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América pré-colombiana (1)

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Muitas das informações sobre o passado pré-colombiano se perderam durante a fase do

descobrimento europeu e da conquista. Interesses sócio-políticos motivaram alguns povos a destruir velhos documentos no afã de

reescrever em favor próprio a história do México Central. Apesar deste ''apagamento história)", recuperoU'Se, com grande trabalho,

parte desta documentação. Neste livro, um painel em busca da história quase

perdida daquela época.

(2)

Copyright © Ciro Flamarion S. Cardoso Capa: 127 (antigo 23) Artistas Gráficos Revisão: Carlos E . Carvalho José E . Andrade J3 —

Editora Brasiliense S.A.

R. General J a r d i m , 160 01223 - São Paulo - S P Fone (011)231-1422 •A Í N D I C E Introdução 7 Sociedades pré-agrícolas 12 Sociedades agrícolaspré-urbanas . ; 34 Agricultura intensiva e urbanização: as "altas

culturas"pré-colombianas 5 2 Reflexões finais 109

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INTRODUÇÃO

" A civilização romana n ã o morreu de morte natural. Foi assassinada." Assim concluiu André Pi-ganiol o seu livro sobre o Império Romano no século lV~aepois de Cristo {L'empire chrétien 325-395, Pa-ns, P. U . F . , 1947, p. 422). T a l afirmação, discutível no caso romano, aplica-se perfeitamente às nume-rosas sociedades indígenas existentes no continente americano na fase do descobrimento europeu e da conquista (fins do século X V e século X V I ; em certas regiões, a conquista foi mais tardia). De tal fato derivam-se muitos problemas de documentação e mesmo de interpretação.

De documentação: os conquistadores destruí-ram monumentos — grandes centros urbanos da última fase pré-colombiana foram transformados em cidades espanholas (México, Cusco) — e obras de arte (fundidas quando confeccionadas com metais preciosos), queimaram quase todos os códices

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(ma-8 Ciro Flamarion S.

nuscritos pré-colombianos, encontrados principal-monte na área que hoje corresponde ao México cen-tro-meridional). Mais grave ainda, a conquista e as primeiras fases da colonização significaram a des-truição física da maioria absoluta dos índios, através de epidemias repetidas, escravidão e trabamos for-çados diversos, confisco de terras, ruptura violenta da organização social, familiar, religiosa, cultural. Entre os milhões que morriam, desapareceram mui-tos sábios portadores da tradição de civilizações mo-ribundas. Tudo isto limita muito a quantidade de informação que se p ô d e recolher sobre as últimas etapas da historia pré-colombiana.

problemas de^interpretação: nas regiões indí-genas e m e s t i ç a s da A m é r i c a , ^ t r a u m a M c w q u l s t a e da colonização se prolonga até hoje, expressaridõ-se na oposição entre "hispanistas" e "indigenistas", apologistas respectivamente da obra civilizadora ibé-rica e do passado indígena. E m ambos os casos, são posições unilaterais, distorcidas e idealizadas. E m certos países, quase se teria a impressão de que polé-micas coloniais — Sepúlveda versus L a s Casas, Sar-miento de Gamboa versus Garcilaso de l a Vega —

ainda não terminaram...

Ê verdade, no entanto, que a conquista não pode explicar tudo..Os tipos possíveis de testemu-nhos variam também segundo os graus de evolução social do povos pré-colombianos de todas as épocas. Houve, enfim, destruições deliberadas de documen-tos históricos, por razões políticas, antes da chegada dos europeus. Assim, os astecas destruíram velhos

América Pré-Colombiana 9

códices de outros povos no afã de "reescrever" a seu favor a história do México central.

Podemos dividir em três grandes grupos os documentos de que dispomos para o estudo da anti-guidade americana. O leitor constatará facilmente que a região melhor aquinhoada é a que os arqueó-logos batizaram como "Meso-América" (boa parte do México, Guatemala, E l Salvador e porções de Honduras, Nicarágua e Costa Rica atuais).

Consideremos, em primem) lugar, as fontes dis-poníveispara toda a América. São os restos arqueo-lógicos, os textos em línguas europeias redigidos por conquistadores, cronistas, missionários, funcionários reais dos primeiros tempos da colonização; às vezes também tomos obras de escritores indígenas e mes-tiços em línguas europeias e documentos legais (rela-tivos à terra, por exemplo) das colónias incipientes. O próprio mapa linguístico da época da conquista, quando é possível reconstituí-lo, torna-se fonte de grande interesse.

E m seguida, h á fontes disponíveis principal-mente para a Meso-América e a zona andina central (Peru, Bolívia, partes do Equador, do Chile e da Argentina). Referimo-nos a textos em línguas indí-genas, provenientes da tradição oral, fixados com caracteres latinos depois da conquista. Merece men-ç ã o especial, neste ponto, o imenso trabalho de Ber-nardino de Sanagun no México.

Finalmente, temos as fontes só disponíveis para a Meso-América: códices ou "livros de pinturas", dos quais s ó quarenta são pré-colombianos, e outros.

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10 Ciro Flamarion S.

do século X V I , mas feitos segundo a tradição indí-gena; e inscrições, principalmente n a zona maia, ainda não totalmente decifradas na atualidade.

Tendo em vista a natureza das fontes disponí-veis, que métodos podem ser aplicados ao estudo da história pré-colombiana?

O único método universalmente aplicável ao passado indígena da América é o arqueológico, mais exatamente o da arqueologia pré-histórica. Trata-se lia. reconstituição de culturas desaparecidas através dos vestígios materiais por elas deixados (esqueletos dos homens, ou dos animais de que se alimentavam; restos de casas, túmulos, templos; artefatos e objetos diversos: cerâmica, esculturas, instrumentos agríco-las e outras ferramentas, e t c ) , obtidos em muitos casos através de escavações realizadas segundo mé-todos sofisticados, e interpretados com apoio em uma tecnologia avançada (datação pelo carbono 14, palinolõgia ou estudo dos pólens fósseis para recons-tituir floras desaparecidas, métodos estatísticos^ ete-*-e ete-*-em algum sistete-*-ema tete-*-eórico acete-*-erca dos^aspete-*-ectos dinar micose^strutuiais_das^

""^Outra metodologia muito importante para os estudos pré-colombianos é a da etno-história. Esta foi, a princípio, uma espécie de etnografia descritiva, aplicada retrospectivamente às fontes da época da conquista e dos primeiros tempos da colonização. Hoje é algo bem mais sério e interessante: o uso critico de documentos diversos para a reconstrução jlas- estruturas económicas, sociais, políticas e

mte-lectuais dos diversos grupos indígenas, tratando de

América Prê-Colombiana 11

eliminar as deformações induzidas por uma docu-mentação de origem europeia ou de europeus resi-dentes (criollos), nascidos na América. Apoia-se ao mesmo tempo em métodos históricos _e antropoló-gicos.

Por fim, para os séculos que precedem imediata-mente a conquista, em certas regiões privilegiadas — como é o caso do México central — , o método histó-rico no sentido tradicional ou estrito, baseado em documentos escritos que procedem do passado pré-colombiano ou da fixação da sua tradição oral, é pos-sível, embora os historiadores tenham de se apoiar igualmente nos resultados da arqueologia e da etno-história.

Deve ficar claro, porém, n ã o ser possível para qualquer período pré-colombianõ ja construção de um saber histórico comparável ao que possuímos acerca da Grécia ou Roma antigas,, por exemplo, já que estas são civilizações para as quais podemos dispor de multo mais documentação escrita, possibi-litando uma visão bem mais detalhada dos processos e estruturas. Mutatis mutandis, a situação do conhe-cimento histórico acerca da América pré-colombiana se assemelha à do qtle.se refere à ÂWçaJSfegra pré-colonial, inclusive najdeformação produzida por uma distribuição muito desigual dos trabalhos dos espe-cialistas no tempo e no espaço: h á regiões e períodos muito frequentados, enquanto outros permanecem quase desconhecidos.

(6)

SOCIEDADES PRÉ-AGRICOLAS

O povoamento da América

Esteie uma questão que permanece sem solução

cabal, em parte pela quantidade ainda insuficiente e

pela grande dispersão dos achados arqueológicos de

restos humanos e implementos anteriores ao século

X a. C .

1

Talvez convenha resumir* antes de mais nada,

os pontos sobre os quais há hoje um consenso geral,

pu quase geral. São elesj_ 1) a impossibilidade de

HÍ5?JSy^

u

Ç.l2 autóctone do homem ter-se produzido

na América: todos os esqueletos humanos até agora

encontrados têm. quando muito algumas dezenas de

(1) O sistema de datação mais usual hoje em dia é o que toma como referência o nascimento de Cristo, diferenciando a partir dai as datas antes de Cristo ( a . C . ou a. de J . C . ) e as datas depois de Cristo ( d . H d. de J . C , ou ainda a. D . , do latim anno Domini: " â n o d o Senhor").

América Pré-Colombiana

13

Q U A D R O 1 — Cronologia da última glaciação do Pleistoceno ou Qua-ternário (Wlsconsln) na América, segundo Bosch Gimpem.

Tempo (anos a. C.)

Fases mais Fases menos frias (ou frias glaciares) (retiradas

glaciares)

Fatos da pré-história americana

50000-45000 Altoniense América provavelmente ainda 45000-40000 Scarborough despovoada.

40000-30000 Farmdale Início do povoamento da América (?).

Poucos sitios arqueológicos datados, como TIapacoya, no México e Pikimachay, no Peru. 30000-25000 Talbot

Início do povoamento da América (?).

Poucos sitios arqueológicos datados, como TIapacoya, no México e Pikimachay, no Peru. 25000-23000 Iowa

Início do povoamento da América (?).

Poucos sitios arqueológicos datados, como TIapacoya, no México e Pikimachay, no Peru. 23000-20000 Peoria

Início do povoamento da América (?).

Poucos sitios arqueológicos datados, como TIapacoya, no México e Pikimachay, no Peru. 20000-18000 Tazewell I

Início do povoamento da América (?).

Poucos sitios arqueológicos datados, como TIapacoya, no México e Pikimachay, no Peru. 18000-16000 Hackensack

16000-15000 Tazewell I I

15000-14000 New Haven Entrada de caçadores superiores por Bering/corredor do Mackenzie (?). A ponta de projétiJ de Muaco (Venezuela) foi datada entre 14400 a. C. i : 400 e 12 300 a. C, ± 500. 14000-13500 Caryl

Entrada de caçadores superiores por Bering/corredor do Mackenzie (?). A ponta de projétiJ de Muaco (Venezuela) foi datada entre 14400 a. C. i : 400 e 12 300 a. C, ± 500. 13500-13000 Springfield

Entrada de caçadores superiores por Bering/corredor do Mackenzie (?). A ponta de projétiJ de Muaco (Venezuela) foi datada entre 14400 a. C. i : 400 e 12 300 a. C, ± 500. 13000-12000 Caryll

Entrada de caçadores superiores por Bering/corredor do Mackenzie (?). A ponta de projétiJ de Muaco (Venezuela) foi datada entre 14400 a. C. i : 400 e 12 300 a. C, ± 500. 12000-11000 Brattelboro

Entrada de caçadores superiores por Bering/corredor do Mackenzie (?). A ponta de projétiJ de Muaco (Venezuela) foi datada entre 14400 a. C. i : 400 e 12 300 a. C, ± 500.

11000-10000 Carylll Tem início a difusão das pontas de proj étil da tradição chamada Plano.

10000-9100 Two Creeks projétil da tradição chamada Inicia-se a difusão das pontas de Uano.

9100-8800 Valders Apogeu do Paleolítico Superior americano. 8800-6000 Grande reti-rada: fim da glaciação e passagem do Pleisto-ceno ao Ho-loceno. — — Transição do Paleolítico Superior ao Mesolítico. Início da domesticação de plantas (Meso-América, 7000 a. C ) .

(7)

QUADRO 2 — A s grandes etapas da pré-história (muito simplificado).

Características

Médio

1?parte: Só a Africa é povoada; ao

Ho-mo hábil is atribui-se a chamada

Peb-ble culture, com seus toscos talhadores

de pedra. O homem é caçador-coletor

nào-espeeializado e não conhece o

fo-go.

2? parte: O homem povoa a África, a

metade sul da Eurásia e a Indonésia.

Ao Homo erectus, ou Pitecantropo,

as-socia-se a fabricação de artefatos de

pe-dra com duas faces trabalhadas e, mais

tarde, de artefatos de lascas. Mais

da-dos a partir de meio milhão de anos

atrás, quando possivelmente surge o

controle do fogo.

Cronologia no

Velho Mundo

Do aparecimento do Homem

(5 milhões de anos atrás,

se-gundo R. Leakey) até um

mi-lhão de anos antes do presente;

os vestígios se tornam mais

abundantes a partir de uns 2

rn^h^fff de anos atrás.

De um mUh&o de anos atrás

a 100000 anos antes do

presen-te» aproximadamente.

Cronologia na

América

Ao Homo sapiens neanderthalensis e

outros tipos humanos seus

contempo-râneos atribui-se uma indústria lítica

chamada Musteriense, mais.

aperfei-çoada e diversificada do que as do

Pa-leolítico Inferior. Têm início a caça

di-reta de animais grandes, ávida em

ca-vernas (com a glaciação), os enterros

organizados e o culto a crânios de

ur-sos.

De 100000 a 40000 anos atrás,

aproximadamente.

Na América, talvez a

partir de 40000 a. C ,

penetram

caçadores-co-letores

não-especializa-dos, com instrumental

lítico tosco, mas já

per-tencentes ao tipo Homo

sapiens sapiens (que

co-meça no Velho Mundo

no máximo há uns50000

anos).

3

i

I

3

Superior Ao Homo sapiens sapiens se associa

uma série de Indústrias líticas de alta

qualidade e diversificação, incluindo

postas de projétQ, e uma indústria de

osso e marfim (arpões, agulhas, etc).

Apogeu da grande caça especializada.

Primeira arte conheci da.

De 40000 anos atrás a entre

11000 e 9000 a, C.

f

aproxima-damente.

Aproximadamente entre

11000 a. C. (talvez bem

antes: ponta de Muaco) e

8 800/6 000 a. C.

,

Meso-Utico

No Velho Mundo, aparecimento de mi-

crolitos (instrumentos de pedra de

di-mensões muito reduzidas), difusão do

arco e flecha, primeiras embarcações

arqueologicamente comprovadas. Na

América as indústrias líticas são

dife-rentes. Mas o mais importante 6, no

mundo todo, uma diversificação dos

modos de vida, conduzindo em certos

casos aos primórdios da agricultura.

Começa entre 11000 e 9000

a. C. aproximadamente, mas

sua cronologia é muito variável

segundo as regiões, havendo

até hoje grupos ainda

mesolíti-cos no seu modo de vida.

Na América, começa

en-tre 8800 e 6000 a. C.

aproximadamente;

tam-bém neste caso a

crono-logia é variável segundo

as regiões.

Neo-Utico

Difusão da vida agrícola e das aldeias.

Aparecimento ou difusão da cerâmica,

da tecelagem e do polimento da pedra.

Nos casos mais favoráveis, os grupos

humanos neolíticos se tornam

sedentá-rios (coisa rara entre os grupos

caça-dores, coletores ou pescadores).

No antigo Oriente Próximo

a-siático já havia aldeias

plena-mente neolíticas por volta de

7000 a. C.

O surgimento de um

mo-do de vida plenamente

neolítico na América foi

muito gradual. Nas

re-giões mais avançadas, a

generalização das

al-deias agrícolas

sedentá-rias se dá por volta de

2000 a. C.

3

f

i

g

3

o *

(8)

16

Ciro Flamarion S. Cardos

milhares de anos, sendo do tipo totalmente atual (I$Qmo sapiens sapiens), ao qual se atribui no Velho M u n d o u m a antiguidade de no m á x i m o cinquenta m i l anos, e por outro lado n ã o h á restos de grandes primatas fósseis no continente americano; 2) a rota que conduz d a à s i a à A m é r i c a do Norte, seja pelo que é hoje o estreito de Bering, seja pelo, atual a r q u i p é l a g o das Aleutas, é considerada o caminho principal ( p a r a alguns, o ú n i c o ) e mais antigo das m i g r a ç õ e s povoadoras da A m é r i c a ; 3) admite-se atualmente u m a antiguidade muito maior ao i n í c i o desse povoamento — aceita-se, em especial, que houve u m P a l e o l í t i c o americano — do que pensa-v a m . no c o m e ç o deste s é c u l o , s á b i o s como Ales H r d l i c k a ou W i l l i a m H * Holmes; 4) embora neste aspecto o consenso seja menos geral, 'muitos espe-cialistas acreditam que o povoamento se fez e m di-Versas ondas e no curso de longos p e r í o d o s , contra a

ideia anterior d a entrada ú n i c a de u m grupo de migrantes racial e culturalmente h o m o g é n e o s .

Quanto à antiguidade m á x i m a do povoamento, a a p l i c a ç ã o do m é t o d o de d a t a ç ã o pelo carbono 14 proporcionou datas seguras e numerosas p a r a o s é -culo X a. C . T o d a s as datas mais antigas foram, p o r é m , contestadas o u pelo menos postas e m d ú v i d a e m maior ou menor grau. Pouco a pouco, contudo, n a medida e m que algumas datas v ê m obtendo u m consenso consideravelmente amplo (Tlapacoya, no M é x i c o , entre 2 1 7 0 0 ± 500 e 2 4 0 0 0 ± 4 0 0 0 anos atrás — a cifra depois do sinal i i n d i c a a margem de erro p o s s í v e l p a r a mais ou p a r a menos; P i k i m a

-América Pré-Colombiana 17

chay, no P e r u , 19600 ± 3 0 0 0 anos a t r á s , entre outros s í t i o s ) , e t a m b é m n a medida e m que se esta-belecem h i p ó t e s e s sobre a m i g r a ç ã o a s i á t i c a vinculadas à s fases do ú l t i m o f e n ó m e n o glaciar do Q u a -t e r n á r i o ( g l a c i a ç ã o2 c h a m a d a de W ú r m no V e l h o

M u n d o e de Wisconsin n a A m é r i c a ) , é hoje fre-quente achar nas s í n t e s e s interpretativas u m a anti-guidade m á x i m a p a r a o primeiro povoamento que varia entre 20 e 4 0 0 0 0 anos atrás (contra os 5 0 0 0 anos apenas que admitia H r d l i c k a ) . O escavador do sítio de O n i o n Portage, no A l a s c a ( D . D . Ander-son), atribui u m a antiguidade de no m á x i m o 15000 anos ao complexo cultural mais antigo que desco-b r i u a l i , perto de Bering, mas isto n ã o é , como vere-mos, u m a prova concludente, j á que, se a rota d a primeira m i g r a ç ã o foi costeira e n ã o continental, seus restos e s t ã o hoje sob o m a r , cujo nível subiu desde a fase final da ú l t i m a g l a c i a ç ã o .

Acreditava-se, ao c o m e ç a r o s é c u l o , que os po-voadores d a A m é r i c a tivessem vindo da à s i a pelo caminho de Bering, sendo todos pertencentes à r a ç a m o n g o l ó i d e . Isto apesar de que P . W . L u n d havia

(2) As glaciações são fases da história de nosso planeta durante as quais, por razões ainda mal explicadas — as hipóteses a respeito são variadas -7-, a temperatura média baixa consideravelmente, provocando nas altas latitudes continentais a acumulação de grandes geleiras, e nas zonas tropicais o aumento das chuvas. Durante a era geológica chamada Pleistoceno ou Quaternário, começada há uns dois milhões de anos, houve quatro glaciações, separadas por períodos inter-glaciares quentes; o Holoceno, período geológico em que vivemos, segundo alguns não passa de uma fase inter-glaciar.

(9)

18 Ciro Flamarion S. Cardoi

descoberto (por volta de 1840) e S . Hansen estudado (1888) o "homem de Lagoa Santa" (Minas Gerais), relativamente antigo^atribui-se-lhe hoje uns dez mil anos), o qual nada tem de m o n g o l ó i d e . Agora, ao aceitar-se u m a antiguidade maior para o povoa-mento do continente, é inclusive absurdo insistir na unidade m o n g o l ó i d e dos povoadores, j á que n ã o existiam m o n g o l ó i d e s quando se iniciou a migração, mas apenas p r é ou proto-mongolóides, ou seja, um estoque racial menos especializado, do qual mais tarde evoluiriam os m o n g o l ó i d e s atuais, (que pare-cem constituir u m a especialização bastante recente às condições de frio extremo da Á s i a Setentrional). Os proto-mongolóides que passaram à A m é r i c a vi-veram aí em c o n d i ç õ e s de meio-ambiente muito va-riadas durante milénios, sendo altamente provável que tenham sofrido m u t a ç õ e s e variações g e n é t i c a s , paralelas à s que estavam ocorrendo na à s i a . Por ou-tro lado, ondas mais recentes de povoamento asiá-tico podem, sem dúvida, haver trazido à A m é r i c a m o n g o l ó i d e s autênticos.

A ideia de um povoamento h e t e r o g é n e o em di-versas ondas, defendida entre outros por Paul Rivet (para quem tais ondas seriam: asiática, australiana, m e l a n é s i a e polinésia), recebe algum apoio de ele-mentos derivados do estudo linguístico. Parece difí-cil, se se partir da ideia de u m único movimento migratório h o m o g é n e o , explicar como, em poucas dezenas de milénios, se formaram as duas mil e seiscentas línguas, pertencentes a diversos grupos linguísticos (alguns j á residuais), que existiam no

América Pré-Colombiana 19

continente americano ao começar a conquista euro-peia. O esquema de Rivet foi substituído por outros, mais apoiados na arqueologia, baseados por exem-plo nas m u d a n ç a s de tecnologia: é verdade que u m novo elemento t é c n i c o pode provir de invenção para-lela, do contato cultural ou comercial sem migra-ç ã o , ou da migramigra-ção de grupos numericamente ínfi-mos. Parece bem estabelecida, através de numero-sos indícios culturais, a ocorrência de contatos através do Pacífico: estes seriam tardios, posteriores a 3 000 a. C , e talvez se tenham dado em diversas ocasiões, até fins da era pré-colombiana.

A A m é r i c a pode ser atingida pela região do estreito >ée Bering, pelo Atlântico e pelo Pacífico (para n ã o mencionar a hipótese antartica de Men-des Correa). Sabe-se que os vikings colonizaram a Groenlândia (séculos X - X V I d. C . ) e ¥tíngirartr~a A m é r i c a do_Norte, sem ter tido impacto discernível sobre as culturas i n d í g e n a s / P r e t e n d e u - s e igualmen-te postular u m povoamejnto pré-históricõ através da navegação transatlântica_na é p o c a do Magdaleni-jgñse europeu (por volta de 12000 a. C ) , h i p ó t e s e

que repousa em bases muito frágeis, como t a m b é m a que menciona possíveis influxos negroides africanos. Já vimos que os contatos transpacíficos s ã o indubi-táveis, mas tardios: além disto, podem ter-se dado tanto no sentido oeste-leste quanto no sentido con-trário. Quanto ao caminho principal, o de Bering, como n ã o está provada a existência h á 40000 ou mesmo 20000 anos atrás de embarcações capazes de atravessar o estreito, a maioria dos pesquisadores

(10)

20 Ciro Flamarion S.

vincula as primeiras migrações à última glaciação, quando a água retida nas geleiras continentais fez baixar o nível do mar, aparecendo n a região do estreito e das ilhas Aleutas todo u m subcontinente, a "Beríngia". C . A . Chard, C . J . Heusser e P. Bosch Gimpera sugerem que possivelmente devemos distinguir duas rotas: uma, costeira e mais antiga (talvez durante a fase glaciar de Farmdale, entre 40000 e 30000 a. C ) , seguida por caçadores e pes-cadores adaptados a um ambiente ártico de tundra, que pelo sul da ponte de Bering ou pelas Aleutas passaram ao sul do Alasca, contornando o que é hoje o litoral do Canadá e chegando ao oeste dos atuais Estados Unidos; a outra, interior e posterior, de caçadores avançados j á providos de projéteis com ponta de pedra, numa fase de parcial retirada gla-ciar (talvez a de New Haven, entre 15000 e 14000 a. C.)» quando se abriu o corredor do Mackenzie, interrompendo localmente a barreira das geleiras continentais: estes novos povoadores teriam avan-çado do norte canadense ao centro dos Estados Uni-dos de hoje. Ê interessante notar que, na atuali-dade, o estreito de Bering às vezes se congela e pode ser atravessado a p é .

A questão de determinar o nível cultural dos primeiros povoadores é objeto, j á o veremos, de grandes polémicas, complicadas pela insuficiência de conhecimentos sobre a pré-história da Sibéria a leste do rio Lena. Ê verdade, aliás, que nada im-pede que grupos humanos do Sudeste Asiático e da China, subindo pela costa da Ãsia, hajam também

América Pré-Colombiana 21

passado à América: vários autores defendem corre-lações culturais segundo esta hipótese. Falta ainda, de fato, um estudo sistemático de tipo comparativo, e em grande escala, dos utensílios pré-históricos de ambos os lados do estreito de Bering (na linguagem técnica da arqueologia, tratar-se-ia de uma análise e correlação multivariável de artefatos e complexos).

Existiu na América uma etapa cultural

anterior ao Paleolítico Superior?

H á muita discussão a respeito de saber se, an-teriormente aos caçadores especializados de-grandes animais, armados de projéteis com ponta de pedra, a AméjigajBMÜiejara uma etapa cultural cuias carac-terísticas seriam : 1) o caráter tosco e não-especiali-z ã d o d o s utensílios (pedras talhadas por JoercussãcLe. n ã o _ p M j ^ s s â o )ic o m a u s ê n c m d e p o n t a s deprojétil

de pedra, e portanto da possibilidade de atacar frontalmente osjgrajjdes mamíferos, furando a sua aura pele; 2) um modo de v i ò ^ b a s e a d o na coleta e lu^çaça não-especializadas (subsistênciajdependente da_coleJa_de frutas, raízes, animais pequenos^iilho-tes, animais grandes doentes ou então.caçados por meios iridiretos, fazendo-os cair em armadilhas. ãt5Sa^r?se~e^^ântànõst etc.); 3) uma densidade_de

população muito bajxa, _devido ao nível primitivo ç ^ f o r ç a T ^ o ^ t r i r a s , o que se reflete, no registro arqueológico, em um nújãero pequfinoJ[se

(11)

compa-22 Ciro Flamarion S. Cardosi

rado com o de fases seguintes) de sitios p r é h i s t ó -r i c o s ^ u e possam se-r a t -r i b u í d o s a esta etapa.

A s provas a r q u e o l ó g i c a s d i s p o n í v e i s p a r a afir-m a r a e x i s t ê n c i a de tal etapa cultural sao a t é agora mais numerosas n a A m é r i c a do S u l , mas t a m b é m existem no que hoje s ã o o M é x i c o e os Estados U n i -dos. A s d ú v i d a s permanecem devido a u m a série de fatores: 1 ) c e r t o s s í t í o s que_sfi-pretende atribuir a t a i ç t a p a são__superficiais, impedindo u m a d a t a ç ã o con-fiJyjeJ¿je^utao^mü^a_toram datados;.2) e m certos casos fez-se a d a t a ç ã o pelo carbono 14, que indicou grande antiguidade, mas tais dalas foram depois revistas ou postas e m d ú v i d a ; 3) á s vezes a d a t a ç ã o do^lítio ~è segura, mas contesta-se que os artefatos d e s c p Í j e r t o f o . S f i Ja m de fato: seriam

apenas-forma-ç õ e s naturais 4e pedra, n ã o - d e v i d a s à f a b r i c a apenas-forma-ç ã o h u m a n a ; 4) muitos sítios, s ã o t ã o pobres que n ã o é p o s s í v e l afirmar a a u s ê n c i a de elementos do Paleolí-tico Superior (pontas de projétil, por exemplo) com qualquer certeza^ n ã o sendo representativa a amos-tra que proporcionam; 5) finalmente, grupos huma-nos tecnicamente a v a n ç a d o s j ? o d e m _ f a b r i c a r , p a r a certos fins^jitensííios ae a p a r ê n c i a tosca: n ã o s ã o propriamente a r c a í s m o s , e - ^ i m ^ ^ s i f f i B o de que necessidades semelhantes, ao voltarem a aparecer, levaram a respostas t é c n i c a s parecidas.

No conjunto, p o r é m , o ceticismo tem dimi-n u í d o , e cada vez mais especialistas aceitam a

exis->^(3) Sítio pré-histórico é uma localidade na qual foram encon-trados restos arqueológicos de assentamentos humanos da Pré-Histôria.

América Pré-Colombiana

t ê n c i a dessa etapa cultural americana prévia ao P a -l e o -l í t i c o Superior.

Ao aceitar-se isto, surge de imediato outro pro-blema. N a E u r o p a , no Oriente P r ó x i m o e n a A f r i c a , as t é c n i c a s anteriores ao P a l e o l í t i c o Superior apa-recem associadas a h o m i n í d e o s f ó s s e i s4 (Homo

ha-bilis, Homo erectus, o Homo sapiens neandertha-lensis e seus c o n t e m p o r â n e o s ) . O r a , j á vimos que n a A m é r i c a n ã o h á qualquer sinal de tais h o m i n í d e o s anteriores ao Homo sapiens sapiens. Ocorre, p o r é m , que a à s i a meridional e oriental apresentava, no P a l e o l í t i c o , u m c a r á t e r conservador n a s u a tecno-logia l í t i c a :5 o P a l e o l í t i c o Superior siberiano, por

exemplo, s ó se desenvolveu em fase c r o n o l ó g i c a absoluta correspondente ao M e s o l í t i c o europeu. A s -sim, teria havido simplesmente u m a t r a n s f e r ê n c i a à A m é r i c a de u m atraso t e c n o l ó g i c o (e no modo de vida) j á presente nas r e g i õ e s de origem dos primei-ros migrantes.

(4) Chamamos hominídeos a um grupo de mamíferos da ordem dos Primatas que inclui o homem atual (Homo sapiens sapiens) e seus predecessores fósseis em linha direta, além de alguns ramos colaterais extintos sem descendência, como os Australopitecus da Africa.

(5) Formas de fabricação de objetos ou utensílios de pedra. O homem pré-histórico usava madeira e outras matérias-primas além da pedra, mas só esta se conservou no registro arqueológico na maioria dos casos, sendo por tal razão tomada como critério de classificação dos grupos humanos da Pré-História.

(12)

24 Ciro Flamarion S. Cardoso

v O Paleolítico Superior

Se a fase precedente é objeto de c o n t r o v é r s i a , Jioie n i n g u é m duvida de que, durante vários m i l ê

-nios, principalmente entre T T 0 0 0 e 7 000 a. C, e m varias partes do continente americano, grupos h u -manos dotados de u m a tecnologia lítica que i n c l u í a as pontas de projétil hajam c a ç a d o grandes animais a t u a í m e n t e extintos, do V£noâo PleistocenoV-ma^ mutes: b i s õ e s , cavalos e camelos fósseis; m e g a t é r j o s ^ mastodontes, etc..

^ ^ _ e x ^ c n e d o s _ r e s t o s ^ r 4 u e o l ó g i c i ^ correspon-dentes a este P a l e o l í t i c o Superior americano mostra principalmente o seguinte: 1) a proliferação dos sij tios^jnpUcarido maior densidade demogrârTca em f u n ç ã o de u h j ã Tecnologia mais eficiente; 2) u m a s u c e s s ã o de tipos de pontas de projétil e outros arte-f a t o ^ ^ ^ ^ m ^ c í u m a diversidade ou r e g i o n a l i z a ç ã o c a d a vez maior dos complexos t é c n i c o s ; 3) a persjst ê n c i a j &gpersjst; a r a l e l a d a anpersjstiga persjst r a d i ç ã o l í persjst i c a j j g a d a à c a -Ça. c coleta n ã o - e s p e c i à T i z a d a s _ d a etapa anterior,, com m o d i f i c a ç õ e s .

Discute-se muito a q u e s t ã o d a origem das pon-tas de projétil americanas: d i f u s ã o a partir d a à s i a ou i n v e n ç ã o independente n a A m é r i c a ? A ú l t i m a h i p ó t e s e parece mais provável, por r a z õ e s t i p o l ó g i -cas e c r o n o l ó g i c a s , e m particular p a r a as pontas altamente especializadas da t r a d i ç ã o c h a m a d a Lla-no (Clóvis, F o l s o m , Scottsbluff, e t c ) , podendo-se admitir u m a origem a s i á t i c a p a r a o tipo mais gene-ralizado (ou seja, menos especializado) e

(13)

aparente-26 Ciro Flamarion S. Cardoso

mente mais antigo de pontas, ligado à tradição cha-mada Plano. P o r é m , certos autores (Cruxent, Bren-nan) postulam u m a invenção sul-amerícana — n a atual Venezuela — das primeiras pontas de projétil (sítio de Muaco, entre 14400 a. C . ± 400 e 12300 a. C . ± 500; fase c o n t e m p o r â n e a do sítio de C a -mare). Já as pontas Llano, mais aperfeiçoadas e especializadas, t ê m o seu centro de difusão, a partir de aproximadamente 10000 a. C , n a região norte-americana que se estende do leste do Arizona até o noroeste do Texas e o sul do Wyoming, daí pas-sando ao resto da A m é r i c a do Norte, ao M é x i c o e — em forma modificada (com p e d ú n c u l o e à s vezes em forma de "rabo de peixe") e em menor densidade — chegando à extremidade meridional da A m é r i c a do Sulf

^-Pesquisas como as de MacNeish e sua equipe no vale mexicano de Tehuacan mostram que seria er-rado imaginar este período como se todos os habi-tantes da A m é r i c a fossem principalmente caçadores de animais grandes. E m certas áreas, os grandes herbívoros pleistocenos parecem ter sido o ú n i c o re-curso natural amplamente disponível (para os que dispusessem das t é c n i c a s adequadas), ou pelo menos eram u m recurso t ã o abundante que chegava a inibir a exploração de outros tipos possíveis de alimentos, devido à alta produtividade da c a ç a especializada. E m outras regiões americanas, p o r é m , uma tal espe-cialização seria impossível ou pouco produtiva. As-sim, em Tehuacan, durante a fase que os arqueó-logos chamaram "Ajuereado" (10000-7200 a. C . ) , o

América Pré-Colombiana 27

modo de vida pode ser classificado como baseado sobretudo n a coleta de plantas e animais e n ã o n a caça especializada, embora o grupo ali residente dis-pusesse de pontas de projétil e sem dúvida também c a ç a s s e .

Devemos, pois, imaginar dois conjuntos pan-continentais de complexõ^Kticos, refletindo dois mo-dos de jjida básicos (caça e coleta generalizadas por ^um j^dò7~caça_es^e3al!jzada por outro lado), mas evidentemente sob m ú t u a influência. E m particular, os grupos dedicados ao modo de vida menos especiali-zado — provavelmente mais antigo — em muitos casos adotaram u m a tecnologia mais a v a n ç a d a do

que aquela de que dispunham no passado.

O Mesolítico

C O _ j i m do_último período glaciar, marcando o início d a transição entre o Pleistoceno e o Holoceno ou período geológico atual, c o m e ç o u na A m é r i c a c õ m j l r a s o em relação à Europa, entre 8800 e 7 000 a. C . Por volta de 6000 a. C , complefôu-se a reti-rada das geleiras e abriu-se u m a fase quente e seca que se prolongou até 3000 a. C . Aproximadamente em 2500 a. C , a situação climática se tornou muito semelhante à atual. O j j j x e L d a mar, com a retirada das__grandes geleiras continentais, subiu gradual-mente a t é 3 0 0 0 a . C . , terminando 5 ^ c o b r i r á s plata-fórmas continentais, nas quais suB|iu um ambiente

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28 Ciro Flamarion S. Cardoso

propício à multiplicação de moluscos, crustáceos e peixes, em zonas marinhas mais rasas (antes, du-rante o auge da glaciação, passava-se abruptamente do litoral a grandes profundidades marinhas, es-tando a plataforma continental a descoberto). A fau-na típica do Pleistoceno sofreu u m lento processo de extinção, posterior ao europeu. T a l processo j á i a avançado por volta de 7 000 a. C . (embora na região costeira do Rio Grande do S u l vivessem megatérios, cavalos fósseis, mastodontes e outros mamíferos do Pleistoceno em 5000 a. C , e por mais que ainda houvesse mastodontes no Ohio, Michigan e Indiana em 3500 a. C ) . A flora t a m b é m se modificou, lenta mas radicalmente, em muitas regiões.

Evidentemente, todas estas transfoxniações—te-riam por forca Que suscitar m u d a n ç a s de peso_no m õ d o d e v i ^ ^ dos habi-l £ h i e í f &habi-lt; habi-l &habi-lt; M ^

foram r^pjentinaSjrnas^^

« e r t a s ~ z « n a s _ d a ^ U n é r i ç 4 ^ E m ter-mos globais, p o r é m , n ã o h á dúvida de que a grande caça especializada recuou entre 7000 e 3000 a. C , em favor de u m a diversificação e regionalização cres-centes dos modos de vida e das culturas pré-histó-ricas, reveladas pelo registro arqueológico. Nisto o Mesolítico americano se parece com o da E u r o p a , embora o mesmo n ã o ocorra no plano das tipologias de artefatos (os "microlitos" típicos do Mesolítico europeu s ó apareceram, depois de 5 0 0 0 a . C , nas regiões árticas da América).

À s modalidades de subsistência que j á existiam

América Pré-Colombiana 29

anteriormente, e que se mantiveram em certas re-giões, com modificações — coleta e c a ç a generali-zadas; c a ç a especializada — , outras v ê m juntar-se: exploração especializada de moluscos e outros recur-sos marinhos, pesca marinha ou fluvial, coleta vege-tal especializada, etc. Por outro lado, a n ã o ser o modelo ártico baseado na caça de mamíferos mari-nhos e na pesca, muito especializado por razões liga-das a um meio ambiente peculiar, os diversos modos de subsistir t a m b é m se misturaram em muitos casos e em graus diversos.

/ / O velho modo de vida baseado na caça e coleta generalizadas se manteve sobretudo em regiões de bosques. Tratava-se de combinar u m grande n ú m e r o de alimentos selvagens vegetais e animais, procu-rando a garantia de u m a dieta suficiente e equili-brada ao longo das diversas estações do a n o . '1

A caça especializada desenvolveu-se nos planal-tos do C a n a d á , antes coberplanal-tos pelas geleiras, mas agora por prados; continuou predominando até mais ou menos 5 000 a. C . em vastas regiões canadenses e dos Estados Unidos e M é x i c o atuais, a t é que a deser-tificação a tornou impossível no sudoeste norte-ame-ricano e em partes do M é x i c o . Mas na Patagônia, por exemplo, continuou existindo até a chegada dos europeus.

/ / A exploração especializada de recursos aquá-ticos deu lugar a modos de vida variados, baseados na pesca marinha e fluvial (pesca do s a l m ã o no rio C o l ú m b i a , pesca marinha n a costa do Peru e do Chile, etc.)}re na coleta de moluscos, responsável

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30 Ciro Flamarion S. Cardoso

pela formação de "restos de cozinha'* que, amon-toando-se, formaram os sambaquis em muitas re-giões costeiras do Atlântico e do Pacífico, tanto na parte norte quanto na meridional do continente. A l -guns sambaquis são bastante antigos, com 9000 anos ou mais, enquanto a pesca especializada parece ser mais recente (estabelece-se entre 5 000 e 4 000 anos atrás, e às vezes bem mais tarde).

A coleta vegetal especializada caracterizou diver-sas partes do México e o sudoeste dos Estados Uni-dos, além de uma porção da zona andina centro-meridional da América do Sul. E m certos casos, surgem no registro arqueológico moendas de pedra e também os indícios dos primórdios da agricultura. Por fim, temos o modo de vida dos esquimós, ou ártico, baseado na c a ç a do caribu e de mamíferos marinhos e na pesca.

A arqueologia reflete a grande variedade das modalidades de subsistência — muitas das quais continuaram vigentes em certas regiões americanas até a conquista ou mesmo até hoje — e também a diversificação e regionalização j á mencionadas dos complexos líticos, sinal de uma crescente estabili-zação de dados grupos humanos em regiões deli-mitadas.

A organização social

dos grupos humanos pré-agrícolas

Os antropólogos e arqueólogos

neo-evolucionis-América Pré-Colombiana 31

tas norte-americanos, adaptando o esquema de L . H . Morgan para adequá-lo às descobertas da etnologia e da arqueologia nos últimos cem anos, abandonaram a noção d e ^ j o r d a pnmitiva, tj)ara a caracterização

dos grupos de caçadores e coletores, suJ>stituindo-a pèTã~de"bando*'.

TJñTbando é sobretudo uma associação residen-cial de famílias nucleares ou restritas, segundo um sistemaexogâmicc^éviriíocaíHos homens_3eum

ban-do devem buscar esposas_em outros banban-dos, e estas vêm residir no bando dos maridos). O fundamento económico do bando é a divisão do trabalho segundo o s e x o , sendo a caça uma, atividade m a s c a i " * (p

cooperativa) e a Cj3letar-uma-^jvid^e^mm4na.4e imiividual). Os direitos de uso sobre os territórios de caça e coleta são coletivosi. O produto da caça sofre um processo de redistribuição imediata, de circu-lação instantânea, segundo regras de reciprocidade, de tal forma que todo membro do bando se beneficia (em maior ou menor grau) com cada animal abatido e, no conjunto, cada família recebe uma quantidade equivalente. Já o produto da coleta (vegetais, peque-nos animais) se destina em princípio a cada família. Os caçadores cooperam entre si. Notou-se que um bando gira, numericamente, ao redor de vinte e cinco pessoas na maioria dos casos, o que significa de seis a oito homens adultos formando um grupo de caça. O s bandos correlacionados integram uma "tribo dia-letal", com umas quinhentas pessoas: a quantidade de indivíduos que, nesse nível técnico, podem manter uma identidade comum sem controle político

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institu-32 Ciro Flamarion S.

cionalizado (que inexiste: os bandos s ã o anarquias no sentido e t i m o l ó g i c o do termo),_atravès de relações pessoais diretas suficientemente intensas e í n t i m a s . O nomadismo, implícito neste tipo de organização, obriga~a -reduzir ao^mínimo os objetosJalDricados e usados. A Base social é o parentesco simples, sem o desenvolvimento de linhagens, genealogias longas e •cujtô de antepassados. N ã o h á especialistas de tempo completo (já_cme todos os adultos se devem dedicar à .obtenção de alimentos), mas pode haver algum

co-mércio entre bandos devido a uma distribuição desi-gual dos recursos naturais disponíveis para cada bando| Idade e sexo são os únicos elementos de dife-renciação social,j>ois o poder, baseado na influência e no prestígio pessoais, n ã o traz privilégios, sendo horizontal, ocasional e temporário nas suas formas de existência (assim j3ode_-haver o chefe de u m a c a ç a d a , um j m g i ã o que dirige o culto por conhecer melhoro ritual.» etc.).

"5jrà "arqueologia do Novo Mundo mostrou que, como em outras partes do globo, o habitat dos caça-dores- coletores pré-históricos alterna com frequência a c o n c e n t r a ç ã o em macrobandos, ocupando acampa-mentos maiores, nos períodos do ano em que a sub-sistência, mais abundante, é obtida mais facilmente, com a dispersão em microbandos durante os meses mais d i f í c e i s ^ "

Que dizer sobre o modo de produçãouáojj^ça^_ dores-coletoresIÊA n o ç ã o de "bando" satisfaz certos requisitos para u m a descrição empírica e u m a classi-ficação social em c o m p a r a ç ã o com outros tipos, o

América Pré-Colombiana 33

que pode ser útil; mas difícilmente pode servir de base p a r a , a construção de u m modo de p r o d u ç ã o específico/(houve, p o r é m , tentativas nesse sentido: cf. por exemplo Jean-Claude Willame, "Recherches sur les modes de production cynégétique et ligna-ger", in L 'Homme et la Société, n ? 19, janeiro-março de 1971, pp. 101-119). Por outro lado, o esquema tradicional marxista, com sua "horda primitiva"' e seu "comunismo primitivo" (ou "comunidade primi-tiva"), que no fundo inclui sociedades profunda-mente heterogéneas sob u m a etiqueta ú n i c a , exige uma revisão urgente. A t é agora, p o r é m , n ã o pode-mos dizer que os resultados da discussão desenvol-vida nas ú l t i m a s décadas nesse sentido sejam satisfa-t ó r i o s ^

casos favoráveis, guando a caça abundante dw grandes animais ou a pesca ou coÍêta*espêciali-zadas permitem o surgimento de um excedente eco-n ô m i c o acima do coeco-nsumo imediato, é possível, mes-mo em sociedades pré-agrícolas, o surgimento da orgàmzacJojQibal, mais complexa do que a dos ban-dos. Como, no entanto, a generalização das socie-dades tribais se d á principalmente com a difusão da agricultura, deixaremos para mencionar adiante as características desta forma de organização social.

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SOCIEDADES

AGRICOLAS PRÊ-URBANAS

A "revolução neolítica'' e sua difusão

' A noção de uma "revolução neolítica", enten-dida como um conjunto vinculado de invenções — domesticação de plantas e animais, cerâmica, poli-mento da pedra, tecelagem — , significando princi-palmente a transição de grupos humanos da situação de predadores da natureza à de produtores, foi popu-larizada h á meio século pelo grande arqueólogo aus-traliano V , Cordon Childe (ver, por exemplo, O Ho-mem Faz-se a Si Próprio, Lisboa, E d . Cosmos, 1947, pp. 97-142). te verdade que tal autor tinha plena consciência de que algumas dessas invenções pude-ram preceder o Neolítico pleno, embora só em tem-pos neolíticos encontremos a sua vinculação coerente num tipo dado de sociedade e em novas possibili-dades abertas aos grupos humanos (sedentarismo,

América Pré-Colombiana 35

surgimento de aldeias e da organização tribal avan-çada, produção de um excedente além do consumo imediato, etc.)/

Hoje, a noção de "revolução neolítica", sem ser abandonadaTsofreu diversos ataques que pelo menos

1areflativizar am. ~~Em primeiro lugar, tal expressão

pode dar a ideia deaTgó rápido e "explosivo", quan-do na verdade se estendeu por milénios, coisa que é ainda mais verdadeira na A m è n c a . ^ o r exemplo, em Tamaulipas (nordeste do México atual), entre o V I I e o I milénio a. C , a proporção das plantas cultivadas na alimentação passou de 5 para 5 0 % / E indubi-tável, porém, que, se recolocarmos as transformações neolíticas na perspectiva temporal global da pré-his-tória humana, elas parecerão rapidíssimas compa-radas com os dois milhões de anos (pelo menos) do Paleolítico, muito menos ricos — salvo na sua fase terminal (Paleolítico Superior, Mesolítico) — em invenções e mudanças radicais do que os escassos milénios do Neolítico. Por oujxo__la_do, atualmente está demonstrado pela arqueologia que não há vincu-lação necessária entre as invenções neolíticas (nem ao nível de seu aparecimento, nem'He sua difusão a outros graposklembora seja verdade que os grupos humanos que se^ desenvolveram mais foram os que as reuniram todasjs. Assim, a cerâmica pode preceder a agricultura (como talvez haja acontecido em algumas regiões costeiras do Mar dás Caraíbas); ou, pelo contrário, pode ocorrer uma longa fase agrícola pré-ceramica (como na Meso-América e^jajcosta do P e n i K ^ a região dos Grandes Lagos

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norte-ameri-36 Ciro Flamarion S.

canos, grupos de caçadores usavam já instrumentos de metal (cobre martelado) no I I milenio a. C . A presença de machadinhas de pedra polida está tam-bém demonstrada entre grupos não agrícolas / M a s é igualmente certo, por exemplo, que a cerâmica"so~se desenvolve plenamente entre grupos sedentarios, sendo frágil demais para ser transportada constante-mente sem perigo ou mcômodo; além do que, sendo uma das suas utilidades básicas a de guardar coisas. ^^gíro!qiie-sftjfl majfl titíl para_ j«j«ftriarie.s que dis: põem de estoques e excedentes para armazenar (coi-sa muito mais frequente entre agricultores do que enfrejcáçadores, pescadores e coletores).

~i Àcreditava-se no passado ter existido um só foco de desenvolvimento da agricultura e da criação, situado no Oriente Próximo, do qual tais atividades progressivamente se estenderam, ganhando outros ambientes aos quais se adaptaram através da domes-ticação de novas espécies vegetais e animais,/ Agora acredita-se na pluralidade de focos da "revolução neolítica . Ernjoarticular, é hoje bastante difundida a opinião de ter ocorrido uma invenção da agricul-tura n a América, independentemente do Velho Mun-do, embora haja alguns problemas ligados à origem botânica de certas plantas e à prioridade geográfica de sua domesticação. Assim, a mais antiga das espé-cies vegetais domesticadas no continente americano, a cãb^iÇ(Lagenaria siceraria), não tem um antepas-sado selvagem na América — ou ainda não foi desco-berto; além d ó mais, era cultivada tanto n a periferia da Meso-América quanto no Sudeste Asiático por

37

volta de 7 000 a. C . O algodão americano, pertencente a duas espécies distintas, parece resultar de hibri-dação de espécies selvagens americanas e do Velho Mundo. E o amendoin, típico da agricultura ameri-cana, t a m b é m parece ter sido encontrado em sítios neolíticos d a China.

No caso da América, a d o m e s t i c a ç ã o de, plantas ioi incomparavelmentemais rica do que a=de animajs_

> = = rqfflgá*pela ausênciarrmrfauna holocena americana,

_ide_gr^^^es mamíferos domesticáveis._De maneira

simplificada, podemõs3istmguir os seguintes focosdo Neolítico americano/l)}t'Meso-América, a partir de 7000 a. C . aproximadamente, e tendo como domesti-cações principais o milho, o feijão, a pimenta, a caba-ça, o cacau, uma espécie comestível de cão e o peru; 2) à Zona Andina Central (onde só a costa foi realmen-t e esrealmen-tudada quanrealmen-to às origens agrícolas), a parrealmen-tir de

mais ou menos 5 000 a. C . , com a batata, a quinoa, a cabaça, o feijão, o lhama; 3) è m região e época ainda não-determinadas (talvez no noroeste da América do Sul), foi domesticada a mandioca. As possíveis rela-ções e permutas entre tais focos neolíticos n ã o s ã o conhecidas, embora haja especulações pouco funda-mentadas a respeito.

Sempre em forma simplificada, podemos dizer que o Neolítico americano, ao difundir-se a partir dos seus focos, originou duas grandes tradições agrí-colas: uma baseada na semeadura, colheita e arma-zenamento de grãos de cereais e leguminosas (milho, feijão, amaranto, quinoa); a outra, na plantação de mudas, produzindo raízes e tubérculos (batata,

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man-38 Ciro Flamarion S.

dioca, aipim, batata-doce). A Fig. 2 mostra, por outro lado, à distribuição dos três principais complexos agrícolas americanos: o andino (no qual o milho teve desenvolvimento maior só tàrEiamente, desempe-nhandoji batata um grande p a p e l ã o do predomínio do milho; e aquele em que predominava a mandioca.. Como a agricultura ganhou no continente americano meios ambientes naturais e culturais variadíssimos, deu origem^a sistemas agrários muito heterogéneos, que se escalonavam desde uma agricultura primitiva e itinerante, praticada como atividade subsidiária extensiva de baixa tecnologia por grupos coletivistas que continuavam sendo basicamente caçadores-cole-tores, até uma agricultura sedentária, intensiva, tec-nologicamente iftãis elaborada (por exemplo, utili-zando a irrigação), e com um esboço ao menos do desenvolvimento da propriedade privada sobre a terra. Seja como for, a agricultura antiga do Novo Mundo apresentava certas deficiências técnicas quando comparada globalmente à do Velho Mundo: uso exclusivo da enxada e de bastõe^jipnuffi^^Sura semear, ausência do arado (talvez por faltarem gran-des animais domésticos capazes de puxá-lo; o mesmo fàtor explicaria também o não-súrgimento de_xeí-culos com rodas); falta de uma associação intima entre agriculturae criação de gado; não-desenvolvi-m ^ t o dojiso abundante de rn^ais Para^cOnfêcc3B*oy instrumentos agrícolas (tal.desenvolvimento foi tar-dio màTtmportante no Velho Mundo, sendo muitís-simo menos discernível na América).

Partindo dos focos de__seu descobrimento, o

América Pré-Colombiana

Fig. 2 — Os complexos agrícolas pré-colombianos. (Fonte: João Frank da Costa, Evolução Cultural da América

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40 Ciro Flamarion S.

conhecimento da agricultura se difundiu a boa parte do continente americano: 1) à partir da Meso-Amé-rica, a porções não-meso-americanas do atual Mé-xico e aos Estados Unidos — embora se discuta a possibilidade de umOteolítico jnjfependeníe*__por exemplo, no vale do Mississipi; 2) a partir do ponto de origem da mandioca e da Zona Andina Central, à Amazonia e depois à região dos ríos Paraná e Para-guai;/^)a chamada "zona agrícola intermediária^', que inclui as partes não-meso-americanas da América Central, as Antilhas e porções da América do Sul, so-freu a influência conjugada de todos os focos iniciais. E s t a difusão foi lenta: à bacia do Paraná-Paraguai, por exemplo, a agricultura só chegou na segunda me-tade do I milenio de nossa era. O extremo meridional da América do Sul n ã o chegou a conhecê-la em tem-pos pré-colombianos.

f A descrição da domesticação de plantas e ani-mais, n ã o responde à difícil pergunta: por que foi empreendida? H á algumas décadas, quase todos os pré-historiadores tendiam, como Gordon Childe, a ver os inícios agrícolas como uma resposta às drás-ticas mudanças ecológicas e climádrás-ticas que marca-ram a passagem do Pleistoceno ao Holoceno. Acon-tece, porém, que alguns dos focos neolíticos melhor conhecidos — o Oriente Próximo e, na Meso-Amé-rica, o vale mexicano de Tehuacan — são justamente regiões relativamente pouco afetadas por tais mu-danças. Assim, novas hipóteses se desenvolveram. U m dos principais escavadores do Neolítico do Ori-ente Próximo, R . Braidwood, acredita numa

causa-lidade cultural: o Neolítico seria simplesmente a minação de uma diferenciação e especialização cul-turais crescentes dos grupos humanos a fins da pré-história, e de um conhecimento cada vez mais pro-fundo das plantas e animais existentes no habitat de cada um desses grupos. L . Binford preferiu buscar a resposta numa pressão demográfica causada por imi-gração, incidindo negativamente em certas regiões sobre a disponibilidade adequada de recursos pré-agrícolas, surgindo então a agricultura como solu-ç ã o . Certos autores utilizam tal hipótese em forma modificada, partindo de u m crescimento vegetativo da população e não da imigração. Já K . Flannery considera a passagem da vida nómade de caçadores-coletores à sedentária de agricultores estáveis como um longo processo, marcado pelo fato de que certas plantas n ã o respondem às tentativas de domesticação com qualquer efeito multiplicador drástico sobre os recursos disponíveis para a alimentação, enquanto outras — como o milho — , ao serem domesticadas e aos poucos aperfeiçoadas seletivãmente pela própria domesticação (no caso do milho isto provocou muito notável aumento das. espigas, por exemplo), permi-tem finalmente uma verdadeira "explosão", um au-mento espetacular e exponencial dos recursos dispo-níveis. Para explicar o surgimento e desenvolvimento da agricultura no vale de Tehuacan, J . T . Meyers fundiu as hipóteses de Braidwood, Binford e Flan-nery num modelo único. Porém, trabalhando sobre uma região muito diferente — a costa central do Peru, onde os recursos terrestres eram

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complementa-42 Ciro Flamarion S.

dos por abundantes recursos marítimos, e que certa-mente sofreu modificações mais graves ao terminar o Pleistoceno — , T . C . Patterson mostrou que tal mo-delo não é aplicável, sendo necessário elaborar outro. Assim, a questão das causas do surgimento da agri-cultura talvez tenha de receber respostas variadas segundo os casos, em função de circunstancias e ambientes distintos.

Outro tema muito debatido é o da origem da cerâmica no Novo Mundo. A mais antiga cerâmica conhecida até agora no continente é a de Valdivia, na costa do Equador, de excelente qualidade e datada de 3 200 a. C . ± 150. Os arqueólogos B . Meggers, J . C . Evans e E . Estrada, baseando-se na semelhança com a cerâmica do período Jomon médio do Japão, e em ser difícil explicar de outro modo o aparecimento súbito de cerâmica de tão boa qualidade, defendem uma origem por contato asiático transpacífico, ponto dos mais discutidos. Cómo no caso da agricultura — mas sem paralelismo necessário com esta — , a difu-são da cerâmica foi processo longo que n ã o chegou a se completar em tempos pré-colombianos. N a Meso-América a mais antiga cerâmica conhecida é da se-gunda metade do I I I milénio a. C . (Puerto Marquez, 2440 a. C ) . No Peru, a cerâmica é bem tardia: apro-ximadamente 1750 a. C . No caso do que é hoje o Brasil, a Amazónia a conheceu muito antes das regiões mais ao sul, onde a sua difusão ainda conti-nuava na época do descobrimento.

América Pré-Colombiana 43

A diversificação cultural

dos grupos agrícolas pré-urbanos

Ao terminar a era pré-colombiana, em fins do século X V de nossa era, Pierre Chaunu propõe dis-tinguir, quanto à agricultura e ao povoamento, três áreas no continente americano:

l)^AJma primeira região de pequena extensão (2 milhões de k m2, 5% da superfície do continente) e

alta densidade demográfica (continha 90% da popu-lação total da América pré-colombiana): a ilha hoje partilhada pelo Haiti e pela República Dominicana, os planaltos centrais do México, talvez uma parte da zona maia, a região dos chibchas da Colômbia, o setor quíchua-aimará dos Andes centrais. E s t a região apresentava uma densidade média de 35 a 40 habi-tantes por k m2, permitida pela agricultura intensiva

dos tubérculos, na ilha; principalmente do milho na Meso-América; da batata e do milho, nos Andes, incluindo as técnicas v em certos casos, a irrigação e a

cultura, em t e r r a ç o s . /

, 2)y Outra região, também de uns 2 milhões de k m , a das planícies e planaltos maias, com uma agricultura do milho baseada no sistema de coivara, apresentava densidades de 2 a 5 habitantes por k m2.

Certas porções do sudoeste norte-americano (Novo México, Arizona) haviam conhecido uma densidade comparável no passado, mas a partir de fins do sé-culo X I I I d. C . as superfícies cultivadas diminuíram, engolidas pelo deserto que avançava.

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44 Ciro Flamarion S.

3) No resto do continente — 35 m i l h õ e s de k m2,

ou 90% da superfície d a A m é r i c a — , a coleta, a c a ç a e a pesca, e quando muito u m a agricultura bem primitiva, só permitiam densidades ínfimas e modos de vida n ó m a d e s .

E s t a situação constitui o ponto terminal e a expressão de um longo processo de diferenciação cultural que podemos considerar definitivamente ini-ciado quando, talvez por volta de 2000 a. C . na M e s o - A m é r i c a , e de 1500 a. C . nos Andes centrais, generalizou-se o habitat baseado em aldeias seden-tárias, possibilitado por u m a agricultura estável e altamente produtiva. Foi-se formando, assim, a dife-rença entre o que os arqueólogos chamam de " á r e a nuclear" (cultural e demograficamente) da A m é r i c a pré-colombiana, e as "culturas marginais": margi-nais segundo o duplo critério de serem menos desen-volvidas técnica e economicamente (caracterizándo-se, devido a isto, por u m peso demográfico muito menor) e de receberem por difusão muitos elementos culturais da "área nuclear" constituída pela Meso-A m é r i c a e pelos Meso-Andes centrais.

Deixaremos para o p r ó x i m o capítulo a exposi-ç ã o do processo que conduziu, n a M e s o - A m é r i c a e na Zona Andina Central, às "altas culturas" ameri-canas, com sua u r b a n i z a ç ã o e seus Estados orga-nizados.

Mencionaremos agora alguns exemplos de socie-dades que, sem atingirem a etapa das cisocie-dades e dos Estados, mesmo assim exibiram complexos culturais bastante avançados, com e s b o ç o s j á claros de

hierar-América Prê-Colombiana 45

q u i z a ç ã o social e a existência de u m artesanato espe-cializado de boa qualidade. A arqueologia permite detectar tais traços através dos enterros — que mani-festam j á clara diferenciação social, por exemplo, n a cultura aldeã de Tlatilco, no M é x i c o central ( I m i l é -nio a. C . ) — e da presença de centros cerimoniais. Estes últimos s ã o conjuntos de edifícios que serviam de ponto de reunião, centro religioso e comercial, permanente ou ocasionalmente, a u m conjunto de aldeias dispersas, ligadas por algum tipo de confede-ração ou chefia, e que uniram seus esforços para construir o centro cerimonial. E m certas partes da América, este precedeu a cidade e pode tê-la prepa-. rado ( n ã o necessariamente, porém); em outras, re-presentou o s í m b o l o do ponto m á x i m o localmente atingido pela cultura em tempos p r é - c o l o m b i a n o s .

Entre as numerosas sociedades, pré-urbanas da A m é r i c a que já apresentavam considerável complexi-dade cultural citemos como exemplos: as culturaspue-Blqâo sudoeste dos atuais Estados Unidos, com apo-geu entre 1100 e 1300 a . D . ; diversas culturas do no-roeste argentino (Zona Andina Meridional), princi-palmente na sua fase tardia (850-1480 a. D . ) ; diferen-tes grupos da parte da A m é r i c a Central não-perten-cente à M e s o - A m é r i c a (mencionemos o centro cerimo-nial de Guayabo de Turrialba, no que é hoje a Costa R i c a , cujo apogeu se deu entre 800 e 1300 a. D . ) ; as culturas chibcha e de San Agustin (esta com sua fase final ou "epigonal" entre os séculos V I e X I I d. C . ) d a atual Colômbia.

Referências

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