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Grupo 1143

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Academic year: 2021

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“...EM PORTUGAL CONTINENTAL E MADEIRA, MENOS UMA NOS AÇORES ESTA É A EDIÇÂO Das sete na rádio…” OFF… hora de acordar. Faltavam três horas para o avião. Levantei-me e dirigi-me à casa de banho para me aprontar, para o meu último duche em Lisboa…que não deveria ser apenas um duche mas sim um grande banho de imersão para me sentir de facto limpo, depois desses 5 anos vividos na capital do extremo ocidental da Europa. Não pela cidade que é extremamente bela, atraente, dinâmica e quente durante todo o ano, diferente da minha fria e cinzenta “Torino”, mas pela vergonha que me fazia sentir sujo por ter acompanhado de perto um vazio idealista chamado “claques”. Uma realidade distante daquela que vivi antes desta aventura, com personagens diferentes daqueles com quem cresci e que estarão comigo para toda a vida, os que acreditam em algo e que lutam diariamente por aquilo em que acreditam, os que não se rendem, os que jamais se curvarão, os que jamais dirão “sim senhor!”, os que nunca me traíram, os que como eu pensam “ULTRAS”. É uma condição, um estado de alma, um modo de vida que vivido na sua essência, na sua pureza, é imune a qualquer tentativa de alteração provocada pelo mundo exterior no decurso da nossa vida. É uma religião, é transcendente, é um princípio e é um fim, é fundamentalismo, é o sublime, é o etéreo, é uma elevação, …é o que há de mais genuíno no futebol. Somos os últimos românticos e puros de uma civilização nojenta que vê o ser humano como um produto com código de barras. Defender, proteger, servir e sacrificar. Acreditamos nestes verbos e tentamos honrá-los. É esta a base, a sustentação da nossa dignidade. Simplesmente…”ULTRAS”!

– Foda-se!... (blasfémia típica portuguesa com um significado próximo do “vaffanculo” mas com um sentido mais lato porque serve para tudo, nunca soube como se escreve foda-se, fodasse ou fodace, mas seja como for é muito agradável pronunciá-la). Acabou! Não há mais nada para ver! – Pensei, enquanto me vestia e arrumava as malas e simultaneamente formatava o meu cérebro depois de cinco anos a receber ficheiros danificados e alguns com vírus que fui armazenando numa pasta que criei e que blindei para que não me afectasse directamente.

Vesti a mesma t-shirt que trazia no dia em que cheguei. Aquela de que mais gosto, a dos grandes momentos que vivi, com a escrita “ ULTRAS GRANATA” na frente e nas costas “WE ARE THE ORIGINAL ULTRAS”. “Granata”…a minha cor, a cor do meu sangue.

Tinha chegado o momento de partir, o momento em que tudo passaria a recordação…até a imagem dela…Beth…

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Despedi-me visualmente do espaço onde vivi os últimos tempos e de onde levava boas recordações, o meu pequeno quarto que era infinito quando passava tardes loucas de sexo com ela… …o táxi… – Bom dia! Leve-me ao aeroporto por favor. – Pedi enquanto colocávamos as malas na bagageira. – O senhor é espanhol? – Perguntou o taxista apercebendo-se do meu sotaque.

– No…italiano! – Respondi com orgulho. Teria sido preferível ter respondido afirmativamente, porque assim que a viatura partiu fui “metralhado” com teorias.

– AHHH! É conterrâneo do treinador do meu clube, o “Trapatone”, no domingo é que vai ser, vamos ser campeões e blá, blá, blá,….

Tive de desligar. Já não podia mais ouvir falar de futebol em Portugal, sobretudo os adeptos do Benfica. É uma doença. Não vêem mais nada. Eles nem gostam de futebol, só gostam do Benfica, mas o mais engraçado é que vão ver futebol ao estádio uma ou duas vezes por ano e a maioria nem nunca vai durante toda a vida…mas apercebi-me em pouco tempo que é um mal dos portugueses em geral. Gostam de discutir futebol nos cafés, nos empregos e na escola…mas não põem um pé num estádio, e quando sentem que a conversa está a atingir limites de irritação séria sai o tradicional “Estamo-nos a chatear para quê? Eles é que o ganham…”, isto depois de estarem a discutir e a provocarem-se mutuamente durante meia hora.

– …não jogamos um futebol bonito, mas o “Trapatone” sabe e blá, blá, blá… – continuou o taxista. Eu agitava a cabeça em sinal afirmativo, embora não prestasse qualquer atenção àquilo que ele dizia. Foi todo o caminho a elogiar o Trapattoni, um tipo que é detestado por dois terços dos italianos e nos quais eu me incluo. Se a comunicação social portuguesa tivesse a noção do filão de escárnio que o Trapattoni proporciona em Itália pelas suas trapalhices quando abre a boca e pela sua fraca ou nula cultura, poderiam fazer programas inteiros que bateriam com certeza todos os records de audiências, mas apercebi-me que há um grave problema de idolatria exacerbada no que respeita aos jogadores e treinadores do campeonato português, que incompreensivelmente são postos em pedestais sem nunca terem feito qualquer boa acção, quanto mais milagres, basta-lhes apenas vestir a camisola de um dos denominados três grandes de Portugal para serem considerados “santos” e a imprensa empola ainda mais essa condição. É o negócio.

– …o futebol de hoje é muito defensivo, eu sou do tempo do Eusébio. O senhor já ouviu falar no Eusébio é claro? – Perguntou o taxista. – Sim, sim foi um dos bons jogadores da Europa nos anos 60. – Respondi eu. – Dos bons?! Foi o melhor do mundo. Aquilo é que era futebol… – continuou ele. Eu continuei a responder com gesto positivo enquanto simpaticamente simulava um sorriso. O pobre desgraçado limitava o seu discurso ao próprio clube e a um jogador que havia desaparecido dos palcos há 30 anos. Eu poderia ter alimentado a conversa dizendo-lhe que a maior equipa do mundo de todos os tempos havia sido a minha, o “Grande Torino”, e defenderia essa posição utilizando o facto de haver sido inclusivamente um jogador do seu clube a sustentá-lo, poderia dizer que o melhor jogador do mundo foi Valentino Mazzolla, embora nunca o tenha visto jogar ou poderia até dizer que vi jogar o Maradona…mas para quê? Por certo que quando chegássemos ao destino ele diria “…não vale a pena zangarmo-nos, quem ganha o dinheiro são eles…”, por isso mantive-me calado com o mesmo sorriso na face a alternar os olhares no retrovisor interior com as ultimas visões de uma Lisboa que se despedia de mim, lentamente, à velocidade do transito caótico nas manhãs dos dias úteis na capital. Um ultimo olhar ao

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estádio que albergou a minha ingenuidade de querer encontrar uma correspondência à minha necessidade de me apaixonar por uma equipa de futebol que me pudesse aliviar a dor de estar longe do “Toro”… – Estes, ontem foram para casa a chorar… – disse o taxista com ironia referindo-se aos adeptos do Sporting e apontando com o dedo indicador esquerdo na direcção do estádio “Alvalade XXI” – Ainda bem, porque senão ninguém os calava, apesar de terem perdido connosco no fim-de-semana, assim não ganham nada – continuou ele. Ignorei-o, apesar daquilo que ele tinha dito não me ter caído nada bem. O aeroporto estava próximo e não ia sujar o meu nome por causa daquele atrasado mental. Calma… – ordenei a mim próprio enquanto pensava – Ele falou assim porque julga que sou turista. Ele falou assim porém se eu fosse português, ele falaria sobre o trânsito e sobre a meteorologia, ou sobre o programa de televisão ou as coisas sem qualquer importância, costumeiras, que usam para poderem falar sobre qualquer coisa em Portugal. Ele falou assim porque se soubesse que eu “tifavo” pelo Sporting, ele diria que tinha pena e que é mau para o futebol português e outras tretas semelhantes que usam para justificar o “…não vale a pena zangarmo-nos, porque quem ganha o dinheiro são eles…”. Ele continuava a falar e eu desliguei mesmo. Faltava pouco para chegar ao aeroporto. Fingi que atendia o telemóvel, desculpando-me por interrompê-lo porque alguém me ligava. Preferi fazer a figura ridícula de falar sozinho do que continuar a aturar aquele sujeito.

– Pronto! Andre…allora, tutt’ a posto... – iniciei uma conversa comigo mesmo que a partir daí, nada mais foi do que, todo o tipo de ofensas que conheço nos mais diversos dialectos itálicos, obviamente, dirigidos a ele. Foi bom. Aliviei.

E assim passei os últimos minutos até chegar ao aeroporto.

Faltava uma hora para o embarque. Estava ansioso…Lisboa-Madrid, Madrid-Torino… faltavam cinco horas para chegar a casa. Decidi então, comprar um jornal diário desportivo, para me ajudar a passar o tempo de espera. Comprei “a bola” cuja manchete referia, como não poderia deixar de ser, a desilusão que o Sporting havia sofrido na noite anterior. Seria a minha última recordação do último jogo que havia presenciado em Portugal. Também eu estava triste. Sentei-me enquanto folheava as páginas do jornal que comprei, não que tivesse por hábito fazê-lo, já que por norma preferia a consulta on-line de todos os jornais. Dessa forma não só poupava dinheiro, como também não alimentava os jornalistas terroristas desportivos que em Portugal proliferam, sobretudo os da imprensa desportiva escrita que fazem parte de uma comunicação social amestrada. São comandados pelos directores de comunicação dos clubes que no fundo são quem lhes garante o trabalho e o ordenado. Chegamos facilmente a essa conclusão considerando que é um país com cerca de dez milhões de habitantes, dos quais apenas uma pequena percentagem tem o hábito da leitura, onde existem três diários desportivos, que são exactamente o mesmo número de diários desportivos do meu país que tem cerca de sessenta milhões de habitantes. Só pode ser essa a justificação para que se compreenda um fenómeno curioso que acontece com as manchetes desses mesmos jornais, que nos revelam abordagens completamente diferentes dos mesmos factos e em grande parte das edições somos induzidos em erro pela primeira página. Mas esse é um problema que não é exclusivo de Portugal, já que os jornalistas desportivos italianos são a mesma merda. Protegem apenas Milan, Inter e a merda da “Juve”…sobretudo a merda da “Juve”…

Comprei “a bola”, apenas pela homenagem que quis prestar à sorte deles (infortúnio meu… nosso), por terem sido o jornal que publicou a ultima entrevista dada pelo capitão Valentino antes de embarcar na viagem fatal, na viagem que teve como passageiro todo o povo “granata”, desde aquele fatídico 4 de Maio de 1949…Agora, também eu estava ali, no local onde provavelmente, pela última vez, haviam pisado terra os “imortais”. Era ali que começava a emergir tudo aquilo que, de facto, para mim era

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importante. Voltava por momentos a encontrar-me, a identificar-me e a devolver-me ao misticismo e à paixão.

Não posso esquecer os anos vividos. Posso esquecê-los, mas não para sempre. Porque constantemente me vejo obrigado a vasculhar o passado para conseguir enfrentar o presente. Não me consigo esconder do que vivi e são essas recordações que me colorem a vida. É esse veneno que me percorre o sangue, que me transformou em homem, essas fortes sensações destiladas, os cânticos de alegria e os gritos de raiva, o riso e o choro vividos em torno de um grande amor. As esperanças e as desilusões que mantinham o equilíbrio do sonho. O sonho chamado Torino Calcio.

Uma história feita de nostalgia e ressurreição, ainda que débil. Uma história feita de glória e de lugares, feita sobretudo em dois lugares: “Filadélfia” e Superga. O eterno estádio Filadélfia, o templo dos deuses, o lugar dos meus encantos assim chamado carinhosamente por se situar na rua com o mesmo nome…nunca soube o porquê de não lhe chamarmos “campo torino”, sendo esse o seu verdadeiro nome…para nós era e será sempre o “FILA”, apesar de nunca termos visto nenhuma equipa subir àqueles metros de relva que se tingia de um verde ainda mais vivo quando sentia sobre si o peso dos colossos Bacigalupo, Ballarin, Maroso, Grezar, Rigamonti, Castigliano, Loik, Gabetto, Mazzolla, Ossola, Martelli, Menti…os espíritos que me invadiam e com quem divido a minha alma desde quando ainda criança passava junto ao que resta do “FILA”, agarrando com força a mão do meu pai que com o seu silêncio e a respiração calma e profunda servia de intermediário da energia emanada pelas visões e recordações daquele estádio. Eu acreditava no “Grande Torino” como uma história encantada. As minhas histórias infantis eram os livros e recortes de jornais que o meu pai, também ele, religiosamente guardava da sua infância. A maioria desses recortes era, precisamente, sobre o outro lugar, Superga, a colina que ostenta a esplêndida basílica, que é, infortunadamente, um monumento que para nós significa o fim da melhor equipa de futebol de todos os tempos. O lugar da tragédia, onde resta uma lápide com trinta e um nomes esculpidos, alguns ramos de flores e meia dúzia de cachecóis “granata” envelhecidos pelo sol e ensopados pela chuva e pela neve. O museu das gloriosas memórias, dos momentos de alegria, do vitorioso passado que não vivi…”Museo Grande Torino”… que está sempre a olhar para nós…e eu, contrariamente, tenho uma certa dificuldade em olhar para lá. O meu pai viveu “Superga”, ainda que muito novo, e talvez por isso se justificasse o brilho nos seus olhos quando, suave e pausadamente, me narrava os feitos e as conquistas dos deuses da colina, imortalizados na lápide e em todas as páginas escritas sobre os seus heróicos triunfos. Aquelas lágrimas que verteu nas várias noites em que, para me adormecer, fazia a ficha completa de jogos sempre diferentes. Quando se tratava de algum jogo mais importante, fosse por se decidir algum título ou por ser derby em que vencíamos estrondosamente, chegava a ter direito ao relato dos golos. Eu delirava e adormecia com o sorriso da criança mais feliz do mundo. O meu pai “pintava” os lances de jogo como de facto os imaginava e os sentia, e eu ficava estarrecido com o tom de voz grave do meu pai e as suas expressões faciais de raiva descarregada quando aumentava e agudizava um pouco o tom da sua voz para dizer “…GOOOL! VALENTINO MAZZOLLA! TORO BATE LA JUVE PER 3 A 0…”, e abraçávamo-nos…e gritávamos golo juntos. A minha mãe passava de vez em quando à porta do meu quarto abanando a cabeça e sorrindo, por nos ver a comemorar os golos de 30 anos atrás, e exclamava em dialecto piemontese “A-i-è nen ‘d pi bel che ‘na facia cuntenta!” (Nada é mais belo que uma cara alegre).

Era bom partilhar com o meu pai, as lendas que também o fizeram sonhar e que me eram contadas como sendo super-heróis, salvadores do Universo, gigantes encantados aos quais rezava todos os dias, na

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esperança que se erguessem da colina e repusessem a verdade e a justiça no que respeita à história do futebol, seja em Turim, em Itália, na Europa ou no Mundo.

Hoje, tenho consciência dessa impossibilidade. O futebol daqueles tempos acabou. O dinheiro fala mais alto e o Torino não é uma equipa que interesse porque não tem as possibilidades de outrora. Sonho apenas com poder ver o meu “Toro”, sagrar-se campeão. Poder experimentar a alegria que o meu pai teve em 1976, quando 27 anos depois das cinzas da melhor equipa do mundo, voltou a sagrar-se campeão, arrecadando o 8º “scudetto” da sua história. Também ouvia as histórias desses heróis…Pulici e Graziani os “gémeos do golo”, 293 golos repartidos, Patrizio Sala e Cláudio Sala, Eraldo Pecci, Renato Zaccarelli e Castellini na baliza, o “giaguaro”…contemporâneos do meu pai. É essa a única vantagem que ele tem sobre mim porque, aparte esse título, tudo o resto foram desgraças. Adorava quando o esperava para jantar e ele chegava com uma prenda, das que eu mais gostava, que mais não era que a notícia da aquisição de mais um jogador para vestir “granata”. O meu pai sabia criar “suspense” e eu suplicava para que ele me revelasse por não aguentar a minha curiosidade e emoção que sentia a tentar imaginar quem seria a nova “estrela” (naquele tempo era difícil adivinhar-se porque não se noticiavam contratações). Mas continuo à espera de poder voltar a abraçar o meu pai e gritar golos reais e poder festejar com ele a conquista de um sonho vivido pelos dois ao mesmo tempo.

Assim foi a minha infância, deliciado pela fantasia “granata” e por outro lado, porque uma coisa implica a outra, a fomentar o ódio e a repugnância por aquilo a que nós, “tiffosi del Toro”, atribuímos a responsabilidade de todo o mal e de toda a desgraça, não só a nossa, como também a de todo o mundo...a “Juve”!

Também essa foi uma herança deixada pelo meu pai, mas penso que no fim de contas, é um sentimento que corre nas veias de qualquer “tifoso granata”. O bem e o mal, o positivo e o negativo, o belo e o horrível, o amor e o ódio…o Torino e a Juventus!

Porém esse sentimento, ainda que inato, não transparece tanto na infância. Existe mas está adormecido, é com o crescimento, com a percepção, com o constatar da realidade para a qual nascemos que se vai desenvolvendo e aumentando até atingir níveis de intolerância que se traduzem pelo mero ouvir pronunciar o seu maldito nome. Foi na adolescência que a repulsa, o nojo e o ódio se agudizaram, tendo vindo a aumentar sempre ao longo da minha vida. Não me lembro do primeiro jogo que vi. Acompanhava o meu pai e os seus amigos que pertenciam e pertencem ainda ao primeiro grupo organizado, Fedelissimi Granata, que surgiu em Itália. Existe desde 1951 até hoje e, naturalmente, isso fez com que me apaixonasse por toda a cultura, toda a história e toda a fé “granata”. Passava a semana a aguardar o domingo para lá voltar, para namorar, para sentir as sensações que não conseguia encontrar em mais nada. Em casa, na escola, na rua quando brincava com os outros miúdos, o único pensamento era o “Toro”. E foi precisamente devido aos meus amigos que habitavam no mesmo “quartiere”, que teria inicio a experiência mais gratificante da minha vida.

Habitávamos, desde o início das nossas vidas, no Lingotto, mesmo junto ao Filadelfia. O meu grupo de infância era constituído por rapazes que habitavam nas ruas que circundavam as ruínas do velho “Fila”. A diferença de idades dentro desse meu grupo era apenas de 2 ou 3 anos.

Nós, naquele tempo, entre os 8 e os 11 anos de idade já funcionávamos hierarquicamente. Os mais novos olhavam para os mais velhos com alguma admiração e respeito porque ter três anos a mais nessa faixa etária era sinónimo de mais experiência e mais sabedoria, de ter acesso a algumas facilidades que os mais novos ainda não podiam ter, ou pelo menos com tanta frequência, como era o caso de poder

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acompanhar os pais todos os domingos ao Comunale para ver o mágico “Toro”.

Foi aí que comecei a ver futebol. Foi aí que comecei a experimentar as sensações de estádio e a magia em tons “granata”… e acinzentado pelas expressões nostálgicas do meu pai e dos seus contemporâneos que com a minha idade haviam experimentado o mesmo, porém no saudoso “Fila”, que ficou ao abandono desde 1959 e com ele, quase toda, a história e a identidade do “Toro”. Para nós, sempre foi justificável a amargura de ter de partilhar o “Comunale” com os “gobbi”. Sobretudo para os mais velhos que se viam agora num estádio que nada tinha a ver com a história gloriosa da nossa equipa e que era a casa da “Juve” desde os anos 30.

Quando os jogos acabavam, iniciava-se outro ritual que era simplesmente o regresso a casa e o meu bombardear de perguntas, às quais o meu pai respondia sempre com paixão, quer ganhássemos, quer empatássemos, quer perdêssemos, com a mesma vontade e convicção para me fazer sentir que o mais importante era que nós, os “ultras”, saíssemos com a consciência de que estivemos sempre ao lado da equipa, e a culpa nunca era nossa. Se nós estávamos ali pela equipa, os jogadores também tinham que lutar por nós. Não somos nós que lhes devemos agradecer, mas sim eles que terão de nos agradecer sempre por vestirem aquela camisola, dizia ele enquanto nos dirigíamos para casa lentamente para fazer passar a hora que demorava a começar a transmissão de todos os resumos do campeonato na televisão. Quando essa acabava, por volta das 19 horas, eu saía novamente para a rua, até à hora de jantar, para ouvir as opiniões dos meus amigos relativamente à jornada. Fazia parte do ritual, festejávamos as vitórias do “Toro” entre nós e delirávamos quando, raramente, o “Toro” vencia e a “Juve” perdia. Era o domingo perfeito.

Sim! Porque todos os meus companheiros “tifavam toro”. Nunca tive amigos da Juventus. Nem eu, nem nenhum dos meus amigos. Era proibido ser da “Juventus”. Era proibido dizer essa palavra. Aliás, nem era necessário estabelecer essa proibição, na medida em que era impensável num grupo de cerca de 30 miúdos que só pensavam no “Torino”, poder aparecer algum “gobbo”. E julgávamos ser, inclusivamente, os nossos heróis “granata” quando jogávamos futebol na rua. Encarnávamos as lendas ou recriávamos os jogadores daquele tempo, sonhando poder ser um deles e um dia poder envergar aquela sagrada camisola.

Assim fomos crescendo e alimentando a nossa amizade e respeito mútuo guiados pelos princípios, pelo significado e pelo culto da história do símbolo que nos unia. Num tempo em que a amizade e a integração num grupo com regras próprias estabelecidas, eram fundamentais para a formação de qualquer um de nós, até porque o tempo que se passava em casa era quase nenhum, em virtude de, ou estarmos na escola ou estarmos na rua a jogar à bola. Sentíamos necessidade de nos relacionarmos. Num tempo em que não havia computadores, nem play-stations, nem Internet, nem tecnologia alguma que só contribui para o isolamento ou para relacionamentos virtuais que nunca possibilitarão o desenvolvimento de laços de amor ou de irmandade existente entre um grupo de crianças que só unidas poderiam crescer e enfrentar as dificuldades dum mundo muito complicado. Um mundo que nos acorrenta e nos força a seguir o caminho de ideologias e normas sobre as quais ninguém nos explica o porquê de ter de ser assim. Apenas dizem que tem de ser assim. E nós fomo-nos fechando, fomos apertando cada vez mais o nosso círculo. Nós que…só nos tínhamos a nós!... Nós… que acabávamos os trabalhos de casa à pressa, para irmos jogar à bola para a rua. … Que estávamos sujeitos à regra de guarda-redes rotativo ou “alguém quer ir à baliza?”. … ”Marcar golo de pontapé de saída vale?” “Vale!” Valia tudo!... … Quando se escolhiam as equipas, se éramos escolhidos primeiro sentíamo-nos os mais fortes, os mais importantes. … O último a ser escolhido estava seguramente destinado a ir para a baliza.

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…Tínhamos uma alcunha passível de ser infamante mas, no entanto, não ficávamos ofendidos. … Mudava aos cinco e acabava aos dez.

… Enquanto fingíamos não ouvir as nossas mães que nos chamavam quando chegava a hora de jantar, havia sempre algum que dizia “quem marcar ganha!”, apesar do resultado do jogo que provavelmente naquele momento era de 27-1. … Naquele tempo quem usasse ténis de marca sentia-se melhor jogador que o Maradona. … Conhecíamos o formato das bolas de couro porque as víamos apenas na televisão com hexágonos brancos e pretos. … Percebíamos o porquê dos equipamentos alternativos quando a televisão, ainda a preto e branco, transmitia MILAN-INTER. … Não nos podíamos sentar em cima da bola, porque esta ficava oval.

… O proprietário da bola tinha que jogar sempre mesmo que não prestasse sequer para ir para a baliza.

… Mesmo com a baliza feita com duas pedras, sem traves ou postes, não precisávamos de imagens, ou repetições, para percebermos se a bola entrou. Golos ou penalties, chegávamos sempre a um entendimento. … Ao terceiro canto era penalty. … Penalty em lance que é golo…é golo! … ”São número ímpar, posso entrar?”, “Não sei. A bola não é minha.” (no caso do pretendente ser um mau jogador). … ”Posso entrar?”,”Sim. Basta que arranjes mais um, não pode ficar uma equipa com um a mais.” … Reconhecíamos os jogadores no campo ou na televisão mesmo sem os nomes escritos nas camisolas.

… O número 1 era o guarda-redes, o 2 e o 3 eram os defesas-laterais, o 4 e o 5 eram os centrais, o 6 era o “trinco”, o 7 era o ponta direita, o 8 era o médio centro, o 9 era o ponta de lança, o 11 era o ponta esquerda e o nº 10 era o médio centro com a braçadeira de capitão porque era obviamente o melhor jogador. … Para que um jogador naquele tempo fosse convocado para a selecção tinha que fazer 2 ou 3 épocas de alto nível. … Havia 2 estrangeiros por equipa e conhecíamo-los a todos. … Dormíamos com a caderneta de cromos debaixo da almofada. … Quando abríamos as carteiras de cromos, rezávamos para que não nos saíssem 3 ou 4 repetidos do “PILONI”, o mítico guarda-redes da “juventus” que nunca jogou um jogo por causa do “ZOFF”. … Futebol na televisão, só ao domingo e à quarta-feira.

… No programa “Domenica Sportiva” víamos todos os resumos do futebol, o resumo do grande prémio de fórmula 1 e dois ou três resumos das outras modalidades sem ter de estar a aturar horas de conversa de merda para poder ver 4 golos.

… Íamos ter com a amiga de coração daquela por quem estávamos apaixonados e pedíamos-lhe “pergunta à Maria se quer namorar comigo”, no dia seguinte quando ela voltava, dava sempre a mesma resposta “Ela disse que tem que pensar.”. … A Maria, ainda hoje, continua a pensar. … Nunca falhávamos aos encontros, mesmo sem telemóveis. … Hoje vivemos longe mas, quando saímos de casa e dobramos a primeira esquina, estamos sempre à espera de encontrar uma bola de futebol. … Hoje vivemos longe mas, quando saímos de casa e dobramos a primeira esquina, estamos sempre

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à espera de encontrar um de nós!... Já na adolescência, todos os nossos hábitos sofreram alterações em virtude da mudança de estádio, a que o Torino se sujeitou uma vez mais. Devido à realização do mundial Italia 90, foi construído o “Stadio Delle Alpi”, o “estádio sem alma” como depressa foi apelidado porque nem nos agradava a nós, nem aos “gobbi”. Foi mais um duro golpe na nossa atribulada história, acrescentado ao facto de nessa época precedente, a de 89/90, termos sentido a frustração de nos arrastarmos pela série B, da qual sairíamos imediatamente e voltaríamos a disputar a série A agora numa casa nova, partilhada outra vez e vazia de recordações para ambos os clubes que a partilhavam. Outro defeito enorme que teve o “Delle Alpi” consistiu na sua localização fora da cidade que nada tinha a ver com a proximidade quer do “Fila”, quer do “Comunale” tendo esta mudança provocado um efeito devastador em pessoas como o meu pai, que a partir daquela época se deslocavam ao estádio apenas para ver os jogos contra a “juve”, ou algum jogo a contar para as taças europeias, como se verificou sobretudo no mágico ano de 1992, o ano da final da taça U.E.F.A contra o AJAX, que curiosamente foi o jogo que registou a maior afluência da história do futebol em Turim. O record mantém-se em 65.000 espectadores desde essa noite. Foi essa a maior vitória que tivemos naquele estádio…

Não era fácil para os mais antigos conseguirem resistir a duas mudanças de “casa”.Uma vez mais teríamos de partilhar o estádio com os “gobbi”. Teríamos de defender a nossa história à sombra dos interesses de quem comandava os rivais.

Tinha chegado a nossa hora. Éramos uma nova geração que respondia ao chamamento do local mais mágico e sagrado dos estádios…a curva! Os nossos pais iam com menos frequência ao estádio. Tínhamos então cerca de 15 anos e o nosso bairro tornava-se cada vez mais pequeno. Haviam outros sítios para descobrir…haviam outras pessoas para conhecer, haviam outras pessoas que, como nós, amavam o “Toro e que frequentavam a “Curva Maratona” que seria a partir daí a nossa segunda casa. Todos adolescentes, todos habitantes do mesmo “quartiere”, todos amigos desde o berço, todos com o mesmo pensamento, todos com o mesmo código de relacionamento, todos com a mesma paixão, todos unidos!

Alterámos todos os nossos hábitos e mentalidade. Era um mundo novo. Era um conjunto de cerca de 10 000 pessoas, divididas em 4 ou 5 grupos principais, alguns grupos mais pequenos e “cani sciolti”. Toda esta gente, não obstante a mentalidade própria de cada grupo que obedecia a hierarquias, a regras e a códigos de conduta por eles próprios estabelecidos, ensinaram-nos a beleza da harmonia que é possível apenas na “curva” independentemente de todos os aspectos pessoais de cada indivíduo que a componha. A “Curva Maratona” será sempre para nós o paraíso possível dentro da amargura orgásmica de um amor amaldiçoado… “…– Ultima chamada para o voo 7425 Lisboa – Madrid…”

– Distraí-me...Adeus linda Lisboa! Adeus Portugal! Espero cá voltar para ver o Sporting…não sei quando…espero voltar cá…espero voltar a ver-te…Beth...

Entrei no avião e sentei-me junto a uma janela do lado direito porque ele estava praticamente vazio. Passei os olhos pelo jornal que tinha comprado…”a bola”…a entrevista de Mazzolla…Superga… fechei

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o jornal para impedir o avivar dos meus pesadelos de criança…fechei os olhos e surgiu a imagem da Beth para me aliviar, misturada com as memórias das tardes que passámos. Uma sequência de imagens que se empurravam entre elas como que a disputar o título de “qual a melhor?”. Recordações do mesmo contexto com cenários e figurinos diferentes…dum fogo que me queimou o coração… “– Atenção senhores passageiros, preparar para descolar!”… A voz do comandante fez-se ouvir no mesmo instante em que abri os olhos e vi dirigir-se a mim uma hospedeira com um cesto de rebuçados que me ofereceu. Eu recusei e agradeci. Ela esboçou um sorriso por me ver “falar” com as mãos. O seu sorriso era tão lindo e cristalino que transmitia uma confiança que fazia com que o meu coração batesse mais devagar e me fizesse sentir que a viagem correria bem. Virei a face para a janela para acompanhar o descolar do avião. No momento em que levantou voo, tentei a todo custo um enquadramento que me permitisse despedir visualmente do estádio – casa da paixão que manterei para toda a vida, mesmo estando longe… Continuarei a acompanhar e a “tifare”pelo Sporting. Ficarei feliz com as suas vitórias e espalharei esta fé verde e branca em que me envolvi, que foi a minha amante enquanto estive longe do “Toro. Não consegui avistar o estádio…também não o consegui ver de dentro do avião quando havia chegado seis anos antes…

Cheguei a Lisboa em Novembro de 1999. Vim para o curso de Ciência Política e Relações Internacionais no âmbito do programa Erasmus. Tinha umas noções básicas da língua, da cultura e dos costumes portugueses. Conhecia um pouco da história mais recente de Portugal, porque me havia informado, bem como dos gloriosos séculos XV e XVI, o período dourado dos descobrimentos portugueses. Para além disto sabia que produziam bom vinho, bom azeite e eram afortunados por beneficiarem de condições climatéricas invejáveis por toda a Europa. O assunto sobre o qual eu dispunha de mais amplos conhecimentos era somente sobre o futebol português. Isto graças ao historial dos três emblemas de maior prestígio em Portugal e também ao Boavista, porque o defrontámos e o eliminámos nos dezasseis avos de final com empate 0-0 em Portugal e vitória 2-0 em Turim na mágica época 91/92. Achava engraçado o xadrez da camisola, era original e por isso nunca mais me esqueci. O conhecimento adquirido sobre o futebol forasteiro em geral é consequência lógica da necessidade de informação de que padecem os verdadeiros amantes do futebol espalhados por todo o mundo. Quanto mais não seja pela eventualidade de alguma vez defrontarmos essas equipas e estarmos preparados quer no campo, quer na bancada, para tudo o que possa acontecer. Acontece que, por motivos históricos, criei em mim uma total indiferença quer pelo Porto, quer pelo Benfica. A explicação resume-se ao facto de ter visto a Juventus vencer o Porto na final da taça das taças disputada em Basileia em 84 e mais tarde a mesma Juventus ter eliminado o Benfica na Coppa UEFA em 93. Não posso ter simpatia por clubes estrangeiros que não batam a Juventus! E por sorte viria a constatar que o Benfica é de facto a Juventus de Portugal estabelecendo a comparação entre os adeptos. Situação inversa passou-se com o Sporting, que em dois jogos “amigáveis” (contra a juventus nunca se pode chamar amigável), bateu os “gobbi”, em Lisboa e em Turim pelo mesmo resultado de 1-0. São estas as marcas que ficam num verdadeiro apaixonado antijuve. Desde esses anos de 94 e 95 que passei a ter uma preferência em Portugal…o Sporting.

Outro motivo que pesava bastante, relacionava-se com a tragédia de Superga onde indirectamente esteve na sua história o nome do Benfica presente, pois foi no regresso de um jogo de “despedida” disputado no estádio do Jamor, entre a equipa de Lisboa e o Grande Torino, que ocorreu a tragédia. O jogo havia sido combinado num restaurante em Génova, após um encontro entre as selecções de Italia e

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Portugal, no qual estavam presentes o capitão Valentino Mazzolla que aceitou o convite de Francisco Ferreira que faria o jogo da sua despedida dos relvados, pretendendo fazê-lo contra aquela que considerava a melhor equipa do mundo…e de facto era! O Grande Torino jogaria em Lisboa contra a equipa de Francisco Ferreira…e do taxista que me trouxe ao aeroporto…pela ultima vez…

Todos estes factores determinaram seguramente a minha opção.

Fui conseguindo as informações possíveis, visto que era muito difícil poder visionar ou obter alguma informação sobre o futebol português. As únicas fontes eram os jornais ou revistas sobre futebol que conseguia adquirir em Itália, e assim todas as segundas-feiras procurava na página de futebol estrangeiro da “gazzetta dello sport”, quais os resultados dos clubes que apreciava. Para além do Sporting, gostava do Hamburgo pelo facto de ter vencido a “Juventus” em 83 na final da Coppa Campioni (grande Magath!).

Festejei ainda em 98 o golo de Mijatovic, que deu a Coppa Campioni ao Real Madrid contra a Juve…não pelo Real Madrid que tem uma história de “estranhas conquistas” nacionais muito semelhante à dos “gobbi”…mas apenas pelo facto de ser menos uma Coppa para aqueles.

Com o passar do tempo e com a minha incessante busca de conhecimento sobre as equipas por quem nutro especial simpatia, pude ainda descobrir que ambos, Torino e Sporting, têm o mesmo ano de fundação ainda que essa tenha tido uma história diferente. O FC TORINO foi fundado por 23 sócios que se reuniam na “Birreria Voigt”, o actual “Bar Norman” na via Pietro Micca. Teve como primeiro presidente, um suíço, Hans Schoenbrod, e após cinco ou seis mudanças de presidente e atravessando os anos da 1ª Guerra Mundial, surge nos anos 20 o conde Maroso Cinzano que consegue lançar o Torino na sua primeira conquista. Uma curiosidade, na medida em que a génese do Sporting está ligada a uma figura com título de Visconde. Outra semelhança que me parece interessante prende-se com o facto de os anos 40 terem sido os anos dourados de ambos, visto que arrasaram em conquistas de campeonatos nos respectivos países. “Grande Torino” e “Cinco Violinos”. Pena foi que naqueles tempos não se disputassem competições europeias. Certamente que o “Toro” e o Sporting se haviam encontrado e teriam com certeza o palmarés bem mais recheado…aguardemos por dias melhores …”Apres a la neuit a-i ven `l dí”… (Depois da noite retorna o dia) …como o meu pai costuma dizer em dialecto “piemontese”.

Era muita coincidência aliada à distância temporal em que ambos havíamos celebrado a última vitória nos correspondentes campeonatos. O meu clube em Portugal só podia ser o Sporting!

Na verdade, a simpatia pelo Sporting foi factor determinante para a minha escolha académica ser Lisboa em detrimento das opções Praga ou Estocolmo. Sem dúvida que a língua também pesou na decisão, porque apesar de a não conhecer, seria sempre mais fácil por ser latina. Assumi assim um compromisso que ocuparia alguns anos da minha vida e estava consciente que não seria fácil estar longe da minha realidade, da minha cultura, daqueles que amo. O futebol ajudar-me-ia a superar a saudade que me invadisse, julgava eu… Chegado a Lisboa fiquei a residir, durante os primeiros tempos, num apartamento situado na Álvares Cabral, avenida no coração da cidade, cujo espaço era partilhado com outros três estudantes universitários que tal como eu eram estrangeiros. Uma era de origem belga, de Mouscron, chamava-se Mélanie e era tríbade. Foi o que soube dela enquanto partilhámos o apartamento porque raramente nos encontrávamos. Os outros dois eram um casal alemão, a Jenni e o Bastian, que todo o tempo que tinha disponível era passado a foder, como se o mundo acabasse no dia seguinte. Estávamos assim distribuídos

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pelos três quartos que possuía aquela habitação. Foi um mês bizarro porque de noite era impossível dormir devido a toda a chinfrineira que se fazia sentir, fosse pelo volume da televisão ou da aparelhagem ou pela risada, gritaria, suspiros e gemidos que vinham do quarto dos alemães. De dia era difícil pelo ressoar das buzinas e o barulho dos motores constante naquela importante artéria da cidade. Os primeiros dias foram passados a girar, para me familiarizar com a capital que me acolheria nos tempos que vinham. Como não podia deixar de ser, o Estádio José de Alvalade foi dos primeiros sítios a receber a minha visita. Fiquei surpreendido com o imenso número de estádios e campos de futebol pertencentes a equipas profissionais que Lisboa consegue reunir. Mais surpreendido ficaria quando me apercebi que apenas duas equipas têm adeptos (Sporting e Benfica), e uma terceira (os Belenenses) com alguns, porém incomparável à grandeza dessas. A princípio julguei que todos esses campos fossem pertença de clubes vocacionados para a formação de jovens jogadores, mais tarde vim a constatar que são também clubes profissionais com a particularidade de toda a gente que os compõe, desde dirigentes, passando por funcionários, atletas, até aos “possíveis adeptos”, serem de facto adeptos dos dois grandes de Lisboa. Era caricato para mim. Passou a ser ridículo quando descobri que se estendia a todo o país, onde havia apenas mais um clube com elevado número de adeptos reais. O ponto máximo da minha incredulidade foi atingido quando me deparei com o seguinte esquema que esbocei mentalmente, quando estabeleci a comparação, número de equipas profissionais versus proporções populacionais: ITALIA PORTUGAL 57 Milhões de habitantes 11 Milhões de habitantes Serie A – 18 equipas I Liga – 18 equipas Serie B – 20 equipas II Liga – 18 equipas Serie C1 – Girone A – 18 equipas Girone B – 18 equipas II Divisão B – Zona Norte – 18 equipas Zona Centro – 20 equipas Zona Sul – 20 equipas Série C2 – Girone A – 18 equipas Girone B – 18 equipas Girone C – 18 equipas III Divisão – Série A – 18 equipas Série B – 18 equipas Série C – 18 equipas Série D – 18 equipas Série E – 18 equipas Série F – 18 equipas

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Série Açores – 10 equipas TOTAL – 128 equipas TOTAL – 212 equipas Era estranho, era tudo muito estranho…sobretudo pela constatação de que os adeptos em Portugal se dividiam apenas por 3 equipas…

Outra particularidade diferente da realidade italiana prendia-se com o facto dos clubes de futebol portugueses disputarem toda uma série de diversas modalidades desportivas, às quais chamam de modalidades amadoras e de terem sócios que pagavam uma quota mensal para além de pagarem ingressos para assistir a qualquer modalidade do clube.

O primeiro jogo de futebol que poderia ter visto quando cheguei, era um jogo a contar para a taça de Portugal. O Sporting deslocava-se ao norte para defrontar uma equipa de um escalão inferior. Não fui porque não falava bem o português, não sabia onde se situava a localidade de Canelas, não fazia a mais pequena ideia da sua distância por não ter qualquer referência geográfica, e também por não conhecer suficientemente bem a forma de me deslocar. Precisava de um pouco mais de tempo para perceber como era a vida em Portugal, e aquele jogo também não era importante ao ponto de justificar uma aventura minha. Tinha chegado havia três dias. Tinha uma quantidade enorme de assuntos para começar a resolver no dia seguinte, relacionados com a minha permanência no país e com a minha condição de estudante.

O meu primeiro dia de curso foi 16 de Novembro. Frequentei a Universidade Nova integrado num grupo de estudantes das mais diversas nacionalidades europeias e alguns sul-americanos. Pouco ou nada se interessavam por futebol e isso fez com que o meu relacionamento com eles fosse estritamente académico. Comunicávamos em inglês. Sempre que possível despendia algum tempo a desenvolver o conhecimento da língua portuguesa para mais facilmente poder comunicar no exterior. As primeiras semanas foram de grande exigência. 21 de Novembro de 1999. A data do primeiro jogou que presenciei “in loco” em Portugal. O Sporting jogava em Lisboa, no estádio do Restelo que tinha visitado no passeio de reconhecimento e com o qual ficara deliciado com a vista exterior que era proporcionada das bancadas. Foi sem dúvida um belo início acrescentado à vitória por 1-0. Vi o jogo numa perspectiva de análise ao comportamento dos adeptos … sentado do lado direito do sector visitante, que ocupava toda a curva norte. Estive até um pouco alheio ao que acontecia no relvado, na tentativa de tentar compreender uma série de coisas que via e que ouvia… e que eram estranhas. Inicialmente não compreendi o porquê da claque ser apenas um aglomerado de 300 ou 400 elementos, que representavam 10 % dos espectadores ligados ao Sporting que se encontravam na curva, por ser uma situação inversa à da realidade italiana. Outro aspecto estranho para mim foi sem dúvida o de, quase, não cantarem. O apoio era feito com base em palavras de ordem gritadas. Não havia comando vocal. Quem quisesse lançava o incentivo e por vezes acontecia que se atropelavam dois ou

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três apoios vocais diferentes. Tambores não haviam…estandartes também não e as 3 ou 4 bandeiras médias foram agitadas somente aquando da entrada da equipa, no golo que aconteceu felizmente, e depois no final da partida. Reparei também na forma folclórica de se vestirem que me parecia exagerada em determinados casos. Vi pela primeira vez na minha vida pessoas usarem 6 ou 7 “sciarpe”( pensei na altura que fosse para que não restassem dúvidas de que clube eram adeptos), atadas a tudo o que é membro do corpo e também à cabeça. Esta última condição parecia-me ridícula. Faziam lembrar o personagem do cinema “Rambo”.

Senti um desencanto quando regressava a casa, enquanto pensava naquilo que tinha visto. Pouco calor, pouco movimento na bancada e nenhuma organização…o adversário não tinha apoio, mesmo a jogar em casa…custava-me a acreditar que um jogo entre equipas da mesma cidade, um derby, levasse apenas 10 000 pessoas ao estádio…o que jogava em casa parecia que estava a jogar fora e vice-versa...era tudo muito frio…muito distante…pouca paixão…

No dia seguinte comprei o jornal para tentar compreender mais daquilo que acontecia, da diferente realidade que agora vivia, e também para desenvolver o meu português.

Apercebi-me que o clube estava num período de transformação, porque a direcção tinha sido substituída, bem como o treinador, pouco tempo antes, vítimas de maus resultados aliados ao facto da claque estar de costas voltadas à direcção, o que fez com que originasse uma onda de insatisfação geral.

Continuava tudo a parecer estranho. Por um lado tinha visto no dia anterior uma passividade ou mesmo inexistência de “tifo”, por outro lado deparei-me com um acontecimento bem recente que chocava com os juízos que fiz logo após o meu primeiro contacto estabelecido com o ambiente da “curva”…que, ao contrário do que pensava, provavelmente teria algum poder.

Iniciei investigações através da consulta de jornais desportivos dos meses anteriores, para poder identificar os nomes de todas as pessoas como auxílio ao estabelecimento da relação que me conduzisse à compreensão efectiva do que havia sucedido.

No fim-de-semana seguinte fui pela primeira vez ver o Sporting jogar em casa contra a União de Leiria. Precisava de conhecer alguém da claque para facilitar a minha integração e para ouvir a explicação das ocorrências dos meses anteriores, que aos olhos da claque seriam por certo diferentes das interpretações jornalísticas.

Cheguei ao estádio e dei uma volta de reconhecimento. É óptimo sentir o ambiente do exterior do estádio antes dos jogos. Ainda assim era diferente daquilo a que estava habituado. Estava tudo muito tranquilo, não havia qualquer tipo de tensão, ninguém esperava os adeptos adversários (viria a perceber mais tarde que só 3 ou 4 equipas têm numero suficiente de adeptos que se façam notar nos jogos fora), apenas um vaivém constante de pessoas que por certo se dirigiam às respectivas entradas ou bilheteiras.

Entrei cedo no estádio. As portas abriram duas horas antes, diferente de Itália, não havia cultura de entrar cedo. O estádio esteve praticamente deserto até meia – hora antes do jogo e conseguiu ter uma assistência de apenas cerca de 20.000 espectadores...um clube que luta eternamente pelo título e que se pode orgulhar de ter 3 milhões de adeptos…era difícil de entender.

Enquanto o jogo não começou, estive a observar com atenção todas as movimentações da suposta organização da claque na bancada Sul. As pessoas chegavam e ocupavam os lugares aleatoriamente. Não existia uma hierarquia de bancada como existia nas “curve” italianas. Para mim era impensável ver pessoas com menos de 30 anos nas filas da frente. Percebi depois que se devia ao facto de quase não existirem pessoas com mais de 30 anos…era estranho…

Vi então entrar na “curva” um jovem que conhecia da Universidade e com quem já me tinha cruzado e o qual havia saudado algumas vezes e de imediato me posicionei para que me visse, e assim aconteceu. Ele decidiu ver o jogo ao meu lado e quando este acabou com a vitória do Sporting por 2-0 e depois de

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mais um apoio medíocre, idêntico ao da semana anterior, saímos do estádio e trocámos impressões enquanto nos dirigíamos à estação de metro onde nos despedimos e combinámos encontro na Universidade já que poderia ser ele a minha porta de acesso aos segredos da bancada Sul.

Eu não percebia nada do que via na bancada do Sporting… era tudo tão diferente do que eu estava habituado. Teria de entender a organização futebolística portuguesa que, certamente, condicionaria os métodos, as directrizes e consequentemente a identidade da claque. Tinha muita pesquisa pela frente, dificultada pelo meu fraco conhecimento da língua portuguesa que fui desenvolvendo paralelamente às lições a que assistia na Universidade, mas que ao fim de quatro meses transformou-se em perfeitamente inteligível apesar de sofrivelmente falada por mim. Segunda-feira, 29 de Novembro. Tal como tinha sido combinado, encontrei-me na Universidade com o Luís que frequentava o curso de História da Arte. Na sequência da conversa que tínhamos iniciado no sábado anterior, alertou-me para que acalmasse as minhas expectativas relativamente ao que procurava em Portugal, nas claques, que não se podia estabelecer uma comparação com Itália à luz de uma perspectiva “Ultras”, porque havia uma enorme falta de cultura nessa matéria. Ele sabia do que falava porque possuía um vasto conhecimento sobre todos os fenómenos de adeptos ligados aos clubes dos diversos países espalhados pela Europa e América do Sul como ficou comprovado na primeira troca de impressões que tivemos dias antes. Fiquei surpreendido com a sua cultura e mentalidade que, segundo ele, era uma exclusividade de apenas cinco ou seis pessoas ligadas à claque do Sporting, abstendo-se de se pronunciar sobre as claques de outros clubes pelo facto de não conhecer pessoalmente ninguém pertencente a essas e nem querer conhecer. É uma condição lógica da filosofia Ultras na qual ele se revia e com a qual se identificava e por esse motivo viajava muitas vezes até Itália para presenciar alguns jogos “quentes” em diferentes estádios mas particularmente em Firenze em virtude do conhecidíssimo “gemmellagio” existente entre a claque do Sporting e o Grupo Settebello da Fiorentina.

Até nesta questão havia a coincidência do não menos internacionalmente conhecido e antigo “gemmellagio” existente entre o Torino e a Fiorentina, consequência do ódio comum denominado Juventus.

Partilhámos histórias vividas em Itália até que virámos definitivamente o discurso para Portugal, como de facto me interessava.

Explicou-me em traços gerais a origem da primeira claque surgida em Portugal que tinha sido precisamente a do Sporting. A claque do Sporting, segundo ele, não tem uma data precisa de fundação. Estima-se que os primeiros ajuntamentos datem de 1976 ainda que para acompanhar jogos das tais modalidades amadoras, mais especificamente uma excursão para um jogo de Hóquei em Patins. O apoio no pavilhão do Sporting estava muito em voga naquela época condicionado pelas excelentes equipas que o clube dispunha em todas essas modalidades que espalhavam categoria e coleccionavam títulos atrás de títulos nacionais e internacionais. Apenas na década de 80 teve de facto inicio e se intensificou o apoio no futebol que era caracterizado por um estilo manifestamente brasileiro em que eram sobretudo utilizadas bandeiras gigantes, confetis, rolos de papel higiénico e o apoio vocal baseava-se em palavras de ordem gritadas ou melodias simples. Eram espectáculos de efeito notório, criados graças à grande capacidade financeira e logística de que os líderes dispunham, mas nunca conseguiram atingir uma dimensão grandiosa por estarem confinados a um pequeno sector de bancada e também por aparecerem em força apenas em jogos chamados “grandes”, contra os dois principais rivais, ou em noites de competições europeias e nos jogos fora a sua presença não era notada. Foi a primeira geração da claque.

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No final da década de 80, início da de 90, aconteceu a mudança de sector que a claque ocupava no estádio, bem como a mudança de liderança, forçada pelo abandono daqueles que compunham essa geração inicial, a única dinastia existente, o que influenciou decisivamente o rumo e o estilo da claque.

Um “golpe militar” que intimidou e afastou a provisória estrutura dirigente, em funções nesse início de década, levou ao poder o chefe que se mantinha na liderança da claque desde então.

Os anos 90 foram marcados pelo “tifo alla italiana” implantado na bancada sul pela nova geração que surgira e que crescera a acompanhar o desenvolvimento do panorama italiano, adquirindo ou trocando, através de envio pelo correio, material áudio e vídeo bem como peças de roupa identificativa com correspondentes estrangeiros e lendo a revista “Supertifo”. Não havia Internet. Importaram resíduos do movimento “Ultras”, baseado nas receitas que liam e no que lhes contavam os correspondentes, mas faltou sempre a essência que corre no sangue das curvas italianas, o paladar, o perfume, o arrepio sentido. É uma situação semelhante à dos restaurantes ditos italianos que proliferam em Portugal cujo cozinheiro é português ou brasileiro. Mas, ainda que de forma incompleta, a isso se deve o crescimento e a institucionalização das claques no seio dos clubes portugueses.

O futebol português foi apanhado de surpresa por este novo fenómeno para o qual não estava preparado. O policiamento era praticamente inexistente e os estádios, que não eram divididos por sectores, não tinham fiscalização capaz de impedir as pretensões desses numerosos grupos que iam desde o não pagar bilhete, passando por fazer entrar nos estádios qualquer tipo de objecto que pretendessem até ao fácil envolvimento em situações de violência com adeptos adversários motivadas pela inexistência de separadores. Até mesmo os dirigentes e os restantes adeptos dos clubes tinham alguma dificuldade em entender esta realidade.

De salientar ainda nesse período de início dos anos 90 que, pela primeira vez em Portugal, surgiu simbologia política nas bancadas, no caso do Sporting, ligada à extrema-direita e a partir daí assistiu-se a um surgimento e renovação constante de elementos na claque seguidores dessa linha política.

Por outro lado verificava-se a agregação de indivíduos provenientes de bairros sociais de zonas desfavorecidas dos subúrbios da capital, trazidos por 3 ou 4 elementos que assumiam também eles um papel de importância no seio da claque, sobretudo nos jogos de mais importância, por serem o rosto visível nos confrontos violentos contra a recém formada claque do arqui-rival. Alguns desses eram recrutados especificamente para esses encontros apenas por serem temidos pelo seu historial criminal já que na maioria dos casos não se tratavam sequer de adeptos do Sporting. Nos finais da década de 90, essa facção enfraqueceu e até quase desapareceu devido à detenção do Nuno, o seu elemento mais importante, por motivos não relacionados com futebol (Assalto com arma de fogo).

A claque sofria com os insucessos do clube, que se arrastavam, havia quase duas décadas e sentia, melhor que ninguém, o desencanto e a indiferença dos adeptos tendo como indicadores o fraco número de elementos com que se fazia representar nos jogos fora e o índice de adeptos residentes nas cidades distantes onde o clube jogava que escasseava cada vez mais tornando-se preocupante. Depois desta introdução questionei o Luís sobre as ocorrências que levaram à revolução que o clube vivia tendo ele respondido na primeira pessoa por ter presenciado tudo.

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“Foi uma pré-época conturbada, motivada pela insegurança vivida causada pela contratação de mais um treinador sem currículo. Os adeptos levantavam muitas dúvidas apesar da excelente aquisição de um guarda-redes de calibre mundial, o melhor da história do clube, que seria a única conseguida por aquela estrutura dirigente que havia sido pela enésima vez reformulada e cujas relações com a claque continuavam azedas desde quando no ano anterior o presidente havia sido vaiado e insultado por elementos pertencentes a essa, na saída do estádio, após mais uma derrota europeia caseira contra o Bologna, uma equipa que tinha conseguido o acesso à Uefa através da Taça Intertoto que disputou por ter terminado na 8ª posição da classificação geral do seu país.

Vivia-se um clima de tensão no início de mais uma época que, para agravar a situação, começava com um empate no terreno de um neo-integrante da 1ª divisão, Santa Clara, e continuaria com uma vitória sofrível e tangencial em casa ante um modesto adversário, V. Setúbal. Três dias antes da data daquele que, para a claque, era um dos mais aguardados encontros, recebemos a comunicação de que mais uma vez seria adiada a reunião que vinha sendo prometida, pela SAD, desde o período da pré-época em meados de Julho. Ao nono dia do mês de Setembro tivemos conhecimento por intermédio de alguém com determinada importância na direcção do clube que um dos objectivos dos responsáveis pela SAD seria o de extinguir a claque, já que, segundo essa fonte, éramos a única força com capacidade para pôr em causa as intenções dos dirigentes, porque a maioria dos sócios do clube viviam hipnotizados e adormecidos com a treta da gestão credível e a minúscula oposição era dominada e silenciada pela tríade que geria (mal) o futebol profissional e era comparticipada pela comunicação social que não podia morder a mão a quem lhe dá de comer.

Estava tudo contra nós…Nos dois dias seguintes sucederam uma verdadeira chuva de telefonemas como também vários encontros para que fosse passada a mensagem de que queriam acabar com a claque. Abateu-se sobre nós o desencanto por um lado, mas por outro até seria engraçado entrar naquela guerra-fria e mostrar a todos de uma vez por todas quem de facto sente e ama o Sporting sem qualquer interesse secundário. Gritaríamos bem alto contra tudo e contra todos…o Sporting somos nós!!!

12 de Setembro de 1999, 10 horas da manhã, 70 homens aguardavam ansiosamente em frente ao estádio a sucessão de rituais que era repetida todos os dias em que jogava o “mágico”, que começava com uns copos bebidos na tasca em frente, seguido da saída do autocarro que, desta vez, nos conduziria à cidade mais a Sul da 1ª Divisão do futebol português. Durante o percurso até Faro, o conflito com a SAD (Sociedade dos Amigos da Derrota ou Sociedade dos Amigos do Dinheiro) era o único tema de

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conversa. Chegou-se às mais diversas conclusões, no somatório do este que conhece aquele e que ouviu o outro: O presidente do Clube não percebia nada, nem queria perceber, de futebol ou de desporto, concentrando o seu campo de acção apenas em negócios e questões financeiras. Os responsáveis pela SAD nem sempre acompanhavam a equipa nos jogos fora, inventando as mais esfarrapadas desculpas, fazendo-se substituir por “notáveis” do clube que gostavam de ser vistos junto aos jogadores. Alguns desses notáveis faziam vida disso na televisão, mas nunca contribuíram em nada para o engrandecimento do clube, bem pelo contrário. Vivem num constante jogo de cintura um dia dizendo e outro desdizendo apenas para agradar a quem comanda o clube para não perderem o estatuto de “notáveis”. O único empresário negociante de “carne humana” ligado à SAD comprava e vendia quem queria sem pensar no clube mas sim no seu bolso, aproveitando uma guerra existente entre o clube, que a queria evitar, e cerca de 1 dezena de, também, “vendedores de carne humana”. O nosso clube era gerido por um grupo de “amigos”, unidos por interesses comuns (os próprios interesses) em que iam sendo “eliminados” aqueles que pensassem o clube noutra perspectiva que não a deles. Por fim concluímos que naquela direcção ninguém tinha o mínimo conhecimento sobre futebol nem amor pelo Sporting e o nosso clube preparava-se para mais um ano de fracasso, sendo o último da meta proposta pelo Presidente no início do seu mandato quando proclamou aos sete ventos que o clube seria um dos “mais fortes da Europa” e mais areia para os olhos deste género.

Chegados a Faro depois das habituais “paragens para abastecimento” e de 5 cansativas e infernais horas de viagem fomos de imediato recebidos por um numeroso grupo de companheiros nossos que tinham optado pela deslocação em viaturas próprias e com os quais iniciámos a comemoração do regresso àquela cidade que tantas recordações nos trazia. Essa era a fase de refrescar as gargantas para que pudéssemos depois tirar o máximo proveito da sua condição ideal. Era uma espécie de cruzada leonina feita apenas por nós, todos os domingos, à qual também aderiu a gente sportinguista do Algarve. Depois de termos passado a tarde inteira a “mamar” (fazia também parte do ritual) dirigimo-nos às bilheteiras do estádio para adquirir o ingresso que custava … 5 contos! 5 mil escudos para ver um jogo num estádio sem casas de banho, com uma porta apenas, sem bar e com um policiamento situado junto à entrada que apelando constantemente à calma conseguia provocar o efeito contrário e que depois agredia quem estivesse na sua frente (que normalmente eram aqueles parvos que viam bola no estádio 1 vez por ano). Nós entrávamos sempre depois de toda a gente, quando a situação acalmava, porque o nosso lugar era aquele que nós quiséssemos e ponto final. Já lá dentro a formalidade passava pela colocação do nosso símbolo, a nossa bandeira, a nossa faixa na rede e aí começou a confusão… O sector por nós escolhido tinha já colocada na rede uma faixa, bem como em toda a bancada, não havendo por isso espaço para a colocação da nossa. Decidimos retirar uma das várias que estavam expostas não fazendo a mínima ideia de que mensagem continha, colocando a nossa no local dessa. Passados alguns minutos alguns funcionários do Farense vieram para retirar a nossa faixa e recolocar a que anteriormente estava exposta e a partir daí foi o descalabro. Foram arrancadas por nós todas as faixas que estavam expostas pelo simples motivo de terem tentado tirar a nossa. Não haviam negociações possíveis e o motivo foi uma simples birra empolada pelo estado ébrio da maioria de nós. A partir daquele momento todos eram culpados e que não nos dissessem mais nada. Ninguém queria saber se as faixas transmitiam solidariedade para com a causa timorense ou se tinha sido a direcção do Farense em acordo com a Liga, ou até mesmo se havia envolvimento do Sporting nisso. Isso ainda seria pior porque nem queríamos ouvir falar em dirigentes nem em fantochadas extra-futebol por eles patrocinadas…se nós não colocávamos a nossa faixa, mais ninguém colocaria o que quer que fosse!

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As três equipas entraram em campo ostentando uma faixa na qual pretendiam demonstrar a sua solidariedade para com o mártir povo maubere e teve início o minuto de silêncio em memória das vítimas que não foi respeitado por alguns dos nossos elementos que simplesmente começaram a entoar “ A Portuguesa” e o trecho “Marcha Triunfal” da “Aida” de Verdi, simplesmente, porque estavam embriagados e rabugentos pelo episódio das faixas.

Nos dias seguintes fomos bombardeados pela imprensa que “pintou o quadro” de acordo com o interesse da Direcção do clube. Foi lamentável não só o que inventaram como também todas as acusações falsas “encomendadas” que nos foram dirigidas.

Nos jornais leram-se as coisas mais incríveis sobre o nosso comportamento: “de acordo com o que garantiu um elemento da PSP aos jornalistas, as faixas continham dizeres contra o povo timorense e pró – indonésia”, “Depois, esses mesmos elementos, em modos nitidamente neo-nazis, atacaram a bancada onde estavam os sócios do Farense, muitos deles apoiantes do Sporting.”, “ Na segunda parte, alguns elementos da claque decidiram sair da sua bancada e ir à bancada do topo sul desafiar os adeptos do Farense.”, “…de acordo com o que nos confidenciaram diversos espectadores que se encontravam naquela zona, invadiram a bancada munidos de facalhões.”,“ No entanto, são os clubes (no caso o Sporting) que dão cobertura a estas claques, autênticas organizações fascistas cuja propaganda política é a violência e o vandalismo nos estádios.”, etc. A verdade é que nenhum jornalista viu nada disto. Recorreram ao “segundo fontes”, “garantiram-nos” e “confidenciaram-nos” para tentar provar uma situação que não aconteceu. A imprensa desportiva (cor-de-rosa) portuguesa ajudou a criar uma tempestade num copo de água. O que aconteceu de facto foi o desrespeito pelo minuto de silêncio e a entrada na bancada adversária perpetrada apenas por 1 elemento nosso, tudo motivado pelo excesso de álcool, exibindo um canivete com três dedos de lâmina e não uma “espada samurai” como quiseram fazer crer, sem porém ter tido contacto com alguém e tendo sido de imediato detido pela polícia.

No final do jogo, com uma vitória por 3-0, regressámos normalmente a Lisboa com a certeza de que os dias que se seguiriam seriam problemáticos porque tínhamos conseguido enfurecer os dirigentes.

A imprensa estendeu o “folclore” durante alguns dias mantendo sempre o cenário dos elementos da claque serem “os maus da fita”, e a prova disso tivemo-la quando, na tentativa de podermos explicar o que de facto havia acontecido, fizemos chegar um comunicado de quatro páginas a todos os órgãos de imprensa escrita desportiva, inclusive o jornal do clube, dos quais apenas um (e não foi o jornal do clube) teve a dignidade de publicar uma pequena nota com 7 linhas na ultima página num dia em que a manchete dava conta de um inquérito disciplinar instaurado à claque pela direcção do clube, cessando dessa forma todos os apoios que até então haviam concedido.

A 14 de Setembro era declarada “guerra” pela direcção do clube ao decretar o encerramento e despejo da sede cedida à claque situada no varandim da bancada nova, no exterior do estádio, que havia funcionado durante largos anos como “quartel-general”, ainda que a sua utilidade não fosse mais que um mero armazém. Outra “arma” utilizada foi uma entrevista de um jogador do clube, que estava em alta na estima dos associados porque vinha rubricando óptimas “performances”, atribuindo-nos a culpa da instabilidade vivida pela equipa, e a responsabilidade pela insatisfação manifestada por alguns adeptos ao apuparem algumas opções, do contestado treinador, nos jogos disputados antes dessa data.

No rescaldo desses ataques perpetrados pelos dirigentes, decidimos também nós definir a estratégia que seria decidida numa reunião extraordinária marcada para a noite de 15 de Setembro, véspera de confronto europeu para o qual haviam viajado toda a equipa e a habitual comitiva de alguns “responsáveis”, que eram os mesmos notáveis do jogo anterior, entre os quais não figuravam, uma vez mais, o presidente e o vice-presidente da área do futebol. Para a reunião, que aconteceu na casa de um

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elemento carismático da claque, foram convocados apenas dez elementos: o chefe da claque, um individuo que habitualmente o acompanhava fazendo de motorista particular e dois elementos de cada um dos quatro núcleos mais representativos que passariam a mensagem do que fosse deliberado.

Desse encontro resultou que continuaríamos a apoiar incondicionalmente a equipa ainda que esta viesse jogando um futebol pobre, sendo a prova maior o facto de apesar de termos vencido por 3-0 no mais recente jogo disputado qualquer dos golos havia sido conseguido através de lances de “bola parada”. Em seguida ficou decidido que se tentaria o diálogo com a direcção do clube que até aí comunicava connosco através de “recados” deixados nos jornais, nunca se prestando para ouvir a nossa versão dos factos. Por fim, fazer sentir aos jogadores que o protesto não era contra eles porque no fim de contas eles não são culpados da sua incapacidade…culpado é quem os compra!!!

Para além de todas as decisões tomadas ficou bem vincada a ideia que não baixaríamos os braços, nunca, nesta dura batalha contra mentalidades retrógradas e manipuladas por gente muito poderosa, situação esta que se revelaria a principal condicionante dos acontecimentos nos dias que se seguiriam. Éramos poucos, estávamos sós, mas éramos muito bons…fomos aqueles que passaram a adolescência sem celebrar a conquista de um campeonato e que resistimos, por vezes em número de apenas trinta ou quarenta a arrastarmo-nos nas últimas jornadas pelo 4º e 5º lugar sem nunca abandonarmos a equipa nos jogos em casa ou nos jogos fora. 16 de Setembro de 1999… o Sporting deslocava-se a Stavanger na Noruega para defrontar a equipa local, o Viking. A claque não estava presente, pela primeira vez em largos anos, e sofremos 3-0 ante uma equipa que não constava sequer do ranking da UEFA, com a agravante de mais uma prestação deplorável, na qual o guarda-redes deles, mineiro de profissão, não efectuou uma única defesa digna de registo. Humilhados por uma equipa de futebolistas amadores, porém profissionais da indústria, construção civil, agro-pecuária e um professor.

Quando o jogo terminou foi convocada via telefone mais uma reunião de emergência para essa mesma noite na qual se decidiu esperar no aeroporto a chegada, prevista para as 3 da manhã, do avião que trazia a equipa e respectiva comitiva. Lá chegados, verificámos que houvera um atraso de 3 horas do voo proveniente da Noruega, passando a hora prevista de chegada para as 6 da manhã, contratempo que ainda assim não demoveu as três dezenas de homens que ocuparam as 5 horas de espera, divididos em pequenos grupos, transmitindo a todos os outros elementos todas as decisões tomadas no dia anterior, as possíveis consequências e a fantasiar sobre o futuro. Futuro que se apresentava negro com um presidente que não percebia e, mais grave, não gostava de futebol mas que se auto-intitulava o arauto da mudança, da transparência, da credibilidade e de outras anedotas deste género, rodeado de vários “yes man”, alguns desses com passagens estéreis por direcções anteriores, que não passavam de uma cambada de mercenários tal como os empresários que gravitavam em torno do clube chegando por vezes a terem mais poder nas decisões contratuais do que a entidade empregadora. Preocupava-nos sobretudo a passividade com que os sócios do clube estendiam a passadeira a esta gente que os “embriagava” com a ideia de um projecto anunciado que consistia na construção de um novo estádio e de um centro de estágio e formação, o que faria, segundo eles, com que num prazo de cinco anos fossemos um clube de topo na Europa (esta treta pega nos clubes de Lisboa). A nós parecia-nos óbvio que, após este investimento que seria brutal, teria de haver uma forma de retorno para suportar essa despesa e mais óbvia ainda era a questão do centro de formação servir de viveiro não para nosso beneficio, mas sim transformar o clube num Shopping Center dos clubes mais poderosos da Europa com quem nunca poderíamos competir em matéria de plataformas salariais e de quem nem nos poderíamos defender de eventuais aliciamentos aos atletas que, por nós, fossem “fabricados”. Na sequência desta constatação chegámos a lógica conclusão de que um clube para ser considerado de topo na Europa tem que forçosamente estar presente de forma constante

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