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Pessoas automáticas: a representação da humanidade do futuro no cinema

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Academic year: 2020

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Mayara Oliveira da Fonseca

julho de 2016

Pessoas Automáticas: A representação

da Humanidade do Futuro no Cinema

UMinho|20 16 Ma yar a Oliv eir a da F onseca P

essoas Automáticas: A represent

ação da Humanidade do F

uturo no Cinema

Universidade do Minho

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Trabalho efetuado sob a orientação do

Professor Doutor Manuel Curado

e coorientação do

Professor Doutor Sérgio Paulo Guimarães de Sousa

Mayara Oliveira da Fonseca

julho de 2016

Dissertação de Mestrado

Mestrado em Mediação Cultural e Literária

Universidade do Minho

Instituto de Letras e Ciências Humanas

Pessoas Automáticas: A representação

da Humanidade do Futuro no Cinema

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ii DECLARAÇÃO Nome: Mayara Oliveira da Fonseca

Endereço electrónico: mah404@gmail.com Número do Bilhete de Identidade: 18013215

Título dissertação: Pessoas Automáticas: A representação da Humanidade do Futuro no Cinema

Orientador(es): Professor Doutor Manuel Curado (Orientador) e Professor Doutor Sérgio Paulo Guimarães de Sousa (Co-Orientador). Ano de conclusão: 2016

Designação do Mestrado: Mestrado em Mediação Cultural e Literária

É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO PARCIAL DESTA DISSERTAÇÃO, APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE;

Universidade do Minho ______/_______/_________

Assinatura:

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Você foi chamado, vai ser transmutado em energia Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia Fique calmo, vamos começar a transmissão Meu sistema vai mudar Sua dimensão Seu corpo vai se transformar Num raio, vai se transportar No espaço, vai se recompor Muitos anos-luz além Além daqui A nova coesão Lhe dará de novo um coração mortal Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho Não se preocupe, meu sistema manterá A consciência do ser Você pensará Seu corpo será mais brilhante A mente, mais inteligente Tudo em superdimensão O mutante é mais feliz Feliz porque Na nova mutação A felicidade é feita de metal

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Manuel Curado, por ter acreditado em mim desde o princípio e por ter aceitado o convite de orientar esta dissertação. Obrigada pelo voto de confiança.

Ao Professor Doutor Sérgio Sousa, pela gentileza de aceitar co-orientar esta dissertação.

Ao meu pai, Ribamar Fonseca Junior e a minha mãe, Karla Haydê Oliveira da Fonseca, por sempre transmitirem a importância dos estudos e por optarem pela carreira académica, servindo-me de exemplo para concluir esta dissertação. Obrigada pelo apoio incondicional, pela paciência, pelos conselhos reconfortantes e por estarem sempre presentes na minha vida.

Ao João Zamith, pelo papel fundamental e essencial para a conclusão desta dissertação. Não somente por acompanhar este trabalho desde o início e ajudar com discussões, sugestões, correções e traduções, mas também por me acompanhar na vida e nos momentos mais difíceis deste processo. Pô-lo nos agradecimentos não parece ser o suficiente, mas deixo aqui o meu mais humilde e singelo obrigado.

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Pessoas Automáticas: A representação da Humanidade do Futuro no Cinema RESUMO

Esta dissertação tem como foco a análise de filmes do género de ficção científica, cujos personagens principais ou secundários configuram pessoas automáticas, isto é, personagens que são constituídos parcial ou completamente por partes mecânicas, tais como robôs, andróides, ciborgues, computadores com inteligência artificial e formas pós-humanas. A partir da relação entre o cinema e a tecnociência, esta dissertação pretende contribuir para uma avaliação histórica, cultural, social e estética da humanidade do futuro. Assim, o presente estudo propõe a análise de vinte e três filmes desde a primeira metade do século XX até às mais recentes produções cinematográficas, tendo como principal objetivo a construção de um panorama a respeito das personagens automáticas, assinalando a sua relevância na história do cinema, assim como a identificação de princípios narrativos e estéticos. Sendo este um género de grande importância como vetor de contemplação do mundo, da condição humana e dos avanços tecnológicos, sublinhamos a capacidade pedagógica do cinema enquanto forma de nos ensinar a viver numa sociedade tecnológica, bem como de desnudar alguns dos abusos do homem, alertando para os limites da criação.

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Automatic People: Representing the Humanity of the Future in Film ABSTRACT

This dissertation focuses on the analysis of science fiction films whose main or secondary characters are automatic persons, meaning characters that are constituted partial or completely by mechanical parts, such as robots, androids, cyborgs, computers with artificial intelligence and post-human forms. Beginning with the relation between cinema and techno-science, this dissertation looks to contribute towards a historic, cultural, social and aesthetic evaluation of the humanity of the future. As such, the present work proposes the analysis of twenty-three pictures ranging from the early 20th century up until the most recent cinematographic

productions, having as its main goal the construction of a panoramic view of automatic characters, focusing on their relevance to the history of the genre, as well as the identification of narrative and aesthetic principles. Seeing as this is a genre of great significance as a vector for the contemplation of the world, human condition and technological advancement, we underline cinema’s pedagogic capacity as a way of teaching mankind how to live in a technological society, as well as a way of unravelling some of man’s abuse, warning about the limits of creation.

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xi ÍNDICE

ÍNDICE DE IMAGENS ... xiii

INTRODUÇÃO ... 15

CAPÍTULO I - ESPELHO DAS SOCIEDADES ... 21

1 - AS ORIGENS DA FICÇÃO CIENTÍFICA ... 21

1.1 - A questão da projeção ... 23

2 - PESSOAS AUTOMÁTICAS ... 25

2.1 - A questão da estética ... 26

2.1.2 - A peça R.U.R. e o surgimento do robô ... 26

3.2 - Definições pouco assertivas... 31

3.3 - As diferentes acepções do ciborgue ... 34

4 - A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E METRÓPOLIS ... 36

5 - A SOCIEDADE DO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ... 42

CAPÍTULO II - RESPOSTA A ANSEIOS ... 49

1 - RELAÇÃO ANSEIO E MEDO ... 49

2 - A POSIÇÃO DA TECNOLOGIA NÃO ESTÁ DEFINIDA ... 50

3 - A POSIÇÃO DA TECNOLOGIA ESTÁ DEFINIDA ... 59

3.1 Conflito gerado por seres humanos ... 60

3.2 Conflito gerado por seres artificiais ... 70

4 - SEGURANÇA E PERDA DE LIBERDADE ... 76

CAPÍTULO III - A QUESTÃO DA FRONTEIRA - O DEVIR HUMANO... 85

1 - O DEVIR HUMANO ... 85

1.1 Máquinas objetivas ... 86

1.2 Pessoas automáticas singulares ... 91

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1.2.2 Singularidade aprogramática ... 106

CAPÍTULO IV - A QUESTÃO DA FRONTEIRA - O DEVIR AUTOMÁTICO ... 131

1 – O DEVIR AUTOMÁTICO ... 131 1.1 Ciborgues funcionais ... 134 1.1.1 Ciborgues interpretativos ... 138 1.2 Ciborgues físicos ... 142 1.2.1 Ciborgues protéticos ... 144 1.2.2 Ciborgues protéticos-cibernéticos ... 147 1.2.3 Ciborgues cibernéticos ... 158 1.2.4 Ciborgues pós-corporais ... 164 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 177 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 181 FILMOGRAFIA ... 185

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xiii ÍNDICE DE IMAGENS

Imagem 01- O autómato do filme A Invenção de Hugo (2011) ... 33

Imagem 02- A criatura homem-máquina do filme Metrópolis (1927)... 38

Imagem 03- Início da transformação da máquina ... 39

Imagem 04- Transformação final semelhante a personagem Maria ... 40

Imagem 05- O robô Gort do filme O Dia em que a Terra Parou (1951) ... 43

Imagem 06- O robô Robby do filme Planeta Proibido (1956) ... 46

Imagem 07- O computador HAL 9000 do filme 2001: Odisseia no Espaço (1968) ... 52

Imagem 08- O robô Hector do filme Saturno 3, o Robot Assassino (1980) ... 54

Imagem 09- A robô Ava do filme Ex Machina (2015) ... 57

Imagem 10- O robô David do filme Eu, Robot (2004) ... 64

Imagem 11- O robô Andrew do filme O Homem Bicentenário (1999) ... 72

Imagem 12- Os robôs da série Pilgrim 7000 do filme Autómata (2014) ... 74

Imagem 13- O computador ARIIA do filme Olhos de Lince (2008) ... 79

Imagem 14- O andróide Ash de Alien - O 8º Passageiro (1979) após ser golpeado ... 87

Imagem 15- A indiferença no olhar de Ash ao observar o seu colega Kane ... 88

Imagem 16- A aparência humana do ciborgue do filme O Exterminador Implacável (1984) ... 89

Imagem 17- A aparência metálica do ciborgue do filme O Exterminador Implacável (1984) ... 90

Imagem 18- O robô Sonny do filme Eu, Robot (2004) ... 95

Imagem 19- Dispositivo de comunicação entre Theodore e o Sistema Operativo Samantha do filme Uma História de Amor (2013) ... 97

Imagem 20- O robô Chappie do filme Chappie (2015) ... 101

Imagem 21- A robô Ava a utilizar roupas e peruca ... 102

Imagem 22- Ava ao assumir uma aparência completamente humana ... 104

Imagem 23- A máquina sentinela do filme Matrix (1999) ... 112

Imagem 24- Os Agentes Brown, Smith e Jones do filme Matrix (1999) ... 113

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Imagem 26- O Replicante Roy do filme Blade Runner: Perigo Iminente (1982) . 118 Imagem 27- O Replicante Leon do filme Blade Runner: Perigo Iminente (1982) 118

Imagem 28- A Replicante Pris do filme Blade Runner: Perigo Iminente (1982) .. 118

Imagem 29- A Replicante Zhora do filme Blade Runner: Perigo Iminente (1982) 119 Imagem 30- Andrew ao assumir uma aparência completamente humana ... 124

Imagem 31- O primeiro robô Pilgrim consciente do filme Autómata (2014) ... 128

Imagem 32- Os operários do filme Metrópolis (1927)... 135

Imagem 33- Cena da transição da máquina para a imagem de Moloque ... 135

Imagem 34- Charlot entre as engrenagens no filme Tempos Modernos (1936) .. 137

Imagem 35- A máquina de controlo da substituição do filme Os Substitutos (2009) ... 139

Imagem 36- O braço artificial do detetive Del Spooner do filme Eu, Robot (2004) ... 146

Imagem 37- O polícia Alex J. Murphy do filme Robocop - O Polícia do Futuro (1987) ... 148

Imagem 38- O Robocop ... 148

Imagem 39- O Robocop sem o capacete ... 151

Imagem 40- Construção do corpo da ciborgue Motoko do filme Ghost in the Shell (1995) ... 153

Imagem 41- Motoko ao assumir uma aparência completamente humana ... 153

Imagem 42- O ciborgue Johnny do filme Johnny Mnemonic: O Fugitivo do Futuro (1995) ... 160

Imagem 43- Entrada na parte posterior da cabeça de Johnny ... 160

Imagem 44- Neo ao ser desconectado do programa Matrix... 162

Imagem 45- Entrada na parte posterior da cabeça de Neo... 163

Imagem 46- O cientista Will Caster do filme Transcendence: A Nova Inteligência (2014) ... 166

Imagem 47- A imagem virtual fragmentada de Will Caster ... 166

Imagem 48- O cientista Deon Wilson do filme Chappie (2015)... 171

Imagem 49- Deon ao assumir uma aparência completamente robótica ... 171

Imagem 50- A personagem Yolandi do filme Chappie (2015) ... 172

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15 INTRODUÇÃO

O advento do género literário de ficção científica foi um dos grandes responsáveis pela construção de novas formas de subjetividade. Tendo o seu nascimento durante o alvorecer da Revolução Industrial, este género literário surgiu para conjugar o homem ao desenvolvimento tecnocientífico, de modo a refletir no mundo ficcional algumas das mudanças realizadas no mundo factual. A partir da existência da linguagem literária, e com o avanço das tecnologias, o homem procurou novas formas de expressão que mantivessem uma relação com o espectador, surgindo, assim, a linguagem cinematográfica.

Por sua vez, com o surgimento do cinema, as representações dessas novas formas de sujetividade tornaram-se mais evidentes. A partir da pluralidade de códigos que o cinema possui foi possível dar vida imagética ao ambiente ficcional e às personagens, de maneira a contribuir para uma nova construção do imaginário coletivo que envolvesse ficção, ciências e tecnologia. Desse modo, o cinema permitiu modalizar novas perceções da vida e novas formas estético-ideológicas acerca da humanidade do futuro.

O cinema de ficção científica foi um importante mediador entre a construção do processo de subjetividade e as problematizações da própria humanidade. A partir das tecnologias surgidas na segunda metade do século XX, a civilização contemporânea instituiu novas abordagens cinematográficas que estão ou podem estar bastante próximas do mundo factual. Contudo, a ficcionalidade do cinema incita não só a curiosidade sobre a relação entre o homem e as tecnociências, como permite dar face à vida quotidiana forjada pela cibercultura, de modo a permitir uma visão do futuro.

O género fílmico de ficção científica, enquanto representante da simbiose entre o homem e a máquina, fomenta diferentes representações acerca desta simbiose e diferentes níveis de hibridismo. Devido aos diferentes processos semióticos e às diferentes significações de cada película, as representações de tais indivíduos são, por vezes, difíceis de diferenciar. Esta dificuldade evidencia não só o caráter não genérico desta temática, como contribui para a ascenção de diferentes relações entre o homem e as tecnologias no grande ecrã.

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É a partir dessa relação entre o cinema, a sociedade, as ciências e as tecnologias que a presente dissertação de mestrado pretende abordar filmes do género de ficção científica, de maneira a expôr algumas representantes da simbiose entre o homem e a máquina. Para avaliar estas diferentes relações, fizemos uma seleção particular que compreende vinte e três filmes de longa-metragem, cujos personagens principais ou secundários são pessoas automáticas. Para tanto, iremos analisar filmes desde a primeira metade do século XX até aos mais recentes lançamentos cinematográficos1.

Criámos o termo pessoas automáticas para designar personagens que têm parcial ou completamente partes mecânicas na sua constituição, tais como ciborgues, andróides, robôs, computadores com inteligência artificial, e formas pós-humanas. Com isto, temos como objetivo analisar as representações dessas pessoas automáticas e evidenciar questões estimuladoras de reflexões acerca da humanização da máquina e do processo de mecanização do homem, e diferenciá-las, de modo a avaliar a relação entre o homem e a máquina a partir das representações cinematográficas.

A relevância do tema está relacionada com a escassez bibliográfica que reúno num só sítio a análise das pessoas automáticas e da humanidade do futuro das películas de ficção científica. Com isto, queremos dizer que há uma vasta gama de livros que abordam muitas vertentes das narrativas de ficção científica, que pode compreender naves espaciais, viagens ao espaço, planetas distantes, universos paralelos, viagens no tempo, seres extraterrestres, humanos com superpoderes, experimentos biológicos com animais e seres humanos, novas tecnologias, etc. Entretanto, iremos focar o nosso objeto de análise nas persongens relacionadas diretamente com o desenvolvimento tecnocientífico. Portanto, esta dissertação é singular no sentido em que delimita numa única abordagem o objeto de estudo; a vertente tecnológica e científica das narrativas de ficção científica. Com isto, tem-se o objetivo de fomentar novas reflexões acerca da relação homem-máquina, do avanço das tecnologias e da humanidade do futuro. E a contribuir, futuramente, para novas problemáticas acerca deste tema.

A seleção dos filmes para esta dissertação foi feita a partir de um critério de relevância histórica, estética e filosófica. Independentemente do seu valor artístico e

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comercial, são películas que marcam histórica, narrativa, concetual e esteticamente as respectivas épocas em que surgiram. Com isto, queremos dizer que compreendemos que algumas das películas analisadas têm grande êxito e qualidade, enquanto outras não têm grande reconhecimento, e podem apresentar ausência de reflexões filosóficas ou falhas na argumentação. Contudo, estas películas foram selecionadas por acreditarmos que eram dignas de análise, diante das questões propostas nesta pesquisa. Dessa maneira, não temos como objetivo definir as qualidades ou as deficiências das narrativas, mas sim analisá-las de acordo com as problemáticas propostas nesta dissertação. De igual modo, não temos como objetivo abordar as diversas problemáticas que um único filme pode apresentar, pois era necessário limitar o nosso objeto de análise, e uma única película apresenta um número elevado de problemáticas. Dito é de justiça reconhecer que o gosto pessoal também esteve presente na escolha dos títulos analisadas.

Houve uma grande dificuldade em selecionar filmes de ficção científica com a vertente tecnocientífica que não fossem produções americanas. Isto é, há realmente uma ausência de filmes com esta temática por parte de outros países. A maioria dos filmes selecionados são de língua inglesa, não necessariamente produções americanas. Contudo, há duas exceções: o filme Metrópolis (1927), que é de produção e idioma alemão, e o filme Ghost in the Shell (1995), um anime de produção e idioma japonês, sendo também o único filme de animação presente nesta dissertação. Os restantes são live-action. É importante referir que houve, também, uma grande dificuldade em encontrar filmes com esta temática que fossem realizados por mulheres. Infelizmente, todos os filmes selecionados são realizados por homens. Com exceção das realizadoras transgénero Lana Wachowski e Lilly Wachowski, mas que na altura em que realizaram o filme Matrix (1999) era homens cisgéneros.

A partir da análise destas películas iremos abordar temas que achamos de grande relevância não só para o cinema como também para a compreensão da sociedade, tais como: a relação entre o tema e a época porque os diversos temas abordados nos filmes de ficção científica foram-se alterando de acordo com o contexto histórico; iremos também estabelecer uma relação entre os filmes e avaliar as suas diferenças; analisaremos também a representação estética de cada personagem com

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o intuito de verificarmos de que maneira isso altera o entendimento das personagens automáticas nas diferentes películas selecionadas.

O objetivo geral desta dissertação é o de investigar as diferentes representações da relação entre o homem e a máquina na construção de diferentes personagens

do cinema contemporâneo, as quais denominamos pessoas automáticas. De igual

modo, pretende-se problematizar a relação entre o homem e as tecnologias não somente no mundo ficcional, como também no mundo factual. Portanto, a partir da linguagem cinematográfica, pretendemos compreender o cinema enquanto fonte de construção do imaginário coletivo e enquanto construção histórica e sociocultural. Todavia, compreendemos que algumas das problemáticas abordadas nas películas desta dissertação não são exclusivas, sendo problematizadas anteriormente na literatura de ficção científica. No entanto, escolhemos abordar filmes pois o cinema contribui com novas formas de subjetividade, representação cultural e processos de informatização. Por esta razão, é importante deixar claro que esta dissertação não é sobre literatura, mas sim sobre cinema. Algumas das narrativas são adaptações cinematográficas a partir de obras literárias, mas não é o objetivo deste trabalho avaliar em que aspetos elas são semelhantes ou diferentes. Há diversas teses sobre adapções cinematográficas, e, apesar de não ser um assunto esgotado, não é este o nosso objetivo. Explica-se, assim, que este estudo pretende transcender esta discussão e operar no sentido de construir, organizar e interpretar identidades e significados sociais a partir das representações cinematográficas de ficção científica.

A explorar o objeto apresentado que orienta o estudo, temos como objetivos: 1. Analisar filmes desde a primeira metade do século XX até aos mais recentes lançamentos cinematográficos, de modo a construir um panorama sobre estas personagens inseridas nos filmes de ficção científica, situando a sua relevância na história do cinema.

2. Identificar as representações das pessoas automáticas no cinema enquanto construção do imaginário coletivo; resposta a anseios; reflexão simbólica acerca da sociedade e das novas tecnologias.

3. Identificar os princípios estéticos e as características das pessoas automáticas das narrativas cinematográficas selecionadas.

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19 própria humanidade.

5. Contribuir para a reflexão sobre o cinema com um estudo acerda da vertente tecnocientífica do género cinematográfico de ficção científica.

Relativamente à metodologia que orientou este estudo, consiste numa pesquisa descritiva e exploratória com abordagem histórica e documental. Como esta dissertação tem por base o estudo de personagens das narrativas cinematográficas, optou-se por estabelecer aproximações entre o estudo do cinema e da sociedade. Deste modo, a metodologia transitará entre a leitura de uma bibliografia transdisciplinar e a análise dos filmes selecionados. Por ser esta uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa, utilizamos os seguintes procedimentos: pesquisa cinematográfica e pesquisa bibliográfica. O levantamento dos filmes foi realizado a partir de arquivos particulares e disponíveis na internet. Desta forma, esta dissertação está estruturada em quatro capítulos. O primeiro capítulo tem como título Espelho das Sociedades, onde iremos abordar a questão da contribuição dos filmes selecionados para o imaginário coletivo e para a criação denovas representações a respeito da humanidade do futuro. No segundo capítulo, iremos abordar a Resposta a Anseios aplicada ao cinema, compreendendo que os filmes são uma forma de demonstrar os anseios da sociedade vigente relativamente às potencialidades da tecnologia. O terceiro e o quarto capítulo abordam A Questão da Fronteira, que consiste em compreender a linha ténue entre a humanização da máquina e a mecanização do homem. Para tanto, divimos este conteúdo em capítulos diferentes: o terceiro capítulo aborda o devir humano em personagens mecânicas e o quarto capítulo aborda o devir automático em personagens humanas. Por fim, há as Considerações Finais acerca das nossas conclusões.

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21 CAPÍTULO I - ESPELHO DAS SOCIEDADES

1 - AS ORIGENS DA FICÇÃO CIENTÍFICA

É inerente ao ser humano criar diferentes formas de expressão para comunicar, ilustrar, narrar e expor seus pensamentos e sentimentos. Dentre estas formas de expressão, a linguagem literária destaca-se por abrir um grande leque de ramificações que vão desde a literatura enquanto forma de expressão artística até aos estudos literários como disciplina académica.

A partir da existência das narrativas de viagens e das fábulas, novos genéros literários foram surgindo. Nesta perspetiva, Oliveira (2003, p. 182) ressalva que a ficção fantástica herdou a tarefa de descrever seres maravilhosos e lugares exóticos, de maneira a explorar alguns binarismos como: conhecido e desconhecido, existente e não-existente, o Eu e o Outro. De acordo com a autora:

A partir de uma ou várias mudanças nas esferas de subjetividade, saber e espaço-tempo, a fábula e a ficção fantástica exercitam a curiosidade e o deslumbramento sobre seres e mundos desconhecidos como estratégia de problematização de nossa própria humanidade e de nosso potencial de exploração no mundo (Oliveira, 2003, p. 182).

De maneira semelhante às raízes da ficção fantástica, o género de ficção científica também pretendia interrogar a humanidade e a sociedade a partir da presença de um Outro ser, como alienígenas e robôs, ou de um Outro mundo, como planetas distantes e cenários futurísticos. Contudo, a ficção científica surge no berço do desenvolvimento tecnocientífico marcado pelo período histórico conhecido por Segunda Revolução Industrial.

Iniciada durante a metade do século XIX, a Segunda Revolução Industrial alterou profundamente a sociedade e assim, abriu caminho para a construção de novas formas de subjetividade. Alguns autores, como Fauza, compreendem que a Revolução Industrial pode ser vista também como um "espaço suficientemente sedutor para o ato de pressupor" (Fauza, 2008, p. 27). Nessa mesma linha de pensamento, Oliveira (2003, p.180) afirma que,

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Ao combinar a profundidade de subjetividade do humano, o uso da técnica para mudar a sociedade, e o sonho de novos espaços (utopia = u-topos = um outro lugar) em um tempo futuro, o pensamento moderno cria também condições de surgimento da ficção científica. Diante de novas estruturas económicas e sociais, novas técnicas, novos bens de consumo, novos empregos e novas tecnologias, a literatura de ficção científica passou a explorar o mundo através de uma abordagem voltada para o desenvolvimento tecnológico e científico. Segundo Fauza (2008, p. 2), "a máquina, a esta altura, [...] serve-se como instrumento ícone de uma nascente tecnocracia, mediadora das relações de produção e responsável por processos de reurbanização e ressocialização".

Inicialmente, quando o termo "ficção científica" surge em 1926 proposto por Hugo Gernsback, este género literário dirigia-se a um público muito específico que abrigava editores, escritores e fãs. Durante a primeira metade do século XX, a ficção científica não tinha muita credibilidade por ser considerada um produto da cultura de massa e, por isso, não recebia a devida atenção no meio académico (Oliveira, 2003). Contudo, a partir do movimento New Wave surgido na década de 1960, as abordagens teóricas que anteriormente reduziam a ficção científica ao caráter científico, passaram a compreender e aprofundar o contato entre tecnologia, ciência, seres humanos e sociedade, a partir das ciências teórico-experimentais e das ciências humanas e sociais (Ibid.).

Não obstante, as produções de ficção científica não cessaram de atuar apenas no campo literário mas migraram também para o campo cinematográfico. Semelhante à literatura de ficção científica, os filmes deste género também se referem a questionamentos acerca da humanidade e da sociedade. Paiva (2007, p. 189) corrobora este pensamento quando diz que "o cinema de ficção tem o poder de entreter, alertar e instigar, face à hiper-realidade cotidiana forjada pelas tecnologias".

Deste modo, justificamos a escolha de trabalhar este género pois entendemos que as narrativas de ficção científicas forjam uma ideia de futuro com o objetivo de questionar o presente e, essencialmente, compreender o passado que gerou o presente. Portanto, embora a ficção científica esteja constantemente a apresentar uma visão de futuro, concebemo-la como um método de escrever simbolicamente sobre a história das sociedades humanas (Amaral apud Paiva, 2007, p. 190).

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Neste contexto, as produções literárias de ficção científica referem-se também a mudanças "no espaço, no tempo, no homem e em seu modo de perceber e atuar sobre a realidade. Associam desenvolvimento tecnológico a novas experiências do sujeito e, consequentemente, novas formas de organizações sociais" (Oliveira, 2003, p. 181).

Contudo, diferentemente da literatura, o cinema potencializa os questionamentos acerca da humanidade e da sociedade ao adicionar a componente audiovisual, lúdica e afetiva nas suas narrativas. Desta maneira, a pluralidade de códigos que o cinema oferece resulta numa sensibilidade capaz de atualizar e revigorar a imaginação crítica, vigilante e compreensiva a respeito das problemáticas apresentadas no cinema de ficção científica (Paiva, 2007).

Neste sentido, é oportuno destacar que esta dissertação compreende o cinema de ficção científica a partir de três bases muito sólidas: a) o cinema enquanto um instrumento historiográfico, ao assumirmos o contexto vigente enquanto mediador da narrativa; b) o cinema enquanto um veículo estimulador de reflexões acerca das relações humanas, das sociedades, dos limites da criação, da natureza humana, dos avanços tecnológicos; c) o cinema enquanto difusor de novas formas de subjetividade e representação da humanidade do futuro a partir de códigos audiovisuais.

Ao assumirmos as produções cinematográficas como um terreno fértil para interrogar o humano, criamos as condições necessárias para a produção de sentido entre espaço-tempo, tecnociência e subjetividade a partir da comunicação entre os campos da filosofia e da ciência (Oliveira, 2003).

1.1 - A questão da projeção

O cinema de ficção científica, enquanto condutor de questionamentos e reflexões, movimenta-se paralelamente ao contexto em que sociedade se encontra. Deste modo, o cinema projeta os anseios, medos e vontades da sociedade a partir de uma narrativa desenvolvida no futuro, mas que possui uma base fixa no mundo factual. Como afirma Oliveira (2003, p. 183):

A ficção científica enevoa os limites entre ciências humanas, sociais e teórico-experimentais, doando a suas narrativas o caráter múltiplo da experiência. Daí sua dificuldade de ser apreendida pela epistemologia moderna. A multiplicidade que a ficção científica atribui à experiência só é possível de ser compreendida por procedimentos transdiciplinares.

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Diante desses procedimentos transdiciplinares, concordamos com Paiva (2007, p. 193) quando afirma que "a sétima arte, desde o período da alta modernidade industrial, constitui um locus privilegiado para decifrarmos o sentido da natureza afetiva, psicológica e cognitiva de nossas extensões tecnológicas". Por esta razão, o título Espelho das Sociedades, adotado neste capítulo, deve-se ao facto de assumirmos o cinema como um veículo de produção de realidades forjadas pela ficção científica.

Neste sentido, este estudo pretende mostrar que as representações cinematográficas refletem uma identidade e uma experiência que se coaduna com o contexto sócio-económico-histórico-cultural vigente.

Segundo Bicca e Wortmann (2010, p. 43), com base nos estudos de outros autores, sustentam a teoria de que as produções incluídas na categoria de ficção problematizam a realidade a partir de um ponto de vista projetado no futuro:

Como explicou Santos (2003), as produções classificadas como ficções científicas não se concentram na previsão do que irá ocorrer no futuro, mas, muito mais, em estabelecer outras relações possíveis entre o presente e o futuro, que escapem a uma sucessão linear. E isso explica que essas sejam usualmente qualificadas como projeções, apropriações ou modelações do presente a partir de um futuro imaginado. Assim, as representações de futuro presentes na ficção científica apresentam uma aproximação forte com situações que já se verificam nos dias atuais, [...] ou que já transformaram o presente no passado de algo que virá [...]. Dessa forma, ao olhar o presente [...], textos vinculados ao gênero ficção científica têm reunido a liberdade, sempre atribuída à ficção, ao rigor, que é tomado como um atributo da ciência, para abordar as relações entre seres humanos, ciência e tecnologia, constituindo-se em produções interessantes para se pensar acerca do que não cabe nos binarismos modernos tradicionais – a ideia de um ser híbrido de humano e máquinas. Dá-se destaque a esse aspecto, [...] pois, a partir dele, se expõem as dificuldades oriundas do esforço classificatório moderno, que nos permite ler a ficção científica como uma narrativa do mundo contemporâneo, na qual emergem novas subjetividades. Nessa mesma linha de pensamento defendida pelas autoras, Fauza (2008, p.19)corrobora ao afirmar que,

Em um gênero literário como a ficção científica, os graus de conformidade entre o real e o imaginário se mostram dependentes, em princípio, das convenções propostas pelo próprio saber científico. A metodologia calcada na experimentação e na verificação de resultados práticos vem a obrigar que um texto desse gênero, mesmo que ainda inserido do âmbito da fantasia, mostre paralelos coerentes com as leis físico-químico-biológicas vigentes no instante da criação do enredo

A partir dessa perspetiva e no seguimento dos aspetos evidenciados anteriormente, iremos analisar vinte e três filmes que acreditamos ser de grande relevância para compreendermos algumas formas de identidades históricas,

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individuais, visuais, sociais, culturais e contemporâneas. Para Paiva (2007, p. 191), "em nossa época de múltiplas conexões e intertextualidades, dispomos de um acervo importante de estudos para uma contemplação das relações entre os seres, as artes e as mídias, particularmente, o cinema". Neste âmbito, e de modo a sustentar os nossos argumentos teórico-metodológicos, iremos referir alguns períodos históricos para assimilarmos a relevância de determinada película ou personagem.

2 - PESSOAS AUTOMÁTICAS

Segundo Oliveira (2003), a criação de vida artificial não é um conceito originado no século XX. A autora afirma que desde a Antiguidade o homem produziu, tanto no mundo factual como no mundo ficcional, autómatos e seres animados artificialmente. Como por exemplo, as virgens de ouro e Talos – um gigante feito de bronze –, foram ambos construídos pelo deus Hefesto; o Pombo de Arquitas de Tarento; a estátua de Pigmalião; o Golem de Praga; o Pato Digestivo de Jacques de Vaucanson; o autómato do Turco Jogador de Xadrez; os autómatos de Pierre Jacquet-Droz e seu contemporâneo Henri Maillardet. Contudo, a criação de máquinas capazes de mimetizar o comportamento humano é um fenómeno recente (Schelde, 1993).

A criação do termo pessoas automáticas, utilizado no título desta dissertação, tem como objetivo legitimar e abarcar todas as representações de personagens que têm parcial ou completamente partes mecânicas na sua constituição, tais como ciborgues, andróides, robôs, computadores de inteligência artificial e formas pós-humanas.

Ao colocar em perspetiva questões como a condição humana e os valores éticos, o cinema representa diferentes níveis de hibridismo na relação entre o homem e a máquina, de modo a produzir representações que passaram a ter designações muito distintas e longe de serem consensuais.

De igual modo, as personagens híbridas que serão abordadas ao longo desta dissertação tornam difícil a sua inclusão nas categorias usualmente utilizadas. No entanto, é legítimo afirmar que estas personagens desestabilizam as normas que exigem pôr cada sujeito ou cada indivíduo em determinado grupo. Contudo, nos próximos tópicos, iremos apresentar definições distintas acerca das representações destes seres os quais nomeamos de pessoas automáticas.

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26 2.1 - A questão da estética

O cinema de ficção científica fornece elementos notáveis para a interpretação de algumas das questões vigentes na modernidade. Por esta razão, as representações estéticas da humanidade do futuro nos parecem fundamentais para a compreensão das relações entre o homem e o desenvolvimento técnocientífico. Como evidencia Oliveira (2003, p. 178):

Filósofos e cientistas contemporâneos, ao discutir as articulações entre tecnologia, subjetividade e experiências possíveis, têm convergido para temas e elementos estéticos da ficção científica, evidenciando o curto-circuito entre factual e ficcional na Atualidade.

Com base desse pensamento, iremos compreender o cinema não apenas como uma visão quotidiana revestida pela imaginação ficcional, mas como algo que atua na configuração das sociedades presentes e das sociedades futuras (Bicca e Wortmann, 2010).

Nessa via, selecionamos filmes que apresentam uma conceção estética e um projeto ideológico acerca da humanidade do futuro, e encenam "um mundo no qual convivem os seres e as máquinas, numa ambiência onde o natural se confunde com o artificial, o orgânico com o tecnológico, o real com o virtual" (Paiva, 2007, p. 189). Devido às múltiplas abordagens cinematográficas das personagens automáticas, ao longo desta dissertação iremos abordar caraterísticas físicas como o design, a imagem e a funcionalidade. Mediante a imagem destas personagens, iremos estabelecer padrões, semelhanças, diferenças e investigar de que maneira a sua representação visual interfere na produção de subjetividade (Rosário e Aguiar, 2006). 2.1.2 - A peça R.U.R. e o surgimento do robô

O termo robot, cuja origem vem da palavra checa robota, que significa trabalho forçado, teve a sua primeira aparição na peça R.U.R. (Rosumovi Univerzální Roboti2)

do checo Karel Čapek, escrita em 1920 (Rosário e Aguiar, 2006, s/p).Nesta peça futurista, um cientista conhecido como "velho Rossum", cria em 1932 uma fórmula capaz de criar seres artificialmente a partir do protoplasta – uma estrutura química capaz de sintetizar, ainda que quimicamente diferente, o tecido vivo.

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O velho Rossum tinha o objetivo de provar que era capaz de criar vida e afirmar que a existência de Deus não é essencial. Mas o seu sobrinho, o jovem Rossum, teve a ideia de produzir robôs em grande escala com a promessa de redução de custos, devido ao facto de serem a força de trabalho mais barata e sem ordenado. Com isto, os operários das indústrias foram substituídos por robôs: seres mais fortes, mais inteligentes, incansáveis e sem necessidades. Contudo, tinham a capacidade de se desenvolver depressa: aprendiam a falar, a escrever e a fazer contas.

O jovem Rossum decidiu fabricá-los de maneira simples: desprovidos de sentimentos, vontades e sem criatividade. Não têm consciência de morte, não sentem amor, pena ou prazer. São seres sem paixão, sem esperança, sem alma. Contudo, a pedido de Helena, o Dr. Gall, um dos cientistas da empresa, alterou o caráter dos robôs, e estes passaram a ver os seres humanos como uma ameaça. Liderados pelo robô Radius, os robôs fizeram uma rebelião e decidiram extinguir todos os seres humanos, exceto o engenheiro Alquist por acreditarem que este seria capaz de construir novos robôs, e assim gerarem uma nova era, visto que não são capazes de reprodução por vias naturais. Todavia, o manuscrito deixado pelo velho Rossum com a fórmula da criação artificial foi queimado, e Alquist nada poderia fazer.

Curiosamente, os robôs criados por Rossum não são descritos como autómatos, mas sim como seres biologiamente artificiais. Isto é, não são criados a partir de engrenagens, parafusos ou circuitos. Os robôs da peça de Karel Čapek estão vestidos como pessoas e, apesar de possuírem a fala e os movimentos levemente parecidos com procedimentos mecânicos, podem ser facilmente confundidos com seres humanos. Possuem pele, cérebro, ossos, nervos, cabelo, glândulas, hormonas, enzimas, apêndice, amígdalas, fibras nervosas, fígado, veias, intestino, orgãos sexuais e até umbigo. A diferença concecional entre os seres humanos e os robôs fabricados pela empresa R.U.R. é a oposição entre nascimento e produção.

Todavia, ainda que apresentem uma constituição física biologicamente semelhante aos humanos, são considerados máquinas por algumas das personagens humanas da peça. Isto nos leva a uma temática que, ao longo dos anos, se tornou recorrente nas narrativas de ficção científica: a rejeição dos robôs como seres semelhantes aos homens e o medo do homem de perder a soberania sobre o meio em que atua. Como aponta Fauza (2008, p. 30):

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O robô é, portanto, a personificação do não-natural, do não-humano e, conseqüentemente, do não semelhante – o que nos leva, dentro da cultura ocidental cristã, ao não reconhecimento e à rejeição daquilo que não está em consonância com as leis divinas. Mais uma vez o discurso antiautômato encontra respaldo na organização cultural, seja por meio da influência religiosa ou pela preservação do domínio de nossa própria espécie sobre a natureza e também sobre o outro. A máquina, quando deixa de ser instrumento a serviço das relações de poder para alcançar consciência própria, representa antes de tudo a ameaça, o confronto. Aqui se encontra, assim, o início do debate entre aquilo que pode ou não ser criado, a partir de conhecimentos científicos específicos, pelo próprio homem.

A ascensão de uma sociedade industrializada põe em causa os limites da criação e serve como pano de fundo para o contexto socioeconómico da época. A revolta dos robôs contra os seus criadores é uma metáfora para a classe operária vigente – que vivia em estado de opressão, submissão, servidão e obediência – em relação à classe social dominante. Nessa via, a peça R.U.R. tem o mérito e a relevância de ser pioneira na representação de personagens automáticas, e responsável por proporcionar temas que posteriormente seriam revisitados em muitas obras.

O primeiro tema a ser considerado é a desumanização3 dos operários, provocado

pelo trabalho repetitivo e mecânico. O início do século XX foi marcado pelo capitalismo, pela industrialização, pelo êxodo rural e pelo pós-guerra. Fauza (2008, p. 29) fortalece este pensamento quando afirma que,

[…] a presença da máquina como novo regulador das práticas sociais decorrentes do trabalho, fato percebido principalmente nos países mais sensíveis à denominada Segunda Revolução Industrial, permite que a ficção tome esta nova perspectiva como ponto inicial para a produção de obras que provoquem o estabelecimento de opiniões, por parte do público leitor, que estejam em conformidade com as contingências daquele período.

Outro tema importante a ter em atenção nesta peça nos remete ao romance Frankenstein, de Mary Shelley, de 1818. Esta narrativa literária apresentou pela primeira vez uma matéria inerte a ser animada partir de procedimentos alquímicos. O monstro homúnculo4 criado pelo Dr. Frankenstein reflete algumas das questões

dominantes da altura a respeito das relações entre homens e autómatos. Isto é, desde o século XIX, a ficção científica punha em causa os medos acerca da criação da vida por meios artificias e a preocupação de que tais criaturas tragam desgraças aos seus criadores e a outrem (Oliveira, 2003).

3 Este tema será aprofundado no quarto capítulo.

4 Este é o terceiro dos seus objetivos principais. Os outros dois são a criação da pedra filosofal, que transforma todos

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De forma semelhante, a peça R.U.R. faz reflexões acerca dos limites das criações humanas e a possibilidade de estas fugirem ao controlo e se tornarem nocivas. Esta punição tem origem na tradição judaico-cristã, como afirma Fauza (2008, p. 10):

Na cultura judaico-cristã, a viabilidade da conjunção de tamanhas habilidades naturais na constituição de um novo ser só se dá por meio do Criador. A máquina, quando combina essas características, rivaliza, portanto, com as demais criaturas advindas do reino natural – algo que demonstraria a ambição do homem em também ser criador.

Essa tradição judaico-cristã é uma das bases mais clássicas das narrativas de ficção científica, e se estende até às produções cinematográficas mais recentes, como veremos nos próximos capítulos. O mesmo autor (2008, p. 29) corrobora este argumento quando afirma que,

A partir de R.U.R., a proliferação de quadros distópicos em que a figura do robô surge como grande afronta à pretensa harmonia entre os homens ocorre tanto na literatura como no cinema. A demonização da máquina, comum desde as manifestações ludistas, preocupadas com a possível desestabilização social a ser provocada pela substituição da mão-de-obra assalariada pela mecânica, transformou-se em discurso padrão, avesso à crescente interferência da tecnologia nas relações humanas

Diferentemente dos robôs da peça de Karel Čapek, a aceção atual da palavra robô é um conceito bastante sólido no senso comum, e está relacionada com seres mecânicos com aspectos humanóides, feitos a partir de engenhos mecânicos, eletrónicos e computacionais, capazes de agir de maneira automática a partir de uma função determinada. Joseph Deken (apud Schelde, 1993, p. 154) define o robô como ser reprogramável e multifuncional, projetado para desempenhar variadas tarefas através de movimentos programados.

Contudo, é relevante notar como o robô Radius é transgressor no sentido em que se recusa a ser explorado pelos humanos e possui o ímpeto de superar o homem e inverter a ordem hierárquica vigente: deseja mandar e ser o mestre dos seres humanos. O motivo repentino da mudança de atitude de Radius não é esclarecido na peça, mas pode ser compreendido a partir do conceito de "vontade de poder" defendido por Nietzsche (2012, p. 325-326):

A vontade de poder só pode manifestar-se contra obstáculos; vai por isso à procura daquilo que lhe oferece resistência – esta é a tendência primitiva do protoplasma quando alonga os seus pseudópodes e tacteia em torno. O acto de apropriação e assimilação é, acima de tudo, resultado dum desejo de subjugar, dum processo de formação, de construção e reconstrução adicional, até que por fim a criatura subjugada se tornou completamente parte da esfera de poder da criatura superior, e a aumentou.

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Relativamente ao desejo dos robôs de se preservarem, Nietzsche continua a sua reflexão afirmando que a luta pela vida

é só uma excepção, uma restrição temporária da vontade de viver; as lutas maiores e menores movem-se sempre em redor da vantagem, do crescimento e expansão, do poder, em conformidade com a vontade de poder, a qual é justamente a vontade de viver (Nietzsche, 1998, p. 263)

A partir de outra perspetiva, podemos compreender o desejo de Radius de dominar, expandir-se e superar-se com base no conceito de intencionalidade defendido por John Searle (1984, p. 21) quando expressa que a intencionalidade

não se refere justamente a intenções, mas também a crenças, desejos, esperanças, temores, amor, ódio, prazer, desgosto, vergonha, orgulho, irritação, divertimento, e todos aqueles estados mentais (quer conscientes ou inconscientes) que se referem a, ou são acerca do Mundo, diverso da mente.

A vontade de poder de Nietzsche e a intencionalidade de Searle são conceitos que se estendem até à atualidade e são de extrema importância para percebermos algumas das películas que serão abordadas nos próximos capítulos. Estas conceções justificam a decisão de analisar personagens automáticas que apresentam um comportamento inesperado ou transgressor, pelas mesmas razões que,

Não se pode negar que máquinas comuns têm a capacidade de executar tarefas, mas elas o fazem independentemente de sua tenção. Com a vontade, a máquina adquire vida própria, pois passa a manifestar sua intencionalidade ao praticar as ações, sejam elas adequadas à ordem vigente ou nitidamente transgressoras (Fauza, 2008, p. 53).

Com isto, queremos dizer que estamos cientes de que há filmes em que a relação entre homens e personagens automáticas é representada de forma pacífica e agradável. Contudo, não pretendemos abordar nesta dissertação personagens que não apresentam nenhuma tensão moral, que não são indivíduos capazes de mudar, tornarem-se mais inteligentes e aprenderem com a própria experiência, de maneira a apresentar um comportamento previsível, unidimensional (Shelde, 1993).

Todavia, não queremos com isto dizer que são personagens pouco interessantes, pelo contrário, são personagens inteligentes, comunicativas e fiéis, como, por exemplo, o humanóide de relações-públicas C-3PO, o robô astromecânico R2-D2, e a mais recente aparição do robô BB-8, apresentados nos filmes da saga Star Wars; o robô Johnny-5 do filme Curto-Circuito (1986); o robô depressivo Marvin

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da película À Boleia Pela Galáxia (2005); o adorável robô da animação Wall-E (2008); e o fiel robô de Robô & Frank (2012). Contudo, apesar de essas e de outras películas apresentarem seres criados artificialmente, optamos por analisar personagens que demonstram caraterísticas ou comportamentos que nos fazem refletir acerca das potencialidades do desenvolvimento tecnocientífco, como veremos nos capítulos a seguir.

Entretanto, a peça R.U.R encerra de maneira interessante ao sugerir que, a partir da mudança de comportamento dos robôs, o amor manifestou-se entre o robô Primus e a robô Helena. Essa mudança de comportamento causou tamanho estranhamento em Alquist que este até os confundiu com seres humanos. Fauza esclarece que a hesitação de Alquist tem origem no facto de "estar habituado a conviver com robôs, mas principalmente pelo modo como Primus e Helena (a robô) se comportariam naquele momento – como um casal" (Fauza, 2008, p. 65).

O desfecho da peça, apesar de infeliz para a civilização humana, transmite uma mensagem de esperança quando Alquist reconhece que os robôs Primus e Helena têm valores fundamentais para a continuidade da vida ao fazer uma analogia com Adão e Eva, de maneira a carregarem consigo a responsabilidade de recomeçar uma nova civilização, com novos agentes, nova estrutura e novos representantes. Desse modo, esta peça nos deixa com incertezas e questionamentos perante as vicissitudes e possibilidades veiculadas à vida artificial. A este respeito, Fauza (2008, p. 70) ressalva:

O fim da peça deixa em suspensão o destino dos robôs – se teriam tido ou não sucesso na condução de sua vida e na formação de sua própria civilização –, porém os sinais deixados pelo primeiro casal robótico poderia dar-nos esperanças de que um outro caminho seria viável, muito além da frieza e insensibilidade características de simples máquinas.

Deste modo, a questão do amor entre dois robôs representa a ideia normativa de que o processo evolutivo tem de continuar, mesmo que isto implique a ausência humana e a revolução dramática de ser uma nova espécie a dominar a terra.

3.2 - Definições pouco assertivas

Como vimos no tópico anterior, o significado atual para o termo robô é bastante diferente dos robôs da peça R.U.R. Este conceito parece estar bastante estabelecido na sociedade atual, sofrendo poucas alterações. Segundo Rosário e Aguiar (2006,

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s/p), "a expressão que mais ganha força em termos de clareza de significados ainda seria o robô". Entretanto, os computadores de inteligência artificial, por não apresentarem um corpo físico, também nos parecem ser um termo unificado e fácil de ser assimilado. Nessa via, Schelde (1993) compreende os computadores como máquinas complexas capazes de mimetizar o comportamento humano. Podem ser representados a partir de surpefícies metálicas quadradas, com medidores, controlos, lâmpadas e um ecrã.

Contudo, algumas definições de pessoas automáticas podem ser pouco assertivas, consensuais ou até mesmo obsoletas. Rosário e Aguiar (2006, s/p) corroboram com este pensamento ao afirmar que,

Percebe-se que a partir do cinema e da literatura os termos que definem os corpos-máquinas e o mundo foram sendo popularizados, entretanto, como fazem parte de uma criação de sentidos sobre signos ficcionais, as significações nem sempre são bem apreendidas e tampouco unificadas, sendo complicado, por vezes, diferenciar tais criaturas.

O termo autómato, por exemplo, apesar de ter sido a primeira palavra criada para designar máquinas automáticas, atualmente é pouco utilizado nos filmes de ficção científica, pois estas máquinas não apresentam nenhum comportamento curioso ou distinto. A diferença entre autómatos e robôs é que os robôs ameaçam a identidade humana por serem máquinas pensantes com aspeto humanóide ou antropomórfico (Schelde, 1993), enquanto que os autómatos são simplesmente sistemas mecânicos capazes de executar alguma função, podem ser relógios, brinquedos, animais mecânicos, entre outros engenhos mecânicos. Isto é, os autómatos não precisam de exibir uma aparência semelhante a um ser humano. A

título de exemplo, o filme A Invenção de Hugo (2011) apresenta um autómato em

formato de homem. O personagem principal, Hugo Cabret, tenta consertá-lo pois acreditava que o autómato continha uma mensagem secreta deixada pelo seu pai, já falecido.

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33 Imagem 1

O autómato do filme A Invenção de Hugo (2011)5

Por sua vez, o termo android foi designado inicialmente como qualquer ser que fosse parecido com o ser humano do género masculino. A primeira referência reconhecida pelo Oxford English Dictionary do termo inglês é da Cyclopaedia de Ephraim Chambers, publicada em 1782. Em contrapartida, o termo gynoid, proposto por Gwyneth Jones no romance Divine Endurance de 1985, designa seres de forma

semelhante a um ser humano do género feminino. Fembot, popularizado pela série

The Bionic Woman em 1976 é mais antigo. Contudo, a partir do seu uso em muitas obras de ficção científica, o termo android passou a designar robôs com aparência física humana, que possuem organismos sintéticos que imitam a musculatura e a pele humana. Corroborando esta reflexão Oliveira (2003, pp. 188-189) afirma que,

No decorrer do século XX, à medida que as tecnologias se aprimoram, as histórias sobre os nossos "outros" ficam cada vez mais inquietantes. Com o desenvolvimento da cibernética e da biologia molecular nas décadas de 40 e 50, os robôs da ficção científica começam a se tornar ainda mais semelhantes fisicamente aos humanos – surgem os andróides. O uso atual do termo andróide em geral denota robôs que reproduzem a aparência humana, podendo ser produzidos com substâncias orgânicas ou revestidos com materiais sintéticos que imitam fielmente musculatura e pele. Autênticas reproduções humanas, os andróides são considerados seres mais evoluídos que os robôs, e frequentemente alcançam níveis de complexidade mental – e até emocional – que rivalizam com os humanos.

Alguns termos, por sua vez, foram designados apenas no cinema, como é o caso dos mecas em A.I. Inteligência Artificial (2001), advindo da palavra mecânico, e dos replicantes em Blade Runner: Perigo Iminente (1982), "cujo nome deriva de sua natureza original, que lhe permite a replicação do DNA humano" (Martins, Aguiar

5 Fonte: http://sensesofcinema.com/wp-content/uploads/2012/07/Fig-11-Clement-Long.png [acedido em

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e Paiva, 2010, p. 8). Baseado no livro Do Androids Dream Of Electric Sheep? (1968) de Philip K. Dick, esta película utiliza o termo replicante para caraterizar as pessoas automáticas da narrativa. Todavia, Philip K. Dick utiliza o termo andróide no seu romance.

Os replicantes, no entanto, são formados a partir de matéria orgânica geneticamente alterada e incorporam o mesmo conceito dos robôs idealizados por Karel Čapek. Isto é, são fisicamente idênticos aos seres humanos e não possuem absolutamente nada mecânico na sua constituição. Desta maneira, fica evidente o caráter múltiplo e refutável das palavras criadas para designar pessoas automáticas.

O caráter subjetivo destes seres artificiais pode ser apreendido, primeiramente, como a génese do sujeito e a sua relação com o mundo e os avanços tecnológicos. Sendo, portanto, um reinventar constante de aspectos como a vida, os valores, a existência, as éticas e estéticas (Rosário e Aguiar, 2006). De acordo com Parente (apud Rosário e Aguiar, 2006, s/p), a subjetividade é

engendrada, produzida, pelas redes e campos de força sociais. Por um lado, o sujeito é processual e não uma essência ou uma natureza: não há sujeito, mas processo de subjetivação. Por outro lado, a subjetivação é o processo pelo qual os indivíduos e coletividades se constituem como sujeitos, ou seja, só valem na medida em que resistem e escapam tanto aos poderes quanto aos saberes constituídos.

No entanto, ressaltamos que estes termos utilizados para designar pessoas automáticas podem ter diferentes significações e estão longe de serem consensuais, seja no campo científico, no campo literário ou no campo cinematográfico, visto que a subjetividade e as tecnologias podem ser alteradas de forma sincrónica e diacrónica. Hall (apud Bicca e Wortmann, 2010, pp. 41-42) contribui com este pensamento ao afirmar que,

damos significados às coisas através da forma como as representamos, ou seja, através das histórias que contamos acerca dessas mesmas coisas, bem como através das imagens que produzimos, das emoções que associamos a elas, além da forma como as classificamos ou do valor que a essas atribuímos.

Na continuidade de diálogo com esta reflexão, no próximo tópico iremos abordar o surgimento do termo ciborgue e o caráter múltiplo desta palavra.

3.3 - As diferentes acepções do ciborgue

À medida em que a capacidade humana de produzir signos é criada "devido à necessidade humana de extrassomatização, de expor ao mundo o que pensa"

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(Martins, Aguiar e Paiva, 2010, p. 2), surge outro termo para designar um ser artificial: o ciborgue.

Criado pelos cientistas Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, o termo cyborg – neologismo de cyb(ernetic) + org(anism) –, teve a sua primeira aparição em setembro de 1960, num artigo publicado no periódico Astronautics. Estes pesquisadores propõem a palavra ciborgue para descrever um corpo humano autorregulado que seria alterado física e quimicamente para adaptar-se ao ambiente espacial, transformando-se num composto de homem e máquina, transformando-sendo uma espécie de super-homem. Segundo os próprios criadores deste termo:

The Cyborg deliberately incorporates exogenous components extending the self-regulatory control function of the organism in order to adapt it to new environments. If man in space, in addition to flying his vehicle, must continuously be checking on things and making adjustments merely in order to keep himself alive, he becomes a slave to the machine. The purpose of the Cyborg, as well as his own homeostatic systems, is to provide an organizational system in which such robot-like problems are taken care of automatically and unconsciously, leaving man free to explore, to create, to think, and to feel (Clynes e Kline, 1960, p. 27)6.

Com isto, o termo criado por Clynes e Kline para designar um organismo cibernético já vislumbrava a alteração do ser humano para poder adaptar-se a diferentes ambientes e contornar as adversidades neurológicas e fisiológicas do corpo humano (Thomas, 1995). Deste modo, o astronauta teria mais autonomia. Ficaria mais livre para explorar e criar, sem se preocupar com controlar a nave no intuito apenas de manter-se vivo. Parte deste conceito está relacionado com o período histórico que ficou conhecido por Corrida Espacial, iniciado durante os finais da década de 50 até a década de 70. Protagonizada pelos Estados Unidos e pela União Soviética, ambas as potências disputavam a supremacia tecnológica espacial, e, como consequência, os estudos que envolviam novas formas do conceito de "homem no espaço" foram sendo cada vez mais aprofundados.

Vinte e cinco anos mais tarde, a ensaísta e filósofa Donna Haraway publica em 1985 o conhecido A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. Contudo, o conceito criado por Haraway compreende

6 “O Ciborgue incorpora de forma propositada componentes exógenos estendendo a função de controlo autorreguladora

do organismo de forma a adaptá-lo a novos ambientes. Se o homem no espaço, para além de comandar o seu veículo, tiver que estar continuamente a verificar o estado das coisas e a fazer ajustamentos meramente para se manter vivo, torna-se um escravo da máquina. O propósito do Ciborgue, assim como o do seu próprio sistema homeostático, é providenciar um sistema organizacional em que tais problemas típicos de robôs sejam resolvidos de forma automática e inconsciente, permitindo ao homem explorar, criar, pensar e sentir” (tradução nossa).

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o ciborgue não só como um organismo cibernético, híbrido de máquina e organismo, mas como uma criatura pertencente não só à realidade social, como também à ficção (Haraway, 1985). Segundo Thomas (1995), Haraway se apropria da ressonância polissémica da palavra ciborgue para criar uma estratégia retórica, um método político, e uma proposta social.

A partir de discursos feministas e socialistas, o conceito de ciborgue defendido por Haraway, diferentemente do termo iniciado por Clynes e Kline, não concebe o ciborgue como um super-homem, mas como o resultado de uma sociedade capitalista que caminha em simultâneo com a tecnologia. Dessa maneira, defende que o ciborgue pode ser compreendido como uma ficção que organiza nossa realidade social e corporal e, como recurso imaginativo, manifesta algumas junções muito férteis (Haraway, 1985).

Para Haraway (1985), o seu ciborgue representa a ideia de transgressão de alguns limites que podem ser explorados como parte de um trabalho político necessário. Este devir está intimamente associado à alta tecnologia e à cultura científica. Esta subjetividade abre possibilidades para a autoconstrução (ou desconstrução) do ser humano e desafia algumas dicotomoias, tais como: natural vs. artificial, biológico vs. tecnológico, orgânico vs. inorgânico, e permite dar possibilidades às novas e complexas questões a respeito da condição humana.

A proposta defendida por Haraway está bastante próxima das representações cinematográficas de ciborgues. Por esta razão, iremos adotar e compreender o ciborgue como a figura que melhor apresenta a fronteira entre o mundo factual e o mundo ficcional, como veremos nos tópicos mais à frente.

No tópico a seguir, iremos abordar as películas que apresentam as primeiras representações cinematográficas de personagens automáticas e o contexto histórico, económico e social em que se encontram.

4 - A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E METRÓPOLIS

Durante a primeira metade do século XX, tanto a literatura de ficção científica quanto as produções fílmicas deste género não tinham tanto prestígio por serem consideradas um produto da cultura de massas. Entretanto, o cinema de ficção científica ‒ bem como as produções literárias ‒ tiveram uma mudança de paradigma a partir de 1927, com o lançamento do filme Metrópolis, que representou pela

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primeira vez no cinema uma personagem artificial que, posteriormente, assumiria a forma humana idêntica à personagem Maria.

Realizado por Fritz Lang e com o argumento assinado por sua esposa Thea von Harbou, a narrativa tem como cenário o ano de 2026 ‒ um século posterior à época em que foi produzido ‒ e se passa em Metrópolis, uma cidade em que as pessoas são divididas entre a elite, que vive na superfície da cidade ‒ onde há o Jardim dos Prazeres –, e os operários e na parte subterrânea, estão os operários, que vivem na Cidade dos Trabalhadores subterrânea. Esta estruturação de espaço é muito antiga. Relembramos muito rapidamente a caverna na República de Platão, Nova Jerusalém do livro bíblico do Apocalipse, e, no século XIX, o mundo dos Elóis e Morloques de The Time Machine, de H.G. Wells.

O grande governante da cidade, Joh Fredersen, é o responsável pelo funcionamento das máquinas, que são de extrema importância para sustentar as necessidades de Metrópolis. Contudo, para isto resultar, os trabalhadores vivem em regime de semiescravidão, sendo tratados como máquinas e não como seres humanos. Nessa via, Metrópolis (1927), é pioneiro ao abordar a questão da mecanização do homem e ao exibir os operários como seres despersonalizados e escravos da máquina. Como afirma Oliveira (2003, p. 180), a Revolução Industrial "mostra o potencial da expansão técnica como instrumento que pode ajudar a emancipar o indivíduo ou submetê-lo à dominação". Deste modo, estas produções artísticas refletem o imaginário da época e alertam para o sistema de produção desenfreada, marcado pela consolidação do capitalismo.

Posteriormente, a fim de tentar decifrar um bilhete descoberto no bolso de um dos operários mortos num dos acidentes habituais na fábrica, Joh Fredersen decide visitar o cientista e inventor Rotwang, e este revela uma invenção fantástica: uma máquina com aparência humanóide, que se assemelhava à imagem de Hel – esposa já falecida de Joh Fredersen, por quem Rotwang era apaixonado. Contudo, para que este ser mecânico ganhasse vida era preciso que alguém lhe emprestasse a sua aparência humana.

Na altura em que a película foi lançada, a palavra robô não havia sido adotada

pela narrativa. A personagem automática foi designada por Maschinenmensch, que

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a palavra homem-máquina para designar esta personagem. No entanto, a nosso ver, pode ser entedida como um robô ginóide por apresentar uma constituição física com traços femininos − formas acentuadas para os lábios, os seios e as ancas, semelhantes as de uma pessoa do género feminino. Todavia, o que difere os robôs humanóides dos andróides é que os primeiros são facilmente identificáveis como seres não-humanos.

Nesse sentido, podemos notar pela imagem abaixo que a personagem possui uma aparência de metal, semelhante à de uma armadura. Esta personagem apresenta movimentos muito limitados e não apresenta movimentos faciais. Por ser uma película datada da época do cinema mudo, não é possível imaginar que voz teria a personagem. Isto é, mesmo com o recurso do texto assinalado para as persoangens que possuíam fala, esta personagem – enquanto máquina – não possuía o dom da fala.

Imagem 2

A criatura homem-máquina do filme Metrópolis (1927)7

Após decifrarem o bilhete, Rotwang e Joh Fredersen vão disfarçados até à catacumba onde estava Maria, que discursava e inspirava os operários a se libertarem do regime opressor em que viviam. Ao sentir que o seu império poderia ser ameaçado com uma revolta dos operários, Joh Fredersen decide dar à máquina as feições de Maria.

7 Fonte:

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Dessa maneira, pretendia semear a discórdia e diminuir a confiança que os operários nutriam por ela, almejando assim fazer com que os operários permanecessem numa posição submissa. Para tanto, Rotwang sequestra Maria e realiza a experiência. Numa das cenas mais brilhantes do cinema e com efeitos muito revolucionários à época, a máquina criada por Rotwang passa aos poucos por um processo de transformação, assumindo a forma humana semelhante à de Maria.

Assim, esta personagem automática deixa de ser um humanóide sem fala, sem expressão, com movimentos limitados, e passa por um processo de antropomorfização ao assumir uma forma humana. Desta maneira, a Maria artificial é facilmente confundida com a Maria verdadeira pois apresenta movimentos rápidos, expressões faciais e fala.

Como havíamos mencionado anteriormente, a peça R.U.R. antecipou diversos

temas que, posteriormente, seriam abordados no cinema. A própria Maria artificial representa um protótipo de um novo tipo de trabalhador: um trabalhador mecânico, dócil, incapaz de protestar, que não precisa de ser pago e não tem necessidades físicas e fisiológicas. Antes da Segunda Guerra Mundial, as máquinas eram maioritariamente vistas apenas como criaturas capazes de substituir o homem em trabalhos manuais (Schelde, 1993).

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Início da transformação da máquina8

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Transformação final semelhante a personagem Maria9

Todavia, o cientista Rotwang decide vingar-se de Joh Fredersen por causa de uma mágoa antiga que nutria devido ao facto de Fredersen se ter casado com Hel. Para tanto, ordenou que a Maria automática liderasse a revolta dos operários contra as próprias máquinas e contra Joh Fredersen. Com o caos instaurado, os operários começaram a fugir e as máquinas ‒ que precisavam de seres humanos para serem manipuladas ‒ começaram a entrar em colapso. Os reservatórios de água começam a transbordar e a cidade subterrânea começa a ficar inundada.

Semelhante ao conceito punitivo das invenções e tecnologias presentes no

romance Frankenstein e na peça R.U.R., o filme Metrópolis também faz um alerta

para os perigos do uso excessivo da tecnologia e o seu subsequente declínio, pois a representação cinematográfica, ao mesmo tempo que antecipa uma modernidade tecnológica, presente no imaginário coletivo, também causa fascínio e desconfiança (Paiva, 2007). Contudo, é interessante referir que a Maria artificial não tinha vontade própria, sendo programada para agir de acordo com as ordens de Rotwang. Isto é, não possui a vontade de poder defendida por Nietzsche e a intencionalidade descrita por Searle, e por isso não apresentava um perigo para o seu criador.

No entanto, a personagem automática de Metrópolis apresenta de facto uma

reflexão interessante ao questionar se os seres humanos conseguem distinguir o que é humano e o que é máquina. Isto porque, ao assumir a forma humana, a Maria

9 Fonte: http://assets1.ignimgs.com/vid/thumbnails/user/2013/02/01/maria_1280w.jpg [acedido em 23 de junho de

Referências

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