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A lira maldizente do Boca do Inferno

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Academic year: 2021

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Vol. 7 n.2 (dezembro 2016) 63

ISSN 2179-0027

A LIRA MALDIZENTE DO BOCA DO

INFERNO

Valdemar Valente Junior¹

Resumo

Este texto tem por objetivo uma abordagem crítica acerca da poesia satírica de Gregório de Matos como resultado da crise econômica no Brasil do século XVII. Nesse contexto, as marcas do Barroco Ibérico por ele trazidas, resultantes de sua permanência de três décadas em Portugal, assumem uma característica singular, na medida em que passam a refletir a realidade colonial. Por isso, a crítica contra o sistema amplia-se em direção a outros segmentos, sendo sua inspiração satírica uma expressão que abrange os diferentes setores da sociedade em conflito. Por outro lado, a proibição de tipografias no Brasil colonial não impede essa poesia de circular em folhas volantes, recorrendo às formas de uma oralidade que destaca Gregório de Matos como a primeira importante manifestação da poesia brasileira.

Palavras-chave: Poesia barroca. Colonização. Sátira social. Crise econômica.

Abstract

This text aims at a critical analysis of the satirical poetry of Gregório de Matos as a result of the economic crisis in Brazil in the seventeenth century. In this context, the marks of the Iberian Baroque brought by him resulting from his stay of three decades in Portugal, take a unique feature in that start to reflect the colonial reality. Therefore, the criticism of the system widens toward other segments, its satirical inspiration an expression that covers different sectors of society in conflict. On the other hand, the printing ban in colonial Brazil does not prevent this poetry circulate leaflets, using the ways of orality which highlightsGregório de Matos as the first important manifestation of Brazilian poetry.

Keywords: Baroque poetry. Colonization. Social satire. Economic crisis.

Introdução

1- Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Pós-Doutor em Literatura Brasileira pela UERJ. Professor Assistente da Universidade Castelo Branco e da Faculdade Paraíso

p. 70 - 77

A poesia brasileira por muito tempo ressentiu-se da ausência de Gregório de Matos entre os nomes a figurar em seu panteão. O Florilégio da poesia brasileira (1850), antologia publicada por Francisco Adolfo de Varnhagen, procura redimir o lamentável equivoco que acaba por preterir por um lapso considerável a obra do mais importante poeta do período colonial e primeiro autor brasileiro cuja obra transfigura o espaço restrito à Colônia, a partir de seu teor e sentido extremamente originais. O significado de sua escrita, para além do fato de nesse período ser vedada no Brasil a existência de tipografias, amplia-se em uma dimensão sem limites, se for

considerado seu relevante poder de atuação, o que no plano da oralidade se sobrepõe a grande parte de seus coetâneos, levando-se em conta a desigualdade de condições de uma poesia que circula por vias transversais. Assim, se por um lado a sátira gregoriana possui uma elevada capacidade de atuar como elemento desagregador da ordem estabelecida, por outro a veiculação desses tropos infames, por essa mesma razão, homizia-se em redutos clandestinos, tanto na sede da Colônia quanto à roda dos engenhos, nos canaviais do Recôncavo, locais onde se efetivam os sintomas da crise que essa poesia vai denunciar.

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indispensável à compreensão de um perfil delimitado do Barroco Brasileiro, por conta da situação de crise que se apodera da Colônia, reduzindo a Bahia seiscentista a uma imagem distante de seu antigo apogeu. A decadência na produção do açúcar, barateado em sua cotação de mercado, aliada ao arrefecimento do poder da nobreza empobrecida, preterida por uma nova classe de nativos endinheirados, concorre para que a verve ferina do poeta maldito exerça sua fúria virulenta. A perda de espaço político pelas elites, de que se queixa o poeta, o leva à condição de crítico desse transe representado pela situação singular de desequilíbrio nas relações de produção da Colônia com a Metrópole. De posse dessa matéria prima, Gregório de Matos executa com extremo vigor a tarefa de produzir uma obra de excelência que se insere como primeiro grande momento da criação poética no Brasil. O fato dessa produção ter circulado na informalidade de folhas soltas e na espontaneidade do recitativo por vielas e becos não a exime do papel representativo de que se faz porta-voz.

Encrustada na ordem dos fatos de que se faz refratária, na medida em que se posiciona em uma diretiva de contramão, a sátira gregoriana assume uma postura de enfrentamento do poder estabelecido como voz dissonante. O espirito transgressor a que incorpora tem como alvo os efeitos da mudança brusca nos negócios fortemente atingidos pela crise do capitalismo mercantil que repercute no sentido de também desorganizar a estrutura de produção dos bens pessoais do poeta. De volta à Colônia, depois de um longo tempo na Metrópole, onde exerce a magistratura, exercita sua verve a partir da constatação de uma situação falimentar que lhe parece imutável. Longe de querer propor qualquer acordo de conciliação do que, a partir sua visão, manifesta-se como via sem retorno, a sátira de Gregório de Matos ajuda a cavar a vala onde chafurda como consequência natural da derrocada que atinge a ordem econômica e social da terra. Entende-se, por esse meio, a dificuldade de ser possível aceitar a evidência dos fatos, não havendo, de sua parte, qualquer meio capaz de poder ser estabelecida uma aliança com o que possa representar a ordem instituída.

Dono de um estilo original e de uma imaginação poderosa, Gregório de Matos atua nas frestas de um sistema que se mostra incapaz

de dar conta da demanda das transformações em curso, sendo que, por não poder encampar o fluxo desses acontecimentos, acaba por render-se inapelavelmente ao malogro econômico e à crise social. A partir de seu retorno à Bahia, um determinado eixo de situação parece mover seu fulcro na direção contrária às expectativas alimentadas no sentido do que representara o esplendor da produção açucareira como motor da riqueza da terra. A crise e o crítico coadunam-se a partir do instante em que tudo faz transparecer o transe de que a sátira se apodera para promover a circulação de ideias que não têm como poder retroagir, mesmo em face da precariedade das condições de veiculação da criação poética, que, para além da perseguição pelas autoridades, paga o ônus inerente a um tempo e um local que lhes são inadequados. Assim, Gregório de Matos não se furta ao enfrentamento desses obstáculos, na medida em que sua condição de artista coloca-se acima do imbróglio que se apresenta, situando-o em posição de permanente confronto.

A verve transgressora do poeta obsceno atinge indistintamente nobres e plebeus, querendo transparecer ser a Bahia o palco onde se representa uma espécie de teatro da infâmia, de cuja desonra floresce o que há de pior em termos do comportamento transgressor e da luxúria sem freios. Os diferentes objetos a serem atingidos creditam-lhe a condição de quem não se exime de lançar acusações de modo indistinto a todos os setores da sociedade. Do mesmo modo, governadores e religiosos, escravas e prostitutas, entre tantas outras figuras da cena baiana, participam na condição de personagens de sua obra dando-lhe o requinte de poeta que dialoga alternadamente com os princípios do Barroco Ibérico configurado na herança de Góngora e Quevedo com a qual entra em contato nos anos em que estuda leis e advoga na Metrópole. Tomado pela lassidão que lhe sugere a síndrome que acomete os recém-chegados à Colônia, o poeta letrado pouco a pouco assume um vocabulário que o remete à relação com a ralé, a partir das esferas de baixa cotação com quem passa a conviver como retrato escatológico da condição em que inevitavelmente se encontra.

Desse modo, o conflito de interesses que move a verve ferina de Gregório de Matos tende a se tornar uma questão sem saída, na medida em que o agravamento das situações por ela arroladas não

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encontra condições favoráveis a uma resposta que lhe seja positiva. A crise do açúcar, como um dado especifico, assim como a crise estrutural que atinge a Coroa Portuguesa de forma mais absoluta, tendem a perdurar, acompanhando a lentidão paquidérmica de um sistema cartorial e clientelista que parece atingir em cheio o cerne do poder. O endividamento com que Portugal se depara, com a Restauração, não encontra um termo que lhe seja benéfico, persistindo a situação falimentar que incide na cobrança extorsiva de impostos no sentido de poder manter os gastos excessivos da Corte. A burocracia estatal, por sua vez, não permite que se efetive um sistema fluido capaz de desobstruir os entraves que impedem o crescimento econômico como expressão contrária ao que representa a mera exploração predatória. O que se pode observar, a partir da sátira que Gregório de Matos entabula, em seu retorno à Bahia, concorre como imagem hiperbolizada do que parece ser um sistema de erros. A estrutura de poder, portanto, passa a ser questionada a partir do descompasso que toma conta de parte significativa das instâncias da vida na cidade.

Em vista desse descaminho, a Bahia de Gregório de Matos repercute em sua poesia a partir de uma visão a que o próprio poeta concorre para destorcer, enfatizando elementos que remetem às figuras de exagero que se colocam como síntese e expressão do Barroco. Mais que isso, o homem de leis convertido na figura obscena do sátiro decadente, situa-se como imagem plena de uma expressão que tem em sua obra a correspondência mais exata. Situado à beira do caos que o induz a trilhar um caminho sem volta, o vate pornográfico não se furta a ir ao encontro da finitude das coisas que lhes são caras, mas que lhes fogem das mãos, colocando-o no lugar de indigência a que essa mesma crise ajuda a agravar. Diante do espelho do que passa representar a Bahia, a riqueza do poeta se esvai, restando-lhe apenas a sanha incontida, a partir do desejo de a todos detratar como uma espécie de último recurso. Confinado aos limites da cidade e do canavial, o poeta mistura os termos de sua obra dando azo à demolição de sua própria existência, o que paradoxalmente concorre para situá-lo como voz poética a dar-se conta da fragilidade que vitima o sistema colonial.

A poesia satírica de Gregório de Matos tem como justificativa uma situação que se apresenta insolúvel em sua aparência, uma vez que o poeta se

deplora em seu rimário indecoroso, denotando a falta de condições reais que propiciem a superação desse transe. Em vista do que se mostra no cenário da Bahia em conflito, a sátira gregoriana funciona como uma espécie de segunda natureza, diante da qual os problemas da terra se agigantam, ao tempo em que redimensionam o lugar das autoridades decaídas que, por conta do vício moral, são duramente atingidas pelos vitupérios dessa lira infamadora. Por seu turno, o tempo que nos separa do poeta fescenino não se faz bastante para colocá-lo no limbo da história literária, haja vista a recuperação definitiva do valor inesgotável de sua obra, uma vez que a atualidade dos temas que suscita o situa na condição pioneira de quem desconstrói modelos para dar sentido à desordem do que tangencia o próprio caos. Diante disso, resta a possibilidade de discorrer sobre o legado poético do Boca do Inferno como meio de dar um novo enfoque ao que já se apresenta como elevado índice de originalidade transgressora dentro de um recorte especifico da poesia brasileira.

O desconcerto da poesia

O Barroco Ibérico, em sua vertente mais plena, evidencia a supremacia da Espanha sobre Portugal como uma condição inerente ao domínio de seis décadas em que os filipes se apoderam das hostes portuguesas. Em vista disso, o esplendor de um Classicismo que tivera em Sá de Miranda e Camões seus pontos altos assume lugar secundário, quando o Barroco de Góngora e Quevedo passa a se impor de maneira absoluta. Não há, portanto, como ser alterado provisoriamente o rumo dos fatos, mesmo em face da Restauração que conduz a Dinastia de Bragança ao trono português. O desequilíbrio das ações econômicas decorrentes dos longos anos do Domínio Espanhol condenara Portugal a uma crise que parece não ter paradeiro. Diante disso, a presença da poesia ibérica na obra de Gregório de Matos apresenta-se como um fator que lhe fundamenta a verve dando-lhe a condição inventiva que se reforça a partir do repertório dos fatos coletados por ocasião de seu retorno à Colônia. O que aparenta de certo modo tender à oscilação quanto à influência dos dois poetas espanhóis tem seu significado acrescido da situação falimentar a que o bacharel encontra a Bahia, e especialmente seus bens de herança.

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como alvo as autoridades políticas e religiosas que se corrompem a olhos nus, não apenas do ponto de vista da prevaricação que envolve a ganância sobre os bens da terra, na forma de impostos e cobranças abusivas, mas também em casos envolvendo o amásio e a sodomia como situações condenáveis. No entanto, o ambiente de transgressões de que sua poesia se faz porta-voz volta-se contra ele próprio, na medida em que declama seus versos infames em tabernas, lupanares e à roda dos engenhos, entre vagabundos, prostitutas e escravas do eito, querendo parecer que o poeta acaba por provar de seu próprio veneno ao imiscuir-se em uma espécie de condição terminal. Desse modo, “Gregório de Matos opta desde cedo pela sátira e pela audácia, as Musas bailando ao compasso da lira no seu palco vadio”. (CALMON, 1983, p. 18). Assim, as acusações de que se vale contra os poderosos da terra resumem-se em contradições contra seu próprio comportamento, do mesmo modo transgressor, o que aponta para o fato do Boca do Inferno ser parte expressiva do cenário da Bahia decadente, aprofundando os conflitos de que se serve para deformar e denegrir a reputação alheia. Arrimado à condição de magistrado, mesmo em franco declínio, enquanto tem fôlego, sua sátira é como um torpedo a atingir a combalida estrutura do poder, resultando isso em movimento contrário, que o condena e degrada:

A análise que se configura a partir de sua sátira, portanto, tem o poder de pôr em situação de desequilíbrio o que seria a condição plena de exercício das formas de contato com as demandas que dizem respeito à vida na Colônia. No entanto, o que lhe serve de munição à sátira com que a tudo detrata parece não ter um termo, avolumando-se de forma desproporcional a cada acusação que pontua sua condição de vate a percorrer os diferentes escaninhos da cidade.

O mundo ao qual o seu senso de concreto adere é, no entanto, o seu inimigo, que lhe nega o poder e o prestígio que julga merecer, o mundo trocado que instala a aparência como verdadeira nobreza. Sob o triunfo da ilusão, Gregório enraíza na cidade da Bahia tudo aquilo que leu do pessimismo barroco, e do já antigo desconcerto do mundo – mundo que tem boas razões para figurar-se-lhe invertido, virado ao avesso, engolfando e dilapidando as “essências” no turbilhão das “aparências”, trocando umas pelas outras. (WISNIK, 2004’, p. 16).

Por isso, a dimensão do que se estende como um fio interminável inviabiliza sua possibilidade de ser uma resposta aos desmandos que aponta, sugerindo um tipo de pacto que pusesse um ponto final nessa situação. “A respeito da posição de Gregório em relação à sociedade de sua época talvez fosse mais adequado falar numa contraideologia”. (GOMES, 1985, p. 344). Ainda que não dependa de sua vontade, não podendo concorrer para seu abrandamento, a crise agiganta-se aos olhos do poeta, que assume uma luta sem trégua, confundindo os termos quanto às batalhas que enfrenta, daí não haver como ser medida a dimensão dos sucessivos conflitos em que se envolve. Postergado à condição de pária do sistema que denuncia, sua luta parece não ter um único escopo, do mesmo modo não encerrando uma proposta que a defina como plataforma, o que também lhe soa improvável.

Assim, a história da poesia brasileira anuncia-se em seu primeiro momento de excelência a partir da intervenção de Gregório de Matos como voz dissonante no concerto da produção cultural do período colonial. Não há como medir a distância que se explicita como termo de comparação dando conta da imensa superioridade de sua poesia sobre obras como Eustáquios (1769), do Frei Manuel de Santa Rita Itaparica, ou Música do Parnaso (1705), de Manuel Botelho de Oliveira. Em ambos os exemplos pontifica uma reiteração do lugar comum que atende ao modelo em voga como uma espécie de consentimento, a partir de uma situação confortável a que essas obras procuram transmitir como status necessário à sua permanência. Gregório de Matos, por sua vez, parece optar por uma zona de desconforto, confrontando a ordem estabelecida como marca significativa sem a qual sua obra deixaria de ter sentido, não ocupando, do mesmo modo, o lugar que lhe cabe. Há que se pensar que o suposto demérito de uma obra que não foi publicada enquanto vivo foi seu autor acaba por sofrer a consequência do que o tempo lhe impôs em seu reconhecimento tardio. No entanto, nada parece conspirar contra a força expressiva contida na oralidade de uma poesia que suplanta as limitações que lhes são impostas para registrar sua originalidade:

Ao contrário dos letrados de sua época – obedientes à matriz classicizante e envolvidos pelo encômio ao poder constituído ou pela louvação

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A marca distintiva que se impõe à sátira gregoriana funciona como referência capaz de atravessar o curso do tempo em que a isso lhe possam estorvar outros obstáculos que se interponham à sua indiscutível qualidade, além da má vontade sistemática que a colocou por um bom tempo em um patamar de inferioridade na história literária. Não obstante a incúria de que foi vítima, essa discriminação serve como argumento que lhe reforça a condição singular de que se faz portadora quando de seu ressurgimento. A sátira, nesse sentido, tem o poder de manter atualizado o ethos de um tempo que se faz presente nas injunções do poder como herança conservadora que atinge a sociedade brasileira, funcionando como um sinal indelével da atualidade que lhe serve de justificativa. Por isso, a alternativa do poeta, diante do impasse que se impõe como transe social e econômico, não tem como ser outro, senão o da busca por um processo de demolição das estruturas arruinadas do poder, o que para esse mister nada pode ser mais eficaz que o princípio da sátira. Por isso, o mal-estar que sua postura provoca concorre como poderoso elemento desagregador, atingindo ao conjunto dos acontecimentos contra os quais se indispõe, além de se constituir em prova inequívoca do quadro de precariedade que se estabelece com o retrocesso da Bahia a um plano inferior:

A inconformidade que se situa como motor da obra do vate fescenino atinge o limite do imponderável, uma vez que o vezo de reproduzir

grandiloquente da natureza brasileira – Gregório ousa e inaugura um novo registro. A vocação popular, crítica e concretizante de sua fala afiada, ao implementar vias alternativas de circulação (oral e manuscrita), concebe a primeira iniciativa de alargamento do horizonte da literatura até camadas mais amplas do público. (DIAS, 1990. p. 27).

Iludir a expectativa, zombar do caráter de outrem, ironizar o próprio, usar de caricaturas, dissimulação e duplo sentido, fingir ingenuidade dizendo asneiras são s gêneros que fazem rir. Reduzidos como gêneros, os sarcasmos, as imprecações, as facécias, as burlas, as ridicularias, as jocosidades de coisas e de palavras, as obscenidades e as agressões verbais são ilimitadas como relações de espécies na recepção. Ler a sátira barroca segundo a tradição retórica rearticulada no século XVII consiste em estabelecer situações de aplicação e difusão de tais gêneros, analisando-se a codificação moral de seus efeitos. (HANSEN, 1989, p. 36).

situações inerentes à poesia ibérica acaba por discrepar de modo extremo da situação colonial como tema a que recorre de maneira quase absoluta. A mudança de foco da Metrópole para a Colônia canaliza sua vocação de poeta para uma ordem de conflitos que se apresenta completamente inusitada ante o que pode funcionar como repertório da poesia barroca. Daí, antes mesmo de se configurar como primeira grande expressão de brasilidade, Gregório de Matos tem como mérito a coleta de uma série de materiais que, mesmo no ambiente da Colônia em crise, tem a função de reordenar as marcas do Barroco dando-lhe um fôlego adicional que o faz revivescer. Assim, cabe observar os meios através dos quais a prática pasquinesca de veiculação dos poemas não concorre para que a isso se sobreponha qualquer forma de menoscabar uma atitude que se faz legítima ante o impasse de que parece ser parte integrante. Por isso, a poesia configura-se em sua condição de meio possível de expressão de que se faz mister utilizar como representação do embate entre forças desiguais no cenário da Bahia do século XVII. Por esse caminho, a poesia visita todos os aspectos de uma sociedade que lhe serve de anteparo, catalisando as energias de que se utiliza por lhes serem extremamente necessárias.

O desgaste nas relações com o poder, especificamente com os governadores-gerais Antônio de Sousa de Menezes, o Braço de Prata, e Antônio Luiz da Câmara Coutinho, o Fanchono Beato, tende a colocar o poeta em posição defensiva, sob permanente ameaça, restando-lhe o espaço da sátira viperina que o degrada, assim como os ambientes promíscuos a que frequenta, de onde advém o rebotalho humano que lhe serve de plateia. A vida transgressora que assume distancia-se da do homem de leis que aportara à Colônia. Assim, a sátira gregoriana tende a dirigir seu foco aos objetos mais díspares diante da demanda de seguidas situações e dificuldades que se possam apresentar. “É intrigante como pôde Gregório de Matos sobreviver tanto tempo na Bahia, fazendo tantos versos contra tudo e contra todos (padres, freiras, frades, judeus, cristãos novos, usurários, militares, comerciantes, juízes, nobres, mulatos, negras)”. (PERES, 1983, p. 90). Ao leitor desatento isso pode constituir-se no enfoque da ironia como resposta ao desarranjo das coisas que observa, quando, em verdade, existe um aspecto da sátira que se mostra a partir de elementos

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que remetem à dolorosa constatação do que aos olhos do poeta não possui qualquer possibilidade de remissão. Por conseguinte, as fraturas que se impõem como marcas visíveis do que passa a vigorar a partir da situação de colapso iminente são colocadas no centro das atenções como índices de transgressão à norma do que concorre para que o magistrado de educação esmerada se converta no bardo devasso que assoma às ruelas da cidade portando o vezo infame de sua poesia obscena.

A Bahia de Gregório de Matos caracteriza-se e se converte, a partir de sua sátira, em espaço para onde converge toda sorte de aventureiros atraídos pelo desejo de riqueza fácil, o que se confirma na substituição compulsória da nobreza decaída pelo que o poeta chama de “caramurus”, ou seja, os mestiços sem estirpe que se arvoram à condição de mandatários, a que se alia à devassidão nas hostes da Igreja. Por conta do amálgama racial decorrente do encontro entre europeus, africanos e ameríndios no palco da Colônia, o poeta tarda, ou talvez nunca tenha chegado a perceber a transição dos tempos difíceis do que lhe foge ao entendimento, além dos bens materiais que lhes escapam das mãos. O opróbrio e a desolação de que parece ser vítima acaba por ter nele alguém que se vinga à sua maneira, não lhe importando, portanto, o nível de comprometimento de sua sátira como instrumento responsável por sua condenação ao degredo que o afasta para sempre da Bahia. A partir do momento em que os efeitos da sátira se voltam contra ele, resultando nas sucessivas incursões nos canaviais do Recôncavo, caracterizam-se a oscilação e a pendência entre as formas da poesia desviante que marcam os últimos instantes em sua terra. O estertor de uma linguagem poética que, sendo o retrato de sua derrocada, concorre como seu principal campo de força, torna-se responsável pela desrazão que seu discurso assume.

A Bahia em conflito

Os cerca de dez anos que marcam o retorno de Gregório de Matos à Bahia são como um intervalo que determina sua produção, configurando a sátira como ferramenta indispensável à descaracterização da cidade de sua condição de centro de irradiação da produção açucareira. A diatribe que o envolve ao âmago da crise assume proporções de luta pessoal quando a poesia que se faz representar nas ruas assume a diretiva de

ofensa à figura das autoridades a quem Gregório de Matos responsabiliza pela situação que enxerga como sendo o clímax desse momento. A cidade em sua configuração de becos e ladeiras concorre com sua geografia para que a poesia se propague em uma semi-sombra que permite sua circulação como material clandestino, e que promove, ainda que precariamente, os meios viáveis às condições que se impõem a esse tempo. Considerado como autor sem obra publicada, Gregório de Matos concorre para que se configure o imbróglio decorrente da distribuição de folhas soltas como forma de circulação de sua poesia. Não obstante o que se confirma na absoluta falta de meios de cultura acessíveis à população, a poesia assume sua condição de mecanismo que atende a uma proposta possível em sua efetivação. O poeta e sua lira praguejadora servem-se da oralidade como instrumento indispensável à ausência de outras possibilidades.

A forma encontrada para que sua obra atenda aos intentos que almeja acaba por fugir a qualquer estratégia possível, na medida em que a crise parece ser maior que o poeta, fazendo-o sucumbir aos males de que acusa a terra e sua gente de serem portadoras. Desse modo, a poesia satírica agencia um processo acelerado de reconhecimento da situação de depauperamento do que se anuncia inevitável, culminando na derrocada do sistema de exportação de açúcar. O que o poeta denuncia como desvio acaba por tornar-se parte integrante de um conluio em que a degradação se mostra como moeda corrente. “Graças à fusão da sensibilidade pessoal com os pressupostos estéticos do Barroco, Gregório de Matos decompõe sua realidade e aponta-lhe as partes, ora aos pedaços, ora em contrastes”. (DIMAS, 1983, p. 15). Os meios empregados como expressão de seu descontentamento pessoal assumem a dimensão de um descontentamento geral, o que se faz representar na denúncia de uma falência que se estende a todo o sistema. Assim, o apodrecimento do tecido social corresponde ao mesmo nível de degradação do meio físico, seja na cidade, seja nos engenhos do Recôncavo. A inversão dos tempos, como se apresentam, dá conta da total discrepância de propósitos que separa a obra do poeta de uma possível eficácia no sentido de poder ser revertido o quadro vigente:

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Gregório pretende, através da sátira, manifestar explicitamente o funcionamento do discurso do poder: uma cadeia de elos que circulam, e que se exerce em rede sobre os indivíduos, mas passando também entre eles. A clássica interpretação de que o poder é uma forma de opressão que se exerce de fora é desmentida por Gregório. O que o poeta faz ver é exatamente uma estratégia mais complexa, mediante a qual aquele que circula pelas cadeias esmagadoras do poder também se faz uma extensão do poder. A dinâmica opressor/oprimido não significa apenas a pressão dos fortes sobre os fracos, num movimento de cima para baixo, em que se inocenta a passividade do vencido. Gregório demonstra que a mesma força autoritária que pressiona e discrimina (El-Rei, a justiça, o clero corrupto, o governante, etc.) a sociedade brasileira dos seiscentos, nutre em si mesma a sua própria contradição: o seu contraveneno (a própria sátira do poeta, em que se mostra simultaneamente a baixeza e o alto e vice-versa). (LUCIA HELENA, 1982, p. 30).

O Barroco Brasileiro, a partir de Gregório de Matos, tende a propugnar um elevado índice de elementos de configuração estritamente locais que marcará a trajetória da cultura literária como uma herança, permeando seguidamente os sucessivos momentos de uma tradição que se consolidará. “O isolado, mas ao mesmo tempo participante barroco brasileiro se revela como um movimento autônomo e criador”. (CASTRO, 1999, 198). A Bahia em processo de falência, sob vários aspectos, amplia, a partir da lente do poeta, a primeira grande oportunidade de promover uma revisão de suas mazelas mais recônditas, estimulando, através da crise, a força das ideias opostas que se configuram através da sátira. O lugar inadequado onde se situam o poeta e sua obra, em que pese a gravidade desse instante, concorre como laboratório onde os questionamentos acercado modelo colonial são abordados, dando margem à constatação de sua ineficácia. A lira do poeta fescenino não enxerga alternativas ao impasse, pensando ser ele a morte em vida do projeto onde depositara sua crença e seu patrimônio. Por sua vez, a linha divisória entre o urbano e o rural onde sua poesia comparece, ratifica o desmoronamento de um imenso conjunto de elementos de ordem econômica que deixam de interessar aos novos segmentos do capitalismo em vigor, fazendo com que toda essa estrutura se torne obsoleta e sem sentido prático:

A relativa simplicidade da estrutura social brasileira no século e meio do descobrimento se complica na segunda metade do século XVII, com o aumento

da riqueza e o desenvolvimento econômico do país, pela intromissão de novas formas econômicas e sociais. Ao lado da economia agrícola, que até então dominara, se desenvolve a mobiliária: o comércio e o crédito. E com ela surge uma rica burguesia de negociantes, que por seus haveres rapidamente acumulados, começa a pôr em xeque a nobreza dos proprietários rurais, até então a única classe abastada, e, portanto, de prestígio da colônia. (FENELON, 1974, p. 56).

O modelo de sociedade que se confirma na Bahia como capital da Colônia, após a experiência de um surto de crescimento, passa por um processo de liquidação de seus bens mais valiosos, sumariamente condenada pelo intercurso da ordem mercantilista a que o poeta não tem condições de se adaptar. Daí resulta a indignação que a cada passo se converte em malogro. O reordenamento do lugar da Coroa Portuguesa nesse novo cenário, superando o impasse gerado pela crise, fora sugerido a D. João IV, primeiro rei da Dinastia de Bragança, pelo Padre Antônio Vieira, seu conselheiro, no sentido de ser criada uma grande companhia de comércio, nos moldes da Companhia das Índias Ocidentais, o que viria a significar a redenção econômica de Portugal. Para tanto, havia de se conceder o perdão inquisitorial aos capitalistas judeus, na troca por empréstimos a juros abaixo da cotação do mercado financeiro. No entanto, o interesse imediatista de algumas ordens religiosas à frente dos processos da Inquisição, com destaque para os dominicanos, que obtinham vantagem em extorquir os judeus, acaba por frustrar esse intento. Alheio a essas demandas e confinado à Bahia, resta ao poeta remoer seu ressentimento:

A descrição dos problemas que afligem a

Gregório de Matos viveu por dentro os efeitos da viragem. A sua família, de antiga fidalguia lusa, e senhora de um engenho de tamanho médio no Recôncavo, perdeu como tantas outras, o sustento oficial irrestrito que a escudara nos primeiros decênios do século. Com a queda fulminante dos preços do açúcar a nova situação passou a favorecer três grupos econômicos: as companhias estrangeiras, em primeiro lugar; depois, alguns latifundiários de maior calibre que conseguiram sobreviver à crise aumentando a produçãoe mantendo a escravaria (provavelmente, a nobreza caramuru, como o sátiro a chama, ressentido); enfim, e parcialmente, a sólida classe dos intermediários, os comerciantes reinóis já enraizados nas praças maiores da Bahia e do Recife, aos quais o exclusivo colonial necessariamente protegia. (BOSI, 1993, p. 99).

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Bahia parece responder a uma ordem que se eleva até o ponto de onde se vislumbra sua total descrença em um retorno ao período de apogeu de que tanto se ressente. A falta de respostas positivas que possam alterar o quadro em que a sátira se insere situa-se na contracorrente dos acontecimentos que concorrem para que essa poesia tenha efeito devastador como crítica às autoridades. O que resulta desse processo dá conta tão somente do desgaste que se agudiza como situação sem paradeiro, e que, por sua vez, não parece em nenhum momento corresponder às expectativas do poeta. Restrita à ambiência da Colônia, sua sátira, por mais localizada que pareça situar-se, acaba por universalizar o que se apresenta no plano local, dando à denúncia que o poeta entabula a dimensão de um discurso que se amplia ao extremo. Por isso, a perenidade de sua obra confirma-se no fato dela poder ter ao seu dispor as condições de acesso à matéria prima dos assuntos comezinhos, sendo também capaz de fazê-los porta-vozes de uma inquietação que reflete a dimensão mais abrangente da crise como retrato da conjuntura mundial desse momento de grave oscilação nos mercados.

A sátira que se engasta no modo como a Bahia passa a ser vista pelo poeta contribui para que se deflagre uma situação de fato, o que se assume como resposta ao silêncio imposto pelo poder apodrecido. A voz infamante do poeta maldito faz com que se invertam de modo extremo os termos de uma sociedade a que só pode enxergar às avessas. “Tendo sido, com todos os seus vícios, o maior poeta brasileiro do seu século, Gregório de Matos consegue legar-nos, além disso, um admirável documentário acerca de nossa sociedade colonial”. (HOLANDA, 1991, p. 418). Assim, o exercício da crítica como possibilidade dialógica não chega a se configurar, inexistindo, na medida em que se apresenta como via de mão única, não havendo, do mesmo modo, argumentação como elemento contraditório. O alcance da sátira, portanto, assume o papel de demolir o modelo estabelecido como regra oposta ao que propugna o desejo do poeta. Antes de querer adequar-se à nova situação, diante da qual se coloca em posição completamente refratária, Gregório de Matos passa a integrar-se a uma batalha sem trégua a que inevitavelmente sucumbe. Criador original,

de cuja sátira brota o primeiro sintoma de uma descontinuidade na sequência do sistema colonial, o Boca do Inferno, a partir de seus versos infames, recebe de volta todo o opróbrio que a decadência das terras de massapê lhe transfere como parte da descrençae o demérito com que enxerga o poder.

Os espaços de disputa do poder na Bahia seiscentista ficam limitados à ambiência do que se restringe às relações marcadas pela precariedade entre o poeta e os setores do Estado e da Igreja contra quem deliberadamente se indispõe. No entanto, o açodamento sem limites do homem descontente com a conjuntura que lhe usurpa os bens e altera o quadro social da Bahia o faz recorrer às armas de que dispõe em uma terra onde lhe faltam os instrumentos da imprensa e da liberdade. Por isso, a Bahia acaba por reunir as condições para que a sátira viperina circule nos locais de baixa cotação, além de sua fixação à porta dos conventos e dos palácios. Essa mesma precariedade na circulação dos versos infames acaba por potencializar seu intento, quando seu caráter clandestino se faz portador de um princípio de oralidade que ganha legitimidade na boca do povo das ruas que deles se apodera como um instrumento de vindita e desforra contra o arbítrio perpetrado pelas hostes do poder. Ainda que aparentemente vitimado pela falta de condições que o dignifiquem como poeta, Gregório de Matos parece vitorioso, se for pensado o estrago que seus versos provocam.

A vocação do andarilho que percorre os diferentes espaços da cidade e seu entorno dá conta da tentativa de fazer da poesia, ao tempo em que dela se servia como instrumento da infamação, um elemento capaz de fixar os termos referentes à permanência do poeta no lugar para onde regressa na maturidade. Por esse termo, podem ser compreendidas as citações que eventualmente faz a certos pontos localizados fora do eixo das decisões da cidade, além do Recôncavo, onde se encontram os mecanismos de exploração da cana-de-açúcar. Assim, a deterioração moral do que parece repercutir no espaço definido de centro comercial e político da Bahia acaba por se expandir por seus territórios contíguos, onde, na maioria das vezes, ocorrem as aventuras amorosas do boquirroto decaído que chafurda na luxúria como um sinal evidente da mesma corrupção que enxerga em seus desafetos. Afeito às situações

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de conflito, constantes na última década de sua permanência na Bahia, quando produza parte mais expressiva de obra, Gregório de Matos irá jactar-se da condição de poeta de estro inigualável, ainda que toda a paixão que nutre pela Bahia converta-se em dolorosa decepção.

Sátira e transgressão

O vezo obsceno de Gregório de Matos manifesta-se no momento em que o homem amadurecido pela convivência com o universo das leis acaba por se dar conta de um sistema que contraria o primado dessas mesmas leis a partir do abuso de poder que se consagra como prática corriqueira na administração da Colônia. A indisposição contra as autoridades, configura a posição do magistrado que se desloca de seu meio assumindo a difamação como moeda corrente de que se serve na luta insana pela barganha que acaba por derrotá-lo inapelavelmente. A lógica de um poder marcado pelos dividendos que o açúcar lhe aufere muda drasticamente seu sentido, resultando na desordem que se reflete na descrença que marca o declínio da confiança na estabilidade dos negócios da Colônia. Os termos que balizam a ordem estabelecida pela Coroa Portuguesa tendem ao desequilíbrio que se generaliza, resultando na forma poética de que Gregório de Matos lança mão para atacar o que lhe parece indevido. A poesia satírica, portanto, funciona como crônica de um tempo em que a urgência da comunicação oral pela via poética se sobrepõe à crise como termo integrante de um sistema que precisa ser desvelado em seus interstícios:

O espaço específico da sátira diz respeito à demanda de transgressão que corresponde ao comportamento humano destituído do sentido de seriedade que se faz preciso, em se tratando da representação do poder. Assim, na busca por desmoralizar as autoridades, a sátira gregoriana

Vamos ver então como o ambiente foi um desafio à inteligência de Gregório, e como o poeta foi um protesto veemente de seu tempo. A sátira foi a maior porção do poeta baiano, foi satírico por excelência, e nesse gênero ninguém o excedeu ainda talvez em toda a América, sustente-se contra ele a acusação que quiserem. Foi ele a própria personificação da sátira. Vergastou os maus – porque eram maus, e não poupou os bons – porque assim o eram por não saberem ser insolentes. (SPINA, 1946, p. 26).

acaba por criar as condições necessárias à sua generalização como retrato do transe social decorrente da decadência econômica. O mérito dessa investida consiste no aviltamento daqueles que, historicamente, seriam inatacáveis, resultando daí a dimensão lúdica de uma obra poética que parece constituir-se na plenitude da sátira, mesmo quando, no conjunto de sua produção, se estabelece uma distinção em relação à poesia lírica ou mesmo à poesia sacra. Pode-se afirmar que “Gregório de Matos é o primeiro grito contra o hábito bisonho e semicolonial de se santificar o comum, de se sublimar o banal, de se sacralizar o pífio, de se engalanar a malandrice espúria e rotineira entronizada pelo status. (SALLES, 1975, p. 140). Desse modo, tudo leva a crer que a sátira se sobreponha, por sua força inventiva, aos demais estilos, uma vez que nesses poemas podem ser encontrados fragmentos de um sentido de ironia que não são senão a própria razão de existir da sátira, confirmando-a como a mais legítima manifestação da obra de Gregório de Matos. Não podendo haver outro meio que fizesse da poesia um veículo de comunicação imediata, diante do intento a que ela se presta como parte da crítica que visa à demolição, a sátira parece atingir o ponto mais frágil daquilo a que o sistema possui como marca de sua vulnerabilidade. O sintoma mais evidente do desarranjo causado pela virulência da crítica embutida na manifestação da sátira diz respeito à resposta do poder que, ao ser seguidamente atingido e duramente ridicularizado, age de modo a deflagrar uma campanha contra o poeta, ao persegui-lo sistematicamente, o que culmina em sua prisão e seu degredo para Angola. Diante disso, é possível conceber de que modo os versos infamantes concorrem para desestruturar a base de um sistema que já se mostra precário, o que se verifica na forma como a isso corresponde à resposta deste. O significado simbólico da sátira, portanto, tende a agravar a diatribe que marca a cisão que o poeta estabelece com relação ao poder dos governadores. Assim, na medida em que se afasta do cerne da ordem política, assume um distanciamento que tem por princípio o modo de detratar o que o separa da vida pública. O ato muitas vezes hostil com que deplora os governantes corruptos e os religiosos sodomitas não tem como ser visto senão como parte específica de um conjunto de situações de que isso faz parte como tema principal. Por sua vez, a crise

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prossegue dando vazão à lira difamante do poeta como um exercício que se amplia a cada novo acontecimento, parecendo ser esta uma demanda para a qual não há forma que lhe possa contornar:

A situação que se instaura tem como resultado o confronto de propostas diante das quais a lira difamadora do Boca do Inferno funciona ao estabelecer um impasse que se potencializa ao extremo. Preterido da riqueza que lhe constituíra o patrimônio familiar em sua integralidade, sua reação em nada lhe serve como meio de poder modificar o que se apresenta como situação sem volta, concorrendo, pelo contrário, para que esta mesma situação lhe atinja ainda mais, sendo a própria derrota do que nas terras do massapê são o cenário da desolação. A sátira maligna é um recurso que atua de modo a promover a carnavalização da cultura como manifestação sobreposta de sucessivos modelos de linguagem que se aglutinam na Bahia do século XVII. O poeta não é senão alguém a quem toca dar às palavras um sentido e uma eficácia capaz de fazê-las transpor o plano de seu mero significado para poderem atuar como um instrumento que se supera em sua condição. O discurso que assume ao servir-se da sátira tem em seu oposto a reação orquestrada que concorre para seu desgaste lhe deteriorando as forças capazes de fazê-lo prosseguir de forma plena em sua campanha. Por conta disso, a sátira acaba por ser reduzida à prática obscena do homem decaído em sua condição física e moral, reduzido ao nada que lhe resta de seus bens:

O instinto literário, em Gregório de Matos, obedecia a um imperativo interior. Não teria chegado, a meu ver, a assumir aspectos de uma causa coletiva. Ele não tinha, quanto a isto, qualquer projeto definido. É verto que fustigou o fidalgo português, o unhate privilegiado na terra colonizada. Mas suas denúncias alcançariam igualmente o lombo indistinto de toda a comunidade pela qual demonstrou vivo ressentimento, como se o doutor formado em Coimbra fosse ali, naquela sociedade corrupta e mestiça, uma personalidade deslocada, sujeita a comer da banda podre e insatisfeita com esta situação. (PÓLVORA, 1974, p. 21-22).

Rápidos correram-lhe os anos na Bahia. Casando-se em avançada idade, talvez para arranjar-se, mas por último repelido unanimemente e inutilizado tanto em anos como em honorabilidade, vamos encontrá-lo reduzido a um reles boêmio, quase louco, sujo, malvestido, a percorrer os engenhos do Recôncavo, de viola ao

lado, tocando lundus e decantando poesias obscenas para regalo, naturalmente, dos devassos e estúpidos Mecenas da roça que lhe nutriam gulodice senil. O fauno de Coimbra, em última análise, degenerava no velho sátiro do mulatame. (ARARIPE JÚNIOR, 1978, p. 308-309).

A transgressão à ordem instituída, na voz do Boca do Inferno, tem início na prática dos desmandos através dos quais enxerga as autoridades como caricaturas infames. No entanto, essas figuras são como imagens destorcidas de que o poeta se utiliza com o intuito de deformá-las cada vez mais. A galeria dessas personagens cresce a cada instante em que a poesia visita os diferentes espaços da cidade, problematizando ainda mais o quadro de seus conflitos. O homem e a terra, portanto, fundem-se em uma espécie de corpo desarmônico par o qual não há condição que lhe possibilite um retorno à situação de origem. A confirmação de um estado de coisas que faz da capital da Colônia a imagem apagada do que a Coroa Portuguesa concebera como centro irradiador de uma riqueza que se agrega ao patrimônio da África e do Oriente desilude as expectativas depositadas pelo poeta na perenidade de obtenção de seus dividendos. A falta de entendimento acerca das transformações econômicas que destituem a Bahia de sua condição de produtora de riquezas parece ser o ponto nevrálgico do que representa a desilusão que se converte em sátira. O acúmulo de situações refratárias ao desejo de manutenção de um quadro de abundância como expressão permanente contraria de modo absoluto a expansão dos bens da terra afetada pela crise.

Desse modo, o poeta, nos instantes que antecedem sua prisão e seu degredo, aprofunda na sátira o resultado de sua convivência com a gente de pés no chão. De viola em punho, o trovador obsceno percorre o labirinto dos canaviais destilando sua amargura através de tropos que fazem dele alguém para quem o vendaval das mudanças na ordem mercantil lhe altera o eixo de atuação, da condição de magistrado de prestígio à situação que o coloca como uma caricatura de si mesmo. “Examinada no todo, a produção literária de Gregório autoriza a crer que seu inconformismo era o de um instintivo, de um sensitivo, ao menos como ponto de partida”. (MOISÉS, 1990, Vol. 1, p. 102). De posse do único bem que lhe resta, arrimado ao exercício da difamação, Gregório de Matos acaba por perder o compasso do que

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poderia representar um espaço de negociação com a cúpula do poder contra o qual se indispõe, colocando-se em posição diametralmente oposta. Esse processo de marginalização lhe custa um desgaste que lhe corrói fisicamente quando, no crepúsculo da vida, decai ao extremo, a exemplo da Bahia a que dedica a intenção de sua verve. Por sua vez, o degredo que lhe é imposto não serve de modo algum para que lhe seja atenuada a situação que denuncia, quando de seu retorno da Metrópole. Os efeitos desastrosos do que se verifica na terra destroçada pela crise repercutem como situação generalizada, a partir do instante em que a sátira se converte em comédia de erros.

As torpezas de uma terra viciosa, do ponto de vista de onde o poeta a observa, culminam nas formas de um poder que se mostra transgressor a partir das atitudes que contrariam o que se espera de suas formas de representação. Ao dar à autoridade a alcunha de Fanchono Beato, Gregório de Matos incide no tema da sodomia como um acréscimo à condição de truculento e corrupto de que acusa o governador Antônio Luiz da Câmara Coutinho. Assim, “Gregório de Matos, já incorporado ao cotidiano da terra natal, se contenta em atingir seus inimigos com a sátira e a chacota, com o ridículo e seguro anonimato de seus versos”. (BARROS, 1986, p. 11). O menestrel da maledicência não economiza instrumentos com os quais declara guerra aos seus opositores, ainda que em condições desiguais, a partir da sátira como forma de que dispõe. O vitupério de que se faz um mestre o energiza provisoriamente, servindo-lhe de munição, mas não evita que essa mesma sátira lhe faça refém do que lhe servira como um aliado de primeira grandeza. Os efeitos da crise repercutem como uma espécie de paroxismo, na medida em que o sentido da realidade hiperbolizada assume a diretiva de um discurso a que o poeta não descarta, mantendo-se ligado a essa situação de modo inalienável. Os meios a partir dos quais a poesia satírica impõe suas regras confundem-se com a própria falência do modelo que até então se impõe, o que não representa de modo algum seu fim, que se anuncia ainda distante.

O exercício da crítica social de que se aproveita o vezo satírico de Gregório de Matos para afrontar o poder situa-se em uma linha limítrofe que se rompe a partir do momento em que o poeta capitula, levado à condição de não mais voltar à Bahia que servira como cenário de sua obra. Assim, o degredo em Angola e o retorno a

Pernambuco põem um ponto final no que a sátira lhe fora em seu sentido mais pleno, uma vez que passa a vivenciar uma situação de deslocamento do fulcro do que lhe fora tão significativo. A partir do momento em que o poeta não mais dispõe da matéria prima que lhe possibilita exercer a desconstrução de um modelo que já se prenuncia fadado ao fracasso, a sátira provisoriamente deixa de fazer sentido, emparedada ao limite de sua razão de ser. O que resta da Bahia decadente apenas aguarda a liquidação dos bens a serem arrematados. O colapso iminente dá o tom de uma situação de dolorosa ironia diante da qual a sátira e sua carga de transgressão em mais nada podem contribuir. O espaço inerente a esse deslocamento, no que concerne ao vazio deixado pela ausência do poeta, parece concorrer para uma instância terminal do que representa a centralização dos negócios da Coroa Portuguesa na Bahia.

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Recebido em 26/10/2016 Aceito em 05/12/2016

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