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Sexualidade e (Menor)idade:

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Academic year: 2021

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Sexualidade e (Menor)idade:

Estratégias de controle social em diferentes escalas

Laura Lowenkron

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ii Laura Lowenkron

Sexualidade e (Menor)idade:

Estratégias de controle social em diferentes escalas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro Fevereiro de 2008

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iii Sexualidade e (Menor)idade:

Estratégias de controle social em diferentes escalas

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre. Aprovada por:

_____________________________________

Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Orientadora) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_____________________________________ Prof. Dr. Gilberto Velho

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_____________________________________ Profª. Dra. Maria Luiza Heilborn

Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)

_____________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (Suplente)

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_____________________________________ Prof. Dr. Sérgio Carrara (Suplente)

Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)

Rio de Janeiro Fevereiro de 2008

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Lowenkron, Laura.

Sexualidade e (Menor)idade: estratégias de controle social em diferentes escalas / Laura Lowenkron. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2008.

xii, 109 p.; 31 cm.

Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2008.

Referências Bibliográficas: pp. 104-109.

1. Sexualidade 2. Menoridade 3. Categorias de idade 4. Escândalo 5. Controle social. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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v RESUMO

O esforço desta dissertação consiste em desnaturalizar um problema que passou a ser um dos mais importantes focos de atenção, de horror e de regulação na sociedade ocidental contemporânea: a relação sexual intergeracional envolvendo 'menores'. O intuito da análise não é tanto desconstruir o problema, relativizando-o, mas sim evidenciar as condições sociais de sua emergência e analisar as suas diferentes formas de problematização. A pesquisa parte do pressuposto de que um bom caminho para isso é observar situações de conflito ou de negociação da realidade, uma vez que a análise destas revela como as fronteiras entre o aceitável e o inaceitável são permanentemente redefinidas, negociadas e deslocadas. Ao observar, em situações concretas, a transformação de um fato social em problema, o objetivo é mostrar como as normas e a ordem social são menos as causas que justificam o controle do que o efeito do exercício de poder contínuo que constitui e institui comportamentos e percepções. Sendo assim, a investigação foca-se nas estratégias de controle social que tomam os cruzamentos entre sexualidade e menoridade como alvo. A pesquisa é baseada em revisão bibliográfica, análise de documentos e entrevistas e divide-se em três frentes analíticas. A primeira delas consiste na apresentação de um panorama histórico sobre os deslocamentos nas concepções sobre 'violência sexual' e seus atores, mostrando como se deu a emergência de um novo tipo de violência moral que se situa entre o crime e a perversão sexual: a pedofilia. A segunda concentra-se na análise sobre a construção de um ‘escândalo’ em torno de um caso que envolve relação sexual entre um professor de futebol de praia ‘adulto’ e sua aluna ‘adolescente’. Este estudo de caso constitui a parte mais substancial da pesquisa e é também aquela que é tratada de maneira mais aprofundada. A terceira parte enfoca o modo jurídico de tratar o tema, introduzindo a problemática da menoridade legal para a prática sexual, também chamada de leis da idade do consentimento. Além disso, é analisada uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal que explicita as controvérsias em torno do tema da menoridade sexual. O objetivo dessa análise multidimensional é mostrar como o mesmo problema circula por diferentes níveis ou escalas. A idéia é que as outras duas frentes ou escalas possam iluminar o caso pesquisado, sem, contudo, pretender englobá-lo.

Palavras-chaves: sexualidade, menoridade, categorias de idade, escândalo, controle social.

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vi ABSTRACT

The aim of this dissertation is to de-naturalize a problem that has become a major focus of attention, horror and regulation in contemporary Western society; that of intergenerational sexual relationships involving `minors´. The purpose of the analysis is not so much to deconstruct the problem, by means of its relativization, but to highlight the social conditions in which it arose and to analyse the varying forms of its problematization. The underlying assumption of the present work is that a fertile way of doing so is to observe controversies or conflicts, an approach that reveals the way that the limits of the acceptable are permanently redefined, negotiated and displaced. By observing in concrete situations how a social fact became a social problem, the present work tries to show how the social patterns and social order are not so much causes that justify social control, but the effect of the permanent exercise of power which establishes behaviours and perceptions. Therefore, the research focuses on strategies of social control that target the intersection between sexuality and minority. The research is based on a literature review, documentary analysis and interview and comprises three analytical fronts. The first of these presents a historical panorama of the shifts in conceptions about 'sexual violence' and its actors, showing the process by which a new type of moral violence, situated between crime and sexual perversion i.e. paedophilia, emerged. The second is an analysis of the construction of 'scandal' around a case involving a sexual relationship between a `adult´ beach soccer teacher and his 'adolescent' student. This case study is the most substantial part of the research. The third part introduces the issue of sexual minority from a legal perspective, looking at laws governing age of consent. The controversies surrounding the issue of sexual minority are revealed through the analysis of a judicial decision taken by the Brazilian Federal Supreme Court. The purpose of this multidimensional analysis is to show how the same problem operates at different levels or scales. Thus whilst the case study is illuminated by the other two fronts or scales, neither provides an encompassing rationale.

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vii

Aos meus pais Ao Thadeu

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viii AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Adriana Vianna, pela atenção, rigor, generosidade e respeito com que me conduziu por este percurso de iniciação à pesquisa antropológica, oferecendo-me os instrumentos adequados para dar forma aos meus questionamentos e orientações iluminadoras que me permitiram encontrar os caminhos para desenvolver minhas idéias.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, pelos ensinamentos. Em especial, ao professor Gilberto Velho, com quem aprendi as primeiras lições de antropologia no curso que fiz como ouvinte antes de iniciar o mestrado em Antropologia Social e cujo acolhimento e atenção fizeram-me acreditar na possibilidade e na capacidade de ser aluna oficial deste Programa. Agradeço a ele também pelos comentários e pelas sugestões a este trabalho.

Ao CNPq, pela bolsa durante todo o curso de mestrado, o que me permitiu dedicação exclusiva aos estudos e à pesquisa durante os últimos dois anos.

Agradeço também aos colegas e amigos do PPGAS, pelas trocas estimulantes e pelos momentos de descontração dentro e fora da sala de aula, e aos funcionários da biblioteca, da secretaria e do xerox, pela assistência e prestatividade.

Aos entrevistados, que prefiro não identificar, pela disponibilidade, atenção e importantes contribuições.

À Cizinha e à Julinha, pela ajuda e apoio que viabilizaram parte importante desta pesquisa.

Aos meus pais, pelo exemplo, apoio, incentivo e confiança. Ao meu pai, pelo investimento e modelo de perseverança. À minha mãe, pelos diálogos e reflexões sempre ricas e pela eterna disponibilidade e interesse em ler meus textos com atenção, carinho e cuidado. A ela devo também os meus primeiros interesses pela disciplina e pelo tema desta pesquisa.

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ix Ao meu irmão, Alexandre, pelo exemplo de dedicação e de competência nos estudos e na pesquisa. À minha irmã, Marina, pela doçura e companheirismo nas tardes de estudo e pela assessoria em assuntos jurídicos.

Ao Thadeu, pela assessoria em assuntos jurídicos, pela revisão de texto e, principalmente, pela companhia que preencheu a minha vida no último ano com amor e alegria.

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x

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?

Michel Foucault, “História da Sexualidade II: o uso dos prazeres”, p 13.

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xi SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

Capítulo I: Deslocamentos históricos no emaranhado da ‘violência sexual’ e seus atores: a emergência da pedofilia ... 9

Passagem da violência física à violência moral ...10

Da ameaça à honra das famílias à violência contra a pessoa ...14

Da ênfase no gênero à ênfase na geração...16

Dos atos criminosos aos indivíduos perigosos...19

Capítulo II: Notas sobre um escândalo...24

2.1 O encontro na farmácia e a construção da denúncia pública ...30

2.2 O ‘efeito-jornal’ nas avaliações morais e nas reputações sociais...33

Capítulo III: A construção do problema ...41

Fator 1: relação entre professor e aluna ...41

Fator 2: idade...44

Fator 3: menoridade legal ...48

Fator 4: Traição aos pais ...49

Fator 5: amor ...50

Outros fatores: virgindade, traição, padrões de normalidade e bebida...54

Capítulo IV: Estratégias de controle social ...56

4.1 A culpa é de quem?...56

4.2 Justificativas baseadas na verdade da situação e na verdade dos sujeitos ....59

4.3 Os perigos de contágio da poluição moral ...68

4.4 Estratégias de normalização da conduta sexual ...69

Capítulo V: Menoridade sexual...77

5.1 As leis da idade do consentimento na legislação penal brasileira...82

5.2 Menina ou moça: (des)construção social da idade do consentimento em uma decisão judicial do STF...85

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xii 5.3 (Menor)idade e consentimento sexual ...91 CONEXÕES FINAIS ...95

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1 Introdução

Existe um sentimento generalizado de verdadeiro horror a qualquer coisa que conecte sexo e criança ou, mais especificamente, que conecte sexualmente o adulto à criança. Trata-se de uma repulsa entendida como ‘natural’, portanto, inquestionável. No entanto, como ensina a antropologia, as diferenças ‘naturais’ são construções culturais e históricas, o que não invalida a efetividade social das categorias de diferença, como ‘idade’ e ‘sexo’. Sendo assim, mesmo compartilhando esse sentimento de repulsa, resolvi problematizá-lo nesta dissertação.

Pensar a natureza tal qual concebida pela ciência moderna como construção cultural talvez tenha sido o ensinamento mais difícil de assimilar ao longo do curso de mestrado em antropologia, pois era uma idéia que colocava em questão as minhas verdades mais “duras” - aquelas que, teoricamente, não dependiam de “crença” ou de “cultura”, mas sim de “conhecimento” e “desconhecimento” do real. Seria fácil reconhecer que as noções sobre a natureza variam histórica e culturalmente. No entanto, pensar que aquilo que eu sempre entendi como natureza e, portanto, como verdade universal, é socialmente construído como natureza e como verdade universal era, para mim, um movimento muito mais radical e, sendo assim, mais difícil de realizar.

Se, por um lado, essa proposta desestabilizadora da antropologia parecia-me desafiadora e estimulante, por outro, inquietava-me a postura “desconstrucionista” que muitos antropólogos tinham diante das verdades hegemônicas ou “centrais” de sua própria sociedade em oposição à simpatia que mantinham em relação às crenças da “periferia”. Interessada em pesquisar as instituições centrais de minha própria sociedade, causava-me certo desconforto pensar que eu só poderia estudar algo que, de alguma maneira, quisesse destruir. Por que aqueles que identificamos como “outros” devem ser estudados com mais respeito do que aqueles que identificamos como “nós”? Ou, por que estudamos os “outros” para valorizar as suas crenças e estudamos a nós mesmos para desvalorizar nossas verdades?

Percebi que isso era menos um problema da intenção do antropólogo do que um efeito da noção de verdade da ciência moderna, baseada na idéia de uma natureza que pré-existe à realidade social e se opõe a ela, na medida em que a primeira é dada e a segunda é construída ou, nos termos de Latour (2002), uma é entendida como fato e a outra como feito. Decidi, então, levar a sério a idéia de que a verdade não se enfraquece quando dela se faz uma construção ou um relato (Latour & Woolgar,

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2 1997) 1 e estudar os processos de construção social de uma verdade com a qual eu concordo e não gostaria de derrubar.

Resolvi procurar uma problemática que pudesse se chocar com as minhas verdades mais profundas e, para mim, nada era tão difícil de desnaturalizar quanto a infância. A questão que coloquei como desafio aos meus próprios valores e aos valores (fundamentais) do meu universo social foi: por que a relação sexual entre ‘adultos’ e ‘crianças’ produz tamanha repulsa no mundo ocidental moderno? Minha hipótese é que se trata de uma fronteira que não se restringe ao domínio do proibido ou do contra a lei, mas do ininteligível ou do contra a natureza, por isso, ultrapassá-la produz um efeito de monstruosidade, nos termos de Foucault (2001).

O objetivo da pesquisa não é tanto questionar essa repulsa, mas sim investigar como ela é socialmente construída e como as fronteiras entre o aceitável e o inaceitável são permanentemente redefinidas, negociadas e deslocadas. A pesquisa parte da premissa de que as categorias de idade são relacionais e socialmente construídas e manipuladas. Dizer que a ‘idade’ não é um dado da natureza não quer dizer que ela não tenha efetividade, uma vez que serve de instrumento fundamental de ordenação social no chamado mundo ocidental moderno, assim como as diferenças entre os ‘sexos’, por exemplo. Nos termos de Bourdieu (1983: 112), “as classificações por idade (mas também por sexo, ou, é claro, por classe...) acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde cada um deve se manter (...) em seu lugar”.

Dentre as diversas categorias de idade - que envolvem um conjunto de noções e um léxico amplo e variado, como será possível verificar ao longo do trabalho - ‘criança’ e ‘adulto’ constituem-se como dois pólos extremos de sentido que servem de base para avaliações morais sobre condutas sexuais. A categoria ‘adolescente’ aparece na análise enquanto elemento que borra as fronteiras entre esses dois pólos, de modo que serve de suporte privilegiado para controvérsias e para negociação da realidade, nos termos de Velho (1999).

O ponto de partida teórico para a construção do meu problema de pesquisa foi o campo de discussão político e conceitual que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XX, em torno da desessencialização de categorias que descrevem, produzem e legitimam relações de desigualdade - como os debates que questionam as desigualdades de raça, etnia, gênero e sexo. Segundo Stolcke (1993), as sociedades

1 “A acusação de relativismo ou de autocontradição só é pesada para aqueles que acham que a verdade

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3 industriais do ocidente tendem a legitimar suas desigualdades sociais conceitualizando-as como se fossem baseadas em diferenças naturais imutáveis - como nas doutrinas racistas e sexistas. A autora argumenta que, nas sociedades ocidentais modernas, a ‘natureza’ sempre funcionou como um dos principais instrumentos de essencialização das diferenças e de reprodução das desigualdades.

Essa formulação foi uma das principais contribuições de uma das correntes da antropologia feminista que, a partir dos anos 70, se debruçou sobre o questionamento das bases naturais das desigualdades de gênero2. Yanagisako e Colier (1987) – que estão entre as precursoras dessa perspectiva analítica - destacam que, apesar das diversas concepções de corpo e de sexo que revelam os trabalhos antropológicos e históricos, os estudos de gênero e parentesco nas ciências sociais, em geral, falharam em libertar-se de um conjunto de pressuposições sobre diferenças naturais entre pessoas. Segundo elas, o modelo nativo da ciência ocidental contemporânea, com suas pressuposições culturais sobre as bases naturais da reprodução humana, está incrustado nas categorias analíticas de gênero e parentesco e, por isso, a maior parte das análises antropológicas acaba tomando como dadas diferenças que deveriam ser explicadas.

Mas não se pode tomar como dadas e garantidas as nossas categorias de diferença nem a nossa lógica (hierárquica) que organiza a diferença. A forma valorativa que a diferença assume na nossa cultura deve ser explicada, bem como deve ser explicado por que algumas características e atributos das pessoas são culturalmente reconhecidos e diferencialmente avaliados enquanto outros não, como sugerem Yanagisako e Collier (1987).

Um dos dramas centrais dessas discussões levantadas pela antropologia feminista e pelos estudos de gênero em geral, a partir dos anos 70, foi a questão das relações assimétricas. Sendo assim, o princípio hierárquico que servia de base ao modelo tradicional de família e para as relações entre os sexos no seu interior foi substituído pelo ideal igualitário, “que institui a não demarcação de fronteira entre os gêneros, uma vez que, percebidos como iguais, os indivíduos de ambos os sexos são portadores de direitos” (Heilborn, 1994:184/185). A igualdade entre homens e mulheres passou a

2 Para um panorama dos debates nas ciências sociais, a partir dos anos 70, em torno da definição de

uma perspectiva analítica adequada para pensar as relações entre homens e mulheres, sexo e gênero e natureza e cultura, ver MOORE, Henrietta L. “Understanding Sex and Gender”. In: Companion

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4 ser entendida, então, como um direito e como um valor, algo a ser assegurado e a ser perseguido, simultaneamente (Vianna & Lacerda, 2004: 21).

Enquanto as bases naturais que serviam de justificativa para a dominação dos homens sobre as mulheres foram fervorosamente questionadas e estremecidas por um verdadeiro “terremoto” conceitual e político que é inseparável da trajetória do movimento feminista, outras assimetrias permaneceram bastante naturalizadas, como é o caso da pressuposição de vulnerabilidade essencial de crianças e de adolescentes. Uma das estratégias de sedimentação de mudanças políticas é a construção de uma arquitetura legal. Vale salientar que no contexto social e político atual, com o enfraquecimento do Estado, o Judiciário fortaleceu-se enquanto peça administrativa e, assim, as leis e os discursos de aquisição e proteção de direitos adquiriram uma centralidade enquanto estratégia política de transformação da realidade social (Schuch, 2005).

No plano legislativo nacional, a coexistência de questionamentos às assimetrias de gênero com o fortalecimento da vulnerabilidade essencial de crianças e de adolescentes pode ser percebida na Constituição Federal3 (CF) de 1988 e nas legislações infraconstitucionais que foram criadas ou reformuladas a partir dela. A CF estabelece o princípio de eqüidade entre homens e mulheres (inciso I do art. 5o)4. As desigualdades de gênero são contestadas também a partir do novo Código Civil5 (2002), inspirada nos princípios constitucionais de 1988. As desigualdades de idade, por sua vez, são essencializadas tanto pela Constituição como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), que é a legislação infraconstitucional desenvolvida a partir do artigo 2276 da CF de 1988. Se, por um lado, a CF (1988) e o ECA (1990) transformam as crianças e os adolescentes em sujeitos de direitos especiais e questionam sua subordinação absoluta em relação às famílias ao dispersar e descentralizar o diagrama de responsabilidades (Vianna, 2002), por outro, ao

3 Foi através da Constituição Federal de 1988 que o Estado brasileiro implementou em sua ordem

jurídica as recomendações e compromissos firmados nos tratados internacionais sobre direitos humanos.

4

“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Inciso I, art. 5o da CF/88).

5 A reforma do Código Penal de 1940 não foi concluída. No entanto, foram revogados alguns artigos do

Título “Dos crimes contra os costumes” que iam de encontro aos princípios constitucionais que estabelecem a eqüidade de gênero.

6 “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Art 227 da CF/88).

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5 postular uma infância universal (e ideal) que deve ser tutelada e protegida por todos em nome de seu melhor interesse, essas legislações tratam a condição de vulnerabilidade das crianças e dos jovens de maneira essencializada. Assim, cria-se um dilema entre os direitos de liberdade e de proteção dos novos ‘sujeitos de direitos’. Uma vez que outras assimetrias (como a de gênero e a de raça) foram objetos de lutas políticas por desessencialização, a ‘criança’ tem o seu lugar sacralizado fortalecido, devido a uma pressuposição de vulnerabilidade ‘natural’. Sendo assim, dentre as diversas formas de relações assimétricas, o tema da ‘violência contra crianças’7 adquire uma gravidade específica e alarmante a partir do final do século XX. Esse tema, por sua vez, será desmembrado em diferentes modalidades ou categorias, como “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227 da CF/88). Dentre essas diversas categorias de ‘violência contra criança’, parece-me que o tema do ‘abuso sexual’ (que é configurado em qualquer relação sexual envolvendo ‘criança’ com ‘adulto’, mesmo que não haja coerção física) é considerado o caso mais dramático.

O esforço deste trabalho consiste, assim, em evitar uma leitura naturalizada sobre essas relações que passaram a ser um dos mais importantes focos de atenção, de horror e de regulação na sociedade ocidental contemporânea: a relação sexual entre ‘adultos’ e ‘crianças’. Por isso, ao invés de tratá-la nesses termos tão essencializados, proponho problematizá-la como “relação sexual intergeracional envolvendo menores”, de modo que os termos ‘adulto’ e ‘criança’ sejam pensados como categorias que são manipuladas e inter-relacionadas a outras categorias para construir uma avaliação moral e/ou legal de uma determinada conduta.

Um bom caminho para desnaturalizar o problema é observar como ele é manipulado em situações de conflito ou de negociação da realidade (Velho, 1999). Ao recuperar as controvérsias, essas situações configuram processos que desestabilizam as definições socialmente aceitas, explicitando seu caráter fabricado e provisório. Em relação ao problema da relação sexual intergeracional envolvendo ‘menores’, pode-se dizer que as noções difundidas pela psicanálise – um discurso decisivo nesse cenário8 - de que as pessoas são, desde os primeiros anos de vida,

7 Refiro-me à ‘violência’ e à ‘criança’ enquanto tipos ideais. Em casos concretos, a avaliação de uma

determinada situação enquanto violenta ou não e se a vítima é criança ou não varia em função de um conjunto de elementos e contextos, como é possível observar nos casos analisados por Vianna (2002) e como veremos ao longo desta dissertação.

8

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6 sujeitos desejantes e de que o desejo passa a ter uma "forma" admitida socialmente enquanto sexual (nos termos freudianos: subordinação das zonas erógenas ao primado da zona genital) no período da puberdade são razoavelmente aceitas socialmente. No entanto, é difícil definir quando o sujeito passa a ter responsabilidade pelo seu desejo e quando e por quem o corpo pode começar a ser desejado sexualmente. É, portanto, nas disputas em torno dessas definições controversas e na negociação das fronteiras entre o moralmente aceitável e o inaceitável que a análise vai se concentrar.

Meu questionamento leva-me, assim, a investigar o modo como é socialmente e culturalmente organizado o desenvolvimento da sexualidade e da racionalidade no curso da vida de uma pessoa, como a idade enquanto categoria diferenciadora orienta as relações sexuais e, principalmente, leva-me a atentar para os processos pelos quais se constituem ou se privilegiam as classes de idade, inter-relacionadas (nem sempre de modo tão explícito) a outras categorias (gênero, classe, etnicidade etc), enquanto categorias privilegiadas para analisar, regular e condenar certas modalidades de relações sexuais.

O universo social no qual a pesquisa se baseia que, por vezes, denomino, de modo frouxo, “nossa cultura”, pode ser definido a partir de três escalas diferenciadas e interconectadas, a saber: uma escala dos macro-processos históricos; uma escala mais micro, dos dramas sociais ou, como denomino, de um ‘escândalo’ local; e uma escala intermediária, das leis e processos judiciais. Assim, a investigação toma por objeto diferentes estratégias de controle que regulam a vida social do mundo ocidental contemporâneo, em geral; da sociedade brasileira, em particular; e, em especial e de maneira mais aprofundada, de um determinado segmento de camadas médias e altas urbanas da zona sul carioca.

Como sugere Foucault (1984), mais interessante do que analisar se hoje somos mais repressivos ou mais liberais do que já fomos em outros tempos é atentar para as atuais formas de problematização moral e de controle social da sexualidade na ‘infância’ e na ‘adolescência’. Estas envolvem, como veremos, estratégias de regulação diferenciadas - judicialização, patologização, espetacularização e jogos morais acusatórios - que, por sua vez, produzem efeitos distintos.

Seguindo a sugestão foucaultiana (1988), pretendo enfatizar as tecnologias positivas de poder para perceber como a ‘sexualidade’ e a ‘menoridade’ estão sendo constituídas nos dias atuais, no emaranhado de novas redes de saber-poder. Observar as prescrições e as controvérsias em torno da relação sexual intergeracional

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7 envolvendo ‘menores’, seja no nível mais macro dos processos históricos, seja no nível mais micro dos dramas pessoais com seus jogos morais, seja no nível intermediário das leis e dos processos judiciais, seja, como pretendo realizar, estabelecendo as conexões entre os diferentes níveis ou escalas, é, a meu ver, um bom caminho para analisar essas problematizações.

É importante destacar que a análise das diferentes escalas tem por objetivo complexificar o problema sem, no entanto, pretender esgotar as suas diversas possibilidades analíticas. Vale ressaltar ainda que meu investimento - tanto empírico quanto analítico - em cada uma dessas escalas é diferenciado, de modo que a escala mais micro constitui a parte mais substancial da pesquisa e é também aquela que é tratada de maneira mais aprofundada. A idéia é que as outras duas escalas possam iluminar o caso pesquisado, sem, contudo, pretender englobá-lo.

Sobre a divisão de capítulos

No primeiro capítulo, baseando-me em pesquisa bibliográfica, procurei traçar um panorama histórico sobre as mudanças nas concepções sobre violência sexual no ocidente, em geral, e como essas mudanças repercutem no contexto brasileiro, em particular. Apresento os principais deslocamentos nos discursos sobre a ‘violência sexual’ e seus atores (agressor e vítima), mostrando como se deu a emergência de um novo tipo de violência moral que se situa entre o crime e a perversão sexual: a pedofilia.

Os capítulos 2, 3 e 4reúnem a parte mais significativa do material empírico desta pesquisa. Trata-se de um estudo de caso em torno de um ‘escândalo’ que envolve relação sexual entre um professor de futebol de praia ‘adulto’ e uma aluna ‘adolescente’. Uma matéria de jornal serviu de ponto de partida para a pesquisa, que consistiu em um trabalho de campo baseado em entrevistas com pessoas que, direta ou indiretamente, participaram da construção do ‘escândalo’. Destaco que minha própria rede de relações pessoais abriu portas para a entrada em campo, como será apresentado no segundo capítulo. Além disso, algumas das minhas características sociológicas provavelmente também facilitaram a interação com os entrevistados. Uma primeira característica que deve ser destacada é a minha ‘idade’ (ou seja, ser identificada pelos entrevistados como ‘jovem’), o que provavelmente facilitou que os ‘adolescentes’ falassem sem muito constrangimento sobre os seus padrões morais e de conduta sexuais. Outro fator que pode ter facilitado a interação com as pessoas é o

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8 fato de eu, de algum modo, fazer parte do universo social pesquisado – praia, zona sul carioca - e, assim, estar familiarizada com os códigos locais e ser, de algum modo, um ‘tipo’ familiar para os entrevistados.

No capítulo 5, apresento o modo jurídico de tratar o tema, introduzindo a problemática da menoridade legal para a prática sexual, também chamada de leis da idade do consentimento. Introduzo noções gerais sobre as chamadas leis da idade do consentimento no Código Penal brasileiro. Além disso, analiso uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal que explicita as controvérsias em torno do tema da menoridade sexual.

Por fim, vale destacar que os diferentes níveis analíticos que esta dissertação reúne não são apenas diferentes abordagens isoladas de um mesmo tema – os entrecruzamentos entre ‘sexualidade’ e ‘idade’ - a partir da análise de diferentes tipos de fontes (pesquisa bibliográfica, trabalho de campo e análise de documentos), mas, sim, diferentes escalas de um mesmo problema: i) um nível dos macro-processos históricos; ii) um nível mais micro dos dramas pessoais; iii) um nível intermediário das leis e dos processos judiciais. A conclusão consiste, portanto, em um esforço de articular esses diferentes níveis ou escalas.

Convenções

Itálico será usado para expressões conceituais. Aspas simples para categorias nativas. Negrito para dar destaque, de modo que os grifos, mesmo nas falas dos entrevistados, são sempre meus.

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9 Capítulo I

Deslocamentos históricos no emaranhado da ‘violência sexual’ e seus atores: a emergência da pedofilia

A sexualidade articula dois eixos em torno dos quais se desenvolveu, a partir do século XIX, a tecnologia política da vida: as disciplinas dos corpos e a regulação das populações. Por isso, ela se tornou um campo cuja importância estratégica foi capital, como sugere Foucault (2005)9. Sendo assim, a sexualidade foi constituída enquanto um domínio a conhecer e, ao mesmo tempo, enquanto um foco privilegiado de intervenção e controle. Segundo Foucault (1988), o poder, como exercício constituído a partir de técnicas polimorfas e de mecanismos capilares, atua sobre as condutas individuais, atinge as formas de desejo e controla o prazer cotidiano. Uma das principais estratégias históricas de poder que tomou o sexo como alvo é a definição de certas modalidades de exercício da sexualidade como violentas.

A violência não deve ser pensada como um dado em si, que se possa analisar apenas a partir de critérios estatísticos, mas sim como uma noção que está articulada a sistemas de classificações históricos. “Os rótulos estabilizam o fluxo da vida social e até mesmo criam, até certo ponto, as realidades a que eles se aplicam” (Douglas, 1998:105). Ou, como propõe Hacking (1992: 182), “the worlds have been made, or at any rate como into being, by kind-making”. Nesse sentido, ao constatar uma explosão no número de queixas de ‘violência sexual’, especialmente contra crianças, na última década do século XX, Vigarello (1998) considera que não houve apenas um aumento repentino de atos sexuais violentos, mas, sim, uma mudança nos padrões de sensibilidade. Por isso, optei por tratar a ‘violência sexual’ como um emaranhado, ou seja, como um complexo de atos e classificações, um território dinâmico de sobreposições e deslizamentos contextuais e históricos.

“Uma classificação de estilos classificatórios seria um primeiro passo positivo para se pensar sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocínio” (Douglas, 1998: 113). Vale destacar que as classificações que constituem o emaranhado da ‘violência sexual’ não são governadas exclusivamente pelo saber-poder judicial.

9 “Por que a sexualidade se tornou, a partir do século XIX, um campo cuja importância estratégica foi

capital? Eu creio que, se a sexualidade foi importante, foi por uma porção de razões, mas em especial houve estas: de um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente corporal, depende de um controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente (...); e depois, por outro lado, a sexualidade se insere e adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que concernem não mais ao corpo do indivíduo mas a esse elemento, a essa unidade múltipla constituída pela população”. (FOUCAULT, 2005: 300).

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10 Apesar de este ocupar um lugar central no processo de produção e regulação desse emaranhado, outros saberes, como a psiquiatria, e instituições sociais, como os meios de comunicação de massa, desempenham também um papel fundamental na produção, reprodução, transformação e divulgação dessas classificações e, portanto, na constituição do emaranhado da ‘violência sexual’.

Neste capítulo, proponho uma sistematização dividida em quatro eixos de mudança nas lógicas dos sistemas classificatórios utilizados para reconhecer e organizar os atos categorizados como ‘violência sexual’ e as pessoas envolvidas nesses comportamentos: agressor e vítima. Construo esses quatro eixos a partir da identificação dos seguintes deslocamentos históricos nas formas de entender a ‘violência sexual’: i) da violência física à violência moral; ii) da ameaça à honra das famílias (linguagem patriarcal) à violência contra a pessoa (linguagem do sujeito de direitos); iii) da ênfase no gênero à ênfase na geração; iv) dos atos criminosos aos indivíduos perigosos.

Proponho que esses quatro deslocamentos articulados fazem aparecer uma nova idéia de violência que se situa entre o crime e a perversão sexual (a pedofilia), uma nova vítima privilegiada (a criança abusada), um novo efeito (o trauma e a desestabilização psíquica) e um novo personagem ou um novo nome para aquele que protagoniza esse tipo de ‘ataque’ (o pedófilo).

Passagem da violência física à violência moral

Ao analisar processos de estupro no Ancien Régime (do século XVI ao XVIII), na França, Vigarello (1998) observa que somente se considerava prova para condenação do crime atos visíveis ou ouvidos: se o tumulto e o ruído da luta fossem percebidos e narrados por testemunhas, se fossem ouvidos gritos de socorro, ou seja, se houvesse indícios que comprovassem que a vítima não parou de resistir. “O não-consentimento da mulher, as formas manifestas da sua vontade só existem em seus vestígios materiais e em seus indícios corporais” (Vigarello, 1998: 08). O juiz não se aventurava na interioridade pessoal da vítima, suas fraquezas e coações subjetivas.

O olhar sobre os crimes sexuais focalizava-se antes na luxúria e no impudor do que na violência. A ‘violência sexual’ não era particularizada na cultura clássica, a própria palavra ´estuprador´ não existia. A categoria de crime que recebia maior atenção da opinião pública, a mais estigmatizada, era a lesão física. Assim como o

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11 maior perigo na hierarquia dos criminosos até o século XIX era o assassino, o criminoso de sangue, o homem das armas, e menos o homem das perversões.

A revisão do Código Penal francês, em 1832, levou em conta esta outra violência, ao tentar definir uma ofensa sexual cuja coação não recorre à brutalidade e à força física direta. Criou-se a diferença entre violência física e moral e uma nova unidade criminal foi constituída. Foi inventado um novo título no Código para agrupar, pela primeira vez, o conjunto dos atos de ofensa e de violência sexuais, sob um único capítulo: ´os atentados contra os costumes´. Versão moderna dos antigos crimes de luxúria, o novo título revela que a gravidade não estava mais no pecado, mas na ameaça à segurança e à ordem social.

A primeira brutalidade invisível a ser especificada no Código Penal francês pós-revolução foi o estabelecimento de um critério de idade (11 anos) para presunção de violência nos casos de atentado ao pudor. Em 1863, uma lei elevou a idade para 13 anos e passou a condenar também atentados contra menores mesmo acima desse limite de idade, mas não emancipados pelo casamento, quando este é cometido por alguém que ocupa em relação ao menor uma posição de autoridade: “se é possível supor uma vontade inteligente e livre numa criança com mais de 13 anos, essa vontade não é mais certa se a solicitação lhe chega de um de seus ascendentes, isto é, de uma pessoa que exerce sobre ela uma autoridade natural” (Vigarello, 1998: 138).

A partir de 1850, a jurisprudência reconhece e designa, pela primeira vez, de modo explícito, a existência de uma violência moral fora dos casos de crianças. O novo crime consiste no fato de abusar de uma pessoa contra a sua vontade, seja que a falta de consentimento resulte em uma violência física ou moral. Emerge, assim, um sujeito de direito obrigando que se modifique o pensamento sobre o estupro: há o estupro todas as vezes que o livre-arbítrio da vítima é abolido. A análise do não-consentimento torna-se, assim, um projeto jurídico.

Ao mostrar como o conjunto da relação entre violência e não-consentimento é pouco a pouco repensado na segunda metade do século XIX, o caso francês, analisado detalhadamente por Vigarello e que procurei re-construir aqui resumidamente, serve enquanto paradigma de como o ocidente reformulou a concepção de ‘violência sexual’.

Uma nova técnica de exame do comportamento humano é fundamental para o aparecimento-reconhecimento desse novo tipo de violência que, “atingindo o corpo, atinge a parte mais incorporal da pessoa” (Vigarello, 1998:09). O processo de

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12 diferenciação da ‘violência sexual’ em relação à ‘violência física’, de modo que a primeira pudesse emergir como uma modalidade específica de violência, é paralelo ao processo de dissolução de uma ligação imediata entre a pessoa e seus atos, que levou a um lento reconhecimento de que um sujeito pode estar ‘ausente’ dos gestos que é condenado a sofrer ou a efetuar, o que supõe a existência de uma consciência distinta daquilo que a pessoa faz. Sendo assim, segundo Vigarello (1998), a história da ‘violência sexual’ encontra-se com a história do nascimento do sujeito contemporâneo, dotado de uma interioridade.

Além disso, proponho que a história da ‘violência sexual’ encontra-se também com a história de uma concepção individualista de sociedade, que se pode definir como “era moderna”. “Sua premissa é a de que cabe aos indivíduos um conjunto de direitos inalienáveis, centrados, sobretudo, na sua liberdade individual” (Vianna & Lacerda, 2004: 15). Sendo assim, a presença ou ausência do ‘consentimento’ passa a ser o elemento central na definição da licitude da relação sexual.

No Brasil, assim como na França, a primeira modalidade de ofensa sexual invisível pode ser caracterizada pela presunção de violência por menoridade. “A primeira legislação a prever a presunção de violência foi o Código de 1890, disciplinando no artigo 272 que a violência era ficta, quando o ato sexual fosse perpetrado contra menor de dezesseis anos” (Prado, 1006: 244). Com isso, qualquer relação sexual com alguém abaixo da idade delimitada por esta lei passou a ser classificada como ‘estupro’ (se o ato for cópula heterossexual vaginal e a vítima for do sexo feminino) ou ‘atentado violento ao pudor’ (se for qualquer outra forma de ‘ato libidinoso’ diverso da conjunção carnal, seja a vítima do sexo masculino ou feminino). O Código Penal (CP) de 1940 manteve o critério da presunção da violência para caracterizar delito de ‘estupro’ ou ‘atentado violento ao pudor’, diminuindo, porém, a idade para quatorze anos e acrescentou a hipótese em que a vítima é alienada ou débil mental ou não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência.

A razão da tutela do menor de 14 anos, pelo que se depreende da própria Exposição de Motivos do Código Penal, reside na ‘innocentia consilli’ do sujeito passivo, ou seja, à sua completa insciência em relação aos fatos sexuais de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.(Prado, 2006: 244).

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13 Além dos casos de menores, no sentido proposto por Vianna (2002)10, a mudança de paradigma de um olhar centrado na materialidade da ofensa a uma visão jurídica que passa a priorizar os elementos invisíveis e morais do delito pode ser percebida, na legislação brasileira, a partir da comparação dos textos do Código Penal de 1890 e do Código Penal11 de 1940, que vigora até hoje, com algumas alterações. No Código de 1890, o delito de estupro12 era definido pelo artigo 269 como “ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não”13. No Código de 1940, por sua vez, ‘estupro’14 é entendido como “cópula sexual (...) do homem com a mulher, mediante o emprego por aquele de violência física (vis corporalis) ou moral (vis compulsiva), com a intromissão do pênis na cavidade vaginal” (Prado, 2006:195). Observa-se, então, que o CP de 1940 passa a diferenciar violência física de violência moral, considerando também a segunda na tipificação do delito de estupro.

Além disso, o CP de 1940 substituiu o antigo crime de ´defloramento´, do CP de 1890, pelo crime de ´sedução de menores´15, de modo que o hímen deixou de ser um atestado exclusivo de pureza, que passou a ser avaliada a partir da totalidade da conduta da mulher. O bem jurídico tutelado, a partir do CP de 1940, deslocou-se da virgindade física para a virgindade moral.

Tratou-se de um novo enfoque (em relação ao Código Penal de 1890), um realinhamento na hierarquia dos fatores tidos pelos profissionais do direito como possíveis de comprovarem a ´honestidade feminina´, com os aspectos sociológicos e psicológicos, comportamentais e morais, ganhando precedência sobre os ´elementos anatômicos´ (Duarte, 2000: 159).

Ou seja, o código de 1890 salientava a ‘menoridade’ e a ‘virgindade’ da vítima. O código posterior, por sua vez, salienta a ‘inexperiência’ ou ‘justificável confiança’, de modo que “para obter o título de vítima não bastará a moça provar que era virgem

10 Segundo a autora, a menoridade não se refere, obrigatoriamente, à idade, mas, sim, a qualquer

incapacidade legal de auto-gestão. “Menores podem ser mulheres, escravos, filhos não casados, agregados, loucos, índios, enfim, todos aqueles que, em uma configuração social específica, sejam compreendidos como incapazes (ou relativamente incapazes) de responderem de forma integral por seus atos” (Vianna, 2002: 07).

11 Opto por comparar os Códigos Penais e não outros diplomas legais, como os Códigos de Menores

(1927 e 1979) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) porque nesta parte foco minha análise na problemática das ofensas sexuais e estas são disciplinadas pelos primeiros.

12 “Art. 268/1980. Estuprar mulher vigem ou não, mas honesta. Pena – de prisão celular de um a seis

anos. Parágrafo 1o: Se a estuprada for mulher pública ou prostituta. Pena – de prisão celular por seis

meses a dois anos” (Trechos do código Penal de 1980. In: VIEIRA, 2007: 22).

13

Trechos do código Penal de 1980. In: VIEIRA, 2007: 22

14 Art. 213 do Código Penal de 1940: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou

grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 a 10 anos”.

15 Art. 217 do Código Penal de 1940: “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de

catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos”.

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14 (...), ela precisará inspirar no juiz a convicção de ser ´moça de vida honesta´, comprovando uma conduta condizente com aquela condição”. (Duarte, 2000: 159). A inexperiência significava que a moça era inocente e, assim sendo, seria presa fácil para um sedutor habilidoso. A sedução por ‘justificável confiança’ podia ser configurada, por exemplo, através de uma promessa falsa de casamento. Segundo Duarte (2000), em ambos os casos a liberdade sexual estaria sendo violada, pois a decisão de copular teria sido tomada mediante condições que turvaram a razão, a capacidade de discernimento e o controle das emoções.

A lei 11.106, de 28 de março de 2005, revogou o delito de ‘sedução de menores’, no qual a virgindade ainda permanecia como uma exigência para tipificação do crime. Manteve-se, no entanto, no Código Penal, o delito de ‘corrupção de menores’16, que consiste em praticar ato de libidinagem com menor entre 14 e 18 anos ainda não depravado, não corrompido moralmente17. “É corrupto quem já conhece os prazeres da carne, quem já perdeu a ingenuidade sexual” (Fragoso, HC, p. 26, op cit, in: Prado, 2006: 235, nota 8). Desse modo, a virgindade física desapareceu do texto da lei enquanto elemento de tipificação do crime e permanece apenas a exigência de virgindade moral. Claro que a virgindade física era protegida nas leis anteriores como signo de pureza das moças e claro que o desvirginamento ainda pode ser hoje um dado utilizado pelos operadores e intérpretes das leis para a caracterização da ‘corrupção moral’ da vítima, mas a ênfase foi deslocada, ao menos no texto legal, dos sinais físicos para o exame do ‘estado moral’ da pessoa ofendida.

Da ameaça à honra das famílias à violência contra a pessoa

O percurso esboçado acima, sobre o processo de constituição da noção de uma ‘violência sexual’ propriamente dita, diferenciada da ‘violência física’, está articulado e ajuda a entender um outro deslocamento no entendimento sobre a ‘violência sexual’,

16 Art. 218 do Código Penal de 1940. “Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 e

menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presencia-lo. Pena – reclusão de 1 a 4 anos”. Destaca-se que a Lei 2.252/54, que dispõe sobre a ‘corrupção de menores’, não revoga o artigo 218 do CP/40. Nesse último, “a lei pune a contaminação do menor inexperiente nos prazeres da carne (...). O crime é contra os costumes. Já a Lei 2.252, suprindo lacuna no ordenamento vigente, veio reprimir outras formas de corrupção, quando o menor é levado ou induzido à prática de qualquer infração penal” (TJSP - AC - Rel. Carlos Bueno - RT 658/269 e RJTJSP 26/462).

17 Outra diferença importante do delito de ‘sedução’ em relação ao de ‘corrupção’ de menores é o

critério de gênero: somente pessoa do sexo feminino poderia ser sujeito passivo do delito de sedução, enquanto que as vítimas do delito de ‘corrupção’ de menores podem ser tanto moças quanto rapazes, desde que sejam maior de 14 e menor que 18 anos e que não sejam ainda ‘corrompidos’ sexualmente.

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15 que será analisado a partir de agora: do crime de honra ao atentado contra a liberdade da pessoa.

A lei criminal tal qual foi desenvolvida durante muitos séculos e como se consolidou no século XIX endereçava-se ao comportamento sexual no interior de uma estrutura fundada em pressuposições patriarcais sobre a legitimidade da autoridade masculina sobre mulheres e crianças no interior da família (Waites, 2005: 66). No Código Penal brasileiro de 1890, as ofensas sexuais, organizadas segundo esse modelo patriarcal hierárquico, eram reunidas no título ‘dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor’.

De acordo com a linguagem patriarcal, entendia-se que a ofensa sexual que atingisse a mulher atingiria infalivelmente o seu tutor – pai ou marido. No caso de mulher casada, é de adultério cometido à força que é acusado o agressor, pois o prejuízo causado ao marido e à família era o principal a ser levado em conta. No caso de moça virgem, o crime era de ´defloramento´, ou seja, o que determinava a gravidade do ato era o roubo da castidade, que era visto como fundamental para manutenção da honra das famílias.

Uma vez que a ofensa sexual ameaçava antes à moral pública do que a subjetividade da pessoa ofendida, o status social da vítima podia aumentar ou diminuir a gravidade do crime de acordo com a vergonha e o prejuízo social produzidos. O estupro contra uma mulher pública ou uma prostituta, por exemplo, era considerado menos grave do que atentar contra uma ‘mulher honesta’.

No Código Penal brasileiro de 1940, os delitos sexuais passaram a ser agrupados sob o título ‘dos crimes contra os costumes’, no capítulo ‘dos crimes contra a liberdade sexual’. O bem jurídico protegido não é mais a ‘honra das famílias’, mas, sim, a ‘liberdade sexual’, definida como “a capacidade do sujeito (...) de dispor livremente de seu próprio corpo à prática sexual, ou seja, a faculdade de se comportar no plano sexual segundo seus próprios desejos” (Prado, 2006: 194). Nesse contexto, a questão do ‘consentimento’ passa a ter uma importância maior do que o status social da pessoa ofendida.

No novo modelo fundado nos direitos de ‘liberdade individual’, o estupro deixa de ser um roubo ou um ultraje e passa a ser uma ameaça contra o corpo íntimo e privado. Mas, como destaca Vigarello (1998), a inovação mais visível no primeiro momento é a dos textos. A vergonha continua presente e as queixas não aumentam repentinamente com a mudança do código. Por isso, a apreciação das transformações

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16 históricas das desigualdades de gênero é vital para a análise dos debates em torno do significado da noção de ‘consentimento’ no contexto do comportamento sexual.

Nos anos 70, “a luta contra o estupro toma um sentido novo: o de uma libertação” (Vigarello, 1998: 210). As queixosas querem ir além dos atos incriminados, a fim de iniciar um debate sobre os costumes, reivindicando mudanças nas relações entre homens e mulheres, logo, na sociedade18. “É porque a ‘violência sexual’ confronta definitivamente dois sujeitos que ela pode hoje mudar de sentido” (Vigarello, 1998: 218).

O feminismo foi um dos primeiros movimentos sociais a enfocar o campo jurídico como estratégia política para a promoção de mudanças na desigualdade de gênero (Vieira, 2007: 33). A autora destaca que a partir do final da década de 1980, entidades feministas “iniciaram uma luta (...) para a inclusão dos crimes sexuais no capítulo ‘dos crimes contra a pessoa’, demarcando, assim, um espaço discursivo em defesa dos direitos individuais das mulheres” (Vieira, 2007: 20). Como destacam Vianna & Lacerda, traçando conexões entre a luta política e social mais ampla do feminismo e o contexto legal brasileiro:

A compreensão dos crimes de natureza sexual como algo que ofende a moralidade pública – presente na idéia de ‘costumes’ e não voltado diretamente à pessoa – vem sendo alvo há longo tempo de críticas por parte de militantes feministas. Na proposta ainda não efetivada de revisão do Código Penal, esta crítica foi contemplada e tais crimes devem passar a ser incluídos em uma parte designada como ‘crimes contra a dignidade sexual’. Além disso, termos relativos à virgindade ou à condição de ‘mulher honesta’ também foram retirados(Vianna & Lacerda, 2004: 76).

As autoras mencionam também que desapareceu o crime de ‘rapto’ que resguardava a honra familiar, e projetos de lei vêm sendo apresentados, visando a eliminar do Código Penal a possibilidade de anulação da pena por crimes sexuais, no caso de o criminoso se casar com a vítima.

Da ênfase no gênero à ênfase na geração

A passagem de uma linguagem patriarcal a uma linguagem dos sujeitos de direitos é acompanhada de um outro deslocamento nos discursos sobre ‘violência sexual’: do

18

Vieira (2007) menciona que a segunda onda do movimento feminista foi marcada por duas estratégias políticas. A primeira é centrada na libertação das mulheres, o que incluía, claro, a denúncia da violência, o combate à relação sexual obtida à força e a reivindicação do direito de dispor de si, prevalecendo o slogan ‘nosso corpo nos pertence’ (politização do privado). Uma segunda estratégia enfatizava o direito de sobrevivência, a partir da denúncia de homicídios, prevalecendo o slogan ‘quem ama não mata’ (ver VIERA, 2007, p. 41).

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17 enfoque de gênero para o de geração, de modo que o abuso sexual de ‘menores’ passou a ter uma especificidade inédita e uma gravidade alarmante. Ou seja, “se antes a violência era entendida como um problema relacionado à desigualdade entre homens e mulheres, no final do século XX ela passou a ser vista muito mais como uma questão relacionada à desigualdade entre crianças e adultos” (Landini, 2006: 251).

Perceber essa mudança de enfoque que fez com que a ‘violência contra criança’ ganhasse contornos específicos parece-me um caminho interessante para fins de sistematização. No entanto, é importante destacar que não desaparece o cruzamento diferenciado de acordo com o gênero19. Sendo assim, para uma análise mais complexa, mais interessante do que falar de uma substituição de enfoque é pensar sobre os entrecruzamentos de vulnerabilidades, o que permite compreender porque as ‘meninas’ – figura que combina elementos de gênero feminino e da idade infantil – retratam as vítimas privilegias do ‘abuso’ e da ‘exploração’ sexual.

É importante observar que, até o final do século XX, o estupro contra crianças e adolescentes não era julgado específico ou ligado a alguma criminalidade particular. Apesar de grande parte das denúncias sobre ‘violência sexual’ tratarem de casos nos quais as vítimas são meninas e moças, nenhum nome especial era reservado à ofensa contra menores, no máximo, ‘violência contra uma menina impúbere’. A partir do final dos anos 1980 então, “houve uma mudança profunda na forma de entender a ‘violência sexual’ cometida contra menores de idade – a ênfase, antes colocada na questão de gênero, passou a ser posta na idade” (Landini, 2006: 15).

A criança é menos percebida como algum equivalente ‘normal’ da vítima adulta. O ato que a atinge sexualmente se torna específico, não-substituível, revelando uma ruptura, um deslocamento de horizonte: uma violência que só um irremediável desvio, se não uma anormalidade, poderiam explicar (Vigarello, 1998:172).

Como apresentei na introdução, a partir do final do século XX, crianças e adolescentes tiveram o seu lugar sacralizado fortalecido, devido a uma pressuposição de vulnerabilidade ‘natural’. Sendo assim, eles passam a ocupar nas agendas políticas um lugar de destaque nas lutas por direitos especiais, especialmente de proteção contra as diversas formas de exploração. A aprovação da Convenção Universal de

19 Apesar de serem cada vez mais denunciados também casos que envolvem meninos, como destaca

Landini (2006). Ao analisar jornais do início do século e do fim do século XX, a autora afirma que “se nas primeiras décadas do século as reportagens referiam-se, praticamente, apenas às meninas, no final do período, muitos textos enfatizam que os meninos também são vítimas” (Landini, 2006: 252).

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18 Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, deu suporte para a promulgação de uma legislação centrada na concepção de crianças e adolescentes como ‘sujeitos de direitos especiais’ (Vianna, 2002:18). No Brasil, essa virada é marcada pela passagem do Código de Menores de 1979 para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que significou a substituição da doutrina da ‘situação irregular’ - voltada para as infâncias consideradas ‘erradas’ (infratoras, abandonadas etc) - pela doutrina da ‘proteção integral’ e do ‘melhor interesse’ da criança e do adolescente (Vianna, 2002; Schuch, 2005).

Os aparatos estatais de proteção e controle de populações infanto-juvenis existem desde o início do século XX, a partir da consolidação de um processo mais abrangente, na modernidade, de formação de uma noção de infância como uma fase específica da vida, como retratou Áries (1981). Mas, nas últimas décadas, seu modo de entendimento e significação foi consideravelmente transformado (Schuch, 2005). Com a transformação de crianças e adolescentes em ‘sujeitos de direitos’, a crítica à violência contra eles ganha força, transformando o crime cometido contra a criança no principal modelo de atrocidade. “In our present system of values, genocide is the worst thing that one group can do to another, and to abuse a child is the worst thing that one person can do to another” (Hacking, 1992: 194).

Segundo Vianna & Lacerda (2004), no plano internacional, observa-se uma maior visibilidade da prostituição infantil e adolescente.

Embora as regulações internacionais sobre tráfico de mulheres e crianças já venham de longa data, foi somente a partir dos anos 1990 que a exploração sexual infantil e adolescente ganhou destaque como um problema com contornos próprios, incluindo também a pornografia (Vianna & Lacerda, 2004: 66).

Essa maior visibilidade e sensibilidade foram convertidas, rapidamente, em estratégias de ações políticas. Segundo Vianna & Lacerda (2004: 68), “os últimos anos foram marcados por uma concentração de iniciativas voltadas para o combate à exploração sexual de crianças e de adolescentes”. Foram realizados vários encontros internacionais para elaborar diretrizes para o combate à exploração sexual de menores (Estocolmo, 1996; Viena, 1999; Japão, 2001). A UNESCO lançou em 1997 a página “Inocência em Perigo”, visando a combater a propagação da pedofilia20. As autoras

20

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19 destacam também uma série de iniciativas no âmbito nacional21. Além da presunção de violência, estabelecida no artigo 224 do Código Penal (1940), no caso de sexo com menores de 14 anos, a promulgação do ECA (1990) e algumas modificações posteriores incluíram outras modalidades de ‘violência sexual’, associadas à pornografia e à exploração sexual comercial.

Ao passar de uma ofensa à honra das famílias a uma ofensa ao sujeito dotado de uma interioridade, os efeitos do crime sexual também sofreram um deslocamento importante que confere uma dimensão nova e particular ao estupro contra crianças:

O resultado do crime não é mais a imoralidade, mas a morte psíquica, a questão não é mais a depravação, mas a quebra de identidade, irremediável ferida à qual a vítima parece condenada, o que concede um lugar inteiramente novo ao estupro contra crianças (Vigarello, 1998: 248).

A partir da noção de que todo o desenvolvimento psíquico pode ser afetado por uma experiência de ‘abuso sexual’ na infância (que pode ser configurada mesmo em uma relação sem coerção física, porém ‘precoce’ e assimétrica), uma nova engrenagem que articula a prática jurídica ao saber psi constitui-se enquanto instância privilegiada para a compreensão e a gestão desse tipo de violência. Psicólogos e assistentes sociais são indicados por juízes não apenas para administrar e atenuar o sofrimento psíquico das vítimas, mas também para evitar que elas se transformem em futuros agressores.

Dos atos criminosos aos indivíduos perigosos

No final do tópico anterior, apontou-se um processo de psicologização das vítimas de crimes sexuais, portanto, de uma patologização de seus efeitos: o trauma, dano de longo prazo, a dor interior, as conseqüências disruptivas para o desenvolvimento da criança. A patologização da figura do criminoso sexual, portanto, a psicologização das causas do crime, é o tema que será desenvolvido na análise deste último deslocamento no emaranhado da ‘violência sexual’. Mostro como as noções de ‘perigo’ e de

21 Em 1993, foi criada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dedicada ao tema da prostituição

infantil. Agências de turismo junto à Embratur elaboraram campanhas contra a exploração e o turismo sexual infanto-juvenis. A partir da aprovação da Lei 9.970, foi criado, em 2000, o dia internacional de combate ao abuso e à exploração sexual infanto-juvenil: dia 18 de maio. No mesmo ano, foi formulado o Plano Nacional de enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil, elaborado por organizações governamentais e não-governamentais, dentre outras medidas de políticas públicas (Vianna & Lacerda, 2004).

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20 ‘perversão’ foram fundamentais nesse processo de fusão do criminoso e do patológico.

Foucault reconhece que emerge na segunda metade do século XX um novo sistema penal e legislativo em torno da sexualidade, centrado menos na punição de ofensas contra decência e mais na proteção de populações vistas como vulneráveis. Segundo Focault, “we're going to have a society of dangers, with, on the one side, those who are in danger, and on the other, those who are dangerous” 22. Observa-se, então, uma substituição de um tribunal de combate ao crime e à ofensa aos costumes, por um tribunal da perversidade e do perigo.

In other words, the legislator will not justify the measures that he is proposing by saying: the universal decency of mankind must be defended. What he will say is: there are people for whom other’s sexuality may become a permanent danger. In this category, of course, are children

(Foucault)23

Sendo assim, se antes a justiça penal ocupava-se dos atos criminosos e condenava formas de comportamentos, agora o que está sendo definido e suscetível à intervenção da lei, do juiz, do médico, são os indivíduos perigosos. Para traçar a genealogia dessa nova visão sobre o criminoso, Foucault (2001) descreve as transformações das relações entre o saber-poder médico-psiquiátrico e o Judiciário, a partir da comparação de duas técnicas de exames médico-legais da consciência, utilizadas pela justiça penal no século XIX e no século XX, respectivamente.

No exame ‘clássico’, o perito só era “chamado para saber se o indivíduo imputado estava em estado de demência, quando cometeu a ação. Porque, se estava, não pode mais, por causa disso, ser considerado responsável pelo que fez” (Foucault, 2001: 23). No novo exame, “trata-se de reconstituir a série do que poderíamos chamar de faltas sem infração, ou também de defeitos sem ilegalidade. Em outras palavras, mostrar como o individuo já se parecia com seu crime antes de o ter cometido” (Foucault: 2001: 24).

Em suma, ao se deslocar da problemática da ‘responsabilidade’ e da ‘imputabilidade’ para a avaliação da ‘periculosidade’ e da ‘perversidade’, o novo exame psiquiátrico permite constituir um ‘duplo psicológico-ético de delito’. Ou, em

22 Trecho do texto “The Danger of Child Sexuality", diálogo de Michel Foucault com Guy

Hocquenghem e Jean Danet, 1978, p. 10. In: KRITZMAN, Lawrence D. (Ed.). In: Michel Foucault:

politics, philosophy, culture: interviews and other writings..Tradução de Alan Sheridan. New York: Routledge, 1988.

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