obtém de certas árvores resinosas que ao serem queimadas,
exalam bom olor. (GRAU-DIECKMAN, 2006).
O próprio Deus prescreve a Moisés a fórmula do incenso, que foi considerado
algo consagrado ao Senhor. Assim, é narrado no “Livro dos Êxodos”:
O Senhor disse a Moisés: ‘Toma aromas: resina, cascas odoríferas, galbano, aromas e o incenso puro em partes iguais. Farás com tudo isso um perfume para a incensão, composto segundo a arte do perfumista, temperado com sal, puro e santo. Depois de ter reduzido a pó, pô-lo-ás diante da arca da aliança na tenda de reunião, lá onde virei ter contigo. Isto será para vós uma coisa santíssima.’ (Êxodo 30: 34-37).
O incenso, desde a Antigüidade, era utilizado nas oferendas religiosas para
afugentar os espíritos malignos e as enfermidades, e, por fim, para servir como meio de
comunicação do homem com o divino (Deus), já que, segundo a crença, os perfumes
agradavam às divindades, e por isso, serviam como meio de elas atenderem mais rapidamente
Quanto à mirra, trata-se da segunda substância aromática ofertada ao menino
Jesus, como menciona Mateus. Grau-Dieckman (2006) atesta que o nome mirra vem do árabe
murr e significa “amargo”. Antes de ordenar a Moisés quais seriam os ingredientes para o
incenso, Deus especifica a receita para a fabricação do óleo santo que os sacerdotes deveriam
usar para ungir e que, segundo o Êxodo, compunha-se de mirra:
O Senhor disse a Moisés: ‘Escolha os mais preciosos aromas: quinhentos siclos de mirra virgem, a metade, ou seja, duzentos e cinqüenta siclos de cinamono, duzentos e cinqüenta siclos de cana odorífera, quinhentos siclos de cássia (segundo o siclo santuário), e um hin de óleo de oliva. Farás com tudo isso um óleo para a sagrada unção, uma mistura odorífera composta segundo a arte do perfumista. Tal será o óleo para a sagrada unção. Ungirás com ele a tenda de reunião e a arca da aliança, a mesa e seus acessórios, o altar dos perfumes, o altar dos holocaustos e todos os seus utensílios, e a bacia com seu pedestal. Depois que os tiveres consagrado, eles tornar-se-ão objetos santíssimos, e tudo o que os tocar será consagrado (...) Este óleo servirá para unção santa, de geração em geração. Não derramará dele sobre o corpo de homem algum; e não fareis outro com a mesma composição: é uma coisa sagrada e deveis considerá-la com tal. (Êxodo 30:22-32).
É com esse óleo, preparado com a doce mirra, que se deveria ungir o Messias, o
Cristo Jesus. Messias significa em hebraico (maschiah) “o ungido”, e foi traduzido para o
grego como khristós, “o ungido do Senhor”. A palavra grega khrisma expressa a ação de ungir
(GRAU-DIECKMAN, 2006, p.5).
Segundo os teólogos há vários significados estabelecidos para os presentes que
foram dados a Jesus. O primeiro motivo é econômico e se refere ao valor estabelecido às
oferendas. Embora atualmente o ouro tenha um preço altíssimo e o incenso e a mirra tenham
perdido seu valor, no tempo de Jesus, o ouro e o incenso tinham quase que o mesmo valor.
Porém, alguns teólogos sustentam outros significados, não-econômicos, aos presentes que os
reis magos deram ao menino Jesus. Segundo alguns teólogos, o ouro representa o metal
precioso próprio dos reis; simboliza a sua realeza. Já o incenso, que desempenha um