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Anne Cauquelin

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Academic year: 2021

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O original desta obra foi publicado em francês com o título

L'invention du paysage

© 2000, Presses Universitaires de France.

© 2007, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição. Tradução

Marcos M ardonilo

Preparação

M aria do Carmo Zanini

Revisão

Eliane de Abreu Santoro Regina L. S. Teixeira

Produção gráfica

Demétrio Zanin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cauquelin, Anne

A invenção da paisagem / Anne Cauquelin;

tradução Marcos Marcionilo. — São Paulo : Martins, 2007. — (Coleção Todas as Artes)

Título original: L'invention du paysage. ISBN 978-85-99102-53-4

1. Arte - Teoria 2. Natureza (Estética) 3. Paisagem na arte 4. Paisagem na literatura

I. Título. II. Série.

índices para catálogo sistemático: 1. Paisagem : Estética : Ontologia 111.85

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à L ivraria M artins Fontes E ditora Ltda. para o selo M artins.

Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163 01325-030 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3116.0000 Fax (11) 3115.1072

info@martinseditora. com. br www.martinseditora. com. br

Biblioteca de Ciências Humanas e Educação-Artes

Editora WMF Martins Fontes Ltda

A invenção da paisagem

07-1485 CDD-111.85

Termo.

325/2010

24/06/2010

R e g i s t r o

496976

R$ 32,33

LICITAÇÃO

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Gênese de uma forma. Quem diz gênese diz "come­ ço". Ora, é sempre difícil dizer "eu vou começar pelo co­ meço". Impossível apontar o dedo para esse "começo". Cada vez que tentamos datá-lo, o encontro repentino de algum acontecimento nos provoca, desmente de modo cruel nossa afirmação, mostra-nos a inanidade desse pre­ tenso começo.

A decisão arbitrária é o único modo de evitar esse mau passo. O mesmo vale para a paisagem. Quando é que ela surgiu como noção, como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de composição, como esquema simbólico de nosso contato próximo com a natureza?

Autores confiáveis situam seu nascimento por volta de 1415. A paisagem (termo e noção) nos viria da Holan­ da, transitaria pela Itália, se instalaria definitivamente em nossos espíritos com a longa elaboração das leis da pers­ pectiva e triunfaria de todo obstáculo quando, passando

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a existir por si mesma, escapasse a seu papel decorativo e ocupasse a boca de cena.

Tais asserções são perfeitamente aceitáveis quando se trata apenas da pintura, isto é, da apresentação de ele­ mentos paisagísticos na moldura de um quadro. A inven­ ção da perspectiva é justamente o nó da questão. Ao fixar a ordem de apresentação e os meios de realizá-la em um

corpo de doutrina, a perspectiva tida como "legítima" justi­

fica o aparecimento da paisagem no quadro: com efeito, de início encontramos na pintura - ou nos intarsia (marche­ tarias) - as severas arquiteturas das "cidades ideais". Elas não passam de praças desertas, de esquinas de edificações, de recortes de janelas, de arcos que se abrem para outros traçados, de monumentos de diversas formas, que parecem ser um repertório para a construção. Cidades-esboço, de núcleo estrito, sem nenhuma vegetação nem arbustos, sem a emoção desordenada dos corpos, nem a emoção, tem­ pestuosa, das nuvens. Ao longe, na ponta-seca do olho, o ponto de fuga. A perspectiva - que é passagem através, abertura (;per-scapere) - alcança o infinito, um "além" que sua linha evoca. Mas é um além nu, uma geometria, o nú­ mero de uma busca. A sensualidade está ausente, assim como o acaso, mas eles logo vão voltar à cena e exercerão seu encanto: aqui, uma planta se apoiará sobre um balcão; ali, o pináculo aéreo de uma árvore atrás daquele muro; enfim, um mar que, bem na linha do horizonte, virá como um falar tentador do absoluto. A paisagem parece se ins­ talar timidamente, hesitar, vacilar, para depois se afirmar.

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Os três célebres painéis de Urbino, de Baltimore e de Ber­ lim dão testemunho desse rigor apenas esboçado de uma paisagem ainda expectante. Quanto às intrincadas mar­ chetarias que apresentam as mesmas perspectivas de cida­ des ideais, é ao polimento, ao grão, ao lustro, ao calor das madeiras nobres que elas devem o poder de evocar algo como uma paisagem.

Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a pai­ sagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilu­ são de perspectiva. A inesgotável riqueza dos elementos naturais encontraria um lugar privilegiado, o quadro, pa­ ra aparecer na harmonia emoldurada de uma forma, e in­ citaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza, como por uma realidade à qual o quadro daria acesso.

Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura. Aqui já po­ deríamos nos admirar com tamanha autonomia para um simples elemento técnico, com um vôo desses, com uma "naturalização" dessas. Mas, para podermos nos admirar realmente, é necessário ainda sair do círculo encantado da história da arte. Abandonar as obras, os artistas - mesmo que esse sacrifício seja penoso - e perguntar pelas novas estruturas da percepção introduzidas pela perspectiva. A meu ver, só então nos fixamos no mistério da paisagem, de seu nascimento.

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Pois essa "forma simbólica" estabelecida pela pers­ pectiva1 não se limita ao domínio da arte; ela envolve de

tal modo o conjunto de nossas construções mentais que só conseguiríamos ver através de seu prisma. Por isso é que ela é chamada de "simbólica": liga, num mesmo dispositi­ vo, todas as atividades humanas, a fala, as sensibilidades, os atos. Parece bem pouco verossímil que uma simples téc­ nica - é verdade que longamente regulada - possa trans­ formar a visão global que temos das coisas: a visão que mantemos da natureza, a idéia que fazemos das distâncias, das proporções, da simetria. Mas é preciso render-nos à evidência: o mundo de antes da perspectiva legítima não é o mesmo em que vivemos no Ocidente desde o século xv.

Parece que se deu um salto que leva mais longe que a mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e dos objetos, que é um salto de outra espécie: uma ordem que se instaura, a da equivalência entre um artifício e a na­ tureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com efeito, justamente "da natureza". A imagem, construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que ela seria a imagem. Legítima, a perspectiva também é chamada de "artificial". O que, então, é legitimado é o

1. E. Panofsky, La perspective como forme symbolique et autres essais (Paris, Les ÉditiOns dê Minuit, 1976 [em português: A perspectiva como forma simbólica, Lisboa, Edições 70, 1999]). Consciente de sua importância histórica e social pa­ ra o Ocidente, Panofsky nomeia a perspectiva como "forma simbólica". Forma no sentido de que é inevitável para todo conteúdo visual e desempenha o papel de a

priori. Simbólica por unir num só feixe as aquisições culturais da Renascença que

ainda estão em vigor em nossos dias e que constituem o fundo, o solo (Grund) de nossa modernidade.

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transporte da imagem para o original, uma valendo pelo outro. Mais até: ela .seria a única imagem-realidade pos­ sível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a nature­ za. Aqui se poderia dizer: "Como? Se a paisagem não é a natureza, o que seria ela, então?". Falar, portanto, de uma construção retórica (de um artifício, desta vez lingüístico) acerca da paisagem é crime de lesa-majestade. A natureza- paisagem: um só termo, um só conceito - tocar a paisagem, modelá-la ou destruí-la, é tocar a própria natureza.

Aqui, convoca-se uma ontologia que torna vã toda discussão sobre uma provável gênese. Que a forma simbó­ lica "paisagem" tenha se constituído no decorrer de sécu­ los é então inadmissível, pois, se a paisagem é identificada com a natureza, ela esteve presente desde sempre. Sempre houve paisagens, não é? Que a paisagem-natureza tenha evoluído, sofrido mudanças, até se admite; assim como os climas, as estações e o solo se transformaram, mas isso de­ corre de uma natureza em evolução contínua. As "formas" evoluem, mas a partir de um dado existente desde toda a eternidade. Nada a ver, diz-se, com uma construção men­ tal. A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é uma substância.

Para essa ontologia, a pintura é um intermediário in­ teressante, porque faz ver de maneira sensível, mostra, exi­

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be, exalta essa preeminência e anterioridade. A pintura é variação a partir do princípio. Nada além. Na verdade, se é mediadora, não é indispensável, é um adendo atrativo, às vezes emocionante e, por sorte, desvinculado, no domínio especializado que é o seu, de toda a distância que a estéti­ ca mantém "[d]a vida".

Do contrário, acrescenta-se, seria preciso fiar-se ape­ nas nos críticos de arte para perceber a natureza? Con­ cepção elitista que favoreceria por demais os eruditos e privaria cada qual de sua relação com a natureza. Em tais condições, não haveria paisagem para o diletante em arte? Absurdo.

Esses argumentos defendem e ilustram a relação confusa que mantemos com essa paisagem-natureza, ou com essa natureza-paisagem. Uma dupla operação se manifesta aqui: de um lado, restituir a paisagem à na­ tureza como a única forma de tomá-la visível (logo, de transformá-la por intermédio do trabalho paisagístico); de outro lado, desdobrá-la em direção do princípio inalte­ rável da natureza, apagando então a idéia de sua possível construção. Confusão bem marcada no fluxo de noções de "sítio", de "meio ambiente", de "ordenamento" ou de "integração".

Pois os mesmos que querem salvaguardar a natu­ ralidade da paisagem como dado primitivo se dedicam também a proteger os "sítios" depositários de uma certa memória, histórica e cultural. Ora, o "sítio", o que "per­ manece ali", designa tanto o monumento (esse arco, essa

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cidade antiga, esse vestígio) quanto a forma geológica sin­ gular que intervém num meio natural.

Nessa ótica, a paisagem é um "monumento natural de caráter artístico"; a floresta, uma "galeria de quadros natu­ rais, um museu verde". Essa definição, elaborada pelo Minis­ tério da Instrução Pública e das Belas-Artes francês em 1930, destaca a ambigüidade; reúne em uma fórmula os dois aspec­ tos antagônicos da noção de paisagem: o ordenamento cons­ truído e o princípio eterno; enuncia uma perfeita equivalência entre a arte (quadro, museu, caráter artístico) e a natureza.

Uma definição dessas tinha ao menos o mérito de não eliminar a dificuldade, de reconhecer que se trata de uma forma complexa, com duas vertentes que intercambiam atributos segundo uma regra desconhecida e cuja unidade é mantida na e pela experiência ordinária.

Experiência que, de minha parte, na descrição do so­ nho de minha mãe, absorvi integralmente, pensando que aquele jardim enunciava o campo que enunciava a paisa­ gem que enunciava a natureza, encontrando nessa entrada multiplicada a revelação do "belo natural". Como poderia eu de outro modo aproximar-me dele, a não ser pelo qua­ dro emoldurado de um jardim composto, pelo artifício de sua disposição perfeita?

Mergulhada, aniquilada no sentimento de uma pre­ sença, sem tomar consciência, nem um único instante se­ quer, da operação que dessa forma o oferecia a mim, do aprendizado que, de muito longe, para além do jardim so­ nhado, construíra a segurança de que era exatamente

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aqui-lo, de que eu não me enganava, de que aquilo que eu via era evidentemente uma paisagem: a natureza.

Dobra onde se juntam, ponta com ponta, a natureza e sua figuração - essa dobra de sombra, essa lenta ascen­ são de uma forma da qual jamais poderíamos pensar que não fosse dada desde o início como realidade.

Desfazer essa dobra? Estender o tecido amarfanhado, tatear a textura dessa forma, desfazer e refazer as evidên­ cias, testar os implícitos? Isso consiste sempre em remontar a "antes da dobra". Apoiar-se na matéria-prima da "causa mental". Decompor os elementos, que, à beira dessa flores­ ta de símbolos que é a história da edificação da paisagem, foram suas condições de possibilidade.

Da Grécia a Roma, de Roma a Bizâncio, de Bizâncio à Renascença, produziram-se algumas formas que gover­ nam a percepção, orientam os juízos, instauram práticas. Esses perfis perspectivistas passam de um a outro, dese­ nham "mundos" que foram, para aqueles que os habitam, a evidência de um dado.

Esse trabalho de restituição, ao explicitar a dobra, não tem, contudo, a pretensão de nos separar de nossas cren­ ças, da evidência de nossas intuições. Mesmo que saiba­ mos que o sol não se põe, diz Gadamer, seguimos dizendo que ele se põe, e não poderíamos nos separar daquilo que a língua diz com a justeza do sentimento.

Inversamente, um saber não sabido, as pistas, refugos de crenças e de mundos antigos, ressoam longamente em

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nós. Saber ignorante de si mesmo, que forma, a nossa re­ velia, a maioria de nossos juízos de gosto.

É para o reconhecimento dessa mescla e para o misto de composições que ela gera em nossas avaliações comuns que se volta essa "gênese".

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A NATUREZA ECÔNOMA

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No limiar de nossa pesquisa, uma surpresa nos espera. E de vulto. Na verdade, não voltamos a ela e a ela dificilmen­ te retomaremos. Há quem tenha dificuldade em acreditar nisso e tente dar mil voltas à dificuldade: é que não há, en­ tre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante, de perto ou de longe, àquilo que chamamos "paisagem"... Profunda estupefação em relação a nossa admiração secu­ lar por este céu e esta terra, as ilhas ao longe, as praias, as colinas áridas e as florestas delicadas, e a luz.

Aterrorizados pelas recordações literárias e pelos es­ tereótipos de uma cultura herdada, vemos a Grécia com olhares enamorados e "caminhamos" pelas descrições da Acrópole ao sol poente. Vemos a Grécia com olhos de qua­ dro. Quem, mais que os gregos, poderia ter naturalmente presente a noção de paisagem? Quem poderia fazer res­ plandecer, com um brilho mais incomparável, a luz do sol sobre o mármore dos templos? O rochedo acima do mar

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porta suas colunas como um fruto perfeito. Harmonia, be­ leza. Unidade espontânea de uma razão nascente com sua forma visível. A Grécia é isso. É possível que nenhuma idéia de "paisagem" tenha sido formada, formulada, ela­ borada? Coisa aparentemente impensável. Contudo, é isso mesmo. Para nosso grande desconcerto.

Deveríamos sondar bem essa ausência, por mais sur­ preendente e frustrante que ela seja. Não nos restaria al­ go dela nas mil dobras de nossa memória? Seríamos nós um pouco gregos em algum aspecto? Tão longa história não teria deixado marcas? E como nos haveremos com essa ausência? Porque, se a paisagem responde "ausente", a na­ tureza está lá. Haveria, então, uma distância, um "buraco" entre os dois conceitos, que hoje temos o hábito de confun­ dir em uma mesma figura?

Não há dúvida de que a Natureza não era figurada na forma da paisagem. Se ela aceitava ser representada con- cretamente, era em termos de ordenamento, de distribui­ ção organizada. Potência atuante nos objetos animados e inanimados, a metáfora que se encarregava dela para tor­ ná-la inteligível era de ordem antropomórfica.

Com efeito, Aristóteles a apresenta como uma boa do­ na de casa. Uma ecônoma cuidando das reservas cuja guar­ da lhe foi dada, distribuindo-as com medida e bom senso.

Suas reservas, tesouros inestimáveis, ela as divide do melhor modo possível para a preservação dos seres que pro­ duziu (a natureza nada faz em vão), dotando o rinoceron­ te indiano de duros cascos, mais úteis para ele nos rochedos

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áridos do que se tivesse chifres na testa. De resto, boa moça, ela lhe concede, contudo, um só chifre, para se defender.

E como toda boa mãe de família que, por vexes, se engana na repartição, privilegiando um, ela fica sem na­ da para dar ao outro... Ou dá muito, ou o insuficiente: os monstros são erros por excesso ou falta, assim como os aci­ dentes. Um problema de gestão.

Mas se recebem dons apropriados a suas constituições, os seres também são instalados em lugares específicos, pla­ nícies, rios, montanhas, desertos. A natureza se mostra ge­ nerosa (ou avarenta) em sua atribuição: há condições de vida e de sobrevivência, um meio ambiente necessário que expli­ ca as particularidades de suas formas e de suas "partes". A relação entre uma suposta paisagem e o animal que nela se instala é da ordem da economia das partes que a com­ põem. Um pântano é indispensável para um elefante, que, andando pesadamente pelo fundo lamacento, tira a tromba da água para respirar. A planície árida é necessária ao aves­ truz, para que ele possa ali esconder seus ovos. Esse curio­ so bípede de pálpebra humana, que não anda nem voa, está instalado em seu meio, o deserto de areia.

Contudo, esse ambiente - o "meio" que determina os comportamentos animais e a eles está ligado de ma­ neira estrita - não apresenta nenhuma característica pela qual pudesse valer por si mesmo. Ele envolve os corpos que contém, não é um "mundo" no sentido em que não é parti­ cularmente visado por meio das formas de sensibilidade e de percepção - uma forma simbólica ou uma construção.

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Em contrapartida, o "mundo" da Natureza, aquele que os gregos apresentaram como evidência do implícito de sua visão, seu "mundo", é o do logos, essa razão lingüís­ tica que atravessa as coisas de lado a lado e que instaura um entendimento, uma escuta, mais que uma visualiza­ ção, dos objetos desse mundo. Heráclito vive nos repetin­ do isso na maior parte de seus fragmentos. Basta que um princípio (o logos como princípio da natureza) assegure a coesão, o ajuntamento dos elementos políticos, sociais, conceituais, para que a unidade esteja presente como tota­ lidade indivisível. "Pois uma só é a (coisa) sábia, possuir o conhecimento que tudo dirige através de tudo1."

Dessa forma, é inútil - de verdade, com toda a certeza - destacar um fragmento dessa unidade. O invólucro visí­ vel, o lugar dos seres, é entendido - compreendido ou in­ cluído - no estado das coisas tal qual elas se apresentam ao logos integrador.

O templo não está sobre o rochedo, não se situa em uma paisagem; reúne em si uma totalidade. O templo-ro- chedo é atravessado pela linguagem que o faz existir como parte do estado de coisas que revela ao se manter ali. Ele não designa, não significa: é o conjunto de um mundo que se deixa compreender em sua extensão. Com ele estão da­ dos, ao mesmo tempo, a história, a lenda, o mito.

1. Heráclito, "Fragmento 41", segundo Diógenes Laércio, ix, 1, em Pré-socrá- ticos (trad, de José Cavalcante de Souza, São Paulo, Nova Cultural, 2000, coleção

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Temos de reler Pausânias:

No cume do teatro se encontra uma gruta nos roche­ dos, ao pé da Acrópole; lá também há um tripé, sus­ tentando uma cena que representa Apoio e Ártemis fazendo perecer os filhos de Níobe. Essa Níobe, eu mesmo a vi subindo ao monte Sípila; visto de perto, é um rochedo escarpado que não tem nada da forma de uma mulher, muito menos de luto, mas, se nos afastar­ mos um pouco, teremos a impressão de ver uma mu­ lher em prantos e devastada pela tristeza2.

A distância, reconhecemos a lenda que a totalidade desse rochedo concentra. Isolado, visto como fragmento ou detalhe, ele não conseguiria encher a vista e, especial­ mente, a compreensão das coisas. Só podemos percebê-lo como um "mundo".

Nenhuma pedra, nenhum rochedo que seja pedra ou rochedo para Pausânias, mas signo para uma memoriza­ ção de valor pedagógico ou apologético.

O mesmo ocorrerá com os historiadores-geógrafos da Antiguidade. Heródoto ou Xenofonte não são nada ava­ ros em descrições de "lugares". Mesmo assim, não cons­ tituem o que chamamos de paisagens: simples condições materiais do evento, uma guerra, uma expedição, uma len­ da, é a ele que estão submetidas. Fatores de causalidade e

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de significação organizando o discurso e servindo de mol­ dura aos saberes numerosos: o relevo, a flora, a fauna, os arranjos humanos, os vestígios do passado: tantas "loca­ ções" indispensáveis às narrativas e que a elas estão li­ gadas. O objeto paisagem não preexiste à imagem que o constrói para um desígnio discursivo.

A imagem não está voltada para manifestações ter­ ritoriais singulares, mas para o acontecimento que solici­ ta sua presença. E assim como o lugar (topos) é, segundo a definição aristotélica, o invólucro dos corpos que limita, a pretensa "paisagem" (lugarzinho: topion) nada é sem os corpos em ação que a ocupam. A narrativa é primeira e sua localização é um efeito de leitura3.

Nessa qualidade, o que vale como paisagem não tem nenhuma das características que estamos acostumados a lhe atribuir: relação existencial com seu preexistir, sen­ sibilidade ou sentimento, emoção estética ausente. Sua apresentação, portanto, é puramente retórica, está orien­ tada para a persuasão, serve para convencer, ou ainda, co­ mo pretexto para desenvolvimentos, ela é cenário para um drama ou para a evocação de um mito.

Quanto às paisagens estrangeiras (a cheia do Nilo) com as quais Heródoto nos encanta, elas são a exploração de uma opinião, segundo a qual tudo o que se oferece fora da Grécia é curiosamente o reverso, excitante, misterioso.

3. Cf. o belo texto de Christian Jacob, "Logiques du paysage dans les textes géographiques grecs", em Lire le paysage, lire les paysages, Colloque de l'Université

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Sua descrição é fictícia, deriva do romanesco, da peripécia. Essas "paisagens" descritas são conjuntos nos quais se ins­ talam seres exóticos, de comportamentos curiosos. Tenhga ou não Heródoto ido ao Egito, fato é que ele, sobretudo, ouviu contar - rumores - o relato de viajantes dos quais ele se fez eco. É o fio da narrativa, as etapas de um périplo que fazem existir os lugares sucessivos. Desse modo, os "diz-se que" e os "diz-se que se diz" se acumulam, traçando cír­ culos cada vez mais longínquos através de um mapa fanta­ sioso. A voz de Heródoto é uma voz em "off", que fala por meio de uma multidão de outras vozes4.

O exemplo extremo desse tipo de descrições, talvez, se encontre em Plínio, o Velho, que, no livro vn de sua História

natural, sobrepõe os prodígios dispensados pela Natureza, essa parens melior homini [mãe benevolente para o homem], que também pode se transformar em tristior noverca [ma- dastra severa].

Aqui, as anotações ambientais destinam-se a indicar, pela extravagância de suas formas, a extravagância dos se­ res que habitam as regiões remotas.

Quanto às árvores, conta-se que elas são tão altas que é impossível lançar flechas acima de seus topos. A fecun­ didade do sol, o clima do céu, a abundância das águas fazem com que (si libeat credere Icaso se possa crer]) uma única figueira possa abrigar esquadrões de cavalaria...

4. Como o nota C. Darbo Peschanuki em Le discours du particulier (Paris,

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51 Que a natureza seja ecônoma, que seu princípio se­ ja © aprovisionamento, eis-nos num mundo no qual a pai­ sagem não pode ter valor em si, trata-se de uma peça útil a sua economia, como lugar-invólucro dos seres que ela âprovisiona.

* Que não faça nada em vão, mas tire partido dos re­ cursos disponíveis, em nada indica que o território que ela leva em conta preexista a sua obra. Justo ao contrário, o território é "dado côm", não constitui "caso à parte". E, so­ bretudo - e é isso o que nos interessa aqui ela não se "diz" sob a forma figurativa da paisagem visual, mas vem a se apresentar sob a forma de um poder, cuja descrição é da ordem do discurso, não da sensibilidade.

O fio da narração e a viagem do pesquisador têm pre­ cedência sobre os lugares, que, por sua vez, acompanham a história; não são o objeto principal, apesar de serem in­ dispensáveis à compreensão das coisas.

À semelhança do que ocorre com a tragédia na Poética de Aristóteles, a visão (opsis) - todo o lado espetacular do espetáculo - é secundária. Já tendo indicado que a opsis é uma das partes constitutivas da tragédia, depois da fábula, dos personagens, da elocução e do pensamento, Aristóte­ les, com efeito, acrescenta:

O espetáculo (opsis), mesmo sendo de natureza a se­ duzir o público, é tudo o que há de mais estranho à arte e menos adequado à poética, porque o poder da tragédia subsiste mesmo sem multidão nem atores e, além disso, para a encenação, a arte do homem

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pre-posto aos acessórios é mais importante que a do poe­ ta (1450 bl7-20).

A fábula (mythos) e a narrativa são, primordialmente, o que reúne num todo a ação humana. É a fala, a lexis, que é "ouvida" como entendimento, como persuasão, e não o ver cênico. Um lugar é sempre um lugar "dito". Ele é sempre to­ mado na "unidade reinante de uma relação que chamamos um 'mundo'.. É só assim que o rochedo (o lugar onde o templo

se ergue) manifesta a obscuridade de seu surdo portamen-

to"5. Tomado assim na repetição e nos estereótipos lexicais. Sabe-se bem que os autores devem passar por isso e que, ao definir um cenário para o acontecimento, que é a única coisa que importa, basta qualificar sobriamente os elementos geo­ gráficos que o acompanham. E isso por um jogo de termos opostos: árido/fértil, planície/montanhas, seco/úmido, po­ voado/despovoado. Sobriedade que não exclui a diversidade de termos, mas designa o parco interesse pelas particulari­ dades sensíveis. O regato será sempre fresco; o bosque, pro­ fundo; a planície, vasta. Vocabulário testado, de conotações antropomórficas, ligadas à metáfora fundadora da natureza como boa ecônoma6.

E, se ainda fosse necessário desdobrar essa dobra até sua raiz, para além da Natureza provedora e gestora de

5. Heidegger enfatiza esse "mundo" ("De l'origine de l'œuvre d'art", em

Chemins qui ne mènent nulle part, trad. de E. Martineau, Paris, Gallimard, 1980).

[Cf., em português: Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa, Edições

70,2000. (N. de E.)]

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Aristóteles, insistir nesse "esquecimento" da dimensão vi­ sual sensível pela qual qualificamos hoje o que é da natu­ reza, deveríamos citar Homero. No canto x iii de A odisséia,

quando Ulisses, por fim aportando às praias de ltaca, ajo­ elha-se e beija a terra de seus ancestrais, não é o entusias­ mo de um reconhecimento visual que o move. Aquela ilha, ele não a reconhece. Ele não a "vê". O sentimento do lu­ gar como lugar próprio por fim alcançado, ele não o expe­ rimenta. Aliviado de estar em terra firme. Só isso. É preciso que Atena se desvele, e desvele para ele, por meio da fala, a caverna e o bosque sagrado, a gruta e a oliveira, para que seus olhos enfim se abram, para que a lembrança sobreve­ nha, não a propósito dos objetos que a ele se oferecem, mas pelo artifício dê uma comemoração.

- ... Diga-me: é verdade que ali está minha Pátria? - Vê comigo o solo de tua ítaca, o porto de Forco, o velho do mar, e eis a oliveira que frondeia... eis a caver­ na arqueada, eis a grande sala onde vinhas, tantas vezes, oferecer uma hecatombe perfeita às Náiades, e eis, re­ vestido de madeira, o Nérito.

Dizendo isso, Atena dispersou a noite. A terra apare­ ceu. Quanta alegria o herói experimentou.

E que diz ele? "Ó vós, filhas de Zeus, ó Ninfas, ó Náia­ des que acreditei jamais voltaria a ver, eu vos saúdo..."

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Uma paisagem omitida

"Da noite deserta aos olhos de cego"

Empédocles

Aberta unicamente ao mundo do logos, reunida em torno de um princípio de reunião, de uma unidade que fa­ la a quem a escuta, a "paisagem" grega é omitida. Ela só comparece ao chamado de uma voz, de uma nomeação dos elementos que compõem uma cena. Ela não se oferece à vi­ são, mas ressoa no ouvido, na luz da inteligência. O res­ to é esquecimento profundo, cegueira. "Todo o privilégio que subtrai aos olhos, ela o devolve ao ouvido", diz Plutar- co nas Quaestiones convivales (vni, 3,1).

Omitida? A expressão designa o ato pelo qual negli­ genciamos o todo ou parte de uma mensagem; essa omis­ são, aplicada singularmente à paisagem grega, diz respeito à cegueira particular dos gregos para a cor azul7.

Temos grande dificuldade em imaginar a Grécia pri­ vada do azul que banha as ilhas, inunda o céu, transforma- se em violeta nas colinas longínquas, matiza-se em rosa e em verde-cinza ao cair da noite. Mas devemos nos render aos fatos: as cores são idéias de cores, e quem não tem a amostra (o paradigma) não tem a coisa. Ora, os gregos não tinham amostra de azul. As quatro cores disponíveis eram

7. Cf. o texto de Nietzsche em Aurora, § 436 [em português: São Paulo,

Companhia das Letras, 2004, (N. de E.)], e Manlio Busatin, Histoire des couleurs

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o branco, o preto, o amarelo/o ocre e o vermelho. Para eles, o mar era verde-pardo e vermelho-violáceo nos tempos de tempestade, glauco, e o céu unicamente "luminoso", bri­ lhante pelo fogo do éter. O brilhante e o baço, o sombrio e o claro, o sol e sua sombra. Muita sombra cercando o bri­ lho. Na verdade, preto e branco compõem o mundo visual, e sua mistura dá as outras cores.

Empédocles dá, segundo Teofrasto8, "o branco ao fo­ go, o preto à água", e assegura, diz Plutarco9, que "a cor do rio surge da sombra negra", conhece apenas "quatro cores, tantas quanto os elementos: o branco, o preto, o vermelho, 0 amarelo"10.

São três apenas as que bastam a Platão, no Timeu, pa­ ra recompor os outros matizes: em princípio, o preto e o branco, respectivamente ligados à dissociação (o branco) e à concentração (o preto) das partículas da chama emitidas pelos objetos na direção do fogo dos olhos. Pois, se as par­ tículas ígneas que entram em movimento a partir de um objeto são maiores que o órgão a que visam (o olho), elas dissociam (diacriticon) o corpo da visão. Se, ao contrário, são menores, elas o unem (syncrinon). Além do mais, no caso em que a grandeza é a mesma que a do olho, obtém- se o diáfano, o transparente. O vermelho (erytron), a ter­ ceira cor, provém do choque dos dois fogos em movimento, o das partículas das flamas saídas do objeto e o do fogo

in-8. Teofrasto, De sensibus, § 59.

9. Plutarco, Quaestiones naturales, § 39.

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tenor; propriedade do olho. Quando seu efeito se mescla, vê-se vermelho...11

Todas as outras cores provêm da mistura dessas três, e o azul (cyari), que é na verdade a cor lápis-lazúli, é obtido pelo branco combinado com a cor brilhante (lampro te leu- kon) caindo para o preto12.

Claro e escuro, obscuridade e luz, são assim os olhos que Aristóteles se empenha em classificar como glaucos e pretos13. Isso se aplica ao rio, que, segundo ele, deve ser pintado de uma cor amarela (ocros), ao passo que o mar de­ ve assumir a cor verde amarronzado14.

A partir daí, metáforas se desenvolvem, ligando a su­ perfície ao brilho, a profundidade ao terroso, ao negro abis­ mo. "A água na superfície parece branca, e preta no fundo; a profundeza seria a mãe da escuridão15".

Os olhos de Minerva, glaucos, são olhos de coruja que enxergam à noite, por causa da indeterminação mesma de sua cor, cujo matiz vê o semelhante: a obscuridade tinta da noite. Quanto aos mares cantados por Homero, eles tam­ bém serão glaucos, mistura de claridade e de profundida­ des fuscas.

11. Timeu, 67d. "As partículas provindas dos outros corpos e projetadas no órgão da visão são umas menores, outras maiores, outras, enfim, de mesma di­ mensão [...] É preciso chamar branco o que dissocia o corpo da visão, e preto o que produz o efeito contrário [...] peló efeito da mescla do reflexo do fogo com o humor do olho, se produz uma cor sangüínea que chamamos de vermelho."

12. Timeu, 68d.

13. Aristóteles, Problemas, xvt, 14. 14. Aristóteles, ibid., xxm, 6. 15. Plutarco, ibid., § 39.

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Teoria da cor que também procede dos atomistas, por­ que examina o escoamento das partículas vindas dos ob­ jetos e, paralelamente, dos fisiologistas no que diz respeito ao fogo que sai do olho. Os dois movimentos se misturam porque só o semelhante atua sobre o semelhante - trata-se de dois fogos -, e a alteração (que produz a cor) é atribuída a um elemento diverso do fogo: a água que o olho contém. Encontro de elementos.JMistura.

Lá dentro, nada de geométrico. O processo da visão das cores não é descrito como o esquema de um cone visual, de uma refração ou de uma reflexão da luz, mas como abrasa­ mento que escapa ao pensamento geométrico.

Apenas um Deus sabe como mesclar em um mesmo todo, para, em seguida, dissociá-los, elementos diver­ sos, e também só ele é capaz de fazê-lo. Mas nenhum homem é realmente capaz de fazer nem uma coisa, nem outra ('Timeu, 68d).

Também é adequado desistir de se ocupar da cor, con­ siderá-la como um mistério no qual o homem não tem par­ ticipação alguma. É assunto de Deus, ou até mesmo algo que não seria verdadeiramente útil para o conhecimento.

Aristóteles, contudo, tenta compreender essa mistu­ ra introduzindo o "diáfano" como intermediário ativo en­ tre os fogos cruzados da luz do dia e do olho. Nada mais de partículas provindas do objeto, entrando, em escala re­ duzida, no órgão da visão, mas uma teoria do "meio" ca­

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paz de homogeneizar esses dois semelhantes derivados de fontes diferentes que são as duas radiações ígneas.

O diáfano, o transparente, deixa de ser o encontro inesperado do tamanho de um objeto com a dimensão do olho, como o afirmava Platão, para ser um princípio ativo que possui a virtude de acrescentar à cor a superfície dos objetos tornando sua iluminação possível.

É uma certa natureza, uma certa potência comum a to­ dos os corpos, que não existe separada, mas tem sua existência nesses corpos... a cor pode, então, ser defi­ nida: o limite do diáfano em uma forma determinada"

(De sensu, m, 10).

A cor de um corpo é a superfície, não do corpo pro­ priamente, mas do diáfano que está nele e que passa ao ato quando é iluminado por um elemento de mesma natureza (o semelhante ilumina o semelhante), ou seja, o fogo do céu. Vemos, então, as diferentes cores se modelarem segundo os corpos em questão apresentem mais ou menos resistência ao diáfano: se forem terrosos, ou mais aquosos, ou mais íg­ neos. É a partir daqui que se pode esperar estabelecer uma certa proporção numérica entre branco e preto.

Com efeito, é a partir da oposição preto/branco que se constroem todas as outras cores em detrimento do... azul, que surge como uma irregularidade, não definida por um número dado.

Se não é mais o olho que faz contato e ilumina o ob­ jeto, se as partículas não se deslocam mais dos corpos para

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percutir o olho, se o diáfano passa a substituir esses con­ tatos para introduzir o ato de uma potência instalada nas coisas, voltamos ao mesmo ponto, contudo, naquilo que se refere à cor. Nem a geometria nem a física estão habilitadas ã captar o matiz, e o fenômeno da cor é trabalhado segun­ do uma "forma": a aparência de um corpo ou a marca de um espelhamento. Em nenhum caso existiria para nós uma paisagem colorida, em sua presença separada, insistente.

Essa cegueira ao azul é justamente o efeito de uma dificuldade para pensar a cor, de uma tentativa de sim­ plificar, com os meios teóricos de que dispõem os anti­ gos, um fenômeno cativo do "contato" e dos "elementos": a essência elementar da luz - fogo - e dos corpos - terro­ sos ou aquosos.

Uma teoria dos eflúvios, das marcas, como a dos ato- mistas, ou a do "meio" ambiente - o diáfano que permite a continuidade de uma visão em Aristóteles -, manifesta es­ sa outra cegueira, que é a das formas concretas da sensibi­ lidade ao que é da ordem da visão.

A economia da natureza, então, pouco atenta a distri­ buir uma fruição suplementar, porque não tem os meios para isso, contenta-se em oferecer à compreensão pla­ nos de funcionamento - um desígnio e um desenho. Cabe aos pintores preencher os contornos das formas assim re­ partidas. Mas sobriamente.

Possuem-se pinturas antigas cujo colorido é trabalhado com a maior simplicidade (haplós) e que não apresen­

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tam variedade alguma nas tonalidades. Mas as linhas são desenhadas com perfeição"16.

A cor é subsidiária. "O criador (a natureza) desenha primeiro os contornos, depois (hysteron), ele escolhe as cores...17"

A forma da idéia atravessa o mundo; e, se ela supor­ ta depois o brilho que vem cumulá-la, não se encontra, por isso, submetida a seu aparecimento.

Fortemente estruturado, o mundo grego se defende da invasão dos brilhos dispersos e contra tudo aquilo que, separado, poderia prejudicar sua unidade: a natureza não tem necessidade alguma da paisagem sensível para revelar seu desígnio. O preto e o branco lhe convêm, lhe fornecem os cheios e os vazios de uma escrita pura.

O azul, vindo do Oriente, sintoma de uma decompo­ sição, traz em si algo de selvagem, de bárbaro. Com ele, uma gama cromática enriquecida dispersa a idéia única, fragmenta o desenho, convoca à fruição, ao passo que au­ menta a diversidade dos atores, que se cruzam e misturam as linhas de força de um "mundo" que se distancia sem cessar. Essas separações exigem uma mediação, uma figu­ ra de passagem, que se esforça para reproduzir, por artifí­ cio, a simplicidade do Todo no interior de um lugarzinho simbólico: o jardim.

16. Dionísio de Halicarnasso, De Isaeo, 4.

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OS JARDINS DO ÓCIO

"... E a rama em que o pâmpano à rosa se alia." Eis a longa teoria dos jardins, kepos-hortus1, lugares de repouso e de meditação, que, ao romper com o espaço indeterminado ou superinvestido de marcas por e para uma história, constroem seus traços distintivos longe da cidade. Essa forma, que os romanos levaram à perfeição, aproxima-se de uma noção ainda não estabelecida, a de paisagem. Trata-se, precisamente, de um impulso rumo a uma natureza, de um recolhimento no seio de elementos naturais, mesmo que os traços característicos do jardim o distingam nitidamente daquilo que ele toca de raspão: a paisagem está fora de sua visão.

í. Encontramos kepos em Platão, no Timeu (77), servindo de comparação ao corpo humano. As veias e as artérias são, com efeito, análogas aos condutos de ir­ rigação das hortas. Comparação retomada em Aristóteles (Das partes dos animais). Referência a uma utilização prática, o jardim aparece sub-repticiamente, mas não é descrito por si mesmo. Ele deve, contudo, ser um lugar de delícias, se formos dar crédito às expressões "jardim das musas", "jardim de Zeus".

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E primeiramente para si, isolado, retraído. Isolando também o que parece melhor nas disposições da nature­ za a respeito de suas criaturas, a forma-jardim se àpóia em uma dupla disjunção, em duas subtrações conjuntas.

Se o "Jardim de Epicuro" designava um lugar, o lugar singular de um ensinamento, não conhecemos sua forma concreta, porque a fórmula substituiu sua forma material até recobri-la inteiramente. "Jardim de Epicuro" é metáfo­ ra para uma filosofia, sabedoria de uma vida ao abrigo das tempestades do mundo. Esse afastamento conduz a uma cerca, quase um claustro - um anteparo...

A descrição desses espaços desconhecidos que nos é oferecida pelas Investigações (.História) de Heródoto, que deles se encarregavam, dobra-se no espaço mensurado de uma disciplina interior, concentra-se no sujeito que habi­ ta e modela seu próprio espaço. Lugar isolado de um espa­ ço típico: o campo, cuja existência é assegurada pelo corte com a Cidade: Urbis amatorem, diz Horácio no princípio da Epístola x. É assim que ele cumprimenta Fusco, aman­ te da Cidade, ele que amava os campos, Ruris amatores. O campo oferece tudo o que a cidade subtrai - a calma, a abundância, o frescor e, bem supremo, o ócio para medi­ tar, longe dos falsos valores.

Como um duplo invertido, o campo oferece o nega­ tivo da cidade, que, não obstante, toma dele emprestados alguns traços sem os quais não poderia passar: o que se­ riam, pois, as colunas de mármore que adornam as casas senão a imagem das florestas? E por que querer ter visão

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do campo longínquo senão por ser lá que se situa a ver­ dade? O "laudatur domus longo quse prospicit agros" de Horácio ["elogia-se a casa que se abre para os campos ao longe"; Epístola x] é um elogio à calma dos espaços agres­ tes, não à "visão" sensível.

Mas esse campo (rus, campus, ager), cujos méritos são tã© louvados, só é bom à medida que refere às qualidades de economia, de aprovisionamento generoso que caracte­ rizavam a physis aristotélica. É papel do jardim estabelecer e manter a distinção entre os terrores naturais e os benefí­ cios dessa parens mater. Se o jardim se separa da cidade, ele também se separa de uma natureza furiosa, tempestuosa ou desértica. Nessa dupla condição, só o jardim é ameno (iamcenus), prazenteiro. É preciso, pois, fugir da confusão de Roma e de seu clima insalubre, passar setembro fora, nesse fora que é um pequeno dentro. O jardim oferece, com efeito, esse paradoxo amável de ser "um fora dentro". Fugir também - porque a liberdade está na fuga - da fero­ cidade dos animais selvagens que vagam pelos campos, do horror das matas fundas e das altas montanhas: "Tais lu­ gares", diz Lucrécio no livro v (39-42), "está em nosso po­ der evitá-los".

A meio caminho entre os dois perigos da natureza e da sociedade, o jardim oferece o asilo desejado.

Desse modo, construir a distância essa pequena for­ ma, esse pequeno lugar - topiano - que é o jardim, viabi­ liza o espaço da fruição - o otium, o lazer, a liberdade. A construção ideal da sabedoria a dobra fora do mundo

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-tem como correspondente material a instalação do jardim prazenteiro. As duas vertentes, sabedoria e lugar próprio para exercer a sabedoria, estão unidas. Em uma formula­ ção rápida, podemos pretender que a forma da vida sábia é ilustrada pela forma-jardim, cuidadosamente filtrada pe­ la tela de uma abundância magnânima (numera naturae), cujos elementos são escolhidos com cuidado. São necessá­ rios a fonte ou o regato, o campo fértil, o bosque e a vinha, o rochedo musgoso e, por vezes, a vista (prospectus). "Ego laudo... rivos et musco circumilita saxa nemusque" ["Lou­ vo o campo ameno, com seus regatos, seus rochedos reco­ bertos de musgo e suas florestas"].

Reunidos esses elementos de amenidade, podemos então nos entregar a uma descrição, a fazer deles um "qua­ dro" para seduzir os recalcitrantes. "Ut pictura poesis" [o poema (deverá ser) como uma pintura], dirá ainda Horá- cio, fórmula que se dissipou. É, sem dúvida, necessário compreendê-la como resultado desse mesmo jardim que descrevemos aqui: com efeito, a pintura é o que melhor dá conta da moldura-cenário montada com cuidado e di­ ligência e que vale como a própria moldura da vida feliz. O quadro "mostra" e, com isso, desempenha seu ofício apo­ logético e pedagógico. A poesia moral é quadro sedutor, colorido com todas as virtudes do jardim. O jardim é, com efeito, a imagem do que de melhor há no homem; ao re­ sidir no jardim, o homem se toma semelhante àquilo que o circunda. A alegria e a mansidão do campo provocam a

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alegria interior e a mansidão do caráter. Se a vida sábia tem como correspondente material o "lugarzinho próprio", es­ se lugarzinho tem como correspondente textual uma po- esia-quadro. Entre os três termos, uma correspondência simbólica propõe sua vinculação - eles se imaginam uns aos outros, por similitude de essência.

Nada de "paisagem" aqui, de horizonte remoto, o lu­ garzinho fecha a visão em seu amável cenário. Mesmo sendo um encanto a mais, a "vista" ao longe não é, contu­ do, necessária para a fruição do jardim:

"Neque enim mare et litus sed te, otium libertatem sequor", escreve Plínio, o Jovem (carta vi, 14) ["Nem o mar, nem sua costa, mas tu, o repouso e a liberdade que busco"]. O jardineiro não verá mais longe que a distância de seu pé - meçam-se a isso. Para ele, o sol tem a largura do pé de um homem - o dele mesmo... "Metiri se quemque suo modu­ lo ac pede" ["Medir-se cada qual com seu próprio pé, eis a verdade"] (Horácio, Epístola vn).

É a dispensa e a despensa que o jardim designa, e não o rio e o mar, o longínquo e a contemplação do mundo em seu conjunto. Fruição do "próprio", da suspensão mensu­ rada, de uma vestimenta feita à medida de seu proprie­ tário. Fruição de uma parte de um pedaço escolhido da natureza, e não sua metáfora condensada.

O jardim não é, portanto, a paisagem em formato re­ duzido; ele tem seu esquema simbólico próprio. Na pers­ pectiva do otium, ele não é a redução - na escala chamada humana - da generosa Natureza, não mais que uma

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metá-66

bole ou sinédoque pela qual ela se apresentaria. É, bem ao contrário, por meio de uma separação da Natureza que eje se constitui - e quase em sentido oposto.

E, se mantém relações de proximidade e de conflito - a cerca é, ao mesmo tempo, defesa e proximidade - com a natureza em seu todo, ele não se transforma, por isso, em forma de passagem entre a ausência de paisagem (termo, noção e descrição) que destacamos entre os gregos e sua aparição mais tardia.

O jardim não é um intermediário, um feto, ou um germe de paisagem, mas ele entrega, na forma da éclo­ ga, das bucólicas, da ode, os elementos da constituição do "campestre" — a árvore, a gruta, a fonte, o prado, o outeiro, torrão ou talude, os animais e os instrumentos que com­ plementam seu léxico próprio. Eles serão retomados na tra­ dição medieval e seguem, até nossos dias, inseparáveis dos atributos que conferimos à natureza na forma de paisa­ gem. Nós os reencontraremos nas artes contemporâneas da paisagem, intocados. O jardim desenha uma das dobras da memória e ali permanece, ao lado da paisagem, como um modelo de naturalidade.

A fim de passar para o lado da paisagem, precisare­ mos voltar à fórmula de Horácio e transformar seu ut pic- tura poesis em ut poesis pictura. É sem dúvida aqui, nessa inversão semântica, que se decide o estatuto da imagem, do quadro como paisagem, como figurabilidade da Natu­ reza... e isso é Bizâncio.

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... E ISSO É BIZÂNCIO

É paradoxal constatar que é pelo desvio do debate so­ bre o ícone - de sua condenação e de sua defesa1 - que pas­ sa a quase imperceptível linha de fuga, a fina fratura onde se instalará a possibilidade de figuração da paisagem.

Paradoxal porque, naquele lugar e naquele tem­ po, nenhum signo icônico, assim como nenhuma descri­ ção literária, trata de perto ou de longe do que chamamos paisagem. A questão de sua existência ou de sua não-exis- tência, assim como a de sua representação, está comple­ tamente ausente.

Paradoxal porque nada mais que a pintura mural bi­ zantina dá provas de perfeito desdém pelos elementos na­ turais de qualquer paisagem. Não obstante, é justamente

1. Cf., para tudo o que se refere a Bizâncio, o admirável trabalho de M. J. Baudinet, Les antirrhétiques de Nicéphore patriarche de Constantinople (Paris, Klin- cksiek, 1988). Cf. também seu artigo "La relation d'image à Byzance dans les an­ tirrhétiques de Nicéphore, au-delà de l'aristotélisme", Les Études Philosophiques (jan. 1978).

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aqui, justo nesse ponto preciso de formulação teórica, que se cogita a condição de sua possibilidade.

Dobra bem oculta, que a história da arte não recomen­ daria - ela só vê o fogo, só olha para o que é dad<g como vi­ sível: a rígida, reta, frontal figura de madeira dos ícones.

Contudo, dobra que necessitamos desdobrar, pois ela contém em germe, com a fortuna do quadro e de toda obra pictórica futura, o simultâneo infortúnio de suas futuras transformações.

Momento curioso, difícil de imaginar, indubitavel­ mente único na história do Ocidente, no qual o estatuto da imagem - questão teórica que aparentemente deveria sus­ citar apenas um "debate" - se torna questão de vida e de morte, de ultrajes e de insultos, de exílio e de destruição. Guerra de Religião, para falar a verdade, devastações. A imagem sangra por todos os lados. Má-fé, de um lado e de outro, e Fé má. Tudo isso sob o signo do signo.

O estatuto da imagem é, inicialmente, a questão da validade de uma representação mimética. Ou mais exata­ mente, no que diz respeito a esse momento preciso, a de sua verdade.

Claro que não se trata da Natureza como princípio nem de sua relação com sua figuração sob a forma da pai­ sagem, mas do princípio divino, o Deus cristão em três pessoas, e de sua figuração sob a forma de imagens a sua semelhança. Contudo, ao formular essa questão, e ao pro­ videnciar uma resposta para ela, é também a relação da na­ tureza com sua representação que está posta.

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69 Pode o princípio divino ser representado em uma forma sensível (visível)? Não, dirão uns (os iconoclastas), porque essa forma material trai a essência do divino e, ao propor a ilusão de uma similitude, faz o signo ser tomado pela coisa e conduz os cristãos à idolatria, Sim, dirão os outros (os iconó- dulos), porque nem toda imagem é necessariamente simili­ tude ou visa à identificação do signo com a coisa.

Toda a discussão se dá em torno da distinção entre uma imagem "semelhante a" e uma imagem "produzida para". Em -resumo, em redor da distinção entre imagem natural e imagem artificial, entre eídolon e eikon, simulacro e retórica. Compreendamos aqui o que significa "produzir segundo o princípio, ou modelo", e "copiar o modelo". Pe­ netremos os arcanos de uma distribuição providencial dos signos e das coisas que eles assinalam, ou, se quisermos, de uma economia geral dos signos.

Quando se pretende semelhante a seu modelo divi­ no, a imagem material é traição, pois exibe aquilo que é, em essência, invisível. Vertente sensível de uma presen­ ça ideal, ela divide o que é único e, pior ainda, substitui a ordem do espírito pela ordem da matéria. Habitada pe­ la homoousia, ou semelhança entre essências, ela usurpa a essência daquilo que se considera que ela possa figurar e se adona daquilo que não pode ser. Toda imagèm é, na pers­ pectiva iconoclasta, tomada no jogo de substituição fala­ ciosa da homoousia. Por isso é condenável.

Há outras maneiras de analisar o estatuto da imagem, retrucam os iconófilos, pela voz do patriarca Nicéforo. Des­

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sa imagem fundada na semelhança de essência temos, cla­ ramente, um e o mais alto exemplo: o Cristo, imagem do Pai, é a ele idêntico em essência, e contudo é ta^ibém sua imagem de carne, a encarnação. Mas é aqui justamente que se tem um caso particular, uma divina exceção ao ca­ ráter da imagem. Inútil pensar que nós outros, criaturas, poderíamos rivalizar com essa homoousia. Condenar sua prática é, por isso, absurdo. Seria o mesmo que castigar e fustigar algo que nos é impossível por natureza.

Porque se Deus "realiza" absoluta e perfeitamente a operação da homoousia, a saber, a adequação perfeita e es­ sencial do modelo e de sua imagem, nós outros só pode­ mos admirar e venerar sua obra, tentando simplesmente dar, para fins apologéticos, a imagem da imagem.

Se assim é, o perigo passa a ser, então, o de confundir em uma mesma vindita toda forma de produção de ima­ gens, supondo que toda forma de semelhança é do tipo dessa única homoousia.

Ora, existem imagens de outro tipo, não apenas viá­ veis, sem traição, mas até mesmo necessárias para com­ preender o mistério divino e convocar a graça de sua contemplação perfeita. Para tanto, basta estabelecer a legi­ timidade de se entregar a uma análise, de tipo aristotélico, dos diferentes sentidos do termo "imitação".

Levar em conta e apoiar-se na imagem-produção, aquela que Aristóteles chama de mímesis. Aqui, não é o modelo que é diretamente imitado, mas o modo de pro­ dução do modelo. Assim, o célebre "imitar a natureza"

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71 não significa que se vão "copiar" os objetos que ela ofe­ rece, mas a "economia" pela qual a natureza ou Deus age no mundo. Aqui, a relação da imagem com o modelo não é uma relação de identidade, mas uma relação homônima: um mesmo nome designa aqui dois objetos diferentes.

Como se diz no livro i das Categorias:

são chamadas de homônimas as coisas que só têm em comum o nome, mas a noção segundo a qual o nome é diferente pela essência..."homem"indica, desse modo, o homem vivente, mas também o homem representa­ do em uma pintura.

Relação de heterogeneidade que não suprime a relação, mas a assegura ao separar os termos. Com efeito, para que haja relação, é necessária a esquiz(o), a separação do que é posteriormente reunido - toda a questão do símbolo deri­ va dessa constatação.

Podemos, pois, produzir a homonímia, a homoiesis,

sem para isso substituir - por metáfora ou metonímia - a coisa pela imagem que ela iconiza. Nesse sentido, o ícone não é a parte de um todo, nem sua repetição material.

Do mesmo modo, a mímesis aristotélica não é simples cópia, mas produção original: poíesis. A tragédia não é si­ mulacro das ações humanas, mas produção de um conjun­ to de traços, que por uma linguagem elevada, provocando piedade e temor, obedecendo a leis específicas, às regras do gênero, propõe ações exemplares à admiração e ao re­

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conhecimento dos atenienses. Cabe a eles preencher esses traços, reunir os fragmentos em uma totalidade mnêmica. Do mesmo modo, o poeta "imita" o processo produtivo da natureza, cuja palavra de ordem é a economia. A distribui­ ção e a partilha de um bem comum em fragmentos que re­ fletem inteiramente sua potência.

Um distanciamento produtivo governa, desse modo, a fabricação do ícone, distinto por natureza daquilo que ele evoca. O ícone, produzindo-se como imagem artificial, pro­ duz ele mesmo uma tensão para, um ítpòcm [prosti]. Ele pertence à ordem da prática, está voltado para o uso.

Em resumo, ele pertence à ordem da sedução e da per­ suasão retórica. Ele é, antes de qualquer coisa, um "traço". Traço de união ou flecha atirada, apelo e convocação de uma unidade - a da Santíssima Trindade - no fragmento material. Longe de estabelecer aí uma similitude, ele pro­ põe simplesmente um suporte para o reconhecimento.

Desse modo, ele manifesta a potência do princípio di­ vino, que se mostra em todos os pontos da natureza, não por efeitos isolados uns dos outros, mas de maneira total e única até naquilo que nos parecem fragmentos. Essa facul­ dade de se dividir em mil fragmentos permanecendo único provém justamente da natureza divina, e o ícone, essa for­ ma construída para a arte, esse artifício humano, participa do desígnio geral da Providência, ao qual obedece.

Com efeito, se a natureza se comporta como ecônoma e dispensa seu estoque, partilhando-o com exatidão (salvo erros mínimos), vê-se Deus agir do mesmo modo, instau­ rando o plano geral de uma partilha. Com a distinção entre

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73 arquétipo e imagem, ele oferece o modelo de uma econo­ mia distributiva. Esse é o gesto que o poeta de Aristóteles imita, e é o gesto que o artesão de ícones reproduz em seu trabalho. Desse modo, a mediação do Cristo, imagem na­ tural, é fundadora do ícone, imagem artificial. Hierarquia de signos, sem a qual nenhuma mímesis seria possível.

O traço que circunscreve a imagem separa-a de seu modelo, mas, ao mesmo tempo, instaura por meio dessa disjunção um chamado à reunificação. O traço circunda um vazio, não um cheio. A pretensão da imagem icôni- ca não é dar positivamente um substituto essencial, mas cavar uma diferença. Diferença que virão esclarecer com seus brilhos as cores resplandecentes da graça e a figura, sempre ausente, do Cristo.

Portanto, o ícone e seu hieratismo austero, o man­ to de dobra rígida, os olhos circundados de preto, os joe­ lhos e a nuca que se pressentem retos. Uma economia de signos que remete à Economia divina, mas, curiosamente, nenhum traço de paisagem, de natureza, de floração diver­ sificada: a natureza está inteira dobrada e como que re­ fugiada no manto de seu Senhor. É idéia dele, nele está contida. Evocá-lo, ele, o Senhor, por meio do traço icônico, é designar economicamente o que ele criou para envolver sua obra, o homem. Não há, portanto, a mínima necessi­ dade de insistir nesse invólucro.

Onde estão, então, os jardins do otium e do uti com que Horácio e Plínio nos encantam? As bucólicas de Vir­ gílio, com Títiro tocando flauta sob os olmos, enquanto

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os pequenos deuses campestres protegem os rebanhos? Nada de "bucólicas". Não se encontram mais nem fontes nem bosques sagrados, relvados floridos de mil flores, so­ pro do zéfiro, e os próprios pássaros já não misturam mais suas vozes aos murmúrios do vento. Onde está a poesia que toma a pintura como modelo? Ao contrário, é a pin­ tura que, em Bizâncio, toma por modelo a poesia: a repre­ sentação icônica, o traço que circunscreve a ausência é um traço retórico, uma figura do nome. Na verdade, sua figu­ ração. Dessa maneira, a apresentação de um pedaço da na­ tureza, apresentação que era habitual entre os latinos, cede passagem a um dispositivo completamente distinto: da ho- moousia passou-se à homoiesis: agora a imagem é uma fa­ bricação, distante daquilo que ela "iconiza", é um ícone (e não um eídolon) onde se mostra a potência do nome, in­ termediário obrigatório de toda construção pictórica. Com efeito, o jardim latino não podia ser paisagem, visto que era um pedaço arrancado da Natureza, da mesma espécie ou essência. Ele era uma parte dela, separada, e era justa­ mente essa separação que o tornava incapaz de designá-la por inteiro.

Ao renovar o estatuto da imagem, Bizâncio, mesmo sem se interessar pelo meio ambiente natural, torna pela primeira vez possível a operação de substituição artificial que a paisagem ilustrará.

Na natureza em que sua apresentação é de ordem icô­ nica, a paisagem responderá, com efeito, à regra de sepa­

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75 ração e de substituição dos termos de uma relação: será ícone da Natureza, e não semelhante a ela; será construída, artificialmente produzida para convocar a natureza a pre­ encher o vazio que o traço perigráfico estende ao olhar. Assim é que se tornou possível a relação paisagem-natu- reza como a de uma Verdade indizível e de seu correspon­ dente gráfico, de uma Voz ausente e do nome pronunciado. Relação de homonímia.

Mas, no mesmo movimento, a travessia do signo ar­ tificialmente constituído em sua produção econômica ru­ mo ao modelo - Deus ou a Natureza - produz uma espécie de confusão e incita (o que os iconoclastas temiam) à iden­ tificação abusiva das duas extremidades da cadeia. Tan­ to mais que o Oriente liberou, para o prazer dos olhos, as suntuosas riquezas de suas cores: o ouro e o púrpura, mas também o azul que se vê no céu das cúpulas, violetas de­ licados, matizes de verde, uma profusão de ocres pálidos. Claro que era necessária essa passagem teórica, essa argu­ mentação densa que estabelece a imagem em seus direitos e em seus limites, mas, sem dúvida, também era necessá­ ria essa passagem à cor para que a imagem, agora capaz de funcionar como ligação entre dois mundos, pudesse ser vista, sentida e imaginada enquanto análogon da Nature­ za... até tomar o lugar dela e responder em seu nome. Isso decorrerá da pintura, de sua questão, de sua importância.

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A QUESTÃO DA PINTURA

Até aqui, a pintura fez apenas uma tímida aparição. De modo geral, sem dúvida, com o ut pictura, onde o termo aparece, mas ainda na forma de simples promessa, dispo­ sição do espírito. Sim, seria preciso que a poesia pintasse (pintar ou representar?), que arrastasse e incitasse ao visí­ vel, que fizesse quadro. Mas que espécie de quadro?

Ou teríamos falado da cor, de formas por meio das quais a natureza podia ser evocada; mas qual natureza? Uma natureza idealizada - a economia divina, a Provi­ dência, o destino. De pintura propriamente dita, nem uma palavra, apenas a possibilidade de um ícone, signo de sua duração como imagem.

Tempos da pintura, de sua questão. Como evitá-la? E de situá-la em seu lugar: a Renascença. Não para, dora­ vante, passar a residir com ela, e com ela permanecer de­ finitivamente, dizendo: "A paisagem é a pintura", como a

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77 todo momento, na evidência implícita do natural, dizemos: "Bem, a paisagem está a nossa frente", apontando o dedo na direção desse "a nossa frente". Agora, bem que podería­ mos dizer, fundamentados em tanta arte, em tantos qua­ dros, em tantos planos azulados das telas quatrocentistas: "A paisagem nos é dada pelo artifício da técnica, aqui e também acolá..." Não teríamos nomes suficientes para no­ mear todos os pintores, todas as obras. E, mais uma vez, nos encontraríamos numa dobra, numa sombra. E, dessa vez, no quadro.

Com efeito, a questão - a da pintura propriamente - não está em: "Como fazem os pintores com a paisagem?" Seria fácil e, por assim dizer, apaixonante responder a isso.

A questão é, sobretudo, a seguinte: como pode ocorrer que, em um domínio tão restrito - tela, madeira, paredes, cores -, aquilo que os pintores da Renascença fabricaram tenha se tornado a própria escrita de nossa percepção visu­ al? Teriam eles projetado uma espécie de máquina de olhar a paisagem, ou melhor, de fazê-la aparecer em um lugar onde ela não tinha a mínima razão de ser, impondo-a assim como o único olhar possível para a natureza e em vista da mesma?

Pergunta que não deixa de nos surpreender e que ma­ nifesta o estatuto singular da pintura, sua originalida­ de em comparação com as outras artes. Porque ninguém contestaria, por exemplo, o poder de a arquitetura mode­ lar nossos comportamentos, gestos e maneiras, à medida que sabemos perfeitamente que os espaços estruturados

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nos obrigam à ação comedida. Há nisso uma ação e reação quase direta sobre nossos comportamentos, sobre o senti­ mento do pleno e do vazio, sobre as orientações, as distân­ cias a respeitar, sobre a própria consciência que temos de nosso corpo e de suas possibilidades de agir no espaço que nos é assim oferecido. Na cidade moderna, as estradas e as vias expressas, as pontes e as ruas, as praças e os lugares abertos transformam nossos usos, liberam ou entravam a caminhada, provocam alguns de nossos gestos que se tor­ naram habituais e condenam outros.

Sem dúvida, o mesmo ocorre com o barulho, da­ do que deixamos de suportar bem o silêncio; vivemos em uma espécie de zumbido contínuo, no qual a estridência se combina com o ruído de fundo. Percebemos as artes do construído e do sonoro como a presença de uma sociedade determinada, conveniências de época, obrigações rituais e submissão ao "as coisas são assim". Mas nem passaria por nosso espírito confundir os acidentes necessários com a "verdadeira natureza das coisas", muito menos com a pró­ pria natureza. Pensamos civilização, costumes, sociedade, relatividade.

O mesmo não se passa com a visão, que, parece, se apodera do que "realmente" existe. A pintura, então, à me­ dida que nos fornece esse olhar sobre coisas chamadas de reais, e apesar de não passar de uma representação, tem a ver com a verdade fora de toda relação com a conformi­ dade social. A questão da pintura depende disso: ela pro­ jeta diante de nós um "plano", uma forma à qual se cola a

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79 percepção; vemos em perspectiva, vemos quadros, não ve­ mos nem podemos ver senão de acordo com as regras ar­ tificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a da paisagem.

Tratar-se-ia aqui da pintura como de uma questão que sempre teria estado ali, implícita, mas que se viu, subita­ mente, desdobrada como questão?

Porque, se se trata de paisagens, e de paisagens pin­ tadas, elas estavam ali muito avant la lettre, antes da Re­ nascença. As vilas de Pompéia com suas cenas de ilusão: as paredes são crivadas de céus e de pássaros, de ma- rinas e de barcos. Ilusão que dão as janelas pintadas, encaixadas em enquadramentos de colunas e de balaus­ tradas, no desdobramento das verticais, "vistas" se ofe­ recem à vista. Perspectivas de perspectivas: as janelas pintadas se abrem para outras janelas, armários se en­ treabrem para prateleiras carregadas de objetos, enquan­ to Ulisses aparece ao longe, em um cenário de grutas e de portos...

Contudo, a questão da pintura não está posta. A pai­ sagem "pintada" permanece cativa nas paredes cegas, é história, narrativa. Não abre a natureza à visão por meio de si mesma. Não é de dupla face. A plástica que a "relata" se­ gue encerrada em seu domínio técnico. Ela pensa moldura e quadros isolados, ela pensa "ilusão". Ela aparenta pare­ cendo. A regra que a orienta é o bom senso, a ratio, prova

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