• Nenhum resultado encontrado

Reinvencao Da Intimidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Reinvencao Da Intimidade"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

O mal-estar muda como muda

O mal-estar muda como muda a civilização. Nossas maneiras dea civilização. Nossas maneiras de so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas so�rer não são apenas reflexos e e�eitos da cultura, mas �ormas de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da de resistir e de responder ao que ela nos exige. O declínio da intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A intimidade é, também, um convite para sua reinvenção. A obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade obrigação de mantermos uma imagem de bem-estar e �elicidade e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência e a conectividade acelerada com as engenharias da aparência nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma nos colocam �ora de nós mesmos, tornando a intimidade uma experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga experiência cada vez mais preciosa e rara. Este livro investiga como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento como a dificuldade de criar experiências de compartilhamento de si com o

de si com o outro está na gênese de nossas outro está na gênese de nossas novas �ormas de so�rer.novas �ormas de so�rer. Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês Chrisian Dunker mobiliza sua experiência de rês décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno décadas de clínica e de reflexão para descrever um conjuno de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O de sinomas ligados à di�iculdade de esar com o ouro. O so�rimeno nos predispõe a

so�rimeno nos predispõe a dividir nossa inimidade e, por isso,dividir nossa inimidade e, por isso, ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do ele é ambém parene do amor. Poderíamos ler os desinos do so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, so�rimeno como uma espécie de psicopaologia do dia a dia, �eia de pequenas escolhas e de g

�eia de pequenas escolhas e de grandes conflios.randes conflios.

Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou Solidão ou soliude, luo ou melancolia, pânico ou ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha ciúme, paixão, ressenimeno ou depressão. Onde esá a linha divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias divisória que separa nossos a�eos morais de nossas paologias sinomáicas? Onde esá a �roneira de so�

sinomáicas? Onde esá a �roneira de so�rimeno que nos �arárimeno que nos �ará escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar escolher aceiá-lo ou rans�ormá-lo e, diane isso, rans�ormar o mundo e a nós mesmos?

o mundo e a nós mesmos?

Em uma linguagem bem-humorada e acessível e Em uma linguagem bem-humorada e acessível e abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para abordando siuações banais da vida – enconrar alguém para amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, amar, dividir as conas domésicas, er animais de esimação, suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se suporar hipóeses de fidelidade ou de raição, criar filhos e se despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o despedir de pais e de avós –, Dunker nos convida a repensar o

papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências papel de nossas escolhas na parilha de a�eos e nas experiências de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em de reconhecimeno necessárias para reinvenar a inimidade em empos de alienação e de so�rimeno proje

empos de alienação e de so�rimeno projeado no ouro.ado no ouro. Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie

Os 49 ensaios breves dese livro são uma espécie de manualde manual domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade domésico para a sobrevivência em empos de subjeividade sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles sombria, em que o ouro orna-se cada vez mais perigoso. Eles podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado podem ser lidos ano como uma espiral que vai do privado ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a ao público, quano como uma lisa de conexos nos quais a inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser inimidade, seja pela sua �ala, seja pelo seu excesso, precisa ser reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada reinvenada. Em uma sociedade digial, consumisa e obcecada pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas pela produividade, as políicas de so�rimeno não são apenas psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa psicológicas, mas ambém sociais e econômicas. Por isso, boa clínica é ambém críica social �eia por ouros meios.

clínica é ambém críica social �eia por ouros meios.

Combinando erudição universitária com linguagem Combinando erudição universitária com linguagem corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a corrente, os textos de Dunker aqui compilados narram ainda a ascensão de um Brasil em estado

ascensão de um Brasil em estado de con�rontação. Esquerdistas ede con�rontação. Esquerdistas e neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos neoliberais, mães neuróticas e amantes ciumentos, casamentos improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que improváveis e separações infinitas geram mal-entendidos que nos �azem so�rer, e cada vez

nos �azem so�rer, e cada vez mais solitariamente. O poder emanamais solitariamente. O poder emana de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos de quem reconhece o nosso so�rimento e de quem esperamos legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, legitimidade, atenção ou dignidade: padre, médico, policial, Estado

Estado, hospital , hospital ou universidade, psicanalista, amigos e amores.ou universidade, psicanalista, amigos e amores. As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em As políicas do so�rimeno coidiano são jogos, em esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas esruura inconsciene, que deerminam nossas escolhas ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso ópicas, dinâmicas e econômicas de poder. Elas �ormam nosso nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nó imaginário, real e simbólico pelo qual não conseguimos nunca nos curar do Ouro.

(2)

 REINVENÇÃO

DA INTIMIDADE

POLÍTICAS DO

SOFRIMENTO COTIDIANO

CHRISTIAN

DUNKER

(3)

A BUSCA DA BICICLETA PERDIDA 7

INTRODUÇÃO 11

SOLIDÃO: MODO DE USAR 1. Solidão e soliude 19

2. Preciso de um empo só para mim 38

3. A melancolia de Ozymandias 42

4. Começar e erminar 45

5. Sobre a more e o morrer 48

AFETOS COMPARTILHADOS 6. A raição e seus horrores 57

7. O ciúme e as �ormas paranoicas do amor 62

8. A �unção rans�ormaiva do ódio 71

9. Con�ormações da inimidade 77

10. Desmascarar as imposuras do amor 87

11. O amor pelos animais e seus limies 93

12. A vergonha como denúncia da �anasia 95

JUNTOS E SEPARADOS

13. Fundamenalismo conjugal 102

14. O casameno como perversão consenida 107

15. O verdadeiro amor �az exceção à lei 109

16. O dinheiro do casal 112

17. A mulher elepaa e o homem das cavernas 114

A CRIANÇA QUE NOS UNE E NOS SEPARA 18. A are de imbecilizar crianças 117

19. Loucura maerna 120

20. Oprimindo mulheres e desauorizando mães 122

21. O dever de a�eo e o direio de verdade 129

22. A cor e a �orma do cuidado 132

23. Síndrome da alienação parenal 135

24. Inoxicação digial in�anil 138

SOFRENDO DO OUTRO

25. A geografia imaginária da segregação real 148

26. Cercas, muros e silêncios 155

27. Paranoia sisêmica 158

28. Somos odos vândalos? 161

29. Cuidar ou conrolar? 172

30. A �elicidade como �aor políico 182

31. A alma revolucionária 186

SOFRENDO COM O OUTRO

32. O so�rimeno enre a verdade e o real 195

33. A paixão prognósica e a invenção de novos diagnósicos 203

34. A paixão diagnósica 205

35. Neurose em esruura de ficção 207

36. Depressão do urso polar 220

37. Perversão ordinária 229

38. Síndrome pós-naalina 236

39. Que fim levaram os maníacos? 239

PATOLOGIAS DO INDIVIDUALISMO À BRASILEIRA

40. Novas �ormas de so�rer no Brasil da reomada 242

41. O paradoxo moral do baalhador brasileiro 249

42. A culura da indi�erença 251

43. Crimes da palavra e culura da denúncia 254

44. A querela do consumo 260

45. Solidariedade sem ranscendência? 263

46. Narcisismo digial 265

POLÍTICAS DE TRATAMENTO

47. Doença menal na políica 277

48. O neoliberalismo e seus normalopaas 284

49. Reinvenção da intimidade 293

ÍNDICE REMISSIVO 303

(4)

11

INTRODUÇÃO

Este livro segue a intuição antropológica e psicanalítica exami-nando como �ormas �undamentais de nossos sintomas rela-cionam-se com processos de individualização próprios da vida contemporânea, particularmente com uma das figuras mais as-cendentes da individualização hoje: a experiência de so�rimento. So�rer é algo que depende essencialmene de rês condi-ções: a narraiva na qual esá inserido; os aos de reconheci-meno que fixam sua causa e a ransiividade que o orna uma experiência coleiva e indeerminada. O ransiivismo é um �enômeno ípico da in�ância, relacionado ao complexo de in-rusão, momeno no qual a criança elabora a enrada de rela-ções riádicas, paricularmene com ouras crianças da mesma idade. Nessa siuação, �requenemene ela experimena, por exemplo, se colocar como agene de uma ação na qual, na ver-dade, ela é paciene da ação do ouro. Tipicamene, ela bae na oura criança e chora porque sene e�eivamene que �oi a oura criança que baeu nela. Ou enão ela oma um brinquedo, mas sene e inerprea que �oi a oura criança que omou o brinque-do dela. Em adulos, a siuação de ransiivismo reorna, por exemplo, em desavenças e conflios nos quais não se consegue dirimir quem esá agindo, provocando ou causando um deer-minado esado de coisas e quem esá reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ao iniciado pelo ouro. Essa con�usão enre quem age e quem so�re a ação aparece ambém em casos mais graves, noadamene em �ormações deliranes e alucinaórias nas quais um pensameno e�eivamene experienciado pelo su-jeio é senido como causado ou imposo pelo Ouro.

Essas rês condições – narraiva, reconhecimeno e ransiivismo – combinam-se com uma hipóese: o

(5)

so-13 12

�rimeno requer e propaga uma políica. Isso quer dizer que a �orma como conamos, jusificamos e parilhamos nosso so-�rimeno esá sujeia a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das víimas, o poder dos indi�erenes e aé mesmo o poder da indi�erença ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o so�rimeno e de quem esperamos le-giimidade, dignidade ou aenção, seja esse alguém o Esado ou o ordenameno jurídico e suas políicas públicas, sejam as ima-gos do médico, do padre, do douor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem comparilhamos a vida coidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos.

A ex-sistência (existir �ora de si) compreende uma par-cela de so�rimento que não é eliminável. Nosso corpo se de-grada, nossas leis são repetitivamente imper�eitas, a natureza nos impõe reveses de toda sorte. As três Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contu-do, nem tudo no mal-estar é aceitável e requer nossa resigna-ção. Por isso, diante do so�rimento há sempre uma escolha a �azer, trans�ormar o mundo ou trans�ormar a nós mesmos. Essa trans�ormação depende, portanto, de como reconhece-mos o so�rimento que nos acomete. Frequentemente nos re-cusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos so-�rendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que so�rer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa ex-periência é uma �raqueza moral. Há, portanto, uma micropo-lítica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implicação acerca das causas, das razões e dos motivos do so�rimento. Aqui acontece também uma espécie de conflito ou de concorrência entre as narrativas que sancionam ou derrogam, visibilizam ou invisibilizam o so�rimento.

In-dividualizar ou coletivizar, culpar ou responsabilizar, incluir ou excluir, construir ou desconstruir a�etos correspondentes a tais narrativas, tudo isso �az parte das políticas do so�rimen-to cotidiano. Compartilhar nosso so�rimenso�rimen-to so�rimen-tornou-se uma tare�a ainda mais complexa depois do neologismo proposto por Lacan: extimidade. Encontrar a intimidade �ora e o estra-nhamento dentro, sem que eles sejam equivalentes. Em vez de uma políticasem partido, seria melhor �alar aqui, com Ca-zuza, em uma política docoração partido.

Déficits e excessos de individualização revelam-se na pró-pria experiência de so�rimento e na �orma de �ugir e negá-la. Isso aparece, por exemplo, na tendência à hipersocialização, a disposição a ficar permanentemente ligado, ocupado ou dispo-nível, como na impotência para constituir situações e percur-sos de real solidão ou intimidade. Como toda política, ela �az um corpo, ela cria unidades de discurso, ela define um coletivo identificado por um mesmo traço ou uma mesma suposição de desejo ou de demanda.

Cada experiência de so�rimento é uma história que se trans�orma na medida em que é contada. Uma história ruim pede uma pior; a luta �eroz por qualificar seu so�rimento como legítimo tornou-se uma das gramáticas morais mais importantes de nossa época. So�rer com o outro ou so�rer do outro são os dois polos dessa gramática contagiosa. O so�ri-mento solitário e o so�riso�ri-mento coletivo chocam-se nesse pon-to, em que a escrita de uma história trans�orma o seu autor. A situação em que se estálonely, em inglês, ouallein, em ale-mão, é di�erente da situação em que se está consigo mesmo,

selbständig, ou se está só,einsam. O so�rimento que se so�re sozinho às vezes se trans�orma em outra coisa quando narrado. Há no alemão e no inglês uma expressão para

(6)

15 14

essa di�erença entre solidão e solitude, que se apresenta no verso de Alexander Pope, em “Ode à solidão”:

Deixe-me viver, sem ser viso, desconhecido Deixe-me morrer sem lameno;

Roubado do mundo, sem uma pedra A dizer onde esou.1

Se o amor é ese pequeno esado de loucura provisória, ele in-clui ano as pequenas comédias de erros quano as grandes ragédias que compõem a psicopaologia da vida coidiana. APsicopathologie des Jedestag ouPsicopatologia da vida cotidiana, segundo livro homônimo de Freud, pode ser lida como paolo-gia socialdenossa experiência coidiana, experimenada como pobre, ediosa, acelerada, demasiadamene previsível ou im-previsível. Mas a expressão ambém pode nos remeer a uma psicopaologiaa partir davida coidiana, ou seja, como a vida coidiana pode nos �azer so�rer, produzindo esados afliivos ou confliivos coninuados, que erminam por �ormar sinomas.

Pensar nossa individualização a partir da �orma como estruturamos o so�rimento na linguagem é um capítulo de-cisivo de nossa política de subjetivação. A maneira como in-terpretamos ou codificamos, nomeamos ou meta�orizamos, descrevemos ou narramos nossa experiência de so�rimento trans�orma sua natureza, extensão e intensidade. Tal política pode se centrar sobre o que há de

ipsei-dade (somos únicos em nosso so�rer), de

mesmidade (somos como outros em nos-so nos-so�rimento) ou de nossaidentidade  (so-mos como nós mes (so-mos e nos desco-brimos como outros e até mesmo

nos reencontramos como outros nós mesmos ao so�rer). Pode-ríamos �alar ainda nessa estranha condição contemporânea pela qual tornamos nosso so�rimento uma propriedade, capi-talizando-a discursivamente ao produzir o que Lacan chamou de um a mais de gozo. Tal propriedade do so�rimento aparece também nas duas cartas de Rimbaud nas quais ele afirma que

o eu é um outro:

Eu é um ouro. Azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscienes que discuem sobre o que ignoram compleamene!

[Cara a Georges Izambard]

Pois �� é um ouro. Se o cobre despera clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidene: assiso à eclosão de meu pensamen-o; conemplo-o; escuo-o; �aço um movimeno com o arco: a sin�onia �az seu movimeno no abismo, ou de um salo surge na cena.

[Cara a Paul Demeny]2

Percebe-se que osofrimento do eu é o sofrimento do outro em vários sentidos, cada qual com sua política, cada qual com sua lógica própria de reconhecimento. Entre a madeira e o violino, ou entre o cobre e o clarim, há uma continuidade damesma

matéria e uma di�erença de �orma. A madeira que in�ortuna-damentese descobre violino indica a possibilidade de so�rermos

com mudanças de �orma. Entre os que discu-tem sobre o que ignoram, há uma re�erência ao so�rimento como alienação e desconheci-mento, não só de si, mas na relação com o outro com quem discutem. Finalmente,

1 “Thus let me live, un-seen, unknown;/Thus unlamented let me dye;/ Steal from the world, and not a stone / Tell where I lye.” Alexander Pope,Ode on Solitude

[1700]. Tradução do autor. 2 Tradução Marcelo Jacques de Moraes [����].  Alea, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro, jan./jun. 2006.

(7)

17 16

na imagem da sin�onia e do salto no abismo há o so�rimento com a vertigem do �uturo, o vir-a-ser,únicoe singular, ainda que incerto ou indeterminado.

Os exos aqui reunidos cobrem 26 anos de inervenções e reflexões práicas sobre ese nosso ganha-pão como psicanalis-as: o so�rimeno. A �orma desses escrios, alguns deles curos, não responde apenas à agregação de colunas, enrevisas e ari-gos, mas ela ena preservar no ensaio a maéria-prima do co-idiano, �eio de unidades desconínuas ainda que em esruura de repeição. Uma vida compreende hiaos e parêneses, reo-madas e reicências, acelerações e descompressões, líquidos e sólidos, oposições que mobilizamos para caracerizar o so�ri-meno nese início de século ���. Por isso, em vez de disciplinas enciclopédicas e princípios gerais de cura, o leior enconrará aqui casos, siuações ou regularidades clínicas que reconsi-uem o caleidoscópio incero que é o problema dese livro.

“So�rer junos” ou “so�rer separados” �ormam assim as ba-ses de nosso problema, que é saber como �ormamos conjunos e séries de conjunos nese espaço que chamamos de coidiano. Enender processos de individualização como �ormações his-óricas implica políicas de reconhecimeno ou de denegação de reconhecimeno. Deerminar os limies enre a experiência produiva e a experiência improduiva de so� rimeno, no curso desa gramáica de conrários, requer a apreciação das rans�or-mações pelas quais o Brasil passou em seus úlimos vine anos, paricularmene no que concerne a seus modos de subjeivação e de individualização, uma vez que o so�rimeno parece ser co-variane de seus a�eos hegemônicos.

Nesse senido, a políica discursiva e insiucional a�ea nossas �ormas de so�rer, por exemplo, regulando a rela-ção enre lei e so�rimeno. Por ouro lado, a experiência

de so�rimeno é muio mais exensa do que as �ormas sociais de seu reconhecimeno; por isso são criadas novas demandas de reconhecimeno, praicando assim uma �orma de políica. Isso aconece ano porque nós aprendemos a so�rer, quano porque o so�rimeno não é indi�erene ao poder: seja ele pensado como impoência melancólica, seja como impossibilidade represen-ada pelo incurável da experiência humana.

(8)

19

Solidão:

modo de usar

SOLIDÃO E SOLITUDE: A DIMENSÃO TRÁGICA DO SOFRIMENTO

Muitas tragédias contemporâneas se assemelham ao que aconteceu no bairro carioca de Realengo em 7 de abril de 2011, quando doze crianças �oram mortas dentro da Escola Municipal Tasso da Silveira por um ex-aluno que se sentia rejeitado pelos antigos colegas e pro�essores. Um homem que vivia isolado e retornou para se vingar dos colegas e da esco-la que o teria repudiado e depois para se suicidar. Posteriormente, vários serviços de saúde receberam denúncias contra solitários contumazes. A razão diagnóstica adora devorar tragédias.

Entendo que as tragédias nos convidam a reconhecer algo que está suprimido em uma determinada configuração social. Não são, portanto, espécies que se incluem em classes pré-consti-tuídas, mas desafios para nossa imaginação política e psicológica. Georg Lukács, em seu clássico A teoria do romance, mos-rou que o herói moderno siua-se necessariamene enre o cri-me e a loucura, pois essas são as duas �ormas �undacri-menais de deserro. O herói é alguém que vive radicalmene a disância com relação a si e ao ouro, seja como ensão enre o ser e o de-ver ser, seja como cisão inerna, seja como oposição enre vida real e ideal. Lembremos que Dom Quixoe, Hamle, Don Juan ou Fauso são figuras do deserro e do auoexílio, personagens que escolhem não er lugar. Daí que a solidão seja o senimeno essencial da ragédia, assim como o isolameno seria a experiên-cia cenral da epopeia e a confiança, o ema-chave do romance.

A conclusão cristalina vale tanto para a literatura quanto para a psicanálise: sem a experiência da própria solidão, a vida nos pa-recerá postiça, artificial ou vulgar. A verdadeira e produtiva via-gem solitária pode ser �eita a dois, em grupo e até mesmo em meio à dissolução do indivíduo na massa, mas o pior mesmo é quando tentamos evitá-la. A solidão é uma das �aces do que

(9)

21 20

os psicanalistas chamam de separação ou de castração. Nela, o ob-jeto com o qual nos identificamos para cobrir nossa �alta e nossa �alta no Outro é finalmente deslocado de sua �unção encobridora. Experiência simbólica por excelência, ela traz consigo não apenas a separação para com os outros, mas a distância e o estranhamento com relação a si mesmo. Solidão não é apenas introspecção ou in-troversão, mas dissolução da própria solidez do ser.

Ocorre que há ceras siuações de exclusão social, precon-ceio, segregação e supressão da di�erença que promovem uma espécie de �alsa solidão. Elas parecem dar corpo imaginário ao �racasso de esar com o ouro. Assim, a solidão é subsiuída por oura coisa: indi�erença, vazio ocupacional ou ressenimeno. Por meio desses suber�úgios, nunca esamos sozinhos. O pre-juízo psíquico causado pela impossibilidade de esar sozinho é incalculável. Inerpreamos a ausência do ouro como r ecusa de reconhecimeno, reduzimos a experiência produiva de solidão ao desamor, abandono ou devasação. Insilamos a lua imagi-nária para provar quem precisa menos do ouro.

É por ser a solidão ão rara e ão difcil de consruir que surgem ais paologias, maneiras de se de�ender, de mimeizar ou de exagerar um processo benéfico a pono de sua finalidade ornar-se irreconhecível ao próprio sujeio. Tipicamene isso se expressa em senimenos aparenados da solidão: o vazio, a ir-relevância, a inadequação e a menos-valia. O que vem depois de uma maraona social de consumo, do início de �érias, da in-sônia crônica, do final de namoro que não ermina nunca: a re-cusa do �ao rágico da solidão. Os proagonisas dos grandes ro-mances do século ��� inham na ironia um recurso �ormal para reraar o rabalho da solidão, uma �orma de ornar produiva a experiência de desenconro com si mesmo. É o caso de personagens machadianos como Brás Cubas ou Beninho.

Nada menos rágico do que aquele que se leva a sério demais em sua própria �alsa solidão. Por isso, anes de suspeiar da norma-lidade do vizinho soliário, vejamos se ele não esá a nos �azer lembrar nossa própria solidão malraada.

Se entendermos que os transtornos psicológicos definem-se pela introdução de uma coerção ou de uma restrição na vida rela-cional das pessoas, é coerente pensar que o so�rimento �requen-temente trará e�eitos de isolamento, a�astamento ou ruptura das relações. Ocorre que esse movimento, que pode ser uma reação útil e desejável em uma série de circunstâncias geralmente pe-nosas, torna-se ele mesmo uma �onte de outros problemas de-rivados da privação de experiências compartilhadas com outros. A solidão e o esvaziamento, ao lado do tédio e da apatia, �oram os primeiros diagnósticos de época entabulados por Hegel, ainda no século ���. Em outras palavras, o isolamento, a introversão ou a introspecção são respostas subjetivas que nem sempre são uma opção ou se iniciam como uma “escolha livre”, mas que gra-dualmente podem assumir o �eitio de um processo incontrolável, no interior do qual isolamento gera mais isolamento. A difcil manobra psíquica da separação pode se trans�ormar dessa ma-neira em algo que aparenta ser uma separação, mas e�etivamen-te não é. Como ocorre com o sujeito isolado, mas que na verdade está pro�undamente oprimido por �alas, presenças e experiên-cias das quais ele não consegue se separar subjetivamente. É o caso, por exemplo, do ressentimento. O ressentido pode estar so-zinho e isolado; geralmente ele procura isso, mas não está de �ato só e separado. Na verdade, ele não consegue se desligar de certos sentimentos anteriores e passa então a ressenti-los na solidão de seu quarto ou na antessala do sono.

Poderia-se pensar enão que a boa solidão é a solidão escolhida, intencional e deliberada. Essa ideia daopçãopelo

(10)

23 22

isolameno é basane raiçoeira, porque ela assume que ceros

 jeitos de ser ou estilos de vida são aplicações livres que alguém realiza sobre a maéria-prima indefinidamene elásica e sem �orma chamada vida. Também não goso muio da palavra

transtorno, apesar de ser o arremedo mais usual para não �alar em doença, pois ransorno é a radução do inglêsdisorder, ou seja, desordem. Como nossa culura não é assim ão �anáica pela “ordem”, a pono de achar que ela exprime a essência e a na-ureza úlima da normalidade, opamos por “ransorno”. Mas ransorno sugere algo como uma pedra no meio do caminho, que a gene remove como um obsáculo coningene. A solidão orna-se um ransorno quando assume a dimensão de umtem que ou de umnão pode com.

O sujeito que está solitário, mas “pode” per�eitamente ir a uma �esta, �requentar a escola ou ver os amigos, está aquém da linha. Aquele que apenas “acha que pode”, mas quando exposto a uma prova direta recorre ao autoenganosoMas quando eu quiser eu consigo, irmão do similar alcoolistaQuando eu quiser eu paro, deve se preocupar. Estão aqui todas as depressões, as distimias, as obsessões e as estratégias de dizer não para o Outro. Muitas pes-soas acabam desistindo de amigos que se isolam, pois acreditam na declaração nominal de que “ele não quer”, então o que vamos �azer, senão respeitar a “opção”. A coisa não é bem assim, já dizia Kant, pois até que ponto o sujeito é livre para querer ser livre? Até que ponto a vontade é livre para ter vontade de vontade?

O segundo critério diagnóstico é a coerção, mas esse é mais �ácil de ser identificado. Trata-se daquela pessoa que diz direta ou indiretamente que elatem que ficar sozinha, e aí entra a segunda parte da �rase,tem que…senão. Nessesenão estão incluídas as

�o-bias sociais, as agora�o�o-bias, os transtornos do pânico, as personalidades esquivas, ou seja, todas aquela situações

nas quais a rua ou o Outro inspiram medo ou angústia insupor-táveis. Assim, fico sozinho porque estou seguro e distante daqui-lo que é conflitivo ou ameaçador. Nesse caso, o sujeito não está dizendo algo comoNão preciso de você ouVocê me abandonou, por isso eu te abandono também. Aqui a gramática do so�rimento está baseada emNão consigo estar diante do olhar do Outro que me cri -tica, mas em relação ao qual eu desejo estar incluído.

O caso exremo do primeiro ipo é o sujeio que se reira do mundo para remoer sua raiva aé o momeno que sai de lá para se vingar. O caso paradigmáico do segundo ipo é o sujeio que não consegue esar com o Ouro porque ese é muio e in-rinsecamene ameaçador, como no auismo e na Síndrome de Asperger. Haveria, é claro, �ormas combinadas, como aquelas que se reiram raumaicamene do mundo, a exemplo do per-sonagem do filme argeninoMedianeras: Buenos Aires da era do amor virtual[Gusavo Tareto, 2011]. Nesse caso, raa-se simul-aneamene de dizer não ao mundo e de dizer não para si mesmo. Chegamos enão ao que se pode chamar desolitude, a soli-dão boa e necessária, cuja impossibilidade anuncia o paológico. A solidão desse ipo e nessa qualidade inensifica ceras expe-riências percepivas e imaginaivas. Ela é condição para o reco-nhecimeno de grandes quesões. Com o ouro, nosso próximo e vizinho, �requenemene nos esquecemos de nós mesmos, o que reaparece nas experiências de angúsia, separação e luo. Mui-as separações objeivas mosram-se rerospecivamene apenas uma ação para reinroduzir parêneses de solidão em uma vida poluída por ocupações e ormenos. Quando a criança descobre a possibilidade de ficar sozinha, oda sua relação com o Ouro se modifica. Ela aprende que sua presença é coningene e não necessária e, porano, que ela pode querer e ser querida. Essa separação é �undamenal para a consiuição de nossa

(11)

25 24

capacidade de amar e a inclusão da coningência que lhe é ne-cessária. É impossível criar sem amor e angúsia, e essas duas experiências dependem da capacidade de esar só. Não se raa apenas de quieude, isolameno e esvaziameno, mas de um conjuno de senimenos alamene necessários para a saúde menal, sumariamene: esranhar a si mesmo, espanar-se com o mundo, perceber-se conradiório, �ragmenado, múliplo, di-�erene de si mesmo, �rágil, vulnerável, capaz de sobreviver e de “suporar-se”. Durane boa pare de nossa hisória culivamos a

solidão como experiência enriquecedora:

a) Na filosofia: a mediação grega (premediação dos males), o reiro monásico, a mediação invesigaiva (como em Descares), a inrospecção psicológica.

b) Na arquieura: os inúmeros disposiivos para �avorecer o culivo da solidão, como os jardins ingleses (�eios em �or-ma de labirino para que a pessoa possa se perder e, por-ano, se reenconrar), os clausros, os ários, as cripas, os escuros do barroco.

c) Na pinura: o ema da paisagem e seu correlao, o rerao. d) Na poesia: o ema da saudade, do deserro, da perda e do

amor inconcluído.

e) Na lieraura: quase odos nossos heróis são soliários (de �orma volunária ou involunária), Dom Quixoe, Hamle, Don Juan, Robinson Crusoé, Fauso, o flâneur de Baudelai-re, nosso Brás Cubas e assim por diane.

A ligação enre ideias obsessivas e compulsões com uma esra-égia subjeiva baseada no isolameno já havia sido descria por

Freud. Talvez não seja um acaso que as primeiras ocorrên-cias hisóricas da palavraobsessão liguem-se ao período de

emergência do crisianismo como práica de auo-observação e conrole de si. É preciso ver como a classificação, a escrupu-losidade e o goso pela ordem e pela discriminação são aiudes subjeivas que nos permiem reduzir o desprazer e en�renar conflios. Todos nós emos queseparar as coisas, seja enre o que aconece em casa e o que aconece no rabalho, o que aconece enre amigos e o que aconece enre namorados, seja nossa vida pública e nossa vida privada, seja ainda separações que impo-mos a nós mesimpo-mos, como a vida adula e a in�ância, o passado e o presene, o conjuno de relações que ivemos com uma pes-soa do conjuno de relações que eremos com oura pespes-soa (que por vezes virá a ocupar �unção ou posição similar diane de nós). Ora, uma vida sem a clareza de queuma coisa é uma coisae outra coisa é outra coisa seria uma vida insuporável.

Ocorre que essa de�esa subjetiva normalmente se apoia em estratégias de objetivação, que concorrem para produzir uma �orma de vida na qual as “separações externas” são uma espécie de garantia e de confirmação para “separações internas”. O Japão e, especialmente, a vida nas grandes cidades japonesas são um exemplo maior da combinação de �orças que geram o isolamento. Uma cultura na qual tradicionalmente o valor do grupo de ori-gem ou da comunidade de trabalho é �undamental, onde a ver-gonha de se mostrar abaixo das expectativas desse grupo supera a culpa por decepcionar a realização do próprio desejo, vai o�erecer poucas alternativas para as �ormas de vida que se separam desse ideal comunitário. O isolamento que se sucede entre adolescentes costuma ser uma espécie de consagração da já superindividuali-zada vida social. Lembro ainda: não é porque “grupo” é o valor de re�erência que os indivíduos não sejam, eles mesmos, isolados dentro desse grupo. Basta que apareçam certas experiências que o grupo não reconhece como suas. Assim, aquilo que

(12)

© Ubu Ediora, 2017 © Chrisian Dunker, 2017 Coordenação ediorial ��������� ������� Assisene ediorial ����� ���� e ������� �������� Preparação ����� ������� Revisão ������� ������� e ���� �� ������ ���

Projeo gráfico da coleção ������ ����� e ������ ����������� Projeo gráfico dese íulo ����� ��������

Produção gráfica ����� ����� Nesta edição, respeitou-se o novo

 Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Inernacionais de Caalogação na Publicação (���) Dunker, Chrisian [1966–]

Reinvenção da intimidade – políticas do so�rimento cotidiano São Paulo: Ubu Editora, 2017

320 pp.

���� 978 85 92886 46 2

1. Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Coidiano. �. Tíulo.

�������� ��� ��� � ��� ���.�

Índice para caálogo sisemáico: 1. Psicologia 150 2. Psicologia 159.9

��� �������

Largo do Arouche 161 sobreloja 2 01219 011 São Paulo ��

(11) 3331 2275 ubuediora.com.br

COLEÇÃO EXIT Como pensar as quesões do século ���? A coleção Exi é um espaço ediorial que busca idenificar e analisar cri-icamene vários emas do mundo conemporâneo. Novas �er-ramenas das ciências humanas, da are e da ecnologia são

convocadas para reflexões de pona sobre �enômenos ainda pouco nomeados, com o objeivo de pensar saídas para a complexi-dade da vida hoje.

LEIA TAMBÉM: 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono COORDENAÇÃO

FLORENCIA FERRARI MILTON OHATA

Referências

Documentos relacionados

SENSOR DE

O emprego de um estimador robusto em variável que apresente valores discrepantes produz resultados adequados à avaliação e medição da variabilidade espacial de atributos de uma

8- Bruno não percebeu (verbo perceber, no Pretérito Perfeito do Indicativo) o que ela queria (verbo querer, no Pretérito Imperfeito do Indicativo) dizer e, por isso, fez

A Sementinha dormia muito descansada com as suas filhas. Ela aguardava a sua longa viagem pelo mundo. Sempre quisera viajar como um bando de andorinhas. No

Neste tipo de situações, os valores da propriedade cuisine da classe Restaurant deixam de ser apenas “valores” sem semântica a apresentar (possivelmente) numa caixa

De seguida, vamos adaptar a nossa demonstrac¸ ˜ao da f ´ormula de M ¨untz, partindo de outras transformadas aritm ´eticas diferentes da transformada de M ¨obius, para dedu-

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

O EBITDA Ajustado não é uma medida de desempenho financeiro segundo as Práticas Contábeis Adotadas no Brasil, tampouco deve ser considerado isoladamente, ou como