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O NEGRO, O BARÃO, A PRIMEIRA REPÚBLICA, O MUSEU

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Academic year: 2020

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO COLÉGIO PEDRO II – RIO DE JANEIRO

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O NEGRO, O BARÃO, A PRIMEIRA REPÚBLICA, O MUSEU

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Vanessa Gomes Rocha2

Resumo: Esse trabalho se propõe a problematizar as ausências representativas da figura do negro, mediante análise iconográfica de algumas obras pertencentes ao acervo do Museu da República, no intuito de questionar historicamente a importância social e cultural dessas figuras que foram excluídas e/ou silenciadas na construção da nação e da identidade brasileiras.

Palavras-Chave: Negro – Representação– Identidade – Império do Brasil – Primeira República.

1 Trabalho apresentado originalmente no Curso de Pós Graduação Lato Sensu em Ensino de

História da África promovido pelo Colégio Pedro II.

2 Pós graduanda do Curso de Ensino de História da África (EEHA) do Colégio Pedro II. Graduação

em História / Licenciatura Plena pela Universidade Veiga de Almeida (2016). Assistente de digitalização de documentos do Registro Civil do Rio de Janeiro (projeto em parceria com a Sociedade Genealógica FamilySearch), pelo Arquivo Nacional.

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47 Ao explorar o vasto acervo do Museu da República, percebemos uma coleção de diversos estilos e culturas explorados em sua decoração. É de conhecimento a predominância do estilo neoclássico no Palácio (com ênfase na simetria e na presença de figuras Greco-romanas), bem como sua total influência da arquitetura italiana, aos moldes do padrão renascentista. De fato, percebemos figuras femininas estampadas em quadros imensos, com contemplação de suas vestimentas à moda da Europa.

Entretanto, a imagem do negro africano não está representada em nenhuma parte do Palácio, tendo em vista o mesmo ter sido a sede do governo da República e, posteriormente, Museu da República. Em tempo, é de conhecimento também que os negros estiveram presentes desde a sua construção, entre 1858 e 1866, ainda como escravizados. De acordo com o inventário do Barão, na documentação referente ao pagamento dos indivíduos escravizados que trabalharam na construção do palácio, há menção aos nomes daqueles que foram utilizados como pedreiros, serventes, e outros ao longo dos dez anos de construção do Palácio das Águias.

Ao analisarmos a fonte primária abaixo, uma lista de escravizados a serem apresentados para trabalhos vinculados à obras e trabalhos afins (Documento disponível no Acervo do Museu da República) é perceptível as formas de venda como os escravizados de ganho são assim descritas. Estes, aparecem identificados com seus primeiros nomes seguidos do nome do seu senhor, para reforçar a posse e dominação das mercadorias vivas. Exemplo: “José do Capitão”, “Izidoro de D. Carolina”, “Ignácio de D. Gertrudez”...

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48 Figura 1: Relação de escravos de ganho, Inventário do Barão de

Nova Friburgo. Acervo Museu da República.

Devemos lembrar também da atuação dos escravizados que exerciam atividades domésticas e eram essenciais na manutenção e limpeza da casa, após a vinda da família Clemente Pinto para o Palácio Nova Friburgo. Não fica difícil imaginar, por exemplo, o trabalho de limpar diversos e enormes lustres de cristal, bem como, acender todas as velas destes... De fato, seriam necessários indivíduos escravizados domésticos consideráveis para ajudar nesse quesito.

O levantamento de bens do casal Barão e Baronesa de Nova Friburgo é apresentado por Luiz Fernando Folly no livro: “Barão de Nova Friburgo: impressões, feitos e encontros” (2010). Levantamento este solicitado pelos, então, Barão de São Clemente e Dr. Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, filhos legítimos,

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49 únicos, universais e herdeiros para partilha amigável dos bens em 1873. O quadro em questão nos apresenta a seguinte avaliação:

Tabela 1: Levantamento de bens do Barão de Nova Friburgo

(FOLLY, 2010, p.65).

Ainda de acordo com o inventário do Barão, sabemos que o responsável pela construção do Palácio chegou a ter, ao longo dos anos, em torno de 2.000 escravos² ao preço de, aproximadamente, R$30.000. Isso, levando-se em consideração a década de 1860 - é importante lembrar que o valor dos escravos oscilava bastante naquela época. O Barão, símbolo da elite cafeicultura brasileira, possuía um vasto império de fazendas, todas voltadas para a plantação do grão de café. Ele também foi um conhecido traficante de escravos, o que contribuiu para o acúmulo de suas riquezas.

Bens Valor

Bens de Raiz 3.350:520$000

Bens móveis 171:494$100

Bens semoventes 227:622:$000

Escravos (2.182 unidades) 1.999:200$000

Apólices provinciais e Ações 77:000$000

Quantia em dinheiro, na Casa Comercial de Friburgo e Filhos

1.083:535:470$

Valor Total: 6.909:371:570$

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50 Abundantemente rico, o Barão precisava de uma “casa para ser vista” para complementar e fazer jus ao seu poder. E de fato, o deslumbramento e a ostentação foram características enfáticas e propositais do palacete, como podemos perceber neste pequeno trecho de Cícero Almeida: “Palácio de Nova Friburgo, como passou a ser conhecido, (...) serviu para afirmar a posição social e o sucesso econômico do seu proprietário. ” (ALMEIDA, 1994, p.11)

No que diz respeito ao tratamento dispensado aos escravos, tem-se nota de que o Barão possuía hospitais em determinadas fazendas suas, visando aos cuidados dos mesmos. É claro que o escravo era um bem muito caro, tanto em seu valor comercial quanto no seu sustento e proteção.

Deve-se levar em conta também o quesito financeiro, já que, com a proibição do tráfico, o seu valor unitário subiu consideravelmente. De todo modo, não podemos esquecer que a família Clemente Pinto, que já não era mais dona da propriedade, libertou seus então restantes 1.200 escravos um mês antes da oficialização da Lei Áurea. Esse feito gerou, inclusive, títulos de nobreza aos filhos do Barão.

Já como sede da República, uma das pouquíssimas referências indiretas aos negros contida no Palácio encontra-se no teto do Salão Pompeano. Trata-se da referência ao 13 de maio de 1888, colocada ali após uma reforma de 1897, quando o Palácio se torna sede da Presidência da República.

Durante a República, no que diz respeito aos negros, já libertos, a situação na prática não mudou, tento em vista que a Lei Áurea lhes concedeu a liberdade civil, porém não lhes garantiu inserção socioeconômica e política. Em linhas gerais, eles foram libertos, mas continuaram sem acesso à cidadania plena.

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51 Essa questão fica evidente nos quadros “A Pátria” e “Compromisso Constitucional”, localizados no Salão Ministerial do Palácio. A alegoria “A Pátria” de Pedro Bruno, representa o nascimento da república brasileira, com a construção da bandeira como símbolo de identidade e nacionalismo, dando destaque às mulheres brasileiras. Contudo, os personagens retratados são todos brancos. Fica clara a noção de sociedade brasileira que se quer representar, ou construir, pois estão ausentes mestiços, mulatos, negros, índios... Que, em 1919, ano em que o quadro foi pintado, constituía a grande maioria da população.

O quadro “Compromisso Constitucional”, que retrata o momento da promulgação da Constituição de 1891, também nos permite discutir a presença/ausência do negro na República, no que diz respeito à sua função de propagação (mediante um propósito efetivo) de memória, identidade... Memória essa que define também um controle social, bem como o que “serve” ou não para ser lembrado dentro dos moldes daquela sociedade em questão.

Na pintura histórica, dentre todas as figuras representadas, temos apenas um negro, provavelmente figura política e influente nesse período, tendo em vista que, até aquele momento era necessário ter uma renda alta para garantir o direito à participação política. O único documento encontrado identifica o indivíduo como sendo o Ministro a Agricultura Francisco Glicério de Cerqueira Leite. Provavelmente, Francisco Glicério conseguiu romper com o sistema excludente mantido na República, sendo, portanto, uma exceção que confirma a regra.

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52 Figura 2: Compromisso constitucional,1896. Óleo sobre tela 3,30 x 2,57 cm

Ao fixar o olhar sobre Francisco Glicério, percebe-se um esforço em embranquecê-lo, como que para “equiparar” ou “nivelar” a cor de sua pele com a dos demais políticos brancos também presentes no quadro. Dessa forma, é mais fácil - e mais aceitável -, caracterizar esse personagem como um mulato (isto é, um negro embranquecido) do que como um negro, ainda mais para justificar sua participação política e sua presença no quadro. Era, de fato, um exemplo claro do processo de branqueamento ao qual estava sendo imposto à população negra, uma vez que a necessidade de aceitação na sociedade de cor e na classe estava em jogo. Ser considerado branco, ou, neste caso “menos negro”, ou até mesmo “mais próximo do branco” era um fator crucial de inserção à sociedade brasileira à época.

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53 Figura 3: Francisco Glycério Cerqueira Leite. Disponível em:

https://campinasnostalgica.wordpress.com/2014/06/16/francisc o-glicerio-de-cerqueira-leite/

Na obra “A Formação das Almas”, José Murilo de Carvalho diz que a República Brasileira teria surgido “em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada (1990, p. 29). A partir de seus estudos, é possível fazer uma leitura de caracterização do processo de passagem do Império para a República: houve apenas uma mera mudança no plano político institucional, tendo em vista que a estrutura social se manteve inalterada. Os ricos e poderosos, outrora da nobreza, continuaram tendo voz ativa no que diz respeito à política republicana, agora com outros títulos e nomeações.

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54 Talvez, a população não tenha ficado “bestializada”3 com a Proclamação da República, como afirma José Murilo de Carvalho (1987) mas, de fato, não houve grandes mudanças no seu dia a dia. Esse relevante aspecto, com certeza, contribuiu para legitimar a exclusão não apenas dos negros, mas de toda a população pobre no processo de construção da República.

Para finalizar, observamos a quase total ausência do negro no Palácio Nova Friburgo, na Sede da República e, por fim, no Museu da República. A questão da inexistência do acervo relativo aos negros nos museus brasileiros, pode ser explicada não apenas pela exclusão social dos negros, como também pelo fato de que os primeiros museus brasileiros serem dirigidos por membros da elite que sempre tiveram a preocupação de negar a contribuição do negro na construção da sociedade brasileira, privilegiando a participação dos “corpos brancos” e os valores do modelo civilizatório europeu.

No que diz respeito à questão do negro, a ausência de fato fala por si só. Desde sua jornada histórica como propriedade, objeto, o não-lugar do negro na sociedade foi propagado e bastante incentivado, levando em consideração sua função como força de trabalho extremamente importante na economia no Império. Mesmo com a libertação dos escravos, o negro continuou sendo marginalizado e excluído da sociedade. Se, antes, tinham em sua função a de ser “escravo”, “propriedade” de um senhor, agora, libertos, nada tinham em termos de reconhecimento social e econômico, quanto menos na esfera política.

O caso é que, toda a ausência sentida da memória negra funciona como sinalizadora para essa questão. E os museus se apresentam enquanto

3 José Murilo de Carvalho critica a interpretação à cerca de uma total alienação do povo brasileiro

com relação à mudança do regime monárquico para o Republicano. Em sua citação completa: “Havia algo mais na política do que simplesmente um povo bestializado”. (1987, p.13)

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55 reprodutores de um silenciamento dessa memória específica. Onde está a contribuição do negro no processo de construção da República? De fato, onde o negro se localiza ao longo de todo o processo? E mais: a questão da valorização do acervo negro para dar visibilidade à memória dos negros na construção da nação brasileira necessita ser estudada e conhecida, ao invés de ser simplificada de maneira inferior ou silenciada. São essas questões que, mediante as considerações aqui expostas, deveriam permear o imaginário do que poderia se entender por uma identidade brasileira plural e como a questão da memória expressa relações de poder, tal como as fontes aqui utilizadas puderam evidenciar.

No decorrer dessa pesquisa, tornou-se essencial estudar as micro histórias, as histórias vistas de baixo, concedendo a devida importância a seus protagonistas. As contribuições dos afrodescendentes foram e continuam sendo cruciais à formação da identidade nacional, por mais que sua representatividade não se encontre tão visível assim e sua presença tenha sido alvo de silenciamentos e/ou enquadramentos. Ao analisar as fontes iconográficas, para além do perceptível que está sendo representado, esclarece-se o que está implícito também, o que não está. E ainda, quais os desdobramentos dessa ausência no e para o entendimento do nosso processo histórico e, também, para a percepção de como foi construída e imaginada uma certa visão de identidade brasileira.

Referências Bibliográficas

Acervo do Museu da República. Galeria virtual do Museu da República.

Disponível em: http://museudarepublica.museus.gov.br/galeria-virtual/Acesso em: 10/02/2017.

ALMEIDA, Cícero Antonio de. Catete: memórias de um palácio. Rio de Janeiro, Museu da República, 1994.

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56 CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

_______. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras: 1990

FOLLY, Luiz Fernando Dutra; OLIVEIRA, Luanda Jucyelle Nascimento; FARIA, Aura Maria Ribeiro. Barão de Nova Friburgo: impressões, feitos e encontros. Rio de Janeiro, UFRJ/EBA Publicações, 2010, p. 65.

LOPES, Gilda Maria de Almeida. 1º Compromisso Constitucional. Biblioteca

Virtual do Museu Histórico Nacional. Disponível em:

<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=mhn&pagfis=12950&pesq >Acesso em: 06/05/2017.

The Black, The Baron, The Brazilian Republic and the Museum

Abstract: The article intends to problematise the representative absences of the black subject through an iconographic analysis of some works which belong to the collection of the Republic Museum located in the city of Rio de Janeiro. From a historical standpoint, the key objective of the author lies in questioning the social and cultural importance of black figures who were excluded and/or inexcusably muted within the process of giving a definition to the Brazilian identity.

Keywords: Black Subject – Representation – Identity – The Empire of Brazil – The Brazilian Republic.

Recebido em 09/05/2017. Aprovado em 12/06/2017.

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Tabela 1: Levantamento de bens do Barão de Nova Friburgo

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