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A Trajetória da Força de Trabalho no Sudeste Paraense: de agricultores migrantes a garimpeiros, de garimpeiros a posseiros, a excluídos, a Sem Terra

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Academic year: 2021

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A Trajetória da Força de Trabalho no Sudeste Paraense: de

agricultores migrantes a garimpeiros, de garimpeiros a posseiros, a

excluídos, a Sem Terra

Carlos Henrique Lopes de Souza UFSC

Palavras-chave: força de trabalho, movimentos sociais, agricultura familiar.

Apresentação

Este trabalho é resultado de alguns anos de observação e acompanhamento dos movimentos sociais na região sudeste do Pará, área conhecida nacional e internacionalmente em função do alto índice de violência e de conflitos e, mais recentemente, de nossa pesquisa sobre Movimento Sem Terra, tema proposto para tese de doutoramento.

Considerando a vasta literatura sobre o tema, e, considerando ainda, o material que já vimos coletando na região, optamos, neste trabalho, em nos determos na análise de algumas histórias de vida de integrantes do Movimento Sem Terra que já tiveram diferentes experiências como força de trabalho, isto é, que já exerceram atividades variadas, em sua história de vida e na construção do espaço regional. Uma força de trabalho é composta por homens e mulheres, com experiência e identidades próprias, e que, em seus cotidianos, vivenciaram experiências, nem sempre agradáveis. Homens e mulheres que, embora exerçam papéis distintos na sociedade, juntos, vêm lutando contra a expropriação e exclusão social. Mas quem são estes homens e mulheres? Que experiências eles trouxeram e que novos aprendizados tiveram? Como e em que momentos de suas vidas eles/elas participaram e/ou participam dos capítulos de construção do espaço agrário regional? São estas as principais indagações que nortearão este trabalho.

Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado

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1. Considerações iniciais

Foi, especialmente, durante os anos 70 e 80 que o sudeste paraense viveu, de forma mais acentuada, um processo de reordenamento espacial imposto, principalmente, pela geopolítica do Estado que se baseava, de um lado, na incorporação de terras, e, de outro, na mobilização de mão-de-obra que atendesse à necessidade de força de trabalho para o capital que se expandia na região. Este processo ocasionou um intenso crescimento populacional, alcançando índices bastante elevados. Grande parte desta população, impedida de acesso à terra ou à espera de uma oportunidade de trabalho, formou uma categoria de trabalhadores polivalentes(BECKER,1979), isto é, um excedente de força de trabalho com baixíssima ou nenhuma qualificação e disponível para ser contratada a qualquer momento. Este excedente de força de trabalho acabou se ocupando de atividades mais diversificadas possíveis, ora no garimpo, ora em madeireiras ou empreiteiras, ora em atividades domésticas ou como peões, atividades que funcionavam, na prática, como estratégias de sobrevivência, face à expropriação e ao desemprego a que estavam sujeitos.

O reordenamento das forças produtivas internas no país, que naquele momento representava os interesses dos setores industriais urbanos em ascensão, aliado aos setores agrários dominantes (GONÇALVES NETO,1997), e, ainda, a centralização do Estado brasileiro (articulado aos interesses de grandes grupos econômicos internacionais), compunham os imperativos geopolíticos da ação do Estado, no campo brasileiro, em geral, e no amazônico, em particular. Ao implementar medidas que representavam os interesses destes setores, ao mesmo tempo em que mantinha a estrutura fundiária pré existente, o Estado adotava, então, uma política para o campo extremamente excludente e conservadora (GRAZIANO DA SILVA,1982), responsável pelo aumento do desemprego no campo e de sua subordinação ao capital financeiro e industrial (ROMEIRO,1988).

Neste processo, foi para a Amazônia que se desviou o problema dos excedentes populacionais (SORJ,1986), resultantes do conflito capital/trabalho que então se acirrava no país. Foi à Amazônia brasileira que se destinou grande parte deste excedente, muitos deles pequenos e médios agricultores, ou desempregados rurais e urbanos, considerando que junto à expropriação rural assistíamos também ao fechamento de postos de trabalho pela utilização de novas tecnologias

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propostas/impostas ao Terceiro Mundo, na forma do pacote tecnológico (AGUIAR,1986).

De outro lado, para muitos homens e mulheres, o espaço amazônico aparecia como uma última frente, última oportunidade para aquisição de terras. E, paralelo à migração de pessoas, assistia-se, também, à grande entrada de capitais, através de empresas agropecuárias, mineradoras e até mesmo de instituições financeiras que passaram a se apropriar de enormes extensões de terra. As políticas públicas aplicadas ao sudeste paraense promoveram uma grande reviravolta, provocando contradições e conflitos que se acirravam a cada entrada de novos atores sociais, que tinham na região os interesses mais diversificados. A abertura da fronteira, para migração conjunta de força de trabalho e capital, “...além de ter promovido o reordenamento espacial, foi

responsável pela construção de um dos capítulos mais sangrentos de sua história.”(SOUZA, 2002:20)

Muitos destes migrantes, na tentativa de se reproduzirem como agricultores familiares, viveram experiências bem adversas, desde o isolamento e a dificuldade de comunicação, considerando que até hoje a maioria das vias de acesso não são pavimentadas, até a violência, originada em função dos conflitos de interesses na apropriação da natureza: índios, madeireiros, garimpeiros, posseiros, grileiros. Por outro lado, o processo de convivência, na maioria das vezes conflituosa, entre estes grupos de

tempos históricos diferentes (MARTINS,1999), ao mesmo tempo que gerava estes

conflitos, contraditoriamente, tornava-se a forma pela qual inúmeras famílias conseguiam se reproduzir.

Mais tarde, durante os anos 90, a organização nacional e as ações de ocupação pelo Movimento Sem Terra denunciam à sociedade os graves problemas no campo brasileiro ainda não solucionados, forçando-a a refletir sobre o quadro agrário nacional. Por outro lado, para alguns autores, o sudeste paraense foi simplesmente caracterizado como um “barril de pólvora” e os movimentos sociais criticados em suas ações de ocupação(CAROS AMIGOS, 2002), como se para a grande massa de trabalhadores e trabalhadoras a ocupação da terra estivesse fadada ao fracasso, e, como se eles, trabalhadores, pudessem ser responsabilizados pela violência. Apesar de reconhecermos o quadro de tensão nesta região, limitarmos nossa análise a este aspecto, priorizando o aspecto da violência, seria negar o significado real das ações de ocupação e da luta pela

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terra para cada família envolvida nesta dinâmica, e, até mesmo, seu papel na construção do quadro regional. Ademais, acreditamos que correríamos o risco de entrar em um perigoso campo de análise, no qual a prioridade é dada ao aspecto produtivista da terra (leia-se, da propriedade) aos moldes capitalistas, e, desta forma, negando, ou, intencionalmente, esquecendo seu papel social.

Assim, um dos objetivos que nos propomos, é o de resgatar a trajetória de algumas famílias dentro dos diferentes momentos de reordenamento do quadro regional. Para isto, o uso da importante fonte de história oral e a utilização da história de vida foram de fundamental importância. Através de diversos depoimentos, entrevistas, relatos, conseguimos informações fundamentais para melhor compreendermos a história da vida, da luta e da resistência destas famílias, desta vez, através da voz destes atores que trazem a memória destes acontecimentos (MEIHY,1996). Utilizaremos, quando necessário, algumas citações de depoimentos e entrevistas, que foram coletadas nos municípios de Marabá, São João do Araguaia e Eldorado dos Carajás, Curionópolis e Parauapebas (mapa anexo). Optamos em restringir nossa análise a estes lugares em função da ocorrência de grande incidência de atividades de garimpo durante os anos 80 e início dos anos 90, e, em função de se tratar de lugares com maior número de Projetos de Assentamento ligados ao Movimento Sem Terra, originado nacionalmente com a proposta de unificação da luta pela terra , e, regionalmente, com a mobilização de um grande número de desempregados e expropriados rurais.

2. Força de trabalho e conflitos sociais

A trajetória da força de trabalho no sudeste paraense foi sempre marcada pela convivência com a violência (IANNI, 1979), que se exacerbava a cada chegada de um novo ator social (SOUZA, 1994). Naquele momento, o controle das atividades comerciais e, em seguida, o controle da terra, favoreciam o domínio e o quase que poder absoluto de oligarquias rurais(EMMI, 1985). Com a grande migração de força de trabalho e capitais privados durante os anos 70 e 80, os conflitos de interesses, que se acirravam, provocaram o inevitável aumento das lutas sociais na região, elevando o Estado do Pará, a um dos primeiros no ranking da violência no campo, atualmente superado somente pelo estado de Pernambuco(CPT,2000, IDESP,1990).

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Apesar de todos os esforços dos movimentos populares, e, considerando todas as possíveis conquistas e vitórias contra esta manifestação brutal de poder que se constituía, percebemos que, durante os anos 90, a violência continuou a se reproduzir. O sudeste paraense, que viveu um intenso processo de reordenamento espacial, durante os últimos 30 anos, convive, ainda, com grande incidência de conflitos no campo, em geral envolvendo antigos e novos(?) atores sociais. À exceção do garimpo, cuja prática foi suspensa na região partir de 1992, ainda nos deparamos com problemas que deixam de ser antigos, por ainda serem atuais: trabalho escravo, ameaças de morte, assassinatos, chacinas e aqueles ligados à posse da terra. De outro lado, o conflito que se estabeleceu foi acirrado pelo intenso crescimento populacional, conforme o quadro 1:

Quadro 1. Crescimento populacional

Sudeste Paraense Estado do Pará

Período População Tx.Crescim. no período População Tx.Crescim. no período 1970 95.333 __ 2.197.072 __ 1980 311.509 226,5 3.507.312 59,9 1991 889.455 185,5 5.181.570 47,73 2001 1.191.393 33,9 6.189.550 19,45 Fonte : IBGE

É importante salientarmos o aspecto da mudança de metodologia para levantamento e tratamento dos dados pelo I.B.G.E., dificultando, um pouco, a sistematização dos dados relativos ao crescimento da população. Nos censos de 70 e 80, os dados eram tomados pelas microrregiões homogêneas e nos censos posteriores a base destes dados passa a ser a mesorregião1. Assim, o quadro apresenta uma distorção nos dados, referentes à passagem da década de 80 para 90, quando então a área correspondente à mesorregião sudeste paraense (que abrangeria as microrregiões do Araguaia Paraense e Marabá) são acrescidos alguns municípios. Contudo, ainda considerando esta distorção, o crescimento populacional não deixou de ser significativo.

1 Quando confeccionamos o quadro aproximamos as “microrregiões” da atual definição de mesorregiões.

Foi a melhor forma que encontramos para tentar demonstrar o evolutivo populacional. De outro lado, as mesorregiões como base de dados representavam, na maioria dos casos, à junção de microrregiões anteriormente definidas e se adotássemos a categoria município teríamos, ainda, uma maior dificuldade, em função do surto de municipalização durante os anos 80.

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Ainda no quadro 1, notamos uma grande queda na taxa de crescimento populacional, se compararmos aos períodos anteriores, embora mantendo-se acima da taxa correspondente ao Estado. No quadro 02, a partir do comparativo do crescimento populacional do sudeste paraense em relação às demais mesorregiões, poderemos ter uma melhor visualização da dimensão deste crescimento, observando que a coluna em destaque é a que apresenta distorção dos dados.

Quadro 2. Comparativo da população do Estado do Pará por mesorregiões 1970-2001 1970 1980 1991 2001 Sudeste Paraense 95.333 311.509 163,33 889.455* 1.192.135 Sudoeste paraense 16.677 51.491 208,75 344.008 568,09 424.312 32,34 Nordeste paraense 845.381 1.219.119 44,21 1.218.214** -0,07 1.473.262 20,93 Metropolitan a de Belém 669.768 1.021.486 52,51 1.620.564 58,64 2.085.075 28,66 Marajó 212.861 281.031 32,02 317.022 12,8 378.203 19,3 Baixo Amazonas 325.998 518.755 59,12 560.797 8,1 638.320 13,82 *Ao sudeste paraense são acrescidos dois municípios pertencentes anteriormente a outras microrregiões. **Aqui a distorção se dá em função da saída de alguns municípios do nordeste paraense para a região Metropolitana de Belém.

Fonte: I.B.G.E.

Ainda considerando as distorções dos dados, podemos observar que o aumento populacional foi expressivo, principalmente nas áreas de fronteira, como o sudeste e o sudoeste paraense, áreas sob a influência da rodovia transamazônica e espaços de expansão do capital e de frentes de trabalho, processo diretamente ligado ao reordenamento das forças produtivas internas no país, que, ao desapropriar do campo uma grande parcela da população, apresentou a migração para Amazônia como alternativa de emprego e/ou possibilidade de acesso à terra.

À diferença do sudoeste do Pará, o sudeste paraense já contava com uma história de violência e de fortalecimento de estruturas locais de poder, baseadas na propriedade da terra. Contudo, observamos ainda que em ambas desenvolveram-se, da mesma

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forma, atividades de garimpo, de exploração da floresta nativa, de ocupação das terras e projetos de capitais privados nacionais e internacionais, que requeriam a utilização da força de trabalho em grande escala e a baixíssimos preços.

Especificamente no sudeste paraense, todo este crescimento populacional implicou em uma verdadeira reviravolta, impulsionando a corrida pela terra e o aumento do conflito capital-trabalho. De outra parte, os números apresentados nos dão forte indicadores de momentos específicos do processo de reordenamento espacial da região, podendo ser então definidos em três momentos, não excludentes entre si:

- O primeiro momento, durante os anos 70, estaria ligado diretamente à política de distribuição de terras, que proporcionou um assustador crescimento populacional, em função da migração inter regional. Este conjunto de migrantes, na sua maioria, vinha em busca de terras disponibilizadas pela União para fins de Reforma Agrária (na prática, tratava-se da efetivação da política de colonização), ou migravam em busca de oportunidade nas frentes de trabalho que se abriam (abertura de estradas, obras de infra-estrutura nas diversas áreas de construção civil, exploração madeireira, transporte de cargas, etc.). Muitas famílias que migraram neste momento permaneceram na região, algumas conseguiram se estabelecer em pequenos lotes rurais, outras foram obrigadas a abandonarem as terras e dedicarem-se a outras atividades; outras, ocupando terras cada vez mais distantes, ou migrando internamente em busca de novas frentes de trabalho. - O segundo momento foi representado pela opção de ocupação da região pela

pata do boi, incentivando-se projetos de capitais privados nacionais e

internacionais, ao mesmo tempo em que se realizavam as pesquisas e explorações minerais, que exigiam uma grande quantidade de força de trabalho para as obras de infra estrutura. O novo fluxo migratório contribuiu para o acirramento dos conflitos sociais, principalmente ligados à posse de terras, ao mesmo tempo em que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais retomava a luta política e a organização sindical, realizando inúmeras ocupações de terras. Outro fato marcante foi o surgimento da Serra Pelada, um dos maiores garimpos a céu aberto já conhecidos. A movimentação de pessoas durante este momento foi intensa. Muitas delas já se encontravam na

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região, realizando uma forma de migração interna; outras, atraídas pelas perspectivas de melhoria de vida, acabavam largando o tudo, ou o quase nada que possuíam, para se aventurarem a enfrentar uma nova e distante realidade.

- No terceiro momento, com grande diminuição na taxa de crescimento populacional, assistimos ao fechamento dos garimpos, ao mesmo tempo em que não se tinha uma política para o campo que atendesse aos reais interesses da imensa população de trabalhadores e trabalhadoras desempregada e/ou expropriada. Esta imensa massa populacional, excluída também do garimpo, passou a pressionar o Estado, realizando novas ocupações, tanto pela via sindical como através do Movimento Sem Terra.

De outro lado, no reordenamento espacial do sudeste paraense (resultado direto da implementação de políticas públicas pós 70), a apropriação da terra se efetivou de forma rápida e intensa, agudizando os conflitos sociais em função da posse desigual da terra, conforme o quadro 3.

Os dados de 1995 são os mais atuais que dispomos sobre a estrutura fundiária. A partir deles, podemos ter uma idéia do grau de concentração das terras. Assim, crescimento populacional, concentração fundiária, aliados à escassez na oferta de empregos, resultaram no aumento do conflito e da tensão social, materializando-se nos diferentes embates entre atores sociais2 e na luta pela terra.

Quadro 03. Propriedade da terra no sudeste do Pará 1995

1995 Propriedades (em

ha) N° estabelecimentos Área total (em ha)

Menos de 10 2.574 6,48% 11.781 0,10%

10 a - de 100 25.765 64,41% 1.421.648 13,97%

100 a - de 1.000 9.986 25,15% 2.575.788 23,32% Mil a - de 10.000 1.279 3,22% 3.611.685 35,50%

10.000 a mais 102 0,25% 2.548.396 25,05% Fonte: Censo Agropecuário/ IBGE, 1995-1996.

2 Conflitos diversos, envolvendo índios, posseiros, madeireiros, grileiros, grandes empresas, denúncia de

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Quando falamos conflitos sociais, luta pela terra, no sudeste paraense (ou em qualquer lugar do país), é importante observarmos que são resultantes de antigas políticas fundiárias aliadas às modernas formas de poder e de estruturação das políticas públicas. De um lado, contamos, atualmente, com um Estado cujas políticas sociais foram drasticamente reduzidas, e, apesar da propaganda contrária realizada pelo atual governo brasileiro, as políticas voltadas ao meio rural , mais uma vez, visam a acumulação e a reprodução ampliada do capital, pouca importância dando aos problemas conseqüentes da concentração fundiária e das necessidades da imensa massa populacional excluída do acesso à terra. O que temos presenciado são tentativas do governo Federal, através da edição de medidas provisórias, de coibir as ações dos movimentos sociais e de limitar, ainda mais, o acesso à terra às populações que realmente necessitam. (FERNANDES, 2001)

Medidas como o Banco da Terra (afirmando a concepção de terra como mercadoria), o cadastramento pelos correios3, a proibição, por dois anos, de vistoria em

áreas de conflito, demonstram que, longe de solucionarem o problema da concentração fundiária e do acesso à terra, podem, até mesmo, provocar um acirramento do quadro de tensões na região. As mais recentes medidas provisórias nos parece mais um conjunto de medidas para salvaguardar a propriedade e garantir os interesses dos setores mais retrógrados do meio rural brasileiro do que uma política voltada à agricultura familiar.

Se, para MARTINS (1984), os anos do Governo Militar no Brasil foram marcados pelo tratamento dos problemas no campo não como problemas sociais, mas como problemas de Segurança Nacional, sendo, por isso mesmo, tratados de forma

militarizada, no atual governo, eles passam a ser tratados criminalmente, isto é, homens

e mulheres que ocupem terras na expectativa de melhoria de vida, ou mesmo para se reproduzirem enquanto indivíduos, passam a ser tratados como criminosos, por exemplo, os efeitos da Medida Provisória, que os enquadra por formação de quadrilha.

O quadro se acirra quando estas medidas viabilizam a exacerbação e a própria institucionalização da violência contra ocupantes de terras públicas ou privadas, quando da emissão de mandatos judiciais, ordens de prisão, ações violentas de despejos, muitas vezes seguidas de torturas e assassinatos. Na realidade, pela atual política do Governo

3 Esclarecemos que não somos contrários ao cadastramento, apenas alertamos para a forma como este

cadastramento está sendo utilizado para inibir as ações de ocupações, na perseguição de lideranças e ainda burocratizando as ações que deveriam ser resolvidas com maior rapidez e eficácia.

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Federal, capitalistas e latifundiários já não necessitam utilizar suas milícias armadas particulares (os jagunços) para a proteção de sua propriedade, já que o próprio aparato do Estado a protegerá, ainda que se trate de terra obtida de forma ilícita, ainda que improdutiva, ainda que devoluta4.

O Governo Federal, ao invés de efetivar uma política comprometida, de fato, com a agricultura de caráter familiar, ao mesmo que tempo que poderia dar uma resposta aos anseios populares, preocupou-se em adotar medidas inibidoras, para conter o avanço dos conflitos no campo, que ainda está presente em todo espaço rural brasileiro. Segundo OLIVEIRA “...a característica fundamental da década de 90 é

definitivamente, o crescimento dos conflitos no campo.. o governo FHC vai entrando para a história como o governo com os maiores indicadores de conflitos no campo.”(OLIVEIRA, in:CPT,2000, p07).

De outra parte, observamos que os números de assentamentos de famílias, em área de Reforma Agrária, apresentados pelo atual Governo, estão longe de representarem a realidade. Trata-se de uma manobra pela qual a regularização de antigas áreas de assentamentos, cujos agricultores já há algum tempo aguardavam a titulação, foi incluída nos dados das famílias assentadas pela atual política de Reforma Agrária.

As poucas medidas visando o incentivo à produção familiar rural restringe-se a algumas linhas de crédito, como o fomento à produção e o Programa Nacional de Crédito em Áreas de reforma Agrária(PRONAF). Contudo, no sudeste paraense, o programa só atinge uma minoria dos agricultores e os recursos geralmente são liberados com atraso, prejudicando o calendário agrícola que está intimamente ligado ao ciclo da natureza. Ocupar terras, dentro deste quadro, torna-se extremamente difícil, mas para uma grande parcela dos ocupantes talvez seja uma das poucas alternativas que lhes restem, considerando a desapropriação e o desemprego a que foram historicamente sujeitos.

4 Os exemplos de apropriação indevida de terra que foram tratadas como legítimas são muitas.

Restringimo-nos ao recente caso da fazenda Chão de Estrelas, em Paragominas, cujo proprietário, ex-senador pelo Estado, ao mesmo tempo que respondia inquérito por desvio de dinheiro público e grilagem de terras teve assegurado o aparato jurídico e repressivo para salvaguardar a propriedade, comprovadamente irregular.

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Assim, movidos por realidades históricas as mais diversas, inúmeros homens e mulheres viveram/vivem cada momento que aqui apresentamos. Muitos já tiveram experiência como agricultores, peões, ou tiveram suas terras tomadas, ou foram rendeiros em outras terras, alguns passaram pelo garimpo ou já ocuparam terras, sem sucesso. A entrada para o Movimento Sem Terra representaria, assim, uma nova alternativa para a realização do sonho de acesso à terra. A organização do Movimento Sem Terra, nacional e regionalmente, durante os anos 90, parecia trazer novas esperanças aos inúmeros agricultores e agricultoras que ainda sonhavam em conquistar a terra. Contudo, é importante destacarmos que foi do movimento dos posseiros, apoiado pela Igreja, através da Comissão Pastoral da Terra, sindicatos, Centrais de Trabalhadores, que se originou o MST, inspirando novas estratégias de ocupação, luta e resistência. Junto à Federação dos Trabalhadores da Agricultura (FETAGRI), que no sudeste paraense é atuante na luta pela terra, o papel do MST torna-se fundamental na oportunização de melhores dias e na construção de um espaço alternativo para esta imensa força de trabalho. No reordenamento espacial imposto à região não havia, de fato, lugar para a agricultura familiar, que, para se reproduzir, utilizou-se das ocupações como uma resposta a este reordenamento imposto.

3. Frentes de trabalho e reordenamento espacial do sudeste paraense

A mobilização para entrada de uma grande frente de trabalho no sudeste paraense fazia parte do ousado projeto, sob o slogan Segurança e Desenvolvimento(HÉBETE, 1989), durante os anos de governo militar. Naquele momento, entre as estratégias do Estado para garantir o processo de acumulação dos capitais privados, nacionais e internacionais, a implementação de infra-estrutura, como abertura de rodovias, hidrelétricas (CORREA, 1997), necessitava de força de trabalho - e de um excedente capaz de rebaixar os salários. De outro lado, promessas de titulação de terras para as famílias “sem terra” e, mais tarde, as atividades de garimpo, engrossavam os fluxos migratórios, aumentando estes excedentes.

De fato, a fronteira amazônica representou a maior mobilização de pessoas e a maior incorporação de terras já vistas no espaço brasileiro(BECKER,1979), e, a grande diversidade de atores sociais, que tinha na região os interesses mais diferenciados (SOUZA,1994), promoveu uma intensa alteração em sua dinâmica interna.

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Até o momento, vimos analisando o reordenamento espacial no sudeste paraense e apresentando alguns dados para que tivéssemos uma melhor apreensão da realidade regional. Contudo, é mister observamos o papel que os movimentos sociais organizados tiveram e têm na condução de estratégias de enfrentamento ou de adaptação a este novo reordenamento.

Neste sentido, homens e mulheres tiveram experiências diversificadas e participaram de alguma forma deste processo. Pretendemos, então, neste momento, mostrar esta mesma história através dos depoimentos destas pessoas, que ora conduzidas pela dinâmica imposta pelos setores dominantes, ora conduzindo estratégias capazes de se opor e/ou resistir a esta mesma “ordem”, foram importantes atores (ou vítimas) de todo este processo. Assim, a definição de reordenamento espacial se enriquece, considerando que aqui não são apenas os atores sociais hegemônicos que serão consideraremos como sujeitos/atores.

Os trechos de relatos das diferentes histórias de vida, que mostraremos a seguir, fazem parte de um conjunto de dados que obtivemos em diversas atividades de campo e de acompanhamento da luta do movimento social na região. Contando, atualmente, com 07 Assentamentos e, aproximadamente, 3.000 famílias assentadas, o Movimento Sem Terra conta, ainda, com 6 Acampamentos, com cerca de 1.500 famílias no aguardo da disponibilização das terras para efeito de Reforma Agrária. Apesar deste número não ser expressivo, seu resultado o é, a partir do momento que viabiliza a estas famílias a possibilidade de se reproduzirem, construindo a agricultura familiar como alternativa.

“...a luta pela terra hoje ela se tornou uma luta maior, na realidade ela está aí no enfrentamento do desemprego, contra os baixos salários, contra as falta de condições de vida mesmo hoje na cidades. a gente do movimento foi se tornando essa opção..., então isso vai juntando esse outro bloco da sociedade que não os camponeses, que antes eram bem mesmo pessoas camponeses que trabalhavam nas fazendas que trabalhavam em terra alheia que compunham movimento sem-terra hoje na pessoas desempregadas até mesmo que nunca tiveram contato com a terra passa a morar na terra na verdade possa se adaptando ao trabalho na terra com um uma nova forma de sobrevivência, aí vai se juntando depois a identidade

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sem terra que hoje ser sem-terra se tornou para nós uma questão de identidade”.(Maria Raimunda, Secretaria do MST, Novembro2001)

Desta forma, alguns relatos que obtivemos em campo, junto com depoimentos e informações em geral, compõem um rico e vasto material acerca das histórias de vida vividas neste espaço de contradições e conflitos, histórias de vida que se confundem com a história regional sendo, por isso mesmo, importantes instrumentos de análise. Como, por exemplo, a história de Dona Raimunda Teixeira, 60 anos, de origem maranhense. Quebradeira de coco na região de Imperatriz, no Maranhão, no ano de 1983, então com 42 anos, migrou para o sudeste paraense, município de Curionópolis (àquela época “Km30”) ao encontro do esposo, que estava no garimpo de Serra Pelada. Foi lá que ela viveu difíceis momentos, aliados à violência do mundo garimpeiro. O garimpo, na verdade, era uma atividade exclusivamente masculina. As mulheres se estabeleciam nos vilarejos, dedicando-se a atividades que não exigissem qualificação, como serviços domésticos, lavagem de roupa; ou se prostituindo.

Naquele momento estabelecia-se a convivência com a violência, na sua forma mais brutal e exacerbada: “ó nesse tempo que cheguei no 30, seis horas todo mundo

estava com suas portas fechadas....porque se dizia assim, de dia é 30 e de noite é 31...”.

E continua, ”...moço, de manhã o senhor andava na rua era só por cima de defunto...”. Dona Raimunda Teixeira, que saíra do Maranhão em função do alto preço cobrado pelo arrendamento das terras, vivera desde sua infância, junto aos pais, trabalhando em terras alheias, ora como arrendatários, meeiros, ora como agregados e, junto ao marido, continuava a viver a mesma situação. A migração do esposo para trabalhar no garimpo, que parecia ser a forma mais rápida de melhoria de vida, não o foi.: “...os pouquinho que ele ganhava era prá tratar da malária...durante o tempo que

ele trabalhou no garimpo foi o tempo que ele vivia só doente...” como diziam os

garimpeiros quando afirmavam que o dinheiro do garimpo seria um dinheiro “maldito”. A experiência no garimpo não foi capaz de garantir melhorias de vida à dona Raimunda e ao esposo, e, durante sua vivência na região, somente conseguiram retornar à terra no ano de 1992, quando então entrou para o Movimento Sem Terra, na ocupação do Assentamento Palmares, em Parauapebas. Esta ocupação representou uma importante conquista do Movimento, considerando se situar no centro de domínio do

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latifúndio, o que agudizou ainda mais a tensão, além de se tratar de área sob a influência direta da Companhia Vale do Rio Doce, que explora o minério de ferro na região.

Para Dona Raimunda, que esteve desde o início à frente da luta para ocupação da área, a conquista da terra teve um significado ainda maior, se levarmos em consideração toda sua história de sofrimento e de convívio direto com a violência. Após muitas dificuldades, mas também de muitos momentos de lazer, no Acampamento, após receber a terra, pôde contar com o marido que veio para trabalhar junto com ela. A posse da terra hoje se apresenta como uma dádiva para uma agricultora que viveu toda sua vida migrando em busca de melhores oportunidades.

Em outro trecho de seu depoimento, D. Raimunda nos fala da experiência, junto ao esposo, em terras arrendadas, e as razões da saída de sua terra de origem para se aventurar em busca de melhoria se vida:

“...foi agora, em 94, surgiu aqui o MST que nós entramos, prá ver se arrumava uma terra prá trabalhar, porque nos saímos de lá porque tava

aperriado, não dava prá trabalhar...nós botava ordem era na fazenda, né,

e tinha muito prejuízo, porque quando a gente às vezes cortava o arroz, mas antes da ente tirar o arroz, que era só o que a gente plantava, antes da gente tirar o arroz, eles já botavam o gado...”

“...não tenho vontade de sair daqui, não tenho vontade de vender a minha terra, nem pensar em vender...tive mais saúde depois que vim prá cá...”.

Elementos do depoimento de Dona Raimunda forçam-nos a refletir o significado que a terra passa a ter para alguém que passou a vida trabalhando em propriedades arrendadas, destacando o papel da mulher, agricultora e esposa, como um importante aliado na condução da luta pela terra, e, ao contrário do que se possa afirmar, as ocupações pelo MST não são lideradas somente pelos jovens.

Já de uma forma um pouco menos ortodoxa, em 1984, aos 13 anos, Sônia, hoje com 31, saía de Imperatriz no Maranhão para, disfarçada de homem, entrar num garimpo próximo à Serra Pelada. Quebradeira de coco, como a mãe, Sônia também

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passou situações difíceis no garimpo, realizando atividades de carregador, pois a única forma de entrada no garimpo seria disfarçada de homem. Ganhou dinheiro, mas perdeu todo dinheiro que ganhara para solucionar problemas de saúde: a malária, os acidentes com desmoronamento eram muito comuns em áreas de garimpo.

“...Chegou lá no garimpo, entrei no garimpo, aí logo arrumei serviço, aí comecei a trabalhar, aí o pessoal me chamava de Joãozinho, né. Carregava peso, lá de dentro do buraco, botava nas costas, trazia. O dono do garimpo tinha tanta fé em mim...Era no sul do Pará, lá pro meio do... no morro da Serra Pelada. Tem a Serra Pelada que era a principal e tem os fundos do garimpo”.

Desde 1999, Sônia vive no acampamento Cabaceiras, em Marabá, área de 10.000há, onde encontram-se 380 famílias no aguardo de vistoria para serem assentadas. Como outros agricultores e agricultoras, vive a incerteza da posse da terra, aguardando por uma ação dos órgãos competentes e, longe de seu local de origem, procura resgatar um pouco da cidadania, retornando à terra, para, ao, mesmo tempo, reconstruir a identidade de agricultora. Trazendo consigo lembranças de infância

“...quebrava coco, fazia sabão, pegava o azeite do coco, aí do coco torra o coco, aí pisa o coco, tira o azeite....aí vende, o que é de comer, come...”(Sônia, Novembro 2001), a nova realidade enfrentada no sudeste paraense impõe-lhe (e junto a ela, às

inúmeras famílias do Acampamento Cabaceiras5) novos desafios. Entre eles, a incerteza

da posse de suas terras.

O mundo do garimpo representou uma espécie de ruptura, um elemento de desagregação da identidade construída como agricultor/agricultora. Por outro lado, a não efetivação dos sonhos de melhoria de vida no garimpo provocou um sentimento e uma necessidade de retorno à terra, como forma de recuperação desta identidade . “...eu

espero muito ganhar essa terra, eu já sofri demais...”(Sônia, Novembro/2001).

O sentido de “ganhar esta terra” toma uma feição especial, quando compreendemos que tratamos aqui de trabalhadores e trabalhadoras que viveram

5 O termo acampamento é utilizado quando a área ocupada ainda não foi vistoriada pelo INCRA, primeiro

passo para regularização e reconhecimento, pelo órgão, como um Projeto de Assentamento. A partir daí são liberados os recursos para fomento à produção, cesta básica e auxílio-moradia. Atualmente as medidas de vistoria só são efetivadas após dois anos (02), em função da Medida Provisória que impede a vistoria em terras “invadidas” (M.P.2.183-56 de 24/08/2001)

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experiências muito difíceis, presenciando e vivendo diretamente os efeitos do alto grau de exploração da força de trabalho e do elevado índice de concentração fundiária. Fugindo e se deparando sempre com a mesma realidade, o acesso à terra passa a ser, provavelmente, o último caminho para melhoria de vida: a propriedade da terra e o trabalho livre.

Entre outras histórias, Seu Acelino Cardoso da Silva, conhecido como “Padinho”, no ano de 1979, tornou-se mais um agricultor de origem maranhense que migrou ao sudeste do Pará, expulso pela estrutura fundiária nordestina e atraído pela atividade de garimpo. À diferença de inúmeros agricultores, que não tiveram a mesma oportunidade, e de tantos outros, que não sobreviveram, Padinho conseguiu se estabelecer em um pequeno lote, retornando à terra, através do MST e resgatando a identidade de agricultor, também perdida nos anos de garimpo.

“...foi quando em 79 eu destinei a entrar no estado do Pará, no dia 11 de setembro de 1979, um dia Domingo...entrei e passei aqui no Marabá. Fui e fiquei uns tempo trabalhando aí, eu fui prá entrar na outra mira do Xingu, aí eu voltei de novo prá casa...em 84 eu fui buscar a mulher, ai trouxe, comecei por aqui, assim, naquela fogueira de garimpo, trabalha prá aqui, trabalha prá acolá, aí morreu o garimpo, foi tempo que o Collor de Melo entrou na presidência, matou o garimpo, acabou com tudo. Aí me ocorreu prá roça, e eu tó tempo acostumado a mexer com roça e aí fui, fui, fui, aí surgiu o problema desse MST...ameaça em cima de ameaça, mas não tô nem aí, tô levando no peito que nem o gado quando se estira na rama.... Eu venho trabalhando bastante, graças a Deus eu me sinto feliz, e dou muito graças a Deus, primeiro lugar a Deus, foi ele quem nos orientou e segundo o MST, porque eu nunca esperava de entrar assim, nesses movimentos prá arranjar um pedaço de terra prá gente poder trabalhar sem se preocupar... aquilo que a gente produzisse da gente mesmo, sem precisar ficar coagido...”(Padinho,14/11/2001).

Analisando mais detalhadamente o depoimento do “Padinho”, observamos estar repleto de informações que registram sua trajetória como força de trabalho em áreas de fronteira, tanto em Marabá como no Xingu, mesorregiões sudeste e sudoeste do Pará, respectivamente. Ainda em seu depoimento, percebemos claramente a importância da

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posse da terra para alguém “acostumado a mexer com roça”. Esta posse da terra representaria a liberdade do agricultor, já que agricultores como Padinho viveram muito tempo presos às relações de exploração, ora vendendo sua força de trabalho ora trabalhando em terras alheias, muitas vezes pagando valores elevados pela renda da terra:

“...lá (no Maranhão) eu trabalhava, botava cedo, botava dez linhas de roça, aí você tinha que pagar ...o camarada só cobrava a renda do arroz, agora, outros setores que tinha lá, mais prá frente, cobrava a renda do arroz, do milho, da mandioca, enfim, do que plantasse, até fuxico”.(Idem)

Encontramos muitas referências sobre pagamento de renda da terra, forma pela qual os proprietários rurais se apropriam direta e indiretamente da força de trabalho dos agricultores. No caso específico de nosso “Padinho”, a libertação desta teia em que se encontrava preso só pôde vir a partir de seu ingresso no movimento popular, aqui representado pelo MST, tornando-se, então, um agricultor assentado, mas com a identidade Sem Terra

Dentro da filosofia do Movimento Sem Terra, Padinho, atualmente com 57 anos, foi incentivado a voltar à escola através do Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e hoje alfabetizado, orgulha-se, pois “hoje eu não preciso mais colocar meu

dedo sobre um documento prá mim assinar...”. Assim, é que muitos agricultores,

através do MST, têm conseguido realizar o sonho de acesso à terra, resgatando o papel da agricultura familiar, e materializando mais uma conquista dos movimentos sociais organizados, que não se reduza posse da terra, mas a todo conjunto de avanços como, por exemplo, na educação, uma das prioridades do Movimento Sem Terra, ou na saúde preventiva e nas experiências de gestão participativa6, entre outras.

Experiências como estas, apesar de comuns no sudeste paraense, são importantes relatos para compreendermos as formas pelas quais cada ator social esteve intimamente

O sentido semear fuxico pode ser entendido em seu sentido literal intriga.

6 É muito importante lembrarmos que na estruturação dos Assentamentos do Movimento Sem Terra a

maior preocupação estava em se definir linhas e estratégias que assegurassem uma produção em grande escala para entrar nos mercados capitalistas, investindo-se, assim, na organização de cooperativas (CONCRAB, 1988,1999). Atualmente o MST assume uma posição de autocrítica e de incentivo à agricultura familiar, dando prioridade à produção de alimentos.

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ligado, vivenciou diretamente experiências diversas como força de trabalho ora disponível, ora a serviço do capital. E, muitas vezes, com ele (o capital) se relacionando ou se confrontando.

Assim, somente através da organização dos movimentos sociais, no espaço brasileiro, em geral, e no sudeste paraense, em particular, agricultores como Dona Raimunda, Sônia, Padinho, e tantos outros, puderam retornar à terra, construindo a possibilidade de um outro reordenamento espacial.

4. Considerações Finais

A mobilização de grande força de trabalho foi condição sine qua non para a política de incorporação de terras e de expansão do capital na região sudeste paraense, que atuou intensamente como frente de trabalho na abertura de estradas, nos grandes empreendimentos, na incorporação das terras, na limpeza dos terrenos e nos serviços em geral. De outra parte, esta mesma força de trabalho realizou importantes ações de ocupação de terras, o que viabilizou a permanência e a reprodução da agricultura familiar na região, fortalecendo, desta forma, os movimentos sociais. Neste contexto, o Movimento Sem Terra se apresenta como uma importante organização na representação de inúmeros agricultores familiares expropriados ou impossibilitados de acesso à terra.

Inicialmente preocupado em tornar a terra produtiva e atingir importantes mercados, o Movimento Sem Terra, que apostava nos ganhos econômicos com as grandes cooperativas, atualmente revê esta prática e retoma o investimento na agricultura familiar. À diferença dos demais movimentos de ocupação, o MST atua de forma muito bem organizada, defende valores humanísticos ligados, sobretudo, à cooperação, à ajuda mútua, ao bem estar coletivo, ao respeito às diferenças de cor e de gênero, à preocupação com o debate e a formação política, entre outros, como forma de se construir uma nova sociedade. Ao mesmo tempo, o melhor desempenho social e econômico das áreas de assentamento dependem diretamente destes elementos, considerando as dificuldades e os obstáculos enfrentados, principalmente porque muitos dos componentes do MST estão em processo de aprendizagem, tanto no que se refere ao trato com a terra, quanto à proposta do Movimento.

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A proposta de compreender este processo, no contexto do reordenamento espacial, exigiu-nos um esforço em refletir a questão no seu duplo aspecto: de um lado, um reordenamento espacial, imposto pelos grupos hegemônicos, que promoviam a desapropriação e a exclusão social; de outro, os movimentos sociais, em geral, e o Movimento Sem Terra, em particular, construindo alternativas à este movimento hegemônico.

Foi desta maneira que, quando iniciamos um estudo mais sistemático sobre a ação do MST no Sudeste Paraense, chamou-nos atenção a particular forma de organização do Movimento, que cria alternativas para milhares de famílias, que, na maioria das vezes, não podiam contar com o mínimo para terem condições de vida adequada: saúde, educação, alimento, moradia, agasalho. Registrar a história desta gente não é simplesmente tirá-la do anonimato, mas forçar uma reflexão sobre que modelo de sociedade gostaríamos de construir: se um modelo no qual homens e mulheres são vistos e tratados como simples força de trabalho, a serviço do e para o capital; ou outro alternativo, no qual se privilegie o ser humano, na expectativa de que homens e mulheres podem viver com dignidade.

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