O mal-estar muda como muda
O mal-estar muda como muda a civilização. Nossas maneiras dea civilização. Nossas maneiras de so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento de si com o
de si com o outro está na gênese de nossas outro está na gênese de nossas novas �ormas de so�rer.novas �ormas de so�rer. Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O so�rimeno nos predispõe a
so�rimeno nos predispõe a dividir nossa inimidade e, por isso,dividir nossa inimidade e, por isso, ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, �eia de pequenas escolhas e de g
�eia de pequenas escolhas e de grandes conflios.randes conflios.
Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias sinomáicas? Onde esá a �roneira de so�
sinomáicas? Onde esá a �roneira de so�rimeno que nos �arárimeno que nos �ará escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar o mundo e a nós mesmos?
o mundo e a nós mesmos?
Em uma linguagem bem-humorada e acessível e Em uma linguagem bem-humorada e acessível e abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o
papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em empos de alienação e de so�rimeno proje
empos de alienação e de so�rimeno projeado no ouro.ado no ouro. Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie
Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie de manualde manual domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa clínica é ambém críica social �eia por ouros meios.
clínica é ambém críica social �eia por ouros meios.
Combinando erudição universitária com linguagem Combinando erudição universitária com linguagem corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a ascensão de um Brasil em estado
ascensão de um Brasil em estado de con�rontação. Esquerdistas ede con�rontação. Esquerdistas e neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que nos �azem so�rer, e cada vez
nos �azem so�rer, e cada vez mais solitariamente. O poder emanamais solitariamente. O poder emana de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, Estado
Estado, hospital , hospital ou universidade, psicanalista, amigos e amores.ou universidade, psicanalista, amigos e amores. As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nunca nos curar do Ouro.
REINVENÇÃO
DA INTIMIDADE
POLÍTICAS DO
SOFRIMENTO COTIDIANO
CHRISTIAN
DUNKER
A BUSCA DA BICICLETA PERDIDA 7
INTRODUÇÃO 11
SOLIDÃO: MODO DE USAR 1. Solidão e soliude 19
2. Preciso de um empo só para mim 38
3. A melancolia de Ozymandias 42
4. Começar e erminar 45
5. Sobre a more e o morrer 48
AFETOS COMPARTILHADOS 6. A raição e seus horrores 57
7. O ciúme e as �ormas paranoicas do amor 62
8. A �unção rans�ormaiva do ódio 71
9. Con�ormações da inimidade 77
10. Desmascarar as imposuras do amor 87
11. O amor pelos animais e seus limies 93
12. A vergonha como denúncia da �anasia 95
JUNTOS E SEPARADOS
13. Fundamenalismo conjugal 102
14. O casameno como perversão consenida 107
15. O verdadeiro amor �az exceção à lei 109
16. O dinheiro do casal 112
17. A mulher elepaa e o homem das cavernas 114
A CRIANÇA QUE NOS UNE E NOS SEPARA 18. A are de imbecilizar crianças 117
19. Loucura maerna 120
20. Oprimindo mulheres e desauorizando mães 122
21. O dever de a�eo e o direio de verdade 129
22. A cor e a �orma do cuidado 132
23. Síndrome da alienação parenal 135
24. Inoxicação digial in�anil 138
SOFRENDO DO OUTRO
25. A geografia imaginária da segregação real 148
26. Cercas, muros e silêncios 155
27. Paranoia sisêmica 158
28. Somos odos vândalos? 161
29. Cuidar ou conrolar? 172
30. A �elicidade como �aor políico 182
31. A alma revolucionária 186
SOFRENDO COM O OUTRO
32. O so�rimeno enre a verdade e o real 195
33. A paixão prognósica e a invenção de novos diagnósicos 203
34. A paixão diagnósica 205
35. Neurose em esruura de ficção 207
36. Depressão do urso polar 220
37. Perversão ordinária 229
38. Síndrome pós-naalina 236
39. Que fim levaram os maníacos? 239
PATOLOGIAS DO INDIVIDUALISMO À BRASILEIRA
40. Novas �ormas de so�rer no Brasil da reomada 242
41. O paradoxo moral do baalhador brasileiro 249
42. A culura da indi�erença 251
43. Crimes da palavra e culura da denúncia 254
44. A querela do consumo 260
45. Solidariedade sem ranscendência? 263
46. Narcisismo digial 265
POLÍTICAS DE TRATAMENTO
47. Doença menal na políica 277
48. O neoliberalismo e seus normalopaas 284
49. Reinvenção da intimidade 293
ÍNDICE REMISSIVO 303
11
INTRODUÇÃO
Este livro segue a intuição antropológica e psicanalítica exami-nando como �ormas �undamentais de nossos sintomas rela-cionam-se com processos de individualização próprios da vida contemporânea, particularmente com uma das figuras mais as-cendentes da individualização hoje: a experiência de so�rimento. So�rer é algo que depende essencialmene de rês condi-ções: a narraiva na qual esá inserido; os aos de reconheci-meno que fixam sua causa e a ransiividade que o orna uma experiência coleiva e indeerminada. O ransiivismo é um �enômeno ípico da in�ância, relacionado ao complexo de in-rusão, momeno no qual a criança elabora a enrada de rela-ções riádicas, paricularmene com ouras crianças da mesma idade. Nessa siuação, �requenemene ela experimena, por exemplo, se colocar como agene de uma ação na qual, na ver-dade, ela é paciene da ação do ouro. Tipicamene, ela bae na oura criança e chora porque sene e�eivamene que �oi a oura criança que baeu nela. Ou enão ela oma um brinquedo, mas sene e inerprea que �oi a oura criança que omou o brinque-do dela. Em adulos, a siuação de ransiivismo reorna, por exemplo, em desavenças e conflios nos quais não se consegue dirimir quem esá agindo, provocando ou causando um deer-minado esado de coisas e quem esá reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ao iniciado pelo ouro. Essa con�usão enre quem age e quem so�re a ação aparece ambém em casos mais graves, noadamene em �ormações deliranes e alucinaórias nas quais um pensameno e�eivamene experienciado pelo su-jeio é senido como causado ou imposo pelo Ouro.
Essas rês condições – narraiva, reconhecimeno e ransiivismo – combinam-se com uma hipóese: o
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�rimeno requer e propaga uma políica. Isso quer dizer que a �orma como conamos, jusificamos e parilhamos nosso so-�rimeno esá sujeia a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das víimas, o poder dos indi�erenes e aé mesmo o poder da indi�erença ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o so�rimeno e de quem esperamos le-giimidade, dignidade ou aenção, seja esse alguém o Esado ou o ordenameno jurídico e suas políicas públicas, sejam as ima-gos do médico, do padre, do douor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem comparilhamos a vida coidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos.
A ex-sistência (existir �ora de si) compreende uma par-cela de so�rimento que não é eliminável. Nosso corpo se de-grada, nossas leis são repetitivamente imper�eitas, a natureza nos impõe reveses de toda sorte. As três Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contu-do, nem tudo no mal-estar é aceitável e requer nossa resigna-ção. Por isso, diante do so�rimento há sempre uma escolha a �azer, trans�ormar o mundo ou trans�ormar a nós mesmos. Essa trans�ormação depende, portanto, de como reconhece-mos o so�rimento que nos acomete. Frequentemente nos re-cusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos so-�rendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que so�rer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa ex-periência é uma �raqueza moral. Há, portanto, uma micropo-lítica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implicação acerca das causas, das razões e dos motivos do so�rimento. Aqui acontece também uma espécie de conflito ou de concorrência entre as narrativas que sancionam ou derrogam, visibilizam ou invisibilizam o so�rimento.
In-dividualizar ou coletivizar, culpar ou responsabilizar, incluir ou excluir, construir ou desconstruir a�etos correspondentes a tais narrativas, tudo isso �az parte das políticas do so�rimen-to cotidiano. Compartilhar nosso so�rimenso�rimen-to so�rimen-tornou-se uma tare�a ainda mais complexa depois do neologismo proposto por Lacan: extimidade. Encontrar a intimidade �ora e o estra-nhamento dentro, sem que eles sejam equivalentes. Em vez de uma políticasem partido, seria melhor �alar aqui, com Ca-zuza, em uma política docoração partido.
Déficits e excessos de individualização revelam-se na pró-pria experiência de so�rimento e na �orma de �ugir e negá-la. Isso aparece, por exemplo, na tendência à hipersocialização, a disposição a ficar permanentemente ligado, ocupado ou dispo-nível, como na impotência para constituir situações e percur-sos de real solidão ou intimidade. Como toda política, ela �az um corpo, ela cria unidades de discurso, ela define um coletivo identificado por um mesmo traço ou uma mesma suposição de desejo ou de demanda.
Cada experiência de so�rimento é uma história que se trans�orma na medida em que é contada. Uma história ruim pede uma pior; a luta �eroz por qualificar seu so�rimento como legítimo tornou-se uma das gramáticas morais mais importantes de nossa época. So�rer com o outro ou so�rer do outro são os dois polos dessa gramática contagiosa. O so�ri-mento solitário e o so�riso�ri-mento coletivo chocam-se nesse pon-to, em que a escrita de uma história trans�orma o seu autor. A situação em que se estálonely, em inglês, ouallein, em ale-mão, é di�erente da situação em que se está consigo mesmo,
selbständig, ou se está só,einsam. O so�rimento que se so�re sozinho às vezes se trans�orma em outra coisa quando narrado. Há no alemão e no inglês uma expressão para
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essa di�erença entre solidão e solitude, que se apresenta no verso de Alexander Pope, em “Ode à solidão”:
Deixe-me viver, sem ser viso, desconhecido Deixe-me morrer sem lameno;
Roubado do mundo, sem uma pedra A dizer onde esou.1
Se o amor é ese pequeno esado de loucura provisória, ele in-clui ano as pequenas comédias de erros quano as grandes ragédias que compõem a psicopaologia da vida coidiana. APsicopathologie des Jedestag ouPsicopatologia da vida cotidiana, segundo livro homônimo de Freud, pode ser lida como paolo-gia socialdenossa experiência coidiana, experimenada como pobre, ediosa, acelerada, demasiadamene previsível ou im-previsível. Mas a expressão ambém pode nos remeer a uma psicopaologiaa partir davida coidiana, ou seja, como a vida coidiana pode nos �azer so�rer, produzindo esados afliivos ou confliivos coninuados, que erminam por �ormar sinomas.
Pensar nossa individualização a partir da �orma como estruturamos o so�rimento na linguagem é um capítulo de-cisivo de nossa política de subjetivação. A maneira como in-terpretamos ou codificamos, nomeamos ou meta�orizamos, descrevemos ou narramos nossa experiência de so�rimento trans�orma sua natureza, extensão e intensidade. Tal política pode se centrar sobre o que há de
ipsei-dade (somos únicos em nosso so�rer), de
mesmidade (somos como outros em nos-so nos-so�rimento) ou de nossaidentidade (so-mos como nós mes (so-mos e nos desco-brimos como outros e até mesmo
nos reencontramos como outros nós mesmos ao so�rer). Pode-ríamos �alar ainda nessa estranha condição contemporânea pela qual tornamos nosso so�rimento uma propriedade, capi-talizando-a discursivamente ao produzir o que Lacan chamou de um a mais de gozo. Tal propriedade do so�rimento aparece também nas duas cartas de Rimbaud nas quais ele afirma que
o eu é um outro:
Eu é um ouro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscienes que discuem sobre o que ignoram compleamene!
[Cara a Georges Izambard]
Pois �� é um ouro. Se o cobre despera clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidene: assiso à eclosão de meu pensamen-o; conemplo-o; escuo-o; �aço um movimeno com o arco: a sin�onia �az seu movimeno no abismo, ou de um salo surge na cena.
[Cara a Paul Demeny]2
Percebe-se que osofrimento do eu é o sofrimento do outro em vários sentidos, cada qual com sua política, cada qual com sua lógica própria de reconhecimento. Entre a madeira e o violino, ou entre o cobre e o clarim, há uma continuidade damesma
matéria e uma di�erença de �orma. A madeira que in�ortuna-damentese descobre violino indica a possibilidade de so�rermos
com mudanças de �orma. Entre os que discu-tem sobre o que ignoram, há uma re�erência ao so�rimento como alienação e desconheci-mento, não só de si, mas na relação com o outro com quem discutem. Finalmente,
1 “Thus let me live, un-seen, unknown;/Thus unlamented let me dye;/ Steal from the world, and not a stone / Tell where I lye.” Alexander Pope,Ode on Solitude
[1700]. Tradução do autor. 2 Tradução Marcelo Jacques de Moraes [����]. Alea, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro, jan./jun. 2006.
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na imagem da sin�onia e do salto no abismo há o so�rimento com a vertigem do �uturo, o vir-a-ser,únicoe singular, ainda que incerto ou indeterminado.
Os exos aqui reunidos cobrem 26 anos de inervenções e reflexões práicas sobre ese nosso ganha-pão como psicanalis-as: o so�rimeno. A �orma desses escrios, alguns deles curos, não responde apenas à agregação de colunas, enrevisas e ari-gos, mas ela ena preservar no ensaio a maéria-prima do co-idiano, �eio de unidades desconínuas ainda que em esruura de repeição. Uma vida compreende hiaos e parêneses, reo-madas e reicências, acelerações e descompressões, líquidos e sólidos, oposições que mobilizamos para caracerizar o so�ri-meno nese início de século ���. Por isso, em vez de disciplinas enciclopédicas e princípios gerais de cura, o leior enconrará aqui casos, siuações ou regularidades clínicas que reconsi-uem o caleidoscópio incero que é o problema dese livro.
“So�rer junos” ou “so�rer separados” �ormam assim as ba-ses de nosso problema, que é saber como �ormamos conjunos e séries de conjunos nese espaço que chamamos de coidiano. Enender processos de individualização como �ormações his-óricas implica políicas de reconhecimeno ou de denegação de reconhecimeno. Deerminar os limies enre a experiência produiva e a experiência improduiva de so� rimeno, no curso desa gramáica de conrários, requer a apreciação das rans�or-mações pelas quais o Brasil passou em seus úlimos vine anos, paricularmene no que concerne a seus modos de subjeivação e de individualização, uma vez que o so�rimeno parece ser co-variane de seus a�eos hegemônicos.
Nesse senido, a políica discursiva e insiucional a�ea nossas �ormas de so�rer, por exemplo, regulando a rela-ção enre lei e so�rimeno. Por ouro lado, a experiência
de so�rimeno é muio mais exensa do que as �ormas sociais de seu reconhecimeno; por isso são criadas novas demandas de reconhecimeno, praicando assim uma �orma de políica. Isso aconece ano porque nós aprendemos a so�rer, quano porque o so�rimeno não é indi�erene ao poder: seja ele pensado como impoência melancólica, seja como impossibilidade represen-ada pelo incurável da experiência humana.
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Solidão:
modo de usar
SOLIDÃO E SOLITUDE: A DIMENSÃO TRÁGICA DO SOFRIMENTO
Muitas tragédias contemporâneas se assemelham ao que aconteceu no bairro carioca de Realengo em 7 de abril de 2011, quando doze crianças �oram mortas dentro da Escola Municipal Tasso da Silveira por um ex-aluno que se sentia rejeitado pelos antigos colegas e pro�essores. Um homem que vivia isolado e retornou para se vingar dos colegas e da esco-la que o teria repudiado e depois para se suicidar. Posteriormente, vários serviços de saúde receberam denúncias contra solitários contumazes. A razão diagnóstica adora devorar tragédias.
Entendo que as tragédias nos convidam a reconhecer algo que está suprimido em uma determinada configuração social. Não são, portanto, espécies que se incluem em classes pré-consti-tuídas, mas desafios para nossa imaginação política e psicológica. Georg Lukács, em seu clássico A teoria do romance, mos-rou que o herói moderno siua-se necessariamene enre o cri-me e a loucura, pois essas são as duas �ormas �undacri-menais de deserro. O herói é alguém que vive radicalmene a disância com relação a si e ao ouro, seja como ensão enre o ser e o de-ver ser, seja como cisão inerna, seja como oposição enre vida real e ideal. Lembremos que Dom Quixoe, Hamle, Don Juan ou Fauso são figuras do deserro e do auoexílio, personagens que escolhem não er lugar. Daí que a solidão seja o senimeno essencial da ragédia, assim como o isolameno seria a experiên-cia cenral da epopeia e a confiança, o ema-chave do romance.
A conclusão cristalina vale tanto para a literatura quanto para a psicanálise: sem a experiência da própria solidão, a vida nos pa-recerá postiça, artificial ou vulgar. A verdadeira e produtiva via-gem solitária pode ser �eita a dois, em grupo e até mesmo em meio à dissolução do indivíduo na massa, mas o pior mesmo é quando tentamos evitá-la. A solidão é uma das �aces do que
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os psicanalistas chamam de separação ou de castração. Nela, o ob-jeto com o qual nos identificamos para cobrir nossa �alta e nossa �alta no Outro é finalmente deslocado de sua �unção encobridora. Experiência simbólica por excelência, ela traz consigo não apenas a separação para com os outros, mas a distância e o estranhamento com relação a si mesmo. Solidão não é apenas introspecção ou in-troversão, mas dissolução da própria solidez do ser.
Ocorre que há ceras siuações de exclusão social, precon-ceio, segregação e supressão da di�erença que promovem uma espécie de �alsa solidão. Elas parecem dar corpo imaginário ao �racasso de esar com o ouro. Assim, a solidão é subsiuída por oura coisa: indi�erença, vazio ocupacional ou ressenimeno. Por meio desses suber�úgios, nunca esamos sozinhos. O pre-juízo psíquico causado pela impossibilidade de esar sozinho é incalculável. Inerpreamos a ausência do ouro como r ecusa de reconhecimeno, reduzimos a experiência produiva de solidão ao desamor, abandono ou devasação. Insilamos a lua imagi-nária para provar quem precisa menos do ouro.
É por ser a solidão ão rara e ão difcil de consruir que surgem ais paologias, maneiras de se de�ender, de mimeizar ou de exagerar um processo benéfico a pono de sua finalidade ornar-se irreconhecível ao próprio sujeio. Tipicamene isso se expressa em senimenos aparenados da solidão: o vazio, a ir-relevância, a inadequação e a menos-valia. O que vem depois de uma maraona social de consumo, do início de �érias, da in-sônia crônica, do final de namoro que não ermina nunca: a re-cusa do �ao rágico da solidão. Os proagonisas dos grandes ro-mances do século ��� inham na ironia um recurso �ormal para reraar o rabalho da solidão, uma �orma de ornar produiva a experiência de desenconro com si mesmo. É o caso de personagens machadianos como Brás Cubas ou Beninho.
Nada menos rágico do que aquele que se leva a sério demais em sua própria �alsa solidão. Por isso, anes de suspeiar da norma-lidade do vizinho soliário, vejamos se ele não esá a nos �azer lembrar nossa própria solidão malraada.
Se entendermos que os transtornos psicológicos definem-se pela introdução de uma coerção ou de uma restrição na vida rela-cional das pessoas, é coerente pensar que o so�rimento �requen-temente trará e�eitos de isolamento, a�astamento ou ruptura das relações. Ocorre que esse movimento, que pode ser uma reação útil e desejável em uma série de circunstâncias geralmente pe-nosas, torna-se ele mesmo uma �onte de outros problemas de-rivados da privação de experiências compartilhadas com outros. A solidão e o esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, �oram os primeiros diagnósticos de época entabulados por Hegel, ainda no século ���. Em outras palavras, o isolamento, a introversão ou a introspecção são respostas subjetivas que nem sempre são uma opção ou se iniciam como uma “escolha livre”, mas que gra-dualmente podem assumir o �eitio de um processo incontrolável, no interior do qual isolamento gera mais isolamento. A difcil manobra psíquica da separação pode se trans�ormar dessa ma-neira em algo que aparenta ser uma separação, mas e�etivamen-te não é. Como ocorre com o sujeito isolado, mas que na verdade está pro�undamente oprimido por �alas, presenças e experiên-cias das quais ele não consegue se separar subjetivamente. É o caso, por exemplo, do ressentimento. O ressentido pode estar so-zinho e isolado; geralmente ele procura isso, mas não está de �ato só e separado. Na verdade, ele não consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa então a ressenti-los na solidão de seu quarto ou na antessala do sono.
Poderia-se pensar enão que a boa solidão é a solidão escolhida, intencional e deliberada. Essa ideia daopçãopelo
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isolameno é basane raiçoeira, porque ela assume que ceros
jeitos de ser ou estilos de vida são aplicações livres que alguém realiza sobre a maéria-prima indefinidamene elásica e sem �orma chamada vida. Também não goso muio da palavra
transtorno, apesar de ser o arremedo mais usual para não �alar em doença, pois ransorno é a radução do inglêsdisorder, ou seja, desordem. Como nossa culura não é assim ão �anáica pela “ordem”, a pono de achar que ela exprime a essência e a na-ureza úlima da normalidade, opamos por “ransorno”. Mas ransorno sugere algo como uma pedra no meio do caminho, que a gene remove como um obsáculo coningene. A solidão orna-se um ransorno quando assume a dimensão de umtem que ou de umnão pode com.
O sujeito que está solitário, mas “pode” per�eitamente ir a uma �esta, �requentar a escola ou ver os amigos, está aquém da linha. Aquele que apenas “acha que pode”, mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganosoMas quando eu quiser eu consigo, irmão do similar alcoolistaQuando eu quiser eu paro, deve se preocupar. Estão aqui todas as depressões, as distimias, as obsessões e as estratégias de dizer não para o Outro. Muitas pes-soas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaração nominal de que “ele não quer”, então o que vamos �azer, senão respeitar a “opção”. A coisa não é bem assim, já dizia Kant, pois até que ponto o sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade?
O segundo critério diagnóstico é a coerção, mas esse é mais �ácil de ser identificado. Trata-se daquela pessoa que diz direta ou indiretamente que elatem que ficar sozinha, e aí entra a segunda parte da �rase,tem que…senão. Nessesenão estão incluídas as
�o-bias sociais, as agora�o�o-bias, os transtornos do pânico, as personalidades esquivas, ou seja, todas aquela situações
nas quais a rua ou o Outro inspiram medo ou angústia insupor-táveis. Assim, fico sozinho porque estou seguro e distante daqui-lo que é conflitivo ou ameaçador. Nesse caso, o sujeito não está dizendo algo comoNão preciso de você ouVocê me abandonou, por isso eu te abandono também. Aqui a gramática do so�rimento está baseada emNão consigo estar diante do olhar do Outro que me cri -tica, mas em relação ao qual eu desejo estar incluído.
O caso exremo do primeiro ipo é o sujeio que se reira do mundo para remoer sua raiva aé o momeno que sai de lá para se vingar. O caso paradigmáico do segundo ipo é o sujeio que não consegue esar com o Ouro porque ese é muio e in-rinsecamene ameaçador, como no auismo e na Síndrome de Asperger. Haveria, é claro, �ormas combinadas, como aquelas que se reiram raumaicamene do mundo, a exemplo do per-sonagem do filme argeninoMedianeras: Buenos Aires da era do amor virtual[Gusavo Tareto, 2011]. Nesse caso, raa-se simul-aneamene de dizer não ao mundo e de dizer não para si mesmo. Chegamos enão ao que se pode chamar desolitude, a soli-dão boa e necessária, cuja impossibilidade anuncia o paológico. A solidão desse ipo e nessa qualidade inensifica ceras expe-riências percepivas e imaginaivas. Ela é condição para o reco-nhecimeno de grandes quesões. Com o ouro, nosso próximo e vizinho, �requenemene nos esquecemos de nós mesmos, o que reaparece nas experiências de angúsia, separação e luo. Mui-as separações objeivas mosram-se rerospecivamene apenas uma ação para reinroduzir parêneses de solidão em uma vida poluída por ocupações e ormenos. Quando a criança descobre a possibilidade de ficar sozinha, oda sua relação com o Ouro se modifica. Ela aprende que sua presença é coningene e não necessária e, porano, que ela pode querer e ser querida. Essa separação é �undamenal para a consiuição de nossa
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capacidade de amar e a inclusão da coningência que lhe é ne-cessária. É impossível criar sem amor e angúsia, e essas duas experiências dependem da capacidade de esar só. Não se raa apenas de quieude, isolameno e esvaziameno, mas de um conjuno de senimenos alamene necessários para a saúde menal, sumariamene: esranhar a si mesmo, espanar-se com o mundo, perceber-se conradiório, �ragmenado, múliplo, di-�erene de si mesmo, �rágil, vulnerável, capaz de sobreviver e de “suporar-se”. Durane boa pare de nossa hisória culivamos a
solidão como experiência enriquecedora:
a) Na filosofia: a mediação grega (premediação dos males), o reiro monásico, a mediação invesigaiva (como em Descares), a inrospecção psicológica.
b) Na arquieura: os inúmeros disposiivos para �avorecer o culivo da solidão, como os jardins ingleses (�eios em �or-ma de labirino para que a pessoa possa se perder e, por-ano, se reenconrar), os clausros, os ários, as cripas, os escuros do barroco.
c) Na pinura: o ema da paisagem e seu correlao, o rerao. d) Na poesia: o ema da saudade, do deserro, da perda e do
amor inconcluído.
e) Na lieraura: quase odos nossos heróis são soliários (de �orma volunária ou involunária), Dom Quixoe, Hamle, Don Juan, Robinson Crusoé, Fauso, o flâneur de Baudelai-re, nosso Brás Cubas e assim por diane.
A ligação enre ideias obsessivas e compulsões com uma esra-égia subjeiva baseada no isolameno já havia sido descria por
Freud. Talvez não seja um acaso que as primeiras ocorrên-cias hisóricas da palavraobsessão liguem-se ao período de
emergência do crisianismo como práica de auo-observação e conrole de si. É preciso ver como a classificação, a escrupu-losidade e o goso pela ordem e pela discriminação são aiudes subjeivas que nos permiem reduzir o desprazer e en�renar conflios. Todos nós emos queseparar as coisas, seja enre o que aconece em casa e o que aconece no rabalho, o que aconece enre amigos e o que aconece enre namorados, seja nossa vida pública e nossa vida privada, seja ainda separações que impo-mos a nós mesimpo-mos, como a vida adula e a in�ância, o passado e o presene, o conjuno de relações que ivemos com uma pes-soa do conjuno de relações que eremos com oura pespes-soa (que por vezes virá a ocupar �unção ou posição similar diane de nós). Ora, uma vida sem a clareza de queuma coisa é uma coisae outra coisa é outra coisa seria uma vida insuporável.
Ocorre que essa de�esa subjetiva normalmente se apoia em estratégias de objetivação, que concorrem para produzir uma �orma de vida na qual as “separações externas” são uma espécie de garantia e de confirmação para “separações internas”. O Japão e, especialmente, a vida nas grandes cidades japonesas são um exemplo maior da combinação de �orças que geram o isolamento. Uma cultura na qual tradicionalmente o valor do grupo de ori-gem ou da comunidade de trabalho é �undamental, onde a ver-gonha de se mostrar abaixo das expectativas desse grupo supera a culpa por decepcionar a realização do próprio desejo, vai o�erecer poucas alternativas para as �ormas de vida que se separam desse ideal comunitário. O isolamento que se sucede entre adolescentes costuma ser uma espécie de consagração da já superindividuali-zada vida social. Lembro ainda: não é porque “grupo” é o valor de re�erência que os indivíduos não sejam, eles mesmos, isolados dentro desse grupo. Basta que apareçam certas experiências que o grupo não reconhece como suas. Assim, aquilo que
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Produção gráfica ����� ����� Nesta edição, respeitou-se o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Inernacionais de Caalogação na Publicação (���) Dunker, Chrisian [1966–]
Reinvenção da intimidade – políticas do so�rimento cotidiano São Paulo: Ubu Editora, 2017
320 pp.
���� 978 85 92886 46 2
1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Coidiano. �. Tíulo.
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Índice para caálogo sisemáico: 1. Psicologia 150 2. Psicologia 159.9
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COLEÇÃO EXIT Como pensar as quesões do século ���? A coleção Exi é um espaço ediorial que busca idenificar e analisar cri-icamene vários emas do mundo conemporâneo. Novas �er-ramenas das ciências humanas, da are e da ecnologia são
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FLORENCIA FERRARI MILTON OHATA