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Estranhas no Paraíso : Análise das personagens homossexuais femininas em Senhora do Destino 1

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Academic year: 2021

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Estranhas no “Paraíso”:

Análise das personagens homossexuais femininas em Senhora do Destino1

Sem amor, somos todos estranhos no paraíso, Terry Moore

Marcelo Lima2

Resumo

O presente texto analisará a representação social do casal homossexual Jennifer e Leo

na novela Senhora do Destino. A análise faz parte de uma pesquisa conjunta que está sendo realizada no CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), que pretende estudar, à luz da teoria queer, a representação de todos os personagens homossexuais das telenovelas da Rede Globo. O artigo defende que, mesmo avançando em questões representativas, as personagens ainda estão inseridas em um modelo heteronormativo de relacionamento.

Palavras-Chave: teoria queer – telenovela – homossexualidade – heteronormatividade

– gênero

Introdução

Em 2004, a novela Senhora do Destino trouxe discussões sobre homossexualidade através de dois casais de personagens: Eleonora e Jennifer e Turcão e Ubiracy. Ambos seguiram desenvolvimentos bem diferentes no enredo e tiveram representações diversas na novela. Como a metodologia aplicada a esse texto3 não é voltada para o produto midiático e artístico como um todo e sim para as personagens nele inclusas, resolvemos, aqui, discutir apenas o relacionamento das personagens Eleonora e Jennifer. Turcão e Ubiracy serão analisados em um outro artigo.

1

Trabalho apresentado no I EBECULT em dezembro de 2009.

2 Marcelo Lima é estudante de graduação do curso de jornalismo, membro do grupo CuS – CULT e

bolsista PET/ Facom. marcelocaterpillar@gmail.com

3

A metodologia é baseada nos estudos de Peret (2001) e Moreno (2005) – ver Colling, 2007. O referencial teórico para análise dos elementos audiovisuais vem dos estudos de Canguçu (2008).

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É importante salientar que os esforços que culminaram nesse artigo não foram feitos apenas pelo seu autor, mas são fruto de discussões e do trabalho do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CuS), do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), sediado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em parceria com o Núcleo de Estudos em Sociedade, Poder e Cultura (Nespoc), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). A pesquisa conjunta está traçando um panorama analítico das representações sociais de personagens homossexuais nas tramas de telenovelas da Rede Globo4.

Esse texto é escrito com base em estudos da teoria queer. O termo queer pode significar estranho, exótico, mas é principalmente utilizado para depreciar indivíduos de sexualidade diferente da heterossexual. “Esse termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação” (LOURO, 2004, p. 38). Essa inspiração, para os teóricos queer, os guia na luta contra qualquer tipo de normatividade – menos, talvez, contra o ideal normativo de incompletude essencial das categorias a que Butler (2003, p. 36) nos chama atenção.

As normas representam conjuntos de ideais repetidos através de práticas performativas que constituem indivíduos que podem ser tidos como sujeitos ou não – àqueles que são privados do lugar de sujeito tornam-se abjetos da norma. O queer não quer se sujeitar às normas, pelo contrário, elas são suas maiores inimigas. Para o queer, é mais interessante se manter à deriva das identidades, viver a marginalidade na própria experiência existencial.

Sobre as identidades, concordamos com Hall (2006) de que elas se encontram “descentradas”, “fragmentadas”. Ao contrário da concepção unitária do sujeito moderno, filiamo-nos a maneira pós-moderna de conceber o sujeito “como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2006, p.12). Essa perspectiva nos permite correlacionar com maior facilidade os diversos campos identitários de raça, gênero e classe social na análise. Pois, a identidade está sempre numa “‟celebração móvel‟: formada e transformada continuamente em relação às formas pelos quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p.12).

4

A pesquisa, recentemente, recebeu o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

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As representações, dentro do contexto da teoria queer, ganham bastante relevância, pois ao contrário das representações modernas que procuravam exteriorizar verdades mentais, são agora vistas como possíveis apenas politicamente. Como comprova Butler (2003, p. 18), a representação opera tanto na extensão e legitimação de um sujeito político quanto é um termo lingüístico normativo. Para o sujeito pós-moderno, o questionamento da dicotomia “público/privado” (ver HALL, 2006) acaba por demonstrar que existem relações de poder permeando todas as relações e representações. Diante disso, Paul Rabinow conclui: “como Foucault, consideramos o poder como produtor e impregnador de relações sociais e da verdade no nosso atual regime de poder” (RABINOW, 2002, p.80). A verdade seria tomada, por ele numa perspectiva foucaultiana, como aquilo que é representado dentro de um regime verdade, o que permite ele concluir que “reivindicações à verdade estão conectadas a práticas sociais e se tornaram, portanto, forças efetivas no mundo social” (RABINOW, 2002, p.80). E, portanto, citando o título de um dos seus ensaios, podemos dizer que “representações são fatos sociais” (RABINOW, 2002).

Os regimes de verdade que envolvem as identidades estão ligados aos discursos construídos em torno deles. Por isso Butler (2003, p.18) afirma que representação é também um termo lingüístico normativo, que opera performativamente, nomeando sujeitos. Aí surge um conflito: se a teoria queer luta contra todo tipo de normatividade, como aceitar que a representação nomeie e, assim, de alguma forma normatize? Quem responde a essa pergunta é Denilson Lopes, quando diz que “nomear é sempre um perigo, mas se não nomeamos, outros o farão. Dar um nome não significa simplesmente classificar, mas explorar, problematizar” (LOPES, 2002, p.27). E é através da própria linguagem, segundo Louro (2004, p.42), mediante a desconstrução discursiva desenvolvida por Derrida, que os teóricos queer agem.

Os queer combatem a matriz heteronormativa de produção do gênero e dos sexos. Isso porque essa matriz nomeia dois sexos distintos, masculino e feminino, como se fossem naturais e a partir daí cria categorias que sempre delimitam sujeitos inteligíveis, excluindo outros. Em verdade, apenas através da exclusão se pode determinar sujeitos reconhecíveis, pois se criam pólos de oposição. “Para os teóricos/as queer, a oposição heterossexualidade/homossexualidade – onipresente na cultura ocidental moderna – poderia ser efetivamente criticada e abalada por meio de procedimentos desconstrutivos” (LOURO, 2004, p.43). Pois esses procedimentos demonstram que os

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dois pólos não são completamente diferentes ou distantes, mas sedimentam e carregam resíduos do pólo “oposto”. Portanto, cremos que a matriz pode ser desconstruída.

Para Garcia:

As manifestações culturais contemporâneas de identidade e gênero convergem para abordagens, cada vez mais, transversais. Nos projetos de cinema, televisão e vídeo não é diferente! Temáticas insólitas sobre identidade e gênero – feminino, masculino e adjacências – são propriedades (re)inscritas pela nova ordem dos discursos que aparecem nos produtos audiovisuais no Brasil e no mundo. (2004, p.265)

Por essa razão, faz-se necessário analisar as telenovelas da Rede Globo, onde marcas da matriz heteronormativa certamente são identificáveis e problematizá-las como uma atividade, acima de tudo, política. As telenovelas foram escolhidas por serem produtos midiáticos populares no Brasil e em outros países. Esperamos que dessas polêmicas novas maneiras de expressar a sexualidade possam escapar à vigilância da norma e transformar as representações vigentes.

Antes de passarmos a análise, vale lembrar as palavras da professora Guacira Lopes Louro, sobre os sujeitos pós-modernos que transgridem experiências normativas:

Suas aventuras podem, no entanto, parecer especialmente arriscadas e assustadoras quando se inscrevem no terreno dos gêneros e da sexualidade – afinal essas dimensões são tidas como „essenciais‟, „seguras‟ e „universais‟ – que, supostamente, não podem/não devem ser afetadas e alteradas. Por isso o efeito e o impacto das experiências desses sujeitos tão fortemente políticos – o que eles ousam ensaiar repercute não apenas em suas próprias vidas, mas nas vidas de seus contemporâneos (2004, p. 23)

Análise

Os itens marcados em negrito pertencem à metodologia desenvolvida por Colling (2007) sobre os estudos de Peret (2001) e Moreno (2005).

Dados gerais do produto

Título: Senhora do Destino Diretor: Wolf Maia

Autor: Aguinaldo Silva

Elenco principal: Suzana Vieira (Maria do Carmo), Renata Sorrah (Nazaré

Tedesco), Carolina Dieckmann (Isabel Tedesco), José Mayer (Dirceu de Castro) e José Wilker (Giovanni Improtta).

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Elenco mais diretamente ligado com a temática homossexual: Mylla Christie

(Eleonora Ferreira da Silva), Bárbara Borges (Jennifer Improtta), Luiz Henrique Nogueira (Ubiracy) e Marco Villela (Turcão).

Tempo de exibição: 28 de junho de 2004 a 12 de março de 2005. Ao total,

foram 221 capítulos, exibidos sempre às 21h. Cada capítulo tinha duração de 60 minutos, exceto às quartas-feiras.

Resumo do enredo e algumas considerações:

A trama se inicia em 1968, quando Maria do Carmo migra do sertão de Pernambuco para o Rio de Janeiro. Enquanto realiza a viagem, a prostituta Nazaré Tedesco seqüestra sua filha, Lindinalva, que passa a criar como se fosse sua. Desde então, Maria do Carmo luta para manter seus filhos no Rio, mas sem esquecer a sua filhinha seqüestrada.

Cerca de 25 anos depois da primeira fase da novela, Maria do Carmo constitui uma família numerosa na Vila São Miguel, distrito fictício de Duque de Caxias. Ela consegue vencer na vida, sendo detentora de um império comercial no ramo de construções. São apresentados os personagens Giovanni Improtta e Dirceu de Castro, que têm relacionamentos românticos com a comerciante.

Na Vila São Miguel os núcleos de personagens são muito próximos e os temas que ocupam boa parte dos capítulos das novelas envolvem a família de Maria do Carmo e de Giovanni, a busca por Lindinalva e o carnaval.

Jennifer e Eleonora se encontram pela primeira vez por causa de um impasse familiar: o irmão de Jennifer, Manoel Improtta (Heitor Martinez), quer que Regininha (Maria Maya), irmã de Eleonora, desfile na escola de samba da Vila São Miguel. No entanto, a família de Eleonora, ou Leo, se posiciona contra a vontade de Regininha e Manoel. Eleonora vai até a casa dos Improtta para avisar Regininha que o pai delas quer armar um barraco em um ensaio da escola, mas encontra apenas Jennifer na casa. Elas se conhecem e Eleonora explica a situação. Compreensiva e solidária, Jennifer resolve acompanhar Leo até o ensaio da escola. A partir de então se estruturam três diferentes momentos na relação delas, que se dedicam a humanizá-las e representar um amor romântico idêntico ao dos vividos pelos casais heterossexuais na própria novela.

Num primeiro momento, a história se desenrola como uma narrativa de

revelação. Esse tipo de narrativa compreende deixar pistas deixadas nas cenas que

levem a pensar que os personagens em questão são dotados de algum tipo de homoafetividade e ir aumentando, paulatinamente, a dosagem de pontas soltas até elas

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começarem a se conectar de tal forma que o espectador terá certeza de que os personagens têm uma relação homossexual. Esse tipo de narrativa, “existe para constituir um sub-tema da narrativa da heterossexualidade e incorporar o inevitável ciclo do amor, casamento, família de forma tradicional. Este investimento interpretativo exclui a alteridade ou marginalidade da homossexualidade” (OLIVEIRA, 2002, p. 166

apud COLLING, 2007, p. 7).

Quando Leo e Jennifer se conhecem, fica bem claro que elas se interessam muito uma pela outra. Esse interesse inicial é delimitado à amizade. No entanto, em suas pequenas aparições em que discutem coisas triviais como rotina de trabalho, alimentos prediletos e famílias, elas vão se dando conta de interesses em comum e vão desenvolvendo afinidades. A aproximação se torna mais íntima, passando aos toques: Leo e Jennifer andam constantemente de mãos dadas, abraçam-se diversas vezes, e estes momentos são acompanhados da música-tema do casal e de uma construção televisiva específica para provocar encanto no espectador. A música é romântica e envolvente, a iluminação é excessiva, o que contribui para o lirismo e suavização dos contornos das personagens, que são alegres e usam roupas claras. Consegue-se, com a manipulação desses aspectos técnicos, numa recorrência, uma sugestão romântica que aproxima o espectador dos sentimentos das personagens, mesmo sem explicitá-los.

Socialmente, as famílias e amigos não levantam dúvidas sobre elas por muito tempo, por acharem que se trata de uma “amizade inocente”. Os primeiros preconceitos sofridos por elas vêm de um grupo de machões que, ao desconfiar das constantes saídas delas, começam a fazer zombarias do tipo: “Olha só que desperdício, duas gatas juntas” e “Eu que tou aqui doido por uma mulher vejo uma coisa dessas”. No entanto, pesa um fator bastante importante aqui, que será discutido mais adiante, que é a classe social das personagens.

Jennifer se sente acanhada com os insultos, mas Leo a tranqüiliza, dizendo que não devem se preocupar com comentários bobos. Um recurso bastante utilizado pelo autor Aguinaldo Silva em suas telenovelas é o realismo fantástico5. Procurando sinalizar o envolvimento entre as duas mulheres há uma cena em que elas se tocam e tomam um choque, como um estalo de energias convergindo e coincidindo intensamente. A

5 Em entrevista ao jornal Gazeta do Sul, quando da estréia da novela Duas Caras, respondeu que o

“realismo fantástico condizia com uma época [de sua produção]. Hoje, fábula absurda é a realidade que vivemos. Qualquer tentativa de fazer um realismo mágico vai parecer bobagem”. A época a que ele se refere é anterior à sua Duas Caras. Ver entrevista em:

http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=83964&intIdEdicao= 1289

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amizade vai tomando mais e mais forma, e as amigas passam a se cumprimentar com selinhos. A partir daí, o irmão de Jennifer questiona-se sobre a amizade das duas. A esta altura, todas as pistas para se adivinhar que existe um affair já foram dadas. Os insultos preconceituosos surgem como maneira de cercar as personagens e exigir delas uma resposta ao mistério construído sobre o relacionamento.

Jennifer é quem mais sofre com as provocações, enquanto Leo é apoiada pelo irmão Venâncio que percebe que a irmã está apaixonada. Jennifer é interrogada pelo pai sobre seu relacionamento com a doutora. Mesmo sendo Giovanni bastante atencioso, Jennifer fica agoniada e explode quando seu irmão faz insinuações sobre seus desejos homossexuais. Irritada, ela se apressa a encontrar Leo para contar sobre os comentários ”absurdos” que fazem sobre elas. Contrariando as expectativas de Jennifer, Leo declara sua paixão. Jennifer entra numa confusão identitária a respeito da própria sexualidade, pois não consegue aceitar os desejos que sente pela sua amiga, que, pelo contrário, é bastante resolvida a ponto de empurrar a identidade lésbica para Jennifer como a única identidade assumível para uma mulher que gosta de uma outra mulher.

Para que a narrativa de relação seja terminada basta sabermos do desejo de Jennifer. A esta altura ainda estamos na metade da novela, geralmente as narrativas de

revelação atingem esse ponto de desenvolvimento nos finais das narrativas, para

culminar a conclusão da participação do personagem com o seu coming out. Jennifer não consegue parar de pensar em Leo e vice-versa, e ambas caem em tristeza profunda.

Como costuma acontecer com os casais heterossexuais em novelas, individualmente elas são estimuladas por familiares a lutarem pelos seus sentimentos. É então que Jennifer aceita conversar com Leo, no apartamento de uma amiga desta. Lá, Leo se declara mais uma vez e consegue conquistar Jennifer.

Revelado ao espectador o desejo de Jennifer por Leo, passamos a acompanhar a luta delas por aceitação familiar. Há uma série de diálogos importantes entre os membros familiares dos Improtta e dos Ferreira da Silva, sendo o mais difícil deles com o pai de Leo, que a expulsa de casa. A novela apresenta famílias relativamente abertas à questão homossexual porque a maior parte dos familiares aceita o relacionamento sem muitas dificuldades. No entanto, elas são toleradas: convivem nos mesmos ambientes da família, mas com menos liberdade para demonstrar afetividade e desejo do que os casais heteros. Vivem como estranhas em um aparente paraíso familiar.

Logo que se resolvem os impasses com o pai de Eleonora, esse segundo momento, de posicionamento ante a sociedade, prossegue, mas agora quanto ao tema da

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adoção. Durante as comemorações de Ano Novo, Leo encontra um bebê na lixeira do hospital. Ela fica encantada pela criança e resolve entrar com um processo para adotá-la. Ela teme que o fato de ser lésbica possa atrapalhá-la na adoção do bebê. Após muito lutar e com o apoio de Giovanni Improtta e de sua namorada, ela consegue finalmente realizar o seu desejo de ser mãe, dito anteriormente na trama.

Leo e Jennifer se unem civilmente, sem festas, e passam a morar juntas, cuidando de Renato, o filho adotado de Leo. Seus sonhos conjugais estão realizados.

Aspectos fixos dos personagens homossexuais:

“Posição do personagem no enredo: se é principal, coadjuvante, se faz ponta, figuração, citada ou recorrida.” (Moreno, 2001, p.167).

As personagens estão inseridas nos núcleos familiares mais importantes da novela e são bastante atuantes neles. No entanto, podem ser encaradas como coadjuvantes quando comparadas aos personagens de Maria do Carmo e José Wilker. É interessante assinalar que a participação delas é variada, tendo de curtas aparições nos primeiros capítulos a longos momentos quando estão na fase da narrativa de revelação e de adoção do bebê.

“Contexto social do personagem: a que classe ele pertence” (Moreno, 2001, p.167):

Jennifer é rica, pois é filha de um ex-bicheiro que tem diversos investimentos em setores como o imobiliário. Eleonora é da classe média e vive bem. Ambas possuem carros novos e não parecem ter muitas dificuldades com dinheiro. O fato de Jennifer ser filha do homem mais importante de Vila Miguel faz com que algumas pessoas tenham receio em repudiar seu namoro com Leo.

Cor:

Ambas são caucasianas.

Profissão:

Jennifer é estudante, sustentada pelo pai. Já Eleonora é ortopedista bastante respeitada pela sua profissão. É exatamente por ser médica que muitas vezes alguns personagens preconceituosos relevam a sua sexualidade. Seu próprio pai se esforça em aceitá-la repetindo que sua filha é maravilhosa e “salva vidas”. O fato de ser médica

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também ajuda a se quebrar preconceitos ligados à prática homossexual e saúde, como o combate à determinação de “grupos de risco”6 na transmissão e contágio de DSTs.

Nunca se pode perder de vista a relação entre classe social, cor, gênero e representação. Como discute Mary Garcia Castro, em relação à classe social:

na alquimia entre raça e gênero, na classe, algumas mulheres, principalmente, se crianças e jovens, perdem mais que as outras, e não necessariamente os homens se destacam como em melhor situação, o que alerta contra referências generalistas e políticas públicas para identidades em si, sem consideração da heterogeneidade que comporta cada uma (CASTRO, s/d, p. 8)

Por essa heterogeneidade mesma que se pode falar, para fins desse artigo, que a alquimia identitária é a percepção contemporânea e paralela da existência de elementos identitários de raça, classe social e gênero, na representação das sexualidades.

Aspectos da linguagem utilizada e da composição geral do personagem:

Tipos de gestualidade:

1) estereotipada, com gestual explícito que caracteriza de forma debochada e desrespeitosa à personagem homossexual;

2) gestualidade típica de alguns sujeitos queer, especialmente os adeptos de um comportamento/estética camp;

3) não estereotipada (gestual considerado “normal” e “natural”, sem indicação de homossexualidade, inscrito dentro de um comportamento heterossexual);

As personagens se encaixam no item 3: agem de forma não-estereotipada e estão completamente inseridas dentro de um comportamento heterossexual. Elas são

toleradas pelas famílias e não abusam das leis sociais impostas, conformando-se a

estarem próximas uma da outra, sem discutir sexualidade nem exercer demonstrações indiscretas de afeto. O mesmo comportamento adotado quando elas ainda são amigas prossegue quando elas se tornam namoradas. Portanto, agem sem indício de possuírem uma relação homossexual.

6

Vale lembrar que o conceito de “grupos de risco” está abolido no Brasil, mas foi recentemente reaprovado pela OMS. No blog do colunista da Veja.com, Reinaldo Barata, ele comenta essa reaprovação, argumentando que os “grupos de risco”, formados principalmente por gays e drogados, foram escondidos devido a lobby de movimentos sociais e ONGs. Para ver, acesse:

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“Subgestualidade: compreende o vestuário, maquiagem e adereços utilizados/usados pela personagem” (Moreno, 2001, p. 167):

As personagens trajam roupas tipicamente associadas ao gênero feminino. As cores das roupas são claras e coloridas, remontando à leveza e alegria. É uma maneira de “naturalizar” a aparência delas, fazendo corresponder a vestimenta delas aos trajes considerados típicos às mulheres. É interessante notar que Leo tem um vestuário mais sério e comportado, inclusive aparecendo em muitas cenas com seu jaleco médico. Do contrário, Jennifer é sensualizada, usando blusas com muito decote e shortinhos. O psicanalista Marcus Teixeira (2008) argumenta que na tradição ocidental de estudos sobre o inconsciente, o gênero feminino é visto como “máscara vazia” que é colocada, através de diversos artifícios, sobre um corpo para moldá-lo de forma a ser desejável e assumir atributos ditos femininos. Assim, algumas vezes a “feminilidade” é mais presente em Jennifer do que em Leo.

Análise de seqüências: “É um recurso para detalhar mais as ações de um filme (em nosso caso a telenovela ou as peças) e explicitar o seu conteúdo de forma minuciosa, como diante de uma lente de aumento.” (Moreno, 2001, p. 168):

Duas seqüências são muito importantes para analisar as estratégias representativas que o autor utiliza durante a novela. A primeira delas situa-se ainda enquanto acontece a narrativa de revelação e a história é contada de modo a revelar um grande amor romântico que possa ser capaz de provocar a simpatia do público. Já a segunda seqüência continua a investir numa sensibilização do público a partir do relacionamento romântico, e já introduz o desejo de constituir família – Leo já havia encontrado Renato antes desta cena.

Primeira Seqüência

A seguir, as falas pontuadas por breves descrições.

Eleonora leva Jennifer a um apartamento, para conversarem. Está tudo em silêncio, e Jennifer não encara Leo nos olhos, olha para baixo, nervosa.

Jennifer: Quem é que mora aqui?

Leo: Isso não vem ao caso. Expressão séria e decidida.

J: Você parecia tão segura quando passou na portaria... Quase morri de

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L: Jennifer, cê tem certeza que quer saber? (silêncio) Esse apartamento é de uma

colega do hospital. Ela separou do marido há um tempo, mora sozinha. De vez em quando, ela me empresta a chave e eu venho aqui.

J: E você vem... com amigas suas?

L: Nem sempre, mas... de vez em quando venho, sim. J: E ela não se importa?

L: As preocupações dela são outras. O que ela se importa mesmo é com a

quantidade de pessoas que dão entrada no hospital todos os dias, vítimas de bala perdida. Quanto ao resto, o que as pessoas fazem, sem incomodar ninguém, ela prefere não perder tempo sendo preconceituosa por causa disso.

J: Mas é a casa dela...

L: É apenas um apartamento. Ela fica quase o tempo todo no hospital, raramente

vem aqui.

J: Que mundo é esse? Sombras se acentuam sobre seu rosto, que fica grave e um pouco oculto.

L: É o mundo em que vivemos, Jennifer. Seja bem-vinda à vida real. Um foco de luz ilumina a face de Leo.

J: Olha, não é que eu seja preconceituosa...

L: Jennifer, você veio aqui porque você disse que ia falar na minha frente,

olhando olho no olho, que nossa amizade deve acabar para sempre.

J: É... Foi isso mesmo...

L: Então, tô esperando. Pode começar...

Jennifer chora e começa a tocar “Those Sweet Words”, música-tema do casal, executada numa versão instrumental, em piano.

L: Que é que foi? Preocupada. Jennifer? Por que que cê ta chorando?

J: É porque... porque eu sei que se a gente deixar de se ver eu vou sentir falta de

você, mais do que estou sentindo. E foi por isso que eu vim... Porque no portão de sua casa eu queria te ver de novo. Funga e chora ininterruptamente.

L: Eu também, Jen, eu também. Eu fui pra porta da sua casa por causa disso. Eu

também... Eu sinto falta de você. Eu morro de saudade. Leo aperta os traços do rosto,

como se a situação a colocasse em profundo estado de agonia.

J: Eu tenho medo, Leo. Eu não sei o que é que tá acontecendo comigo. L: Olha pra mim... Também não sei direito o que tá acontecendo, mas de uma

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J: Juntas, Leo?

L: Juntas, Jennifer. A gente vai descobrir. É o único jeito.

A música tem seu volume aumentado e as duas se abraçam. Leo sorri bastante, enquanto Jennifer ainda transmite bastante incerteza com o olhar.

A cena acima evidencia a construção de um romance, capaz de superar obstáculos, como o preconceito, em direção a sua realização. O diálogo acontece de forma lenta e é uma continuação de uma discussão anterior do casal, quando Leo se declara para Jennifer, mas esta, sem saber o que fazer, foge da conversa. Agora, ao tentar se encontrar de novo com a amiga para tentar desmentir um desejo que está mais que aparente, Jen não tem opção de fuga. A distância entre as duas, bastante explorada em cenas anteriores, serve para colocá-las numa posição frágil: elas são menores que a força da paixão que as envolve. Portanto, solidifica-se a monogamia e a união civil7 jurídica como destino inexorável para as duas. São as premissas da narrativa de

revelação se concretizando.

Por fim, sobre essa seqüência, é interesse pontuar como as técnicas de filmagem funcionam para os intentos desejados. A luz sobre as faces das personagens, ora frontal e intensa, que coloca Eleonora num patamar elevado de certeza e clareza de sentimentos, é também indireta e definidora de sombras, o que faz transparecer a incerteza de Jennifer diante do seu próprio desejo. O jogo de luz e sombra funciona para que o sentimento “puro” de Leo transpareça com mais força do que as confusas sensações de Jen. A música, além de marcar a sintonia que envolve as personagens – aparece sempre que estão juntas ou quando uma pensa sobre a outra – condiciona emocionalmente para o aumento do romantismo em falas e ações.

Segunda Seqüência

As personagens estão conversando, dentro do carro de Leo, sobre o futuro. Elas já se revelaram às suas famílias e decidiram por morar juntas.

Jennifer: Leo, você não tem vontade de sair da baixada?

7 Utilizo o termo “união civil” ao invés de “casamento” porque, apesar das referências a casamento

presentes na trama de Leo e Jennifer, as personagens não usam o termo quando pensam em oficializar a união delas. Para Aguinaldo Silva, essa substituição do termo é importante porque “ela[a palavra casamento] é sempre utilizada para dar a impressão que os homossexuais querem entrar na igreja de véu e grinalda”. Declaração encontrada em:

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Leo: Não. Eu nasci aqui, estudei aqui, trabalho aqui. Só se rolasse uma

transferência, ou alguma coisa assim. Eu já tou tão acostumada nesse lugar.

J: É... Quando eu era mais nova, eu tinha maior vontade de morar lá pra baixo,

sabe? Mas hoje em dia passou totalmente. Meu lugar é aqui.

L: Eu só tou procurando em Caxias. Olha só, quantos apartamentos que vou ver

amanhã. Pena que você não vai comigo. Leo mostra um caderno com anúncios de

jornal.

J: Não. Eu adoraria, Leo, se não fosse a minha prova.

L: Eu não vou decidir nada sem te mostrar. Afinal, essa vai ser a nossa casa, né? Entra uma música melosa..

J: Que foi, bonitinha?

L: Eu imaginei agora... A voz começa a ficar mais suave e melosa; Leo parece prestes a desabar em lágrimas. A gente na nossa caminha, o Renato no quarto dele,

dormindo feito anjo. É tudo que mais preciso na vida para ser feliz.

J: Eu vou te fazer muito feliz, Leo. Todo o bem que você faz as pessoas, você

pode ter certeza, quem vai retribuir sou eu. Os olhos de Jennifer ficam cheios de

lágrimas, embora ela não as chore.

Elas quase se beijam, mas são interrompidas por um barulho de carro. L: Esse aí não é o carro do seu pai?

J: Melhor a gente ir, né?

Ficam sérias e dirigem para fora do lugar onde estão.

Nesta segunda seqüência, repete-se a construção de um envolvimento romântico, mas agora a partir do relacionamento instituído. Falar de projetos futuros e da adoção de Renato tornam-se momentos recorrentes, dando aos encontros das duas a mesma estrutura de acontecimento: elas conversam sobre algo que as envolve, de forma descontraída, e repentinamente acontece um arrebatamento emocional, geralmente por parte de Leo, que torna a conversa romântica e lírica. Além dos close-ups constantes, que possibilitam a capacidade de visualizar melhor os sentimentos expressos sobre a face das personagens, é novamente a música que marca o adensamento, emocional. Quando Leo fala que “afinal, essa vai ser a nossa casa”, a música começa a ser executada, quase que em sincronia com a palavra “casa”. Vê-se aqui, novamente reiterado, o valor dado aos temas da constituição familiar, de estar próximo a sociedade heteronormativa como casal tolerado e de possuir um parceiro fixo num relacionamento

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romântico. A chegada de Giovanni serve para mostrar o caráter de tolerância conferida pelas famílias ao relacionamento: enquanto Regininha e Manoel se agarram na rua, elas não podem demonstrar afetividade nem perto de casa, à noite, quando a rua está vazia. Logo que Giovanni chega, o clima da cena muda completamente, a música pára e o casal nem lamenta o fim do momento a dois – e do beijo interrompido.

Características gerais da personalidade do personagem: criminoso, violento, psicopata, saudável, calmo etc.:

As personagens são caracterizadas positivamente. Geralmente, elas têm muita paciência para resolver problemas e assuntos entre si e com as demais pessoas. Leo é mostrada como uma mulher solidária, caráter reforçado pelo seu trabalho na área de saúde, ao qual se dedica com muita paixão. Seu esforço e sua bondade são reconhecidos pelos seus pacientes e, durante a narrativa, quando ela consegue adotar Renato. Jennifer é mimada e um tanto insegura, mas se torna um pouco decidida quando resolve se entregar a Leo. A partir de então ela preserva seu lado doce e aparentemente ingênuo, aliada à vontade de se adequar à vida como esta se oferece a ela. A partir do momento em que iniciam o relacionamento, as personagens só discutem uma vez.

Aspectos sobre a sexualidade do personagem

Personagem se apresenta (assume verbalmente) como: gay, lésbica, travesti, transformista, transexual, transgênero, intersexo, bissexual:

Eleonora, quando percebe a dúvida de Jennifer quanto ao rumo do relacionamento das duas enquanto amigas, revela-a que gosta de meninas e não de meninos, que já namorou uma amiga na época da faculdade e que se considera lésbica. Jennifer, pelo contrário, é uma incógnita quanto a seu passado sexual e não assume nenhum posicionamento quanto a uma definição de sua sexualidade, embora os outros personagens, e a própria Leo a tratem como se fosse lésbica.

Em que ponto da narrativa fica claro que o personagem é homossexual?

Com clareza total, é quando Eleonora assume que é lésbica em torno da metade da novela. Jennifer assume seus desejos sexuais por Leo um pouco depois desta dizer que é lésbica. Mas, não há clareza sobre Jennifer ser homossexual.

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Como se dá a performatividade de gênero? Que normas ou conjunto de normas o personagem reitera e/ou reforça?

Para a filósofa Judith Butler, “a performatividade deve ser compreendida não como um „ato‟ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (2001, p.154). Dessa forma, ela chama a atenção para a inexistência de um gênero como interpretação cultural de um sexo dos dois sexos ditos naturalizados – macho e fêmea. Pelo contrário, o discurso normativo opera “uma vinculação desse processo de „assumir‟ um sexo com a questão da identificação e com os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual possibilita identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações” (BUTLER, 2001, p. 155). Assim, aquelas características agrupadas sob a “feminilidade”, por exemplo, não existem senão, e apenas, dentro do discurso, que para se manter vigente tem de ser constantemente reafirmado.

As personagens, nesse sentido, são bastante femininas, reproduzindo até onde é possível o que se entende performativamente como elementos desse gênero: elas se vestem com roupas femininas, têm claros instintos maternos, desejam constituir família, querem casar e gostam de discutir assuntos do universo das mulheres. Dessa feita, há pouca transgressão normativa, e um ingresso das personagens no modelo heteronormativo de relacionamento, que se torna mais concreto e visível quando as personagens passam a morar juntas, cuidando de uma criança que elas adotam após oficializar a união civil.

Há um elemento fantástico (sobre realismo fantástico, ver nota 4) que se repete na novela e serve como reiteração do modelo heterossexual normativo: Eleonora pega os bouquets de quase todos os casamentos realizados na novela, sem nem se esforçar para pegá-los. É uma maneira fantasiosa de tornar a união civil um destino inexorável para o casal.

É devido às normas de gênero que a paixão delas é mascarada por tanto tempo no início da novela. Isso porque são amigas em uma sociedade que aprova toques afetivos (ou mesmo eróticos) íntimos entre as meninas. Segundo a professora Lúcia Facco, os relacionamentos homossexuais entre mulheres demoram a ser considerados como reais porque “o silêncio do lesbianismo faz parte de um silêncio maior que recobre o universo feminino como um todo” (2008, p.74). Para ela, a libido feminina foi ignorada por muitos séculos e, portanto, certos prazeres compartilhados entre garotas se tornam abjetos e podem acontecer à margem da sociedade. Nesse sentido, uma fala da

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mãe de Eleonora é bastante ambígua. Após saber do relacionamento da filha, ela vai com o marido, que ainda não sabe, a uma festa. Este diz que faz gosto de ver a amizade das duas, enquanto que ela, meio constrangida, revela: “É coisa da idade mesmo, Sebastião. Quando a gente é mais nova, sempre tem um amiga que é mais íntima da gente. Depois aparece o primeiro homem, o primeiro amor e a amiga fica pra segundo plano”.

Ainda que preservem sua “feminilidade”, há um apelo binário da ordem ativo(macho)Xpassivo(fêmea). Enquanto Leo trabalha como ortopedista, é decidida, independente e se reconhece como lésbica, Jennifer vive sob a proteção do pai Giovanni, não parece ter vivido qualquer tipo de experiência sexual que a oriente quanto a seus desejos e prefere que as pessoas tomem decisões por ela – é Leo quem escolhe o que ela bebe no refeitório do hospital, por exemplo. Esse binarismo é reforçado pelo fato de Leo se vestir de forma discreta, enquanto Jennifer é sensualizada em quase todas as cenas em que aparece, onde a câmera costuma dar closes em suas nádegas e coxas torneadas. É como se Leo fosse o “homem” que conquista a “fêmea”, objeto de desejo. Segundo Maria Rita Kehl (2008), o posicionamento de ser desejante assumido por Leo faz parte de uma reivindicação feminina por atributos masculinos – à mulher caberia ser objeto de desejo. Faz-se necessário aqui problematizar os relacionamentos heterossexuais.

O dilema “ativoXpassivo” não é natural para os casais heterossexuais, mas também constituído performativamente. É novamente Butler (2003) que chama atenção para a não-existência de um relacionamento naturalizado heterossexual e, portanto, para a percepção de que, por esse dilema ser gerado e padronizado na matriz heteronormativa, ele é tão construído para os heterossexuais quanto para os casais homossexuais que seguem o mesmo molde.

O desejo das personagens é pouco explorado, mas pelo menos há uma breve discussão entre Dani, moradora da casa dos Improtta e Flaviana, sogra de Giovanni, em que elas concordam que Jennifer não escolheu desejar da forma que deseja e que o gênero não pode ser arbitrariamente definido de acordo com as vontades de cada indivíduo.

Mesmo sendo descontínuas quanto à linha de coerência entre sexo-gênero-desejo-prática sexual (ver BUTLER, 2003), é possível notar que há uma reificação do modelo heteronormativo de relacionamento e, principalmente, de reiteração do gênero feminino na atitude e comportamento de ambas as personagens.

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Resumo conclusivo e redutor sobre a representação dos homossexuais na sociedade:

Resultado 1: forte carga de estereótipos e outras características que contribuem para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia;

Resultado 2: caracteriza os personagens com alguns elementos da comunidade queer, constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos preconceitos e a homofobia;

Resultado 3: caracteriza os personagens homossexuais dentro de um modelo heteronormativo que contribui para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia;

Resultado 4: caracteriza os personagens homossexuais dentro de um modelo heteronormativo, mas constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos preconceitos e a homofobia.

Resultado 5: indica uma representação dúbia e produz dúvida sobre o tratamento dado.

A representação das personagens claramente se enquadra no quarto resultado. As estratégias dessa representação, já explicitadas na análise de segmento, reiteram um valor universal e transcendente atribuído ao amor romântico, que constitui elemento-chave de identificação e sedução dos espectadores. É sabido que as tramas românticas costumam ser um dos principais motes das novelas, em torno do qual giram outros eixos e núcleos, devido a seu sucesso perante o público. Em Senhora do Destino, entretanto, há ausência dessa trama como principal engrenagem narrativa: Maria do Carmo, protagonista do enredo, é disputada por dois homens, mas não realiza a faceta do amor romântico enquanto aventura e necessidade premente à própria existência. Cabe a outros pares preencher essa lacuna, mais precisamente a Leo e Jennifer8.

Conforme pesquisa divulgada no jornal Folha de S. Paulo, o público aprovou as personagens lésbicas, ainda que com algum preconceito. Aguinaldo Silva aproveitou a deixa para dizer:

Ninguém se declara chocado ou escandalizado. Uma lição que eu aprendi com isso é que o telespectador detesta hipocrisia. Quando uma novela [„Torre de Babel‟] mostrava as lésbicas de um modo velado, todo mundo detestava.

8 O colunista Jorge Brasil escreve sobre a necessidade de haver um casal romântico nas novelas no link: http://contigo.abril.com.br/blog/jb/102388_jb_comentarios.shtml No geral, sem um bom casal a novela tem alguns problemas com audiência. Maria do Carmo e Dirceu não deram certo como aposta em

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Agora, que a relação é mostrada de modo franco e aberto, ninguém estranha. Ou seja: o público não é burro e não gosta que o menospreze. (FOLHA DE S. PAULO, 2004)

Meses antes dessa declaração, a colunista Bia Abramo criticou pesadamente as lésbicas de Senhora do Destino. Segundo ela,

não é à toa que a maioria dos casais homossexuais que aparecem são formados por mulheres. O olhar machista classifica a homossexualidade feminina como: a) menos "séria" e b) mais palatável. A brincadeira erótica entre mulheres é excitante e faz parte do repertório pornográfico. É como se as moças, entediadas à espera do falo, se entretivessem uma com a outra (ABRAMO, 2004)

Essas duas declarações são opostas, mas na verdade o público não viu nem uma coisa, nem outra, como estão expostas.

Aguinaldo falou de um relacionamento “franco”, “aberto”, mas não podemos esquecer que, mesmo as personagens assumindo um relacionamento homossexual, não houve uma profunda problematização dos desejos ou práticas sexuais que as envolviam, principalmente quanto a Jennifer. A novela mostrou muitos selinhos entre elas, como até então não se havia visto, e cenas sensuais das duas seminuas deitadas juntas. Mesmo assim, foram cenas de pouca carga erótica desenvolvida entre as duas numa relação dos dois corpos. Não podemos esquecer, como pontuei no decorrer do texto, que as duas personagens são toleradas socialmente e, assim,

esta abordagem simplesmente deixa de questionar as relações de poder e os processos de diferenciação que, antes de tudo, produzem a identidade e a diferença. Em geral, o resultado é a produção de novas dicotomias, como a do dominante tolerante e do dominado tolerado (SILVA, 2007, p.98)

Ou seja, a transgressão da norma é muito pequena e as personagens acabam se enquadrando em padrões heteronormativos.

Mas também não acontece como Bia Abramo disse. Muitos telespectadores se emocionaram com o casal, principalmente o público homossexual. Conforme foi publicado em reportagem do dia 26 de novembro de 2004,

“Senhora do Destino” (Globo) deixou militantes gays felizes com o “avanço” na abordagem do tema e frustrados com o fato de as imagens não terem exibido nem um beijo e de a TV evitar mostrar casais homossexuais masculinos (MATTOS, 2004).

Mesmo que o esperado beijo não tenha acontecido, a humanização das personagens teve o papel de fazer a questão gay entrar como pauta de discussão midiática de uma maneira menos homofóbica. Como vimos no começo do artigo, quanto mais se dá a possibilidade de (re)escrita do discurso, por diferentes pontos de vista, mais chances de acontecer transgressão de normas. Essa abertura só se deu

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mediante uma narrativa cuidadosa, pensada previamente para não chocar o público e emocioná-los com uma estratégia usada em casais heterossexuais: a romantização da relação.

Por fim, julgando as representações de acordo com os pressupostos da teoria queer, podemos dizer que houve pouca transgressão da norma e não houve representações de sexualidades desviantes que se situassem propositalmente às margens da matriz heteronormativa – apontada como uma das mais significativas responsáveis pela desigualdade de gênero, segundo Butler (2003). O romance heteronormativo talvez possa ajudar alguns telespectadores a refletirem a heterossexualidade enquanto construto e não dado natural.

A personagem Jennifer constitui um mistério quanto às suas preferências sexuais. Não apenas porque ela não as assume, mas porque ela aceita a imposição identitária de ser lésbica, sofre por causa dessa imposição e mesmo quando deixa de se sentir mal, parece não ter se importado em assumir uma identidade. Seria ela uma “viajante pós-moderna”9

?

Conclusão: um parecer

Creio que mesmo não se alinhando plenamente aos pressupostos da teoria queer, as personagens Jennifer e Leo, de Senhora do Destino, contribuem para a discussão política sobre sexualidades. Numa formulação para política pública não se pode perder de vista que essas representações fazem as discussões tomarem corpo. Portanto, creio que não existirá um modelo único de representação, mas a orientação de que vale a pena que todas as sexualidades e gêneros sejam representados e desconstruídos em suas normas. Somente assim, talvez poderemos alcançar a igualdade entre os gêneros.

Referências Bibliográficas

1) ABRAMO, Bia. Beijo gay esconde truques por audiência. Folha de S. Paulo, em 19/09/2004, disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1909200406.htm, capturado em 30 de outubro de 2008.

(20)

2) BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

3) _____________. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 151 - 172

4) CANGUÇU, Cristiano. A construção narrativa e plástica do filme Matrix. 2008. 135f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Faculdade de Comunicação, UFBA, Salvador, 2008.

5) CASTRO, Mary Garcia. Gênero e raça: desafios à escola. Disponível em:

http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/genero-raca.pdf, capturado em 28 de outubro de 2008.

6) COLLING, Leandro. Personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: criminosos, afetados e heterossexualizados. Revista Gênero, volume 8, número 1, segundo semestre de 2007, Niterói: EDUFF, p. 207 a 222.

7) FACCO, Lúcia. Sob o véu do silêncio. IN: Coleção Sexos: Mente & Cérebro. São Paulo, v.2, 2008, p.74-75

8) FOLHA DE S. PAULO. Público aprova lésbicas de novela das 21h, publicado em 23/12/2004. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2312200404.htm, capturado em 30 de outubro de 2008.

9) GARCIA, Wilton. Traídos pelo desejo – ambigüidades da cena. IN: LOPES, Denílson e outros (orgs.). Imagem e Diversidade Sexual. São Paulo, Nojosa Edições, 2004. P. 265-271

10) HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2006.

11) KEHL, Maria Rita. A mínima diferença. IN: Coleção Sexos: Mente & Cérebro. São Paulo, v.2, 2008, p.40-43

12) LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

13) LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte, Autêntica, 2004. 14) MATTOS, Laura. Gays ficam felizes e frustrados com novela. Folha de S. Paulo, em 26/11/2004, disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2611200434.htm, capturado em 30 de outubro de 2008.

15) MORENO, Antonio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Niterói: EdUFF, 2001.

(21)

16) PERET, Luiz Eduardo Neves. Do armário à tela global: a representação social da

homossexualidade na telenovela brasileira. Dissertação (Mestrado em Comunicação).

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

17) RABINOW, Paul. Antropologia da Razão. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002. 18) SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos

Culturais. Petrópolis, Vozes, 2007, p 73 a 102.

19) TEIXEIRA, M. do Rio. A invenção da mulher. IN: Coleção Sexos: Mente &

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