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A lenta abolição da escravidão no Império do Brasil

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Academic year: 2021

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Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio Unidade Curricular: História II

Professor: Guilherme Babo

Eixo temático “Escravidão, Império e Indústria”

A lenta abolição da escravidão no Império do Brasil

Já tivemos a oportunidade de analisar os alguns problemas presentes na questão abaixo, retirada da prova do Enem de 2007, com relação à interpretação ultrapassada da “Lei Euzébio de Queiroz” (Lei n° 581, de 4 de setembro de 1850) que ela reproduz. Neste segundo momento, vamos voltar a observar mais alguns problemas reproduzidos no enunciado desta questão no que diz respeito à legislação abolicionista no Brasil da segunda metade do século XIX.

Em primeiro lugar, a Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871 (“Lei do Ventre Livre”, também chamada de “Lei Rio Branco”) não concedeu liberdade imediata para os filhos de escravas nascidos a partir desta data, como a questão dá a entender. Outros aspectos1 relevantes da lei também são omitidos se pensamos apenas na questão do “ventre livre”.

1 Importante notar que se tratam dos filhos de escravas, não de escravos, como está na linha do tempo do enunciado. Não importava a condição do pai (escravo, liberto ou livre), apenas a condição da mãe. Sendo a mãe escrava, os frutos de um ventre escravo seriam escravos do seu senhor. Sendo a mãe liberta ou livre, os frutos deste ventre livre seriam naturalmente livres, ou “ingênuos”.

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Também a Lei n° 3.270, de 28 de setembro de 1885, conhecida como “Lei dos Sexagenários”, não concedeu liberdade para os escravos maiores de 60 anos. Por fim, a famosa “Lei Áurea” (Lei n° 3.353, de 13 de maio de 1888) não aboliu a escravidão no Brasil. A escravidão tornou-se ilegal no Brasil, mas ela continua ocorrendo de muitas formas ilegais até os dias de hoje, apesar de no Art. 1° afirmar: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”.

Leia o trecho da entrevista abaixo, retirado da ​Revista Labor​, publicação do Ministério Público do Trabalho, em uma edição sobre o problema da escravidão no Brasil contemporâneo (também chamada de “​trabalho análogo à escravidão​”).

O libertador de homens

Auditor fiscal do Trabalho, Curicaca conta como resgatava trabalhadores em fazendas do Pará Por Rodrigo Farhat

Curicaca, o Paulo César Lima, nasceu na periferia de Parnaíba (PI), no bairro de São José, o Cheira Mijo, segundo os próprios moradores. Terceiro de quatro filhos de um alfaiate com uma aplicadora de injeção na veia de rua, como descreve a ocupação da mãe, foi criado por uma tia, até se formar em engenharia civil. Ele também tinha como padrinho um médico, que o mantinha na escola. “Ganhava os livros e o uniforme se tirasse boas notas, a cada ano. Se rateasse na curva, me ferrava.” Sempre deu certo e, em 1972, foi estudar no Maranhão. Seu irmão mais velho já estava na faculdade. Em sua casa era assim: o irmão estudava, começava a trabalhar e passava a cuidar do mais novo. [...]

Aos 57 anos, como ex-coordenador de grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), tem muitas histórias para contar sobre o combate ao trabalho escravo contemporâneo, apesar de não integrar grupos móveis desde 2006. Na Gerência Regional de Trabalho e Emprego de Parnaíba, hoje ele investiga acidentes de trabalho urbano e, vez por outra, participa de fiscalizações rurais.

Sua vida como Zumbi dos Palmares moderno começou com uma operação do MTE que constatou haver trabalho escravo na usina de álcool e açúcar do empresário Ari Magalhães. Ele era auditor fiscal e

acompanhou a investigação, comandada pela

auditora fiscal Cláudia Márcia Ribeiro Brito, do acidente em Teresina que matara e ferira grande número de trabalhadores. Mais tarde, o empresário virou deputado federal e conseguiu trocar o comando

da Delegacia de Trabalho. No lugar de Cláudia Brito, indicou Audrei Magalhães, sua sobrinha. Curicaca, assim, ficou algum tempo no ostracismo.

Mas era e é irrequieto como a ave pernalta que dá sentido ao apelido Curicaca. Um dia, de Brasília, Cláudia Márcia ligou para ele, convidando-o para trabalhar nos grupos móveis. Foi. Precisava ver se afinava com a ideia. Era 1994 e descobriu a vida. “Vi os caras parecidos comigo. Todos da minha região. Todos nordestinos. Tinha afinidade com a luta.” Seu jeitão facilitava o contato com os peões. Falavam a mesma língua e não tinha dificuldade em compreender o que diziam. “Era um homem realizado, pago para fazer o que gostava.” Mas nem tudo era cor-de-rosa. Havia dificuldades internas e externas.

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As primeiras estavam relacionadas a pontos de vista, à gestão das operações de fiscalização, e as segundas, aos parceiros, que não tinham o mesmo foco que os auditores fiscais. “Não acreditavam na existência do trabalho escravo. Diziam: ‘O cara veio pra cá porque quis. Ele estava quieto lá na casa dele. Por que não ficou no Nordeste?’. Os principais problemas eram diferenças com policiais federais.” Uma vez, um deles chegou a dizer: “Se um peão der trabalho para você, Curicaca, se ele se meter a besta, vai se ver comigo.” Os anos 1990 chegavam ao fim. [...]

Uma operação de fiscalização durava de 12 a 15 dias, naqueles anos. Hoje o tempo é menor. Há outras diferenças também, principalmente tecnológicas. Naquele tempo, não havia telefone, nem notebook. “Tudo era no braço. Não havia nem câmara fotográfica. Hoje, os integrantes de um grupo móvel

têm telefone e sistemas de posicionamento por sátelite. Têm computador, internet e bons carros para entrar no meio do mato.”

Curicaca andou em fazenda que tinha dez peões e até em algumas com 1,8 mil. “A gravidade não está na quantidade de trabalhadores escravizados, mas na violência envolvida.” Ele explica que a escravidão por dívida é a mais palpável, pois você pega o caderno do gato e fica sabendo quem trouxe quem e como trouxe. “É um novelo, do qual só se sabe o começo, mas não se conhece o fim.”

Para ele, se o governo não educar, não promover a reforma agrária e não fizer leis mais rígidas, nada terá adiantado. “Esta é a solução: educar, criar empregos e resolver o problema da terra.”

Curicaca responde

Quando e como começou o enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil?

Foi o bispo de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, quem primeiro falou sobre a existência de trabalho escravo no Brasil. Eram os anos 1970. Mais tarde, Walter Barelli [ministro do Trabalho do governo Itamar Franco, 1992/94], declarou: Se tem trabalho escravo, vamos acabar com ele. E foi para Marabá (PA), acompanhado da auditora Vera Jatobá. Lá, eles criaram os grupos rurais de fiscalização. Os grupos móveis nasceram no governo Fernando Henrique Cardoso.

Como um homem se tornava escravo nos anos 1990?

O cara pegava um ônibus e chegava numa cidade – podia ser em Barras de Maratauã (PI) –, e anunciava em uma rádio FM que tinha trabalho no Pará. Ele, então, escolhia os mais novos, os mais fortes ou então aqueles que já tivessem trabalhado uma vez. De tanto o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal combaterem esse crime, eles mudaram a tática.

Como é organizada uma operação de

fiscalização?

É tudo feito em sigilo. Na operação de Xinguara, por exemplo, não sabia o que ia ocorrer. Então,

antes, em Marabá, encontramos os outros, Sônia Nassar, Alírio e Raimundo Tadeu. Também encontramos os policiais federais. Naquele dia, senti o perfume da violência na cidade. Eu me assustei. O X9 também estava com medo. Tanto que saiu correndo do carro, no meio da noite, depois de passar as informações sobre o local da fazenda e o nome do gato.

Chegamos ao amanhecer. Estava escuro. A polícia pegou Baiano Chapéu Preto e nós fomos calcular o tempo de serviço e o valor a que cada trabalhador tinha direito. Foi a primeira vez em que me deparei com a inteligência dos peões. Faltou cola para fixar o retrato na carteira de trabalho e um peão, o Vampiro, pegou um pedaço de isopor, um pouco de gasolina e fez a cola. Era assim que ele colava os bicos das botinas, no meio do mato. Encontrei aquele gato outras duas vezes, nas fazendas Brasil Verde e na Rio Vermelho, ambas no sul do Pará. O tempo do planejamento depende de cada caso. Se for roço de juquira tem que ser rápido. Imagine um fazendeiro com 200 peões cortando juquira para limpar pasto. Em três ou quatro dias, tudo estará terminado.

Qual é a dinâmica atual do trabalho escravo? Depois do cerco aos fazendeiros, como eles agem para aliciar mão de obra?

A dinâmica hoje é outra. O gato paga o dinheiro da passagem para o peão, até Miranda do Norte (MA). Lá, ele pega o trem da Vale do Rio Doce e vai até

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Marabá (PA). É um trem de carga e de

passageiros. Em Marabá, ele pega uma

caminhonete garimpeira, uma D-20 coberta de lona com bancos de madeira e vai até Xinguara.

Lá, ele fica em um hotel de pioneiro à disposição do gato. A dona da pensão nem se preocupa com o dinheiro das diárias, porque ela sabe que mais dia menos dia vai chegar um gato para assumir a dívida do peão e levá-lo para uma fazenda. Essa é a dinâmica de hoje.

Os donos de hotéis também são cúmplices? Sim, eles fazem parte da teia e alguns já estão sendo processados.

Quando o fazendeiro se torna cúmplice? O grande patrão somente entra nesse circuito quando ele chama o gato, o arregimentador da mão de obra, e diz: “Eu quero tantos.” Ele não quer saber se o trabalhador veio do Piauí, do Ceará ou

do Maranhão. Aí o gato chega e diz que tem 30 na pensão da dona Lourdes. “Paguei R$ 3 mil. Está aqui o caderno.” O cara vai e paga o dinheiro para ele. Aí começa a história.

Qual a reação dos fazendeiros?

O fazendeiro tem que pagar as rescisões na ficha, na hora.

Houve uma época, no sul do Pará, que eles fizeram uma caixinha. Sabiam que os grupos não davam conta de mais de duas fazendas. Então, se um grupo está em uma fazenda e o fazendeiro não tem como pagar, esse grupo vai fiscalizando outras propriedades. Assim, eles se juntaram para pagar as dívidas rapidamente. Era uma forma de o grupo móvel ir embora logo.

(Disponível em: <https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes​>,

acesso em 6 jun. 2020)

Assim como nos períodos colonial e monárquico, a escravidão no Brasil não se dá apenas nos meios rurais, como no caso das fazendas mencionadas na reportagem acima. A escravidão urbana também está presente até os dias de hoje nos grandes centros. Na mesma edição da Revista Labor, há uma outra reportagem que apresenta a situação dos imigrantes escravizados no setor têxtil (acesse o link acima para aprofundar seus conhecimentos sobre este tema). Assim, já pudemos observar como a abolição da escravidão no Brasil é um processo lento e que ainda hoje o trabalho escravo ilegal não foi extinto. Vamos nos dedicar agora ao estudo da dimensão legal da abolição. Na segunda metade do século XIX, o caminho escolhido pela maioria dos governantes do Império foi o da abolição lenta e gradual do “elemento servil”, como costumavam se referir à escravidão.

Ilegalidade e escravidão após a abolição do tráfico atlântico

Já vimos que a aprovação da “Lei Euzébio de Queiroz”, determinando novas medidas de repressão ao tráfico ilegal de escravos para o Império do Brasil, marcou o fim deste comércio de contrabando que havia introduzido quase 800 mil escravos desde a proibição da lei de 1831, embora ainda haja registro de 7.318 escravos ilegais desembarcados entre 1850 e 1856. Além de fortalecer as ações de combate ao tráfico apenas no mar, o governo relaxou as penas contra os compradores e omitiu-se quanto à situação destes homens e mulheres livres por direito, mas escravos de fato.

Embora o fim do tráfico atlântico não implicasse numa previsão de fim da escravidão, o governo adotou em 1850 uma medida que visava ao reforço da hierarquia social, preparando o país tanto para a futura vinda de imigrantes livres como para uma possível libertação dos trabalhadores escravos. Esta foi a chamada “Lei de Terras”.

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O sociólogo José de Souza Martins desenvolveu um estudo sobre a Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850, que dispôs sobre as terras devolutas no Império do Brasil, associando-a à questão da escravidão. Promulgada duas semanas depois da “Lei Euzébio de Queiroz”, a chamada “​Lei de Terras​” pôs o fim à prática, que vinha desde os tempos coloniais, de garantia da “posse mansa” da terra devoluta, isto é, do direito de quem se estabelecesse e cultivasse uma terra que não tivesse sido formalmente doada pelo governo por meio de uma sesmaria. Também não foram mais concedidas sesmarias a partir da lei, estando as terras devolutas passíveis de serem transformadas em propriedades privadas apenas mediante compra, sem chance de financiamento pelo governo. Os posseiros que já tinham direito a suas “posses mansas” estabelecidas antes da lei, deveriam tirar títulos dos terrenos em cartórios, o que foi mais um limite para a garantia de seus direitos e um a brecha para que fazendeiros registrassem suas terras e os expulsassem delas. Como José de Souza Martins definiu, o país se preparava para o fim do “cativeiro dos homens” garantindo o “cativeira da terra”.

A “Lei de Terras” e a questão indígena no Brasil

As terras dos povos indígenas foram garantidas apenas durante o processo de colonização e civilização dos mesmos. Ou seja, sem anular a disposição do Diretório dos Índios, de 1757, o Estado poderia demarcar terras para o estabelecimento fixo das aldeias, sob supervisão de um funcionário do governo, até que os indígenas fossem considerados catequizados e civilizados. Depois disso, o estado poderia vender estas terras. Daí termos até os dias de hoje o persistente discurso de que o indígena no Brasil “já não é mais índio”. Negar a identidade indígena, considerando o índio civilizado (seja por suas vestimentas, moradias ou acesso a tecnologias) é a reprodução de um discurso histórico sobre os índios de acordo com o qual, no momento em que não são considerados mais índios, estes perdem o direito a suas terras. Por isso, os movimentos indígenas se esforçam tanto para a preservação de suas tradições culturais, uma vez que sem a manutenção de suas culturas, tampouco conseguem manter seus direitos a terras demarcadas. Fonte da imagem:

https://www.brasildefato.com.br/2019/08/26/na-contramao-do-agronegocio-terras-indigenas-lideram-preservacao-e-reflorestamentos

Talvez a melhor maneira de demonstrar que o fim do tráfico não significou o início do processo de abolição da escravidão seja observar a percepção que os próprios negros tinham da situação do país na década de 1850. Sidney Chalhoub (2012) analisou este aspecto em estudo sobre a ilegalidade e o costume escravista no Império, identificando na população negra livre e liberta um ​temor de reescravização como consequência do fim do tráfico. Essa percepção estaria fundada no histórico recente de conivência das autoridades com o contrabando e manutenção de africanos e descendentes ilegalmente escravizados.

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Assim, por dois decretos de 18 de junho de 1851, o governo regulamentou a realização do primeiro Censo populacional e o registro obrigatório de nascimentos e óbitos no país. O registro entraria em vigor no primeiro dia do ano de 1852, enquanto o Censo deveria ocorrer em meados do mesmo ano. Algumas controvérsias surgiram em função de determinações como as exigências da certidão de óbito para sepultamento de cadáveres nos “campos santos” (os cemitérios eram administrados pelo clero regular, a serviço do Estado) e do registro de nascimento para os párocos ministrarem o sacramento do batismo (Art. 23 e 24). No entanto, a reação mais interessante contra os decretos se deu por uma série de revoltas populares, que identificaram os decretos de 1851 como “Lei do Cativeiro”.

Em vez da execução do decreto do registro civil obrigatório, o que se viu em janeiro de 1852 foi um pandemônio, uma verdadeira “calamidade”, segundo a perspectiva das autoridades públicas que redigiram os relatos de que dispomos sobre os acontecimentos [...]. O “povo” se levantou em boa parte do Império. Motins importantes se espalharam pelas províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, mais episódios localizados no ceará e Minas gerais, além de apreensão e alerta geral no resto do país, a ponto de o governo recuar rapidamente e suspender a execução dos dois decretos em 29 de janeiro.

A população agiu de forma deliberada para obstar a entrada em vigor da exigência dos registros. Conforme os usos do tempo, novas leis eram anunciadas pelos vigários nas missas dominicais. Os amotinados vigiaram os emissários e a correspondência destinada aos municípios para arrebatar os textos dos decretos antes que chegassem ao seu destino. Grupos armados - homens e mulheres - invadiram igrejas durante missas para intimidar os padres e impedir a leitura da lei do registro civil. Escrivães e juízes de paz se viram ameaçados, às vezes perseguidos e agredidos, pois seriam eles os responsáveis pelos assentamentos. Autoridades policiais foram desarmadas e trancafiadas nas cadeias. Dezenas de amotinados se juntavam para promover correrias em vilas, atacar engenhos pertencentes às autoridades locais. Escondiam-se nas matas, agrupavam-se às vezes nos centros das vilas, centenas deles, chegou-se a mencionar ajuntamento de mil pessoas. (CHALHOUB, 2012, p. 14-15)

Após semanas de combate itinerante e intermitente, mobilização de forças policiais, tropas do exército e da guarda nacional, mediação de missionários capuchinhos, dezenas de mortos e feridos, tanto dos populares quanto de autoridades e militares, a situação foi acalmada com a revogação dos decretos. O movimento ficou conhecido por nomes como “​Guerra dos Marimbondos​” ou “Ronco da Abelha”.

Representação dos movimentos populares de 1852. Fonte da imagem:

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Mas como seria possível explicar tamanha revolta e violência organizada por conta de registro de nascimentos e óbitos e da realização de um censo populacional? O ministro da Justiça, Euzébio de Queiroz não demorou a atribuir a exaltação popular às disputas entre liberais e conservadores, vendo na excessiva tolerância do governo com a imprensa de oposição liberal a fonte da manipulação do “povo rústico e ignorante”. Termos como “gente do mato”, “gente menos ilustrada”, “povo iludido”, “bando desatinado” “e até mulheres” foram usados por Queiroz para caracterizar os revoltosos como vítimas de “agentes da propaganda” que desejavam a “anarquia”.

Euzebio de Quiroz Coutinho Mattoso da Câmara (esq.) e

José da Costa Carvalho (dir.),

o visconde e marquês de Mont’Alegre, ministros de Estado do Império do Brasil.

Crédito das imagens:

Sébastien Auguste Sisson,

Galeria dos Brasileiros Ilustres​,

Domínio público.

O ministro dos Negócios do Império e responsável pelos decretos de 1851, visconde de Mont’Alegre, também considerou os populares “desvairados” possuídos por um “frenético delírio”. Todavia, ao analisar os ofícios que chegaram de todas as províncias, o visconde conseguiu identificar que a causa dos motins não residia na dificuldade de executar os regulamentos, mas no boato espalhado e “loucamente acreditado pelo povo rude” de que os decretos tinham por fim reescravizar os negros. Vemos assim, que longe de um Império no qual se assiste ao início de um processo de abolição da escravidão, o Brasil da década de 1850 era um país no qual a ilegalidade da escravidão era tão gritante e o costume escravista tão arraigado, que até o registro civil e o recenseamento eram vistos com suspeitas de que fossem usados para tornar cativos os negros livres e libertos, compensando a perda de mão-de-obra pela via do contrabando.

Longe de ser uma loucura, delírio ou um desvario, os desvios na aplicação da matrícula de escravos e o censo populacional na década de 1870, mostram que os negros compreendiam perfeitamente a ameaça do cativeiro que havia pautado suas vidas. Como consequência do Art. 8° da Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871 (“Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”), um decreto foi aprovado regulamentando a matrícula geral de escravos e filhos de mulheres escravas. Em janeiro do mesmo ano havia sido criada a Diretoria Geral de Estatística, que organizou duas décadas depois da “guerra dos Marimbondos”, o primeiro Censo do país, em 1872.

Chalhoub demonstra que, embora o Art. 6° da lei de 28 de setembro de 1871 declarasse libertos os escravos “abandonado pelos seus senhores”, o governo continuou a leiloar pessoas com direito inequívoco à liberdade (arrematadas como “bens do evento”) alegando

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que não eram abandonados, mas “achados sem se saber do senhor ou dono a quem pertencem”. Um aviso do Ministério da Agricultura de 12 de novembro de 1875 decidiu que os escravos recolhidos em casas de detenção e arrematados como bens do evento deveriam ser considerados livres com base no regulamento de 1° de dezembro de 1871. Como o autor argumenta, tudo indica que esse aviso de 1875 não produziu efeito, pois em novo aviso de 13 de abril de 1880 o governo reafirmava que tanto escravos abandonados como bens do evento deveriam ser declarados livres (CHALHOUB, 2012, p. 273-274).

O abolicionismo a partir da década de 1860

De acordo com o que foi apresentado até agora, é possível perceber que não havia nenhuma disposição do governo brasileiro em promover o fim do trabalho escravo. Como explicar então que tenham sido aprovadas leis que levaram à abolição no país?

Embora a perspectiva de fim da escravidão no Império do Brasil não estivesse no horizonte da década de 1850, uma série de fatores internos e externos vieram a se somar na década seguinte para que a abolição se tornasse mais próxima. Por outro lado, houve uma mobilização de setores conservadores para tornar esta abolição o mais lenta e gradual possível, visando defender os interesses dos senhores de escravos e garantir seus direitos sobre a propriedade escrava. Como muitos autores ligados ao tema da “Segunda escravidão”/”Segundo escravismo” chama a atenção, o século XIX é ao mesmo tempo o apogeu do escravismo e o século anti-escravista, isto é, um período em que os setores abolicionistas enfrentaram os defensores de uma “política da escravidão” (MARQUESE; SALLES, 2016; PARRON, 2011).

Sabemos bem que os latifundiários e senhores de escravos estavam bem representados por ministros, senadores e deputados conservadores (e até liberais moderados). Um ponto importante a ser esclarecido é: quem eram os setores abolicionistas?

Na verdade, o abolicionismo foi um movimento bastante heterogêneo. Os elementos mais radicais defendiam a abolição imediata da escravidão, sem indenização para os senhores. Os setores mais moderados defendiam a abolição gradual mediante indenização, feita pelo governo ou pelos próprios escravos, copiando medidas adotadas pela Inglaterra nas colônias do Caribe. Uma série de posições intermediárias pode ser identificada. Além disso, alguns radicais e escravos defendiam a abolição por meio da rebelião, fugas em massa e aquilombamentos, sem esperar por medidas parlamentares. Alguns autores também costumam diferenciar estas posições como ​emancipacionismo - abolição gradual - e abolicionismo​ - abolição imediata (BARROS, 2008).

Ao final, foi a moderação e a via legislativa que prevaleceram, embora os movimentos populares tenham tido importante papel para que a abolição não fosse tão lenta e gradual muitos pretendiam. Os estudos mais recentes sobre a abolição destacam sempre o papel da resistência negra e da “agência escrava” (os escravos como agentes da própria história), protagonismo historicamente desconsiderado e omitido. Joaquim Nabuco, emancipacionista e filho de um senador expoente da “política da escravidão”, com sua célebre obra “O Abolicionismo”, contribuiu ao mesmo tempo para o movimento e para esta omissão.

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Veja as questões 12 e 39, retiradas das provas do Enem de 2008 e 2013, respectivamente, para conhecer melhor as ideias de Joaquim nabuco e como elas costumam ser cobradas para avaliação de conhecimentos sobre o abolicionismo brasileiro:

Joaquim Nabuco. Fonte da imagem: domínio público.

Para nós a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro lado, a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor. ​(NABUCO, 1988, p. 20)

Desde 1839, com a fundação da ​British and Foreign Anti-Slavery Society​, o abolicionismo tornou-se um movimento importante em nível mundial, bastante associado a grupos cristãos, como os ​quakers​, que tinham representantes no Parlamento britânico. As conquistas efetivas do movimento abolicionista britânico ficaram restritas à libertação gradual dos escravos em suas colônias no Caribe. Mas iniciativas similares foram criadas em países escravistas. Em 1850, foram fundadas na Bahia a “Sociedade Philantrópica” e a “Sociedade Libertadora 2 de Julho”. Em 1852, surge no Rio de Janeiro a “ Sociedade Contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e da Civilização dos Índios” (ALONSO, 2011, p.171-172). Após a publicação do livro “A Cabana do Pai Tomás”, por Harriet Beecher Stowe, em 1852, o movimento abolicionista cresceu ainda mais nos EUA. O livro foi o segundo mais vendido em todo o século XIX, atrás apenas da Bíblia Sagrada.

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Underground railroad

Uma rede de rotas secretas e abrigos seguros foi estabelecida nos Estados Unidos em meados do século XIX para auxiliar escravos negros a fugir para estados livres e para a América do Norte britânica (atual Canadá). Escravos, libertos, abolicionistas e simpatizantes participaram dessa rede de colaboração para as fugas. O termo “ferrovia subterrânea” é uma metáfora criada na época de expansão dos trens no país, sendo as casas seguras conhecidas

como “estações”, ou guias como “condutores”, os fugitivos como “passageiros” etc. Essa rede está presente em diversas obras literárias, desde “A Cabana do Pai Tomás” (1852), de Harriet Beecher Stowe, até “​The

Underground Railroad​: os caminhos para a liberdade” (2016), de Colson Whitehead, livro que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer de Ficção em 2017. A ação da “ferrovia subterrânea” é similar à atuação dos caifazes no Brasil, algumas décadas depois.

Fonte da imagem: <​http://history.sandiego.edu/gen/CWPics/86139.jpg​> Compiled from "The Underground Railroad from Slavery to Freedom" by Willbur H. Siebert Wilbur H. Siebert, The Macmillan Company, 1898.

Em 1860, a eleição de Abraham Lincoln como presidente dos Estados Unidos, pelo Partido Republicano, acabou com um longo período de hegemonia dos escravistas do Sul, reunidos então no Partido Democrata. Lincoln contou com o apoio dos abolicionistas para sua eleição, mas a oposição dos escravistas levou ao rompimento pouco depois, declarando a independência dos Estados Confederados da América. A coexistência dos dois países não foi harmoniosa e deu origem à ​Guerra Civil Estadunidense (ou Guerra de Secessão), entre 1861 e 1865. Dizem que quanto Harriet Beecher Stowe conheceu o presidente Lincoln em Washington, no ano de 1862, ele teria dito: “então você é a pequena mulher que escreveu o livro que começou esta grande guerra”. Após o final da guerra, em que o Norte saiu vitorioso, o presidente Lincoln conseguiu aprovar a 13ª emenda à Constituição dos EUA, abolindo a escravidão no país. Todavia, antigas ​leis de segregação racial foram mantidas e outras novas foram aprovadas nos estados do Sul (“​Jim Crow Laws​” ou “​black codes​”). A abolição nos Estados Unidos veio a deixar o Brasil mais isolado na defesa da escravidão, sendo o único país livre a manter essa instituição, junto com a colônia espanhola de Cuba. Essa perda do apoio internacional, somada à derrota e falência do grande exemplo de sucesso do escravismo nas Américas, foi acompanhada por um aumento das pressões de abolicionistas no Brasil. A ​política externa britânica também se opôs à política escravista brasileira, embora sempre em questões que os tratados internacionais permitiam essa interferência. Não havia uma pressão do governo britânico pela abolição, como algumas vezes lemos ou ouvimos, mas pelo cumprimento de acordos relativos ao fim do tráfico e aos africanos livres no Brasil.

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Nos anos 1860, o diplomata britânico William Dougal Christie foi o representante de seu governo na Corte brasileira. Christie procedeu ao levantamento de listas com informações sobre os africanos livres, incluindo seus locais de trabalho, navio em que chegaram ano da emancipação, valor do aluguel pago por seus responsáveis ao governo brasileiro etc. Isso levou a questionamentos sobre o fim do prazo de 14 anos de alguel de serviços, que daria direito à emancipação definitiva dos africanos. Muitos vieram a saber assim sobre a situação irregular em que se encontravam e sobre seus direitos à liberdade. Outros viram no diplomata um homem a quem recorrer para denunciar que eram escravos ilegais, introduzidos depois da lei de 1831, e pediram auxílio na luta pelo reconhecimento de sua condição de africanos livres.

Essa fiscalização britânica e a rede de informações que os próprios africanos parecem ter construído foram importantes na luta contra a escravidão ilegal no país. Houve conflitos entre brasileiros e britânicos, envolvendo um saque a um navio inglês encalhado na costa do Rio Grande do Sul, em 1861, detenção de oficiais de outro navio por desacato a autoridades brasileiras, no ano seguinte. A retaliação britânica veio por meio do bloqueio do porto do Rio de Janeiro, em 1863, e de um discurso do primeiro ministro, Lorde Palmerston, no Parlamento, em 1864, criticando a situação dos africanos livres no país. O rompimento das relações diplomáticas, conhecido como “​Questão Christie​”, levou inclusive à queda do gabinete ministerial brasileiro em 1864. O novo gabinete tomou logo a providência de emitir um decreto declarando a imediata emancipação de todos os africanos livres no país (MAMIGONIAN, 2017, p. 366-376). Além disso, o argumento de que a maioria dos escravos existentes na década de 1860 eram provenientes do contrabando ou seus descendentes foi muito utilizado pelos abolicionistas.

Não há dúvidas de que o movimento abolicionista no Brasil se fortaleceu de verdade a partir da 1865. Além da abolição na maior potência escravista do mundo após a Guerra Civil Estadunidense (1861-1865), o Império do Brasil participou de um guerra que daria ainda mais argumentos para os defensores da abolição no país. A ​Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), ou Guerra do Paraguai, foi um conflito envolvendo os governos do Brasil, da Argentina e do Uruguai contra a república do Paraguai. Além da participação de muitos negros livres e libertos nos batalhões de Voluntários da Pátria, outros foram libertados por seus senhores para servirem em seu lugar na guerra. Assim, a guerra vai ser um momento de afirmação da bravura e do patriotismo de negros, alguns que haviam sido escravos até

De volta do Paraguai​ - gravura de Ângelo Agostini (​Vida Fluminense​, n° 12, junho de 1870).

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o momento de alistamento. André Rebouças, que se havia formado como engenheiro militar em 1860, voluntariou-se logo no início do conflito e participou de importantes batalhas, como o cerco de Uruguaiana, a batalha do Passo da Pátria e o cerco de Tuiuti. Em 1866, após contrair varíola, foi dispensado do exército e retornou ao Rio de Janeiro. André seria um dos principais nomes da campanha abolicionistas nas décadas de 1870 e de 1880. Após o fim da guerra, o governo se viu pressionado pelos movimentos abolicionistas e pelos políticos liberais. O número de sociedades abolicionistas que foram fundadas em todo o Império nas décadas de 1860 cresceu muito, sendo 19 só no momento de radicalização liberal entre 1868 e 1871. Por esta razão, o imperador optou pela composição de um gabinete ministerial conservador, representante dos senhores de escravos para se encarregar de um projeto de lei que resolvesse o problema do “elemento servil” com o mínimo de resistências à aprovação. O chefe de gabinete, Visconde do Rio Branco, conseguiu aprovar a famosa “ ​Lei do Ventre Livre​”, que determinava em seu Arti. 1° que os filhos de escravas que nascessem no Império desde a data desta lei, seriam considerados de condição livre (à época conhecidos como ‘ingênuos”). No entanto, o parágrafo primeiro deste artigo já mostrava que esta liberdade não era imediata:

Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quaes terão obrigação de crial-os e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000 [seiscentos mil réis], ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro annual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

Na prática, a “Lei do Ventre Livre” pode ser vista tanto como uma vitória do emancipacionistas, que conseguiram pela primeira vez aprovar uma lei que previa o fim da escravidão no Brasil, quanto uma derrota parcial dos escravistas, que conseguiram garantir indenização (em títulos de renda ou em trabalho compulsório) e tornar essa perspectiva de fim da escravidão lenta e gradual. Uma escrava nascida até a data daquela lei poderia permanecer fértil até a década de 1910, gerando filhos que só seriam libertados na década de 1930. Era uma perspectiva de pelo menos sessenta anos de sobrevida da escravidão. Os negros escravizados e os abolicionistas radicais não tiveram uma visão tão favorável da lei, de maneira que se organizaram de diversas formas para a libertação imediata, a despeito das medidas legais. Assim, cresceram muito os casos de ​revoltas e fugas de escravos​, muitas vezes com o auxílio dos ​caifazes​, que foram uma rede de solidariedade para auxiliar a organização das fugas de escravos de fazendas e cidades, obtendo moradia e trabalho para os mesmo. A atuação dos caifazes foi bastante importante nas cidades cafeeiras da província de São Paulo. Este movimento de fugas e rebeliões levou também ao crescimento dos quilombos urbanos, como o Quilombo do Jabaquara.

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Outro importante quilombo da época foi o Quilombo do Leblon, situado na Zona Sul do Rio de Janeiro, região mais nobre da cidade nos dias de hoje, mas que na época era a periferia da capital do Império. Um comerciante português chamado José Seixas de magalhães começou a receber escravos fugidos em sua chácara do Leblon e cultivava camélias brancas com eles para venda e sustento do quilombo. A flor passou a ser um símbolo de adesão à causa abolicionista, muitas pessoas passaram a cultivar a flor ou andar com uma camélia branca presa à lapela para demonstrar suas ideias. O fornecimento das camélias brancas do Quilombo do Leblon eram feitas por Seixas de forma regular à residência da princesa Isabel, no palácio das Laranjeiras (SILVA, s.d.).

Assim como as revoltas e fugas, a campanha abolicionista se intensificou na última década do Império. Em 1880, juntamente com intelectuais negros que haviam conquistado algum destaque na sociedade brasileira, como o jornalista José do Patrocínio e o engenheiro André Rebouças, Joaquim Nabuco fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, que teve importante atuação na campanha abolicionista. Em 1883, José do Patrocínio redigiu também o manifesto da Confederação Abolicionista, fundada junto a André Rebouças, e que fez campanha pela abolição irrestrita e imediata, sem indenização. No total, 110 sociedades abolicionistas forma fundadas no Império entre 1872 e 1889, sendo 87 destes entre os anos de 1878 e 1885 (ALONSO, 2011, p. 179).

José do Patrocínio (esq.) -fotografia de autor desconhecido em "História da Literatura Brasileira" (1916), de José Veríssimo.

André Rebouças (dir.) - fotografia do acervo do Museu Afro Brasil

No final da década de 1879, a escravidão parecia já ter seus dias contados no Império. Em março de 1879, o governo dispôs, por meio de decreto, sobre a contratação de serviços agrícolas. Essa medida visou regulamentar a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre e parcerias agrícolas, tanto com ex-escravos que haviam sido libertados pelo Fundo de Emancipação dos Escravos (criado pela lei de 1871) quanto com os imigrantes europeus e asiáticos. Mas ainda vemos esforços dos escravistas em postergar a abolição.

Em 28 de setembro de 1885, exatamente 14 anos depois da “Lei Rio Branco”, o governo aprovou mais uma lei que representa bem os interesses do escravismo. Embora esta lei tenha ficado conhecida como “Lei dos Sexagenários”, foi concebida para regular a “extinção gradual do elemento servil”. Novamente, são comuns as simplificações, como na questão do Enem de 2007, no início deste material, que afirmava que a lei concedeu “liberdade para

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os escravos maiores de 60 anos”. Na verdade, a lei determinou a realização de uma nova matrícula de escravos no Império, “com declaração do nome, nacionalidade, sexo, filiação, se for conhecida, ocupação ou serviço em que for empregado, idade e valor” (Art. 1°). A ideia inicial era libertar imediatamente os escravos maiores de 60 anos, mas os conservadores não aprovaram este projeto e foram feitas concessões. Vejamos trechos da lei para observar melhor as conquistas dos escravistas (trechos com grifos):

Art. 3º Os escravos inscriptos na matrícula serão libertados mediante indenização de seu valor​ pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra fórma legal.

§ 3º Os escravos empregados nos estabelecimentos agrícolas serão libertados pelo fundo de emancipação indicado no art. 2º, § 4º, segunda parte, se seus senhores se propuserem a substituir nos mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo trabalho livre, observadas as seguintes disposições:

a) Libertação de todos os escravos existentes nos mesmos estabelecimentos e obrigação de não admitir outros, sob pena de serem estes declarados libertos; b) Indemnização pelo Estado de metade do valor dos escravos assim libertados, em títulos de 5%, preferidos os senhores que reduzirem mais a indemnização;

c)​ Usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco annos​.

§ 10. São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a título de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos.

§ 11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado.

§ 13. Todos os libertos maiores de 60 annos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias, ​usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles​, salvo se preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juizes de Orphãos os julgarem capazes de o fazer.

§ 17.​Qualquer liberto encontrado sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe fôr marcado pela Policia​.

§ 18.​Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Polícia, será por esta enviado ao Juiz de Orphãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colônia agrícola no caso de reincidência​.

§ 19. ​O domicílio do escravo é intransferível para Província diversa da em que estiver matriculado ao tempo de promulgação desta Lei.

A mudança importará aquisição da liberdade, excepto nos seguintes casos: 4º ​Evasão do escravo.

§ 20. ​O escravo evadido da casa do senhor ou de onde estiver empregado não poderá, enquanto estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação​.

A primeira conquista foi estender a idade para libertação para os 65 anos (§ 11), além de ser garantida novamente a indenização dos escravos que o senhor desejasse libertar, tanto por meio de títulos do governo quanto por meio de serviços (§§ 3°, 10 e 13). Também houve medidas para garantir que os libertos pela lei fossem obrigados a aceitar contratos de emprego (§§ 17 e 18) e continuassem residindo na mesma província (§ 19), demonstrando a preocupação com a falta de trabalhadores para as fazendas escravistas e a tentativa de evitar a “vadiagem” dos negros. Por fim, o governo tentava coibir as fugas de escravos com a ameaça de exclusão da possibilidade de alforria (§ 20).

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A Revolta dos escravos de São José do Rio Claro A seguinte história aconteceu em 1885, em uma

fazenda da Província de São Paulo chamada de São José do Rio Claro. Certo dia, na Delegacia de Polícia local, 14 escravos se entregaram, acompanhados por suas esposas negras, afirmando que haviam agredido o administrador e por isso não voltariam à fazenda. Perplexo com a situação, o delegado iniciou uma investigação e interrogou os escravos. Todos contaram a mesma versão em seus depoimentos. O administrador, Estanislao, estava descontente com o ritmo do trabalho dos escravos e mandou que Mamede, escravo e feitor da roça, castigasse os trabalhadores (o próprio delegado preferiu usar o termo trabalhadores em vez de escravos, tal era o clima de tensão no período). O feitor se negou a castigar seus companheiros e acabou sobrando pra ele. Furioso com a desobediência de um escravo, Estanislao tomou-lhe o chicote para castigá-lo, mas Mamede fugiu para a mata. Indignados, seus companheiros partiram para cima do administrador, tomando-lhe o chicote, para segurar-lhe no chão e abaixar suas calças. Aplicaram-lhe 50 chibatadas nas nádegas, enquanto falavam: "Tá vendo como é bom o que você faz com a gente? Tá vendo?". O escravo André, residente na fazenda havia mais de 30 anos, justificou-se no depoimento afirmando que o trabalho "ia bem e com regularidade e que Estanislao queria acusar injustamente os escravos". Todos aqueles escravos estavam na faixa de 50 anos e haviam residido na fazenda por pelo menos 20, sendo que o escravo Euphêmio afirmava trabalhar lá havia mais de 40 anos. Eram todos escravos antigos do lugar, que após anos servindo e aguentando castigos como esses, simplesmente não viram mais sentido nisso e resolveram reagir. Aquilo não era um crime comum, um escravo reverter a situação de castigos corporais dados pelos seus senhores batendo com o chicote em um administrador, era como virar o mundo daquela sociedade escravista de cabeça para baixo. O delegado imediatamente tomou as medidas legais e prendeu os escravos, planejando puni-los através da lei de 1835 (elaborada depois da Revolta dos Malês), segundo a qual os escravos deveriam ser julgados

em júri popular e punidos caso participassem de alguma revolta ou agredissem algum senhor, ou empregado ou familiar do senhor, prevendo inclusive a pena de morte para os líderes.

O delegado só não imaginava que Estanislao, o administrador, inocentasse os escravos, afirmando que nem era mais administrador do lugar e que só passava por ali. Mas como entender essa negação? Existem dois possíveis motivos para a mentira de Estanislao. Em primeiro lugar, a vergonha que ele sentia de assumir ter sido chicoteado nas nádegas por escravos negros. Em segundo, o próprio senhor poderia preferir ter os escravos de volta a serem presos e sofrerem pena de morte. Assim, ele mesmo poderia castigá-los exemplarmente e manter os escravos como suas propriedades.

O delegado insistiu, mas sem a confirmação da vítima, o juiz arquivou o inquérito e devolveu os escravos ao seu senhor. Ao retornar à fazenda, o negro Liberato, morreu devido aos castigos violentos que sofrera. Um promotor tentou em vão levar o processo da morte de Liberato ao chefe de polícia, porém o caso foi abafado.

Esta história pode ser observada no texto "Teremos grandes desastres, se não houver providências enérgicas e imediatas": a rebeldia dos escravos e a abolição da escravidão, de Maria Helena Machado (2014). Segundo a autora, "os meses seguintes

acabaram coalhados de denúncias sobre

planejamento de grandes revoltas de escravos nos entornos de Rio Claro".

Nada melhor para ilustrar esse período de tensão que foi a década de 1880, quando uma sociedade por séculos escravista se viu na necessidade de abolir a escravidão, do que finalizar este relato de

rebeldia e iniciativa escrava com a frase

desesperada de um delegado da Polícia em 1888, que está presente no título do texto mencionado: "Teremos grandes desastres, se não houver providências enérgicas e imediatas".

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Como a situação de fugas, revoltas e aquilombamentos não se acalmou, nem arrefeceu a campanha abolicionista, com seus comícios, congressos, panfletos e jornais, o governo acabou sendo pressionado para a aprovação de novas leis. Movimentos como o de Mamede, André, Euphêmio, Libertado e seus colegas contribuíram para novas conquistas. Em 15 de outubro de 1886, foi aprovada uma lei alterando o Código Criminal de 1835, para proibir a pena de açoites aos escravos. Dois anos depois, a princesa regente promulgou uma das leis mais sucintas da história do país, contendo apenas dois artigo e um parágrafo:

Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém.

A brevidade da lei contrasta com a lentidão e gradualidade da abolição. Que bom seria se fosse simples assim declarar extinta a escravidão e revogar todas as disposições em contrário. As disposições dos homens não se guiam muitas das vezes pelas disposições legais. A gradualidade chegava ao fim, mas a abolição da escravidão continuaria a ser lenta no país, não tendo sido eliminada até hoje. A cultura escravista, as práticas de violência, como açoites, libambos, torturas, estupros e prisões arbitrárias também continuaram a fazer parte do cotidiano de negros no país. Mas os negros continuam se organizando e resistindo.

Legislação citada

Lei n° 581, de 4 de setembro de 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm>, acesso em 6 jun. 2020.

Lei n° 610, de 18 de setembro de 1850. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm>, acesso em 6 jun. 2020. Decreto n° 797, de 18 de junho de 1851. Disponível em:

< https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-797-18-junho-1851-559435-publicacaooriginal-81652-pe.html>, acesso em 6 jun. 2020.

Decreto n° 798, de 18 de junho de 1851. Disponível em:

<​ https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-798-18-junho-1851-559436-publicacaooriginal-81654-pe.html>, acesso em 6 jun. 2020.

Decreto 4.676, de 14 de janeiro de 1871. Disponível em:

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-4676-14-janeiro-1871-552057-publicacaoorigin al-68972-pe.html>, acesso em 6 jun. 2020.

Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em:

<​http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm​>, acesso em 6 jun. 2020. Decreto n° 4.835, de 1° de dezembro de 1871. Disponível em:

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Decreto n° 2.827, de 15 de março de 1879. Disponível em:

<​https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-2827-15-marco-1879-547285-publicacaoorigina l-62001-pl.html​>, acesso em 6 jun. 2020.

Lei n° 3.270, de 28 de setembro de 1885. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3270.htm>, acesso em 6 jun. 2020. Lei n° 3.310, de 15 de outubro de 1886. Disponível em:

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Lei n° 3.353, de 13 de maio de 1888. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>, acesso em 6 jun. 2020.

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