• Nenhum resultado encontrado

AS ANDORINHAS DA TORRE: UM VOO POR MEIO DO IMAGINÁRIO, DO AR E DOS SONHOS.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "AS ANDORINHAS DA TORRE: UM VOO POR MEIO DO IMAGINÁRIO, DO AR E DOS SONHOS."

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

610

AS ANDORINHAS DA TORRE:

UM VOO POR MEIO DO IMAGINÁRIO, DO AR E DOS SONHOS. 

Luiza Liene Bressan Heloisa Juncklaus Preis Moraes

RESUMO: Este estudo objetiva analisar o poema “As Andorinhas da Torre”, publicado em 2014 de autoria de Valdemar Muraro Mazzurana. Trata-se de um poema alusivo ao centenário do município de Orleans, Santa Catarina, em que o autor explora, em 266 décimas, a trajetória de vida do orleanense, principalmente aquele que habita as encostas da serra geral que circunda o lugar. Para empreender a análise, viajamos em asas de Bachelard para pensar de que forma a imaginação e a mobilidade das andorinhas percorrem os mitos centenários da fundação do referido município, buscando compreender o trajeto antropológico que moveu e move os sonhos de um imaginário que se (des) constrói a partir da deformação de imagens passadas, presentes e futuras. Bachelard (2001) afirma que a verdadeira mobilidade, o mobilismo em si que é o mobilismo imaginado, não é bem alertado pela descrição do real, ainda que fosse pela descrição de um devir do real. A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário. E de acordo com a natureza desta viagem, é o trajeto que nos interessaria e não a estrada. Para Bachelard, o poema é essencialmente uma aspiração a imagens novas. Corresponde à necessidade essencial de novidade que caracteriza o psiquismo humano. A poesia requer profundo devaneio e memória. E é do devaneio que se insinua nas asas das andorinhas que esse estudo trata.

PALAVRAS-CHAVE: Imaginário. Poema. Ar. 1. Introdução

A literatura pode ser compreendida como um espaço fecundo, que impulsiona e gera transformações. Nesse abrigo ficcional tecido pelo imaginário, a análise do poema manifesta-se como forte alimento sensibilizador. No contexto deste artigo, o voo das andorinhas ganham o sentido antropológico de situação existencial qualitativamente distinta da vida ordinária e, como fenômeno complexo, apresenta-se, ao lado da ocupação das terras pelos imigrantes italianos, como uma modalidade de ser no mundo, capaz de conferir sentido à existência humana. Nosso propósito é discutir a presença do imaginário no poema de Valdemar Muraro Mazzurana, ao revelar sua consciência mágica, grávida de maravilhoso, capaz de encantar o leitor e fazer “revisitar” a vida humana no princípio da ocupação do solo orleanense pelos imigrantes italianos. Este trabalho busca analisar, a partir do escopo teórico do Imaginário de Durand, o poema “As andorinhas da Torre”, apontando os aspectos simbólicos ligados ao elemento ar e às imagens do movimento. Bachelard (2001) refere-se às imagens do movimento como energia vital e afirma que esta energia reclama que a imaginemos. Em suas palavras “sua realidade é propriamente imaginária. Uma energia imaginada passa do potencial ao ativo. Quer constituir imagens na forma e na matéria, preencher as formas, animar as matérias” (BACHELARD, 2001, p.81).

Texto completo de trabalho apresentado na Sessão 6 do Eixo Temático Estudos de Literatura, Memória e História do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC).

 Docente do Centro Universitário Barriga Verde- Unibave. Mestre. luizalbc@yahoo.com.br

 Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina- Unisul. Doutora. heloisapreis@hotmail.com

(2)

611

O poema, objeto deste estudo, é uma homenagem de Mazzurana aos 130 anos de colonização de Orleans e alusivo ao centenário de emancipação político-administrativa. As imagens mais endurecidas do processo de ocupação das terras orleanenses, as agruras de uma pátria que lhe parecia hostil, são (des) construídas de forma poética, verso a verso, estrofe a estrofe pelas andorinhas, que depois de percorrerem todo o território do município, retornam à torre de onde podem observar o devir. O tecido do qual é construído o poema nos lembra de o que Wunenburger (2007, p. 17-18), comenta sobre Bachelard que testemunha a onipresença da imagem na vida mental, “atribuindo-lhe uma dignidade ontológica e uma criatividade onírica, fontes da relação poética para o mundo”.

Bachelard é também o precursor dos estudos científicos sobre o imaginário e de quem Durand foi discípulo.

Imaginário: Breve Introdução

O imaginário concebido por Durand (2002) tem raízes nos estudos de Jung e em seus estudos sobre o inconsciente coletivo, espécie de material não palpável que se perpetua na sociedade humana. Uma espécie de energia coletiva, pouco definível se confrontada com a ciência cartesiana.

Jung (2000) diz que as imagens são predisposições, potencialidades, esquemas prévios de conduta herdados de nossos antepassados, como caminhos virtuais deixados de herança. Desta forma, o imaginário humano não se alimenta de fantasias. O imaginário humano possui uma história, uma estrutura anterior que foi assim edificada por todas as experiências vividas pelo homem.

Nesta linha de estudos, aparecem os tratados de Bachelard (2001) de quem Durand é herdeiro, aprofundando questões epistemológicas já avançadas para a segunda metade do século XX. Pode-se afirmar que Bachelard não estudou a natureza, mas o cosmos. O mundo pelo qual nos movemos de forma dinâmica. E este dinamismo centra-se na criatividade cujas forças oníricas são a expressão inconsciente e de origem cósmica. Bachelard (2001) reavalia o papel do olhar na construção do imaginário. A imaginação material e dinâmica demonstra a objetividade material de nossa habitação poética no mundo.

Bachelard (2001) comenta, ainda, que a palavra essencial que corresponde à imaginação, não é a imagem, mas sim o imaginário e que o valor de uma imagem se mensura pelo tamanho de sua aura imaginária, ou seja, o imaginário possibilita que imaginação se torne fundamentalmente aberta e evasiva. É a experiência para a abertura psíquica, para vivenciar a novidade (BACHELARD, 2001).

Seguindo estes fundamentos bachelardianos e amparado em correntes sólidas da Antropologia, Gilbert Durand considera o imaginário como o “museu” de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a produzir, nas suas diferentes modalidades da sua produção, pelo homo sapiens (DURAND, 2012), dizendo que o seu projeto se constitui em estudar o modo pelo qual as imagens se produzem, como se transmitem, bem como a sua recepção. O imaginário implica, portanto, um pluralismo das imagens e uma estrutura sistêmica do conjunto dessas imagens infinitamente heterogêneas, mesmo divergentes. (DURAND, 1996, p. 215), a saber: ícone, símbolo, emblema, alegoria, imaginação criadora ou reprodutiva, sonho, mito, delírio, etc.

Durand (2012) diz que o imaginário constitui a matéria prima do espírito, o esforço do ser para levantar, ainda que de forma fugaz, a esperança contra a finitude da vida, manifestando-se como atividade que reinventa o mundo, como imaginação criadora. Esta, muito além de simples faculdade de formar imagens, é dinamismo organizador da representação: ao deformar os estímulos fornecidos pela percepção, a imaginação consiste em dinamismo reformador das sensações.

(3)

612

Na continuidade destes estudos sobre o imaginário, aparecem as reflexões de Maffesoli, para quem o imaginário

é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um Estado, nação, de uma comunidade, etc. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual. (MAFFESOLI, 2001, p. 76).

Cabe, também, dizer que investir numa análise do poema de Mazzurana a partir dos pressupostos teóricos do imaginário, requer que entendamos o campo da literatura como uma linguagem aberta, polissêmica e polifônica.

Assim, para empreender uma análise literária é necessário que sejamos capazes de desdobrar os sentidos destas, deixando vir à tona, acima de sua primeira linguagem, uma segunda, isto é, uma coerência dos signos, que se interpenetram, construindo um percurso poético que, em seus versos, encadeiam-se muitos sentidos e de muitos falares.

Enfatizamos, dessa forma, que os estudos de antropologia são, portanto, uma das referências conceituais contempladas, privilegiando as reflexões de Gilbert Durand e de seus seguidores que continuam aprofundando os estudos do imaginário sob o viés antropológico.

Outro conceito importante em durando é o de trajeto antropológico “que situa a produção de imagens em um percurso que vai desde o biológico até o sociocultural, de tal modo que o imaginário pode ser estudado em qualquer ponto dessa trajetória [...]” (AUGRAS, 2009, p.223). Ao comentar a teoria de Durand, Augras (2009) pontua que o mergulho sistemático nas narrativas míticas ou nas produções poéticas, longe de ser sinônimo de algum extravio em caminhos fantásticos, pode ser garantia de equilíbrio, pois “não há sociedade sem poetas, sem artistas, sem valores” (DURAND apud AUGRAS, 2009, p.226). Como um entre saberes, o corpus teórico do imaginário permeia os saberes e fazeres que constituem o capital do homo sapiens.

Dos Regimes da Imagem

Ao desenvolver os estudos sobre a imagem, Durand dividiu as imagens sob dois regimes: o diurno e o noturno.

O regime diurno de imagens está relacionado à verticalidade. Turchi (2003, p.27) assim o comenta: “O diurno, estruturado pela dominante postural, concerne à tecnologia das armas, à sociologia do soberano mago e guerreiro, aos rituais de elevação e da purificação”. Sendo assim, o regime diurno comporta todos os símbolos da ascensão, aqueles que nos elevam e que nos direcionam ao alto. Estes símbolos se voltam para a espiritualidade, para a transcendência. Pitta (2005) assim os divide:

a) símbolos da verticalidade que se relacionam às práticas religiosas, às transfigurações. Neste caso, as elevações, os montes, as escadas para se chegar aos templos são símbolos representativos da verticalidade.

b) símbolos com asa e angelismo que se reportam ao voo e carregam simbologias pouco relacionadas à espécie biológica, como é caso da pomba, símbolo da paz, a águia como sabedoria. A asa é um símbolo de transcender rumo à superioridade. Assim, podemos dizer que há um isomorfismo entre asa, elevação, flecha, luz, vida em plenitude.

c) símbolos da soberania uraniana- seu representante mais significativo é o astro rei, o grande deus uraniano, o pai (relação de potência e virilidade) o que tem poder de julgamento do certo e do errado.

d) símbolos do chefe que corresponde à cabeça, centro e princípio vital. Em muitas culturas os cornos e o troféu são formas de aumentar o crânio, sítio de poder.

(4)

613

Opondo-se ao regime diurno cujas forças são antagônicas e uma prevalece sobre a outra, o regime noturno constitui-se de forças unificadoras e harmonizantes (PITTA, 2005). Estas forças são harmonizadas de duas formas diferentes que correspondem as duas estruturas do imaginário: a mística e a sintética. Neste regime a queda heroica se transforma em descida e o abismo em receptáculo. Assim, ascender ao poder não é o objetivo maior e sim descer à procura do conhecimento. “O regime noturno da imagem estará constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo” (DURAND, 2012, p.197).

O imaginário possui uma estrutura mística, compreendida, aqui, no sentido durandiano cuja significação é a “construção de uma harmonia” na qual se conjugam uma vontade de união e certo gosto pela secreta intimidade (PITTA, 2005).

Para que o objetivo da harmonização seja alcançado, Durand (2012) arrola símbolos cuja significação minimiza as expressões mais duras e chocantes. Assim, o estudioso do imaginário explicita os símbolos de inversão, constituído pela expressão do eufemismo que abranda o conteúdo angustiante, trazendo certo alívio às dores universais por se caracterizar pela ambiguidade, pelo sentido plural que alimenta e fecunda a palavra. (PITTA, 2005). Ainda, ao estudar os símbolos de inversão, Durand (2012) se reporta ao encaixamento e redobramento, que recriam imagens de engolimento do outro para apropriação de essências. Cita como um dos exemplos o caso das bonecas russas em que a maior contém as menores. Outro símbolo de inversão é o hino à noite, entendida com o avesso do dia, divinizada, hora do encontro, da reunião. É a noite onde as águas banham-se de lua, adquirindo a cor prata, simbolizando o feminino, a fecundidade. Outro símbolo de inversão é a mater e matéria, representando as grandes mães aquáticas cuja simbologia dos longos cabelos aludem ao aquático e ao telúrico como se “as águas fossem as mães do mundo, enquanto a terra seria a mãe dos vivos e dos homens”.

No regime noturno também há a estrutura sintética do imaginário em que o tempo é positivo, compreendendo-o como o movimento cíclico do destino e da tendência ascendente do progresso do mesmo. Nesta estrutura do imaginário estão agrupados os símbolos cíclicos, relacionados a fenômenos naturais e/ou culturais, como é o caso do ciclo lunar que organiza, em função de suas fases, o tempo em diversas culturas. Compõe também os símbolos cíclicos a espiral, relacionado ao permanente movimento e que sugere o equilíbrio dos contrários. A simbologia da

serpente (ofidiano) também traz em sua essência o ideia do tempo, pois três são as dimensões

significativas, a saber: transformação temporal pela troca de pele; a da representação do ciclo por meio do uroboros (a serpente mordendo a própria cauda) e o aspecto fálico, relacionado à maestria nas águas e à fecundidade.

Procedimentos Mitodológicos

O imaginário é um sistema dinâmico e que organiza as imagens cujo papel fundador é o de mediar a relação do ser humano com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Essa potente função do imaginário acompanha os esforços mais concretos da sociedade, moldando a ação social e a obra estética. A mitologia é primeira em relação a qualquer metafísica, mas também ao pensamento objetivo (DURAND, 2012).

Teixeira (2000) afirma que a mitanálise e a mitocrítica, criadas por Durand, são heurísticas, ou seja, formas de descobrir a origem e a historicidade dos fatos, que dão conta da trajetividade entre os dois polos. A mitocrítica, partindo do mito pessoal enraizado, é a que trabalha com o contexto sociocultural, no qual os mitos pessoais são criados, interpretados e modificados.

Durand propõe a mitodologia (metodologia desenvolvida por ele) para estudarmos a ocorrência de imagens simbólicas nos fenômenos culturais e seus prolongamentos. Por compreender particularidades em quatro âmbitos históricos, culturais e sociais, o imaginário e a

(5)

614

mitodologia se tornam adequados para os estudos que envolvem as narrativas literárias, objeto deste estudo.

A mitodologia de Durand é dividida em mitocrítica e mitanálise, em que: na mitocrítica as imagens simbólicas de um material cultural são catalogadas em redundâncias e repetidas de forma constante, por isso, são identificadas; na mitanálise se busca identificar mitos que trabalham a sociedade profundamente, buscando compreender os contextos em que essas repetições incessantes acontecem, sendo a mitanálise um complemento da mitocrítica. Compreendida desta maneira, a mitocrítica parte de um contexto cultural e a mitanálise parte do contexto social. Como o cultural e o social são imbricados, ao se analisar aspectos culturais, aparecem os aspectos sociais.

Ao elaborar o percurso metodológico, Durand assim o faz:

De uma ciência do homem reunificada em torno de uma dupla aplicação- mitocrítica e mitanalítica- metodológica (que nos sentimos tentados a escrever, desde logo, “mitodológica”) emergiam os prolegômenos de uma orientação epistemológica e filosófica nova, não de uma novidade fugaz do tipo “pronto a vestir” intelectual, mas nova no sentido de renovada pelo encontro de mitos de sensibilidades e filosofemas (DURAND, 1996, p. 159).

Além de elaborar todo o escopo teórico do imaginário, Durand (1996) também desenvolveu e definiu uma mitodologia como um método próprio do estudo do imaginário em particular arrancado às correntes da explicação mecanicista.

Valendo-nos destes aspectos metodológicos da mitodologia proposta por Durand, voemos, então, pelo universo dos “Das andorinhas da torre”, buscando no poema o percurso antropológico das imagens felizes que recontam a história centenária de Orleans a partir dos 2660 versos heptassilábicos rimados, que vêm embalados num ritmo cuja musicalidade sugere a performance de um trovador “cantando sua terra, tal e qual o poeta Casimiro de Abreu que quando estava em Portugal assim escreveu “Todos cantam sua terra, também vou cantar a minha. “Nas débeis cordas da lira, hei de fazê-la rainha; hei de dar-lhe a realeza, nesse trono de beleza, em que a mão da natureza esmerou-se em quanto tinha...” (ABREU, 1972).

A Simbologia da Asa

Bachelard em O Ar e os Sonhos (2001) nos apresenta uma ação imaginante, aberta em permanente mobilidade criativa. A imaginação pode deformar as imagens fornecidas pela percepção, libertando-as das primeiras impressões, é capaz de alterar substancialmente suas formas. Imaginação sedutora, fecunda e vitalizante. Palavras que inauguram novos voos psíquicos. Desejos de alteridade, de duplo sentido. A imanência do imaginário a realizar-se. Convite à viagem. Trajeto que conduz aos domínios imaginativos das profecias e utopias. Escreveu Bachelard: “Cada objeto contemplado, cada grande nome murmurado é o ponto de partida de um sonho e de um verso, é um movimento linguístico criador” (BACHELARD, 2001, p. 5). O dinamismo do elemento ar nos põe em contato com a transformação. A poesia transcende o pensamento. Há metáforas em abundância que produzem imagens fascinantes capazes de realizar o irreal. A revelação se dá no dinamismo das imagens etéreas evocadas pelo elemento ar, que é libertador, produzindo alívio e alegrias por meio de sua leveza e ligeireza. A palavra é potencializadora, amplifica os sentidos em direção ao alto ou para baixa, a queda moral. Há ainda o dó das palavras, a descensão catabática. O ar, para Bachelard, é o elemento que na linguagem atua diretamente ligado à imaginação poética

.

O elemento aéreo é movimento que se esgarça e se desmaterializa num espaço delimitado, não sendo, por isso, um convite para um espectador que sonhe com uma beleza visual.

(6)

615

Devemos sentir que a vida onírica é tanto mais pura quanto mais nos libertar da opressão das formas, e quanto mais nos restituir à substância e à vida de nosso próprio elemento (BACHELARD, 2001, p.35).

O texto literário de Mazzurana nos permite alçar voos pela descrição que faz das andorinhas que percorrem o território centenário de Orleans (SC) e se personificam, adotando os sobrenomes dos imigrantes italianos, heroicizados no poema em estudo, à procura da terra prometida (mítica).

A tecitura das 266 décimas caminha por um estilo bem próprio: criativo, bucólico, inteligente e raçudo, no sentido de que, nessa epopeia, o autor navega, com muita raça e total domínio do que quer, do que busca, entre a história e a memória, a realidade e a ficção. Consegue, então, fazer com que visualizemos cenas que ele, jogando tinta em sua paleta (v. 5, d. 99), pinta com palavras, conseguindo seduzir-nos e levar-nos para dentro de sua obra, um conjunto que demanda fôlego na leitura e pressupõe conhecimentos básicos da história do município-tema (MAZZURANA, 2014, p.14).

O mito da busca não se limita, apenas à Literatura em geral, às buscas artísticas, mas se refere também às mais diversas circunstâncias, objetivos e feitos realizados por um herói, pois:

Existe um certo tipo de mito que pode ser chamado de busca visionária, partir em busca de algo relevante, uma visão, que tem a mesma forma em todas as mitologias. [...] Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial. Você deixa o mundo onde está e se encaminha em direção a algo mais profundo, mais distante ou mais alto. Então atende aquilo que faltava à sua consciência, no mundo anteriormente habitado (CAMPBELL, 1990, p. 137).

Assim são as andorinhas de Mazzurana, visionárias, deixam a torre e viajam no tempo e na história, conforme a estrofe inicial do poema nos revela:

As andorinhas da torre São poetas a cantar Esta terra tão bonita Entre a serra e o mar A voar sobre Orleans Na alegria do seu bailado Elas pedem insistentes A este povo abençoado Que venere seu presente Seu futuro e seu passado

(MAZZURANA, 2014, p.20). (Grifos nossos).

A imagem evocada pelas andorinhas da torre não é um rascunho do conceito das teorias racionalistas. Nesse campo epistemológico de estudos o conceito é que acaba sendo rascunho pela força da imagem. “[...] a imagem possui o atributo básico de mobilizar nossos afetos, memória, percepções, nos exigindo formas de acompanhar seu movimento” (SANTOS e ALMEIDA, 2012, p. 31).

Outro aspecto relevante está ligado à simbologia das andorinhas, eleitas, no poema, como mensageiras do centenário da emancipação do município e que carregam a ideia de migração, ou seja, partem no inverno, mas asseguram o seu retorno no verão. É um símbolo do eterno retorno, das situações cíclicas que desde o início sabemos o final, posto que são repetitivas. Ao concluírem seu voo, cheias de esperança, retornam ao seu recanto, a torre, como expressa Mazzurana (2014, p.93):

(7)

616 Finalmente as andorinhas

Já cansadas retomaram O caminho para a torre E seus ninhos procuram Recordando seu projeto E o trajeto percorrido Dialogam com miragens De um futuro destemido Depois sonham com a paz É o descanso merecido

Esta simbologia do eterno retorno é recorrente em todo o poema, pois o pensamento simbólico:

não é uma área exclusiva da criança, do poeta, do desequilibrado; ele é consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, o seu estudo nos permite conhecer o homem, o homem simplesmente (ELIADE, 1996, p.8-9).

A torre também expressa o regime diurno da imagem, “estruturado pela dominante postural, concerne à tecnologia das armas, à sociologia do soberano mago e guerreiro, aos rituais de elevação e da purificação” (TURCHI, 2003, p. 27). Sendo assim, o regime diurno comporta todos os símbolos da ascensão, aqueles que nos elevam e que nos direcionam ao alto. Estes símbolos se voltam para a espiritualidade, para a transcendência. Vejamos os versos de Mazzurana (2014, p.30) a comprovar esta afirmação:

E no ano em que os escravos Conquistaram liberdade Orleans foi elevada A distrito da Piedade Na verdade criou asas Foi viver lá nas alturas E sedenta foi beber Ousadia, Literatura,

Pois aos dignos é que é dado Braço forte com brandura

A ideia do eterno retorno como bem esclarecem Santos e Almeida (2012, p.72) “é fundamental para a compreensão de imagens e sentidos que povoam a cultura humana, de acordo com a perspectiva da Antropologia do Imaginário”. Os autores ainda afirmam que a formulação de sentidos, de imagens, de símbolos não é ilimitada nem progressiva. Em outras palavras, apesar de roupagens diversas apresentadas pelas culturas em sua essência mantêm as bases de produção de símbolos, sentidos e imagens, perceptíveis pelas estruturas de sensibilidade (ALMEIDA e SANTOS, 2012).

Nesse sentido, a invariância antropológica assegura que há uma base comum que nos une, ainda que sejamos pessoas singulares, únicas. Assim, “o universo simbólico, arquetípico é limitado, portanto retorna eternamente na dinâmica do imaginário, subsistindo nas aparentes diferenças [...]” (ALMEIDA e SANTOS, 2012, p.72).

As andorinhas de Mazzurana retornam a torre e na manhã seguinte percorreram outro trajeto, encontrando as marcas da terra centenária ora cantada pelo poeta “e assim como a lua ou

(8)

617

as estações do ano, o homem e suas produções simbólicas são re-arranjos do mesmo- invariância antropológica” (ALMEIDA e SANTOS, 2012, p.73).

Considerações finais

Ao nos debruçarmos sobre o poema trabalhado neste estudo, passamos a viver uma nova história de vida mesclada de papel, tinta, livros, imagens de toda ordem que explodiam diante de nossos olhos. Não faltaram sensações, desejos, sedes nas leituras. Passamos a ter outra perspectiva no trato com o texto poético porque nos propusemos a dialogar com ele e com os estudos do imaginário, proposto por Durand.

Empreender uma análise literária deste poema a partir dos pressupostos teóricos metodológicos do imaginário, propostos por Bachelard e Durand, significa buscar os elementos que se constituem na certeza de que o ser humano é um animal naturalmente cultural, produtor de significações e produtor de seus imaginários (sejam eles quais forem), pois são estas produções do imaginário que o impulsionam a ações e a superação coletiva dos medos, a partilha entusiasta de vitórias.

O estudo do imaginário nos diz Durand, permite que compreendamos os dinamismos que regulam a vida social e a forma como se manifesta na cultura. O imaginário é um capital inconsciente dos gestos dos sapiens, mas é também o conjunto de imagens e das relações que estas imagens estabelecem que constituem o capital pensado deste homo sapiens. Assim, as andorinhas que revoam a Orleans centenária constituem-se como um universo de configurações simbólicas e de organização durante o processo de construção de cada comunidade imaginal que compõe o município. Estão, pois inerentes às ações, o modo de pensar, de sentir de indivíduos, culturas e sociedades.

Referências

ABREU, Casimiro. "As Primaveras" (1859), reeditado pela Livraria Editora Martins S/A e Instituto Nacional do Livro, São Paulo, 1972.

AUGRAS, Monique. Imaginário da magia. Magia do imaginário. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BACHELARD, Gaston. O ar e os Sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento. 2ªed. São Paulo: Martins e Fontes, 2001.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. Campos do Imaginário. Textos reunidos por Danièle Chauvin. Grenoble: Ellug, 1996. ______. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2001.

______. A Imaginação Simbólica. 6 ed. Lisboa: Edições 70, 1993.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

JUNG, C. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução: Maria Luiza Appy Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.

(9)

618

MAZZURANA, Valdemar Muraro. As Andorinhas da Torre. Orleans-SC: Ed. do autor, 2014. MAZZURANA, Sueli T. Mazzuco. In MAZZURANA, Valdemar Muraro. As Andorinhas da Torre. Orleans-SC: Ed. do autor, 2014.

PITTA, Danielle P. Rocha. Iniciação à teoria do Imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005.

SANTOS, Marcos Ferreira e ALMEIDA, Rogério de. Aproximações ao Imaginário. Bússola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.

TURCHI, Maria Zaira. Literatura e Antropologia do Imaginário. Brasília: Editora UnB, 2003. WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

Referências

Documentos relacionados

A Parte III, “Implementando estratégias de marketing”, enfoca a execução da estratégia de marketing, especifi camente na gestão e na execução de progra- mas de marketing por

4 indica uma distância de cerca de 30 km entre as novas células na dianteira do sistema e a região de máxima precipitação, ou seja, a velocidade de propagação do sistema obtida

Additionally, the effect of the chitosan gels (with and without silver sulfadiazine) on healing of burn wounds on rats was compared with the commercially available 1%

Még épp annyi idejük volt, hogy gyorsan a fejük búbjáig húzták a paplant, és Mary Poppins már nyitotta is az ajtót, és lábujjhegyen átosont a

Também foram apontados outros problemas, os usos dessas técnicas não se tornam efetivam, o professor não utiliza, ou subutilizam, por muitas vezes os principais motivos,

Portanto, um dos objetivos deste trabalho foi propor métodos de análise de ácidos graxos AG considerados relevantes do ponto de vista nutricional, que fossem mais rápidos que o

Os estudos originais encontrados entre janeiro de 2007 e dezembro de 2017 foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão: obtenção de valores de

O jacarandá (Dalbergia brasiliensis) mostrou crescimento em altura próximo à altura média entre as espécies ensaiadas (1,23m), destacando-se também como espécie alternativa para