Câmara dos Deputados – CEFOR/DRH Curso de Direito Constitucional
TEXTO SUPLEMENTAR
PODER CONSTITUINTE E EMENDA CONSTITUCIONAL(*)
Nilson Matias de Santana
Nas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional é sempre acirrado o debate sobre a admissibilidade de determinadas propostas de emenda à Constituição. Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, órgão legislativo responsável por analisar a admissibilidade das emendas à Constituição, tanto da Câmara dos Deputados quanto no Senado, muitas vezes fica evidente a perplexidade dos parlamentares quanto aos limites implícitos à atuação do poder constituinte derivado.
Neste texto, faz-se breve esboço da teoria a respeito do poder constituinte, sua classificação e atributos, concluindo-se com uma reflexão sobre a impossibilidade de uma nova revisão constitucional tendo em vista o exaurimento do art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, tese sustentada por parte considerável da doutrina.
(*)
Adaptação de trecho de monografia apresentada pelo autor ao Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) como exigência parcial para conclusão do curso de Especialização em Direito Constitucional, Brasília, 2007.
O Poder Constituinte
Sempre que se fala em alterar o texto constitucional vem à tona a questão da teoria do Poder Constituinte, esse conceito-chave para a compreensão do constitucionalismo moderno.
Nesse sentido, é importante desde já recorrer a Canotilho para esclarecer:
O constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada
constituição moderna. Por constituição moderna entende-se a ordenação
sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. (CANOTILHO, 2003, p. 52).
A centralidade do conceito de poder constituinte para o constitucionalismo é evidente. Não é sem razão que Gomes Canotilho, ao tratar do tema, por meio de quatro perguntas fundamentais, afirma que é possível abordar de forma intuitiva as questões atinentes ao poder constituinte (CANOTILHO, 2003, p.65). Para o grande constitucionalista português essas perguntas são: 1. o que é poder constituinte? 2. quem é o titular desse poder? 3. qual o procedimento e forma do seu exercício? 3. existem ou não limites jurídicos e políticos quanto ao exercício desse poder?
A Teoria do Poder Constituinte nasceu na França. Foi concebida na época da Revolução Francesa pelo abade Emmanuel Sieyès (1748-1836), autor do livro Qu'est-ce que le tiers État? (O que é o terceiro estado?).
Segundo Carl SCHMIT, o poder constituinte é "la voluntad política, cuya fuerza o autoridad es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de la propria existencia política" ( SCHMIT, 1992, p. 86).
Celso Ribeiro Bastos define o poder constituinte como “aquele que põe em vigor, cria, ou mesmo constitui normas jurídicas de valor constitucional” (BASTOS, 1999 apud MIRANDA, 2004, p. 63).
Classificação e atributos
A quase totalidade da doutrina menciona duas modalidades de poder constituinte: o originário e o derivado.
O poder constituinte originário é aquele que possui a prerrogativa de elaboração de uma nova ordem constitucional. Apresenta três características principais: é inicial, autônomo e incondicionado.
Henrique Savonitti Miranda credita a inicialidade do poder constituinte ao seu caráter revolucionário (MIRANDA, 2004). Segundo ele, o surgimento do poder constituinte originário é marcado por uma ruptura com a ordem jurídica estabelecida anteriormente. A autonomia do poder constituinte decorre de que só depende de si para existir, não está sujeito ao arbítrio de nenhum outro poder. Por outro lado, é considerado incondicionado por não apresentar qualquer limitação de forma ou conteúdo.
Quanto a esse caráter de ser ilimitado, de não possuir limites, de ser um ente quase onipotente, Canotilho rejeita tal compreensão:
Desde logo, se o poder constituinte se destina a criar uma constituição concebida como organização e limitação do poder, não se vê como esta “vontade de constituição” pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como “vontade do povo”. Além disso, as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípios suprapositivos ou como princípios supralegais mas infra-jurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno (nacional, estadual) não pode, hoje, estar out da comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional (princípio da independência princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos). (CANOTILHO, 2003, p. 81)
Seria o caso, por exemplo, de uma Assembléia Constituinte que promulgasse uma Constituição que não contemplasse a separação de poderes, ou contivesse dispositivos contrários aos direitos e garantias fundamentais.
Na mesma linha de pensamento, ensina Nivaldo Saldanha:
Genericamente se fala que o Poder Constituinte, por sua própria definição, não obedece a limites de nenhum gênero. Todavia, devemos ressaltar que várias correntes doutrinárias vêm mitigando a rigidez desse entendimento. As correntes jusnaturalistas, por exemplo, indicam os limites da ética, do bem comum, do respeito à dignidade e liberdade da pessoa humana à ação do legislador constitucional. De igual modo, as correntes internacionalistas, que estão em franca ascensão, apontam em direção não somente ao bem comum, mas à segurança, à paz internacionais, como limitações ao Poder Constituinte. (SALDANHA, 2002, p 225).
O citado autor finaliza afirmando que o Poder Constituinte tem limites éticos a serem seguidos, “não podendo fazer tábula rasa dos princípios democráticos, porque falar em Poder Constituinte é também discorrer sobre democracia” (SALDANHA, 2001, p. 226).
No caso do poder constituinte derivado, o problema dos limites não se coloca, uma vez que se trata de um poder, por sua própria natureza, limitado, pois suas regras de manifestação estão previstas no próprio texto constitucional.
O poder constituinte derivado se manifesta por meio das emendas à Constituição. É o poder constituído para efetuar alterações no texto constitucional. É um poder secundário porque não cria uma nova ordem jurídica, limitando-se a dar continuidade à ordem vigente (FIUZA, 1993).
Em texto que procura distinguir as duas modalidades de poder constituinte, afirma Ingo Sarlet:
Enquanto o Poder Constituinte Originário costuma ser caracterizado como incondicionado, autônomo e ilimitado, o Poder Constituinte Reformador revela-se um poder juridicamente limitado, distinguindo-se pele seu caráter derivado e condicionado e sujeito às restrições previstas pelo Constituinte. (SARLET, 2001, p. 350)
Registre-se também, como modalidade do poder constituinte derivado, o
poder constituinte decorrente, que é a prerrogativa que as unidades de um Estado
Federal possuem para organizar as suas próprias constituições, nos limites estabelecidos pelo poder constituinte originário.
O titular do poder constituinte
Segundo Miranda (2004), há uma íntima ligação entre a questão da titularidade do poder constituinte e a sua natureza. O poder constituinte emana do povo, que é o seu titular, mas o exerce, em regra, por meio de seus representantes.
Os preâmbulos das modernas constituições deixam claro que é o povo o seu artífice e soberano. Nesse sentido, baseando-se no exemplo americano, afirma CANOTILHO:
A conhecida fórmula preambular “We the People” indicia (sic) com clareza uma dimensão básica do poder constituinte: criar uma constituição. Criar uma constituição para quê? Para “registar” num documento escrito um conjunto de regras invioláveis onde se afirmasse: (1) a ideia de “povo” dos Estados Unidos como autoridade ou poder político superior; (2) subordinação do legislador e das leis que ele produz às normas da constituição; (3) inexistência de poderes “supremos” ou “absolutos”, sobretudo de um poder soberano supremo, e afirmação de poderes
constituídos e autorizados pela constituição colocados numa posição
equiordenada e equilibrada (“check and balances”); (4) garantia, de modo estável, de um conjunto de direitos plasmados em normas constitucionais, que podem opor-se e ser invocados perante o arbítrio do legislador e dos outros poderes constituídos. (CANOTILHO, 2003, p. 70)
No entanto, ao se reconhecer o povo como titular do poder constituinte, é necessário ter em mente que povo é um conceito multívoco. As correntes mais democráticas identificam povo com cidadania, que, por sua vez, pode ser um conceito mais ou menos inclusivo.
REFERÊNCIAS
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. Poder constituinte originário e poder constituinte derivado. Revista do curso de direito da Universidade Federal de Uberlândia,, vol. 22, n. 1/2, p. 239-254, dez. 1993.
MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. Brasília: Senado Federal, 2004.
SALDANHA, Nivaldo Brum Vilar. Poder constituinte e poder de reforma. Revista de
direito constitucional e internacional, São Paulo, ano 9 , n. 34, p. 220-243, mar.
2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Tradução de Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1992.