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A CRÍTICA ONTOLÓGICA ÀS ARTES MIMÉTICAS NO LIVRO X DA REPÚBLICA Guilherme Cecílio (mestrando UFRJ/PPGLM, FAPERJ)

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A CRÍTICA ONTOLÓGICA

A CRÍTICA ONTOLÓGICA

A CRÍTICA ONTOLÓGICA

A CRÍTICA ONTOLÓGICA ÀS ARTES MIMÉTICAS

ÀS ARTES MIMÉTICAS

ÀS ARTES MIMÉTICAS

ÀS ARTES MIMÉTICAS

NO LIVRO X DA REPÚBL

NO LIVRO X DA REPÚBL

NO LIVRO X DA REPÚBL

NO LIVRO X DA REPÚBLICA

ICA

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Guilherme Cecílio (mestrando UFRJ/PPGLM, FAPERJ)

RESUMO: RESUMO: RESUMO:

RESUMO: O livro X da República apresenta um longo argumento contra as artes miméticas. Entre outras coisas, afirma-se que todo produto mimético estaria restrito ao nível mais baixo do real, sendo inferiores, respectivamente, às coisas sensíveis e às Ideias. Se tal fato constituísse o cerne da objeção platônica, seguir-se-ia que qualquer produção mimética seria inaceitável na perspectiva platônica, uma vez que, por definição, seus produtos sempre ocupariam o terceiro nível do real. Mas se esse fosse o caso, a obra abrigaria uma grave contradição ao propor a poesia, arte mimética, como base da educação da cidade ideada. A leitura detida do argumento mostra que as objeções formuladas referem-se a questões de fato, de modo que a artes miméticas, dentre as quais a poesia, tem sua possibilidade assegurada no projeto político da República.

Platão descreve na República o que seria a cidade mais perfeita possível, e faz corresponder a ela o tipo humano mais perfeito e feliz. Mas a felicidade desse homem depende de modo privilegiado da educação que ele recebe; é por isso que a educação ocupa tantas páginas da obra, fato que, por vezes, intriga o leitor.

A educação proposta na República, ao menos em sua parte inicial (composta de mousiké e gymnastiké) não constitui um rompimento radical com a educação tradicional grega, tratando-se, sim, de uma reformulação da mesma, uma “purificação”. E no panorama tradicional a poesia tinha lugar de destaque, de modo que é natural que Platão discuta tanto a poesia. Nesse processo de “purificação” poética, analisam-se inúmeras passagens, alternando-se juízos positivos e negativos. Porém, no livro III o resultado já se mostra bastante desfavorável à poesia.

- Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com seus poemas [...] dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie [...] e mandá-lo-íamos embora para outra cidade [...]

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embora severa, a crítica ainda não é tão inexorável e enfática como o será no último livro da República.

Antes que se chegue ao fechamento da obra, discutem-se ainda diversos temas: as partes da alma e suas qualidades correlativas (livro IV), política (livro V), bem como a educação avançada que caberá àqueles destinados ao comando da cidade (livros VI e VII), e ainda as formas de governo corrompidas – em relação à forma proposta na obra – e os tipos humanos que lhe correspondem (livros VIII e IX). No livro X, parece que se chega a uma inflexão: tendo sido tratados todos esses temas, sem dúvida bastante gerais, retorna-se a um ponto bem específico, a já prenunciada expulsão dos poetas. Platão parece ver qualquer necessidade de retomar o problema; é compreensível que as severas críticas à poesia, fundamento da educação grega, não ficassem como um fio solto na tessitura da obra, e merecessem um novo fôlego de argumentos.

Quem lê o começo do livro X, portanto, não pode perder de vista isto: já houve um prenúncio, no livro III, da expulsão dos poetas que aqui no livro X ver-se-á em toda sua força. Trata-se, é bom notar, de uma diferença não apenas de formulação; temos no livro X novos argumentos que são, como o enfatiza o próprio Platão, resultado do enriquecimento trazido pelos livros que medeiam entre os livros III e X. Ou seja, questões de ordem ontológica e epistemológicas (abordadas nos livros V, VI e VII) e de ordem psicológica, isto é, referentes à divisão da alma em partes (livro IV), fornecerão novas bases para um argumento novo contra os poetas.

Dito isso, vale a pena descrever a impressão geral que uma primeira leitura do livro X causa no leitor. Por um lado, fica evidente o propósito, por parte de Platão, de apresentar um argumento abrangente, que não deixasse de fora considerações de várias ordens. Aliás, tais considerações estão cuidadosamente organizadas, de modo que é legítimo falar de três partes ou seções de um

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argumento que versa, em geral, sobre a justificação da expulsão dos poetas da cidade perfeita. Tal organização só vem a reforçar a impressão de um argumento, por assim dizer, definitivo, ao menos tanto o quanto um argumento o pode ser na filosofia platônica.

Para além desse aspecto estrutural, algo que é digno de nota é a nebulosidade do destinatário da crítica; pensar-se-ia primordialmente em Homero, mas, imediatamente Homero passa a ser apenas a referência privilegiada de um grupo maior, os “trágicos”. Obviamente, “trágicos” não é um termo muito preciso, e a essa imprecisão vem somar-se a referência a poetas “cômicos”, e “líricos”, de modo que ao final, já não sabemos ao certo se algum poeta escaparia das objeções levantadas. Para piorar ainda mais esse quadro, Platão por vezes fala de modo bem geral, por exemplo: “[...] todos os poetas [...] não atingem a verdade [...]”. Se assim fosse, aparentemente todos os poetas, ou melhor, toda a poesia estaria banida da República.

Contudo, isso simplesmente não pode ser o caso por dois motivos: em primeiro lugar, no próprio livro X, ao final da todas as críticas, Sócrates afirma literalmente que devem ser mantidos na cidade perfeita alguns poetas: “[...] quanto à poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais”.

Em segundo lugar, rejeitar a poesia como um todo, e não apenas determinados poetas, implicaria na impugnação da educação que está na base de toda a República, a mousiké, que afinal consiste em poesia. Ora, temos esse impasse: tanto a poesia parece estar sendo rejeitada como um todo, quanto essa rejeição radical seria altamente incoerente. Esclarecer essa questão problema é o objetivo principal deste trabalho.

Em conexão com esse problema principal, temos outro. A crítica existente no livro X não se restringe aos “poetas”. Platão adota um procedimento muito

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mais intrincado, propondo uma comparação, quase ponto por ponto, entre poesia e pintura; por fim, ambas são subsumidas à categoria geral das “artes imitativas” (mimetiké), as quais são rejeitadas em bloco. Assim, temos um problema análogo ao que referimos acerca da imprecisão do termo “poetas”; ao final do argumento, não sabemos, ao certo, se somente a poesia foi objeto de crítica ou se também o foi a pintura, ou mesmo todas as artes imitativas. Para resolver tal questão faz-se necessário abordar o argumento dispensando especial atenção à noção que serve para dar unidade a esse grupo difuso, a mímesis.

Convém agora dar início à análise mais pormenorizada do texto. Como mencionamos, o texto é divisível em três seções ou partes, respectivamente, seção ontológica, epistemológica e psicológica, bem como uma breve introdução. Neste trabalho, só poderemos tratar da primeira parte do argumento, a ontológica, que é a mais problemática. Ao final, faremos um breve resumo das demais partes, procurando integrá-las em nossa interpretação.

I. Introdução do argumento I. Introdução do argumento I. Introdução do argumento I. Introdução do argumento

Na abertura do livro X, Sócrates orgulha-se de já haver decidido pela exclusão de certo tipo de poesia, que ele caracteriza como poesia mimética (mimetiké), e afirma a necessidade de ratificar a exclusão com base na doutrina sobre as partes da alma. Como já aludimos, trata-se aqui de uma referência interna à própria obra, especialmente ao livro III, no que tange à expulsão de poetas, e ao livro IV, para a divisão anímica. O mais importante, porém, é que a questão é formulada em novos termos, de modo que a mímesis adquire grande relevo. Ela será, ao longo de todo o argumento, a noção unificadora de tudo que recebe o nome de “arte imitativa” – mimetiké – o que já se pode perceber poucas linhas adiante:

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- Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza.

- Em que te baseias para falares assim?

- Tenho de o dizer – confessei eu –. E, contudo, uma espécie de dedicação e de respeito que desde a infância tenho por Homero impede-me de falar. Na verdade, parece ter sido ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trágicos. Mas não se deve honrar um homem acima da verdade [...]

Embora o foco da crítica seja Homero, ele serve, de fato, como o representante de uma categoria mais geral, “os poetas trágicos”, todos eles afins pelo fato de praticarem a mímesis. Veremos adiante que essa categoria é ainda bem mais larga. Por ora é preciso salientar que a mímesis é o eixo em torno do qual o argumento será construído. Dessarte, pergunta Sócrates:

- Serás capaz de me dizer em geral [hólos] o que é a mimese [mímesin]? Porque eu, por mim, não entendo lá muito bem o que ela pretende ser.

Sócrates põe a questão de maneira radical; e se levarmos em consideração que a mímesis já foi objeto de longa investigação no livro III, poderíamos com razão indagar-nos qual seja o sentido de uma questão tão incipiente. Uma resposta bem breve é que, de uma forma ou de outra, a investigação não foi suficiente para os presentes propósitos, de modo que se faz preciso voltar ao princípio, ék arkhé. Por isso mesmo, podemos prescindir do que anteriormente se disse acerca da mímesis: o que importa, como o próprio texto indica, é o que se dirá a seguir.

II. Seção ontológica. II. Seção ontológica. II. Seção ontológica. II. Seção ontológica.

Delimitada a noção a ser investigada, a mímesis, Sócrates pode prosseguir: - Queres então que comecemos o nosso exame a partir deste ponto, segundo nosso método habitual? Efetivamente, estamos habituados a admitir uma certa idéia (sempre uma só) em relação a cada grupo de coisas particulares, a que pomos o mesmo nome. Ou não estás a compreender? -Estou.

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- Vamos escolher, mais uma vez, um desses muitos objetos, o que tu queiras. Por exemplo, este, se te aprouver: há para aí camas e mesas.

É no contexto da chamada “Teoria das Ideias” que se inicia a investigação. Chamamos esta seção do argumento de ontológica justamente porque Sócrates insistirá na preeminência, com respeito ao ser, das Ideias relativamente às coisas sensíveis que recebem o mesmo nome. Mas a superioridade ontológica não se dá apenas entre Ideia e coisa sensível, mas também entre coisa sensível e sua imagem. Assim temos três elementos bem marcados em ordem decrescente de eminência ontológica: a Ideia, que plenamente é; as coisas sensíveis; por último, as imagens, que só se pode dizer que são num sentido bastante fraco.

Sócrates passa então a associar um agente a cada um dos elementos referidos, responsável por sua produção. O produtor da cama sensível só pode ser o marceneiro. Porém, “quanto à Ideia propriamente dita, não há artífice que possa executá-la. Pois como havia de fazê-lo?”. Para o produtor da imagem, Sócrates, em tom irônico, faz referência a um homem sábio, capaz de tudo produzir, bastando para isso que ele carregue um espelho. Essa caracterização, além de implicar que esse homem só tem em vista o que é sensível, uma vez que as Idéias não produziriam reflexo num espelho, ainda serve para que se introduza mais uma distinção familiar à ontologia platônica: a aparência de, um lado, o que realmente é, de outro.

Nessa altura, Sócrates introduz uma nova figura, de vital importância para o argumento, o pintor; tal como aquele que carrega um espelho, ele também produz uma imagem que não é a própria coisa, mas parece sê-la.

Introduzida a figura do pintor, retoma-se claramente a busca pela categoria do imitador (mimetés ou mimetikós).

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O argumento é retomado, então, com algumas modificações.

- Acaso não existem três formas de cama? Uma que é a forma natural, e da qual diremos, segundo entendo, que Deus a confeccionou. Ou que outro Ser poderia fazê-lo?(...) Outra, a que executou o marceneiro. (...) Outra, feita pela pintor.

Sócrates organizou o que fora dito, sob essa tripartição de objetos e produtores correspondentes. É digna de nota a mudança, no mínimo problemática, no que toca a geração da Ideia: anteriormente dissera-se que não poderia ser fabricada, de modo algum, e no trecho acima se diz que Deus as cria. Essa última afirmação é estranha ao pensamento platônico, e não se encontra nada semelhante em parte alguma do corpus. Isso pode ser explicado, pensamos, pelo fato de aqui nessa passagem Platão esteja procurando dar simetria ao argumento: para três objetos, três agentes. Tal simetria dá sustentação à dignidade atribuída aos agentes: Deus, o mais perfeito dos agentes, seguido pelo marceneiro, e, por fim, pelo pintor. Conclui Sócrates:

- Chamas, por conseguinte, ao autor daquilo que está três pontos afastado da realidade, um imitador (mimetés).

Trata-se de um enunciado tão geral que pode ser visto como uma definição, resultado desta seção do argumento. Sendo assim, o imitador é produtor de entes que estão no terceiro nível ontológico. Sócrates procura esclarecer mais um aspecto:

- Mas diz-me agora o seguinte, com relação ao pintor: parece-te que o que ele tenta imitar é cada uma das coisas que existem na natureza ou as obras dos artífices?

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Sócrates assegura assim a hierarquia existente entre as três camas e seus agentes: o pintor não procuraria, portanto, imitar a Ideia. Mas Sócrates ainda não está satisfeito, de modo que procura ratificar uma noção que a princípio fora referida de passagem. Dado que o pintor imita apenas as obras dos artífices, isto é, as camas sensíveis, pergunta Sócrates:

- Mas tais como elas são ou como parecem? Define ainda este ponto. - Que queres dizer?

- O seguinte: se olhares para uma cama de lado, se a olhares de frente ou de qualquer outro ângulo, é diferente de si mesma, ou não difere nada, mas parece distinta? E do mesmo modo com os demais objetos?

- É como dizes: parece diferente, mas não é nada.

- Considera então o seguinte: relativamente a cada objeto, com que fim faz a pintura? Com o de imitar a realidade, como ele realmente é, ou a aparência, como ela aparece? É imitação da aparência ou da realidade?

- Da aparência.

Sendo assim, o pintor, além de tomar por modelo algo que já não é no sentido pleno, ainda acumula uma agravante: imita apenas a aparência de seu modelo, a cama de madeira. Sendo assim, a informação inicial de que o pintor é um agente a três pontos da realidade é matizada um pouco mais: a pintura de cama só capta a aparência de seu modelo. E, convém salientar, esse dado será generalizado para toda a classe dos imitadores, como se lê no trecho imediatamente posterior:

- Por conseguinte, a arte de imitar [mimetiké] está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição [eídolon].

A afirmação é desconcertante. Pelo que se disse – e admitida a generalização para todos os imitadores – todo produto de imitação seria inferior ontologicamente; e isso tanto porque está três vezes afastado do real quanto

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porque se restringe a representar a aparência.

Essa é a concepção de arte que se atribui recorrentemente a Platão, tanto em manuais quanto numa bibliografia mais específica. Platão seria aquele que, em razão de sua concepção ontológica, dividiu o mundo em dois níveis, e teve consequentemente de encontrar uma posição ainda mais baixa para as belas-artes, nada mais que “imitação da imitação”. Se atentarmos para esse argumento, perceberemos que ele veicula uma objeção de princípio às artes: as artes miméticas pelo próprio fato de serem o que são, miméticas, teriam seu valor determinado negativamente, uma vez que tais artes jamais poderiam deixar de ocupar o terceiro nível da realidade. Como já referimos, uma objeção desse tipo cria uma incoerência quando associada, por exemplo, à mousiké, base da educação proposta na obra. Contudo, é verdade que o próprio texto do livro X, como pudemos perceber, oferece elementos para esse tipo de interpretação.

Devemos analisar mais pormenorizadamente essa problemática passagem. Reprocha-se à pintura o fato de ela captar e reproduzir apenas a aparência do modelo visado. Mas, ao explicar o que significa imitar a aparência, faz-se a referência à perspectiva espacial que determinada pintura adota.

[...] se olhares para uma cama de lado, se a olhares de frente ou de qualquer outro ângulo, é diferente de si mesma, ou não difere nada, mas parece distinta?

Mas, na verdade, que a pintura sempre dê conta de uma perspectiva limitada de um modelo é algo simplesmente incontornável; toda pintura, pela própria natureza dessa arte, tem de representar determinada perspectiva de um objeto. Ora, se essa fosse a verdadeira crítica levantada por Platão nessa seção do argumento, além de inescapável, seria também bastante estranha.

Aquilo que, entretanto, é mais importante neste trabalho é mostrar que essa não é a objeção de Platão. O fato de as artes miméticas tomarem por modelo

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apenas a aparência dos seus modelos é sem dúvida uma característica importante; mas não é isso simpliciter que move a crítica platônica. Positivamente, podemos dizer que essa característica ontológica das artes miméticas é apenas uma componente da verdadeira objeção. Vejamos o trecho imediatamente posterior à afirmação de que a pintura é mímesis da aparência.

- Por conseguinte, a arte de imitar [mimetiké] está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição [eídolon]. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os demais artífices, sem nada conhecersem nada conhecersem nada conhecersem nada conhecer dos respectivos ofícios. [...] quando alguém nos anunciar, a respeito de outrem, que encontrou um homem conhecedorconhecedorconhecedorconhecedor de todos os ofícios e de tudo quanto cada um sabe no seu domínio, e com não menos exatidão do que qualquer especialista, deve responder-se a uma pessoa dessas que é um ingênuo, e que, ao que parece, deu com um charlatão e um imitador, por quem foi iludido, de maneira que lhe pareceu um sábio universal [...]

É claríssimo que a conclusão dessa seção do argumento é decididamente (e surpreendentemente) epistemológica; a verdadeira objeção é que os imitadores não conhecem aquilo com o que lidam. Poderíamos nos perguntar por quê, então, há todas essas considerações ontológicas. Mas o texto nos dá a resposta: o proceder das artes miméticas é tal que facilita a escamoteação da ignorância do imitador. Em outros termos, as artes miméticas facilitam o blefe do imitador, que pode passar-se por “sábio universal”. E isso é justificado em termos ontológicos: “a arte de imitar [...] se executa tudo, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição”.

Sendo assim, a crítica às artes miméticas não consiste no fato de elas serem “imitação da imitação”, e, só por isso, desprovidas valor. Há, na verdade, mais nuanças. Resumidamente podemos dizer que a crítica substantiva de Platão às artes é que os imitadores são frequentemente ignorantes dos assuntos de que tratam. Mas não apenas isso. A ignorância implica num produto artístico que tem potencial nocivo para a comunidade política. Ora, a natureza ontológica das artes

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imitativas é condição necessária, mas de modo algum suficiente, para a existência de produção mimética ignorante. Não se segue, pois, que todo imitador seja ignorante, e todo produto de imitação nocivo. A arte é domínio da instabilidade, do engano potencial, mas não necessário, e por isso mesmo exige todos os cuidados dispensados por Platão ao longo da República.

Logo, o argumento que temos na obra não é um argumento de princípio, isto é, que pelo mero fato de uma arte usar a mímesis ela deva ser rejeitada. Na verdade, trata-se de um argumento de fato: os exemplares artísticos historicamente determinados que Platão conheceu pareceram-lhe inapropriados para figurar em seu projeto político, sobretudo em razão da ignorância que ocultavam. Sem dúvida, tal ignorância tinha, no projeto de Platão, uma solução bem determinada: a submissão da arte às orientações dos fundadores da cidade.

Como prometemos anteriormente, faremos o resumo mais breve possível do restante do argumento do livro X contra as artes miméticas, tendo sempre em vista se se tratam de objeções de princípio ou de fato, a ver se o livro X não erige mesmo contradições na obra.

Diz-se que para cada objeto há três artes: a de produzir, de utilizar, e a de imitar. Os produtores têm de se submeter aos que utilizam o objeto, pois somente estes têm conhecimento do seu melhor uso e finalidade; contrariamente, os imitadores não precisam nem conhecer nem se submeter às diretrizes de quem conhece, uma vez que eles só se preocupam com o parecer da multidão, e são capazes de deslumbrá-la sem nada saber ao certo.

Como é patente, tal argumentação que põe tanta ênfase na questão do conhecimento, é perfeitamente compatível com a nossa interpretação. Platão salienta que os imitadores submetem-se ao parecer da multidão ignorante; ora, isso nada mais é do que um fato, talvez muito recorrente, mas apenas um fato. Nada impede que o imitador submeta-se, ele também, à direção de quem efetivamente

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possui conhecimento.

O último aspecto abordado por Platão é o fato de que a poesia apela para o que há de mais inferior na alma, fortalecendo, paulatinamente, seus piores impulsos. Mencionam-se os lamentos desmedidos, o furor erótico, o deboche, etc.

Mais uma vez, é evidente que as críticas referem-se meramente a questões de fato: o “conteúdo” de determinados poemas. Tanto é assim que Platão, considerando a possibilidade de um poema com conteúdo oposto, aprova-o. Não há, portanto, qualquer entrave formal à possibilidade de um poema que se dirija às partes superiores da alma.

Em suma, as objeções às artes presentes no extenso argumento do livro X da República não constituem objeções de princípio, mas tão somente de fato; Platão pode, sem verdadeira contradição, incorporar em seu projeto político as artes na medida em que elas contribuam para o fim almejado:

- Concederemos certamente aos seus defensores [da poesia] [...] que falem em sua defesa [...] mostrando como [a poesia] não é só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-los-emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela não é só agradável, como também útil.

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