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A figura de Esopo no romance Vida de Esopo

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Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho”

FCl-ar Araraquara

A figura de Esopo dentro do romance Vida de Esopo

Agosto

2006

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I. Introdução:

A presente dissertação de mestrado centra-se no romance antigo Vida de Esopo, escrito por autor anônimo provavelmente no final do século II. Seu texto original foi totalmente perdido, sendo conhecido somente por fragmentos. O primeiro deles foi descoberto em 1476 por estudiosos europeus e é denominado como Vita Westermanniana ou Vita W. Outros vários fragmentos foram encontrados em cinco papiros diferentes, mas a versão mais completa está num manuscrito encontrado em 1928, cujo nome é Vita Grottaferrata ou Vita G, editada pela primeira vez por B. E. Perry. Pedro Bádenas de la Peña (1978) também se baseou na Vita G, embora tenha inserido passagens da Vita W para preencher suas lacunas, para traduzir a Vida de Esopo para o castelhano, tradução esta que será consultada neste trabalho, assim como será utilizado o texto grego editado por Perry (1952).

Nesse texto serão analisados os elementos picarescos e paródicos, bem como a presença do cômico e do grotesco. Tais elementos se traduzem dentro da obra principalmente através da figura de Esopo, personagem que será focalizado também tendo em vista sua competência discursiva.

Para tanto será necessário, primeiramente, tratar do surgimento do romance, o que significa não só dar conta de todo um contexto histórico que proporcionou bases para que o novo gênero nascesse, mas também mencionar os obstáculos enfrentados pelos teóricos atuais em classificar as inúmeras obras produzidas principalmente por autores gregos e latinos, os quais não se preocuparam em dar um nome a esse conjunto de textos. Será preciso ainda, neste primeiro momento, tratar das principais características do romance antigo, ou seja, descrever seus principais temas, sua estrutura narrativa, as heranças recebidas de outros gêneros literários – como o épico, o dramático e o historiográfico – e definir seu público leitor.

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Assim, depois dessa primeira parte que se faz importante na medida em que localiza a obra Vida de Esopo como sendo parte de um todo, tratar-se-á das peculiaridades desta última, e para isso, esta segunda parte da dissertação será composta de seis capítulos.

O primeiro deles terá o objetivo de fazer com que o leitor deste trabalho compartilhe o enredo da obra em questão, e o segundo capítulo tratará da época em que foi escrito e das influências que sofreu de outros romances, no que diz respeito a temas, personagens e episódios.

O capítulo seguinte sugerirá a presença, no texto estudado, de uma paródia à obra de Plutarco O banquete dos sete sábios, estudada dentro do gênero literário do simpósio. Tal análise exigirá, em primeiro lugar, a apresentação dessa obra para posteriormente justificar a ligação com o romance Vida de Esopo. O conceito de paródia seguirá as reflexões de Edward Lopes (1994) e de Leonor Lopes Fávero (1994).

O quarto capítulo tratará da possível ligação do romance Vida de Esopo com o gênero picaresco, principalmente com a obra Lazarillo de Tormes, também escrita por autor anônimo e editada em 1554. Tal estudo terá como base a teoria de Mario González (1988) sobre o romance picaresco.

O quinto capítulo destacará os elementos do cômico e do grotesco na obra. Para isso serão consultados os textos de Bergson (1983) e Propp (1992) – no que diz respeito ao cômico – e de Bahktin (1993) e Kayser (2003) para tratar do grotesco.

O último capítulo estudará a habilidade discursiva de Esopo e para tanto serão analisados os tipos textuais produzidos por ele, tendo em vista a sua estrutura textual e seus objetivos comunicacionais nas diferentes situações em que aparecem no decorrer da história. Essa análise exigirá o recurso a textos teóricos sobre a pragmática discursiva que permitam o estudo das estruturas textuais e das intenções comunicativas dos discursos produzidos por Esopo. Dentre esses últimos, citam-se o artigo de Susan Suleiman (1977), que destaca o componente pragmático

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de textos alegóricos como a fábula, e o de Alceu Dias Lima (1984), que descreve a estrutura discursiva da fábula como uma tríade composta de discurso narrativo, metalingüístico e moral. A descrição da função comunicativa dos diferentes tipos discursivos enunciados por Esopo será feita de acordo com as categorias ilocucionárias propostas por J. L. Austin (1990).

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1. O Romance Antigo

1.1 Breve Contextualização Histórica

Depois de ter conquistado um vasto império, Alexandre, o Grande, não viveu para solucionar o problema de unificá-lo, tarefa esta que, na verdade, não seria menos difícil se o ambicioso conquistador não tivesse morrido tão repentinamente1. Vários foram os generais que tentaram ser o governante supremo de um império uno, porém, depois de inúmeras disputas chegou-se à conclusão de que seria impossível unir regiões tão diversas entre si e decidir dentre os muitos que se julgavam herdeiros de Alexandre, aquele que seria realmente merecedor. Dessa forma houve uma divisão das regiões em inúmeros reinos, dentre os quais os mais importantes eram o dos Antigônidas, que tinham a Macedônia e parte da Grécia; o dos Selêucidas, que possuíam a maior parte da Ásia; e o dos Ptolomeus, que ficaram com o Egito e com a Líbia.

De acordo com Hugh Lloyd-Jones (1965, p.236) cada um desses reinos ganhou um governante e todos eles declararam-se como sucessores legítimos da monarquia antiga local. Dessa forma, tomavam para si e para seus herdeiros todos os direitos e privilégios de um verdadeiro soberano.

A Grécia teve suas cidades divididas em federações, que não eram mais independentes. A única que conseguiu manter certa autonomia foi Esparta. Isto se explica pois esta cidade, segundo Peter Jones (1997, p. 40), no período clássico, alcançou sua hegemonia quando finalmente derrotou Atenas na longa Guerra do Peloponeso. Claro que este fator a ajudou a se manter forte mesmo depois das conquistas sofridas. Porém, Atenas não reagiu igualmente e já enfraquecida não suportou e foi subjugada pelo exército de Alexandre. Muitas foram as tentativas de resgatar sua independência, todavia todas frustradas. Tudo isso representou para Atenas uma regressão,

1 Alexandre adoeceu e morreu aos 32 anos depois de ter conquistado um reino que ia do mar Jônio até o Punjab e do Cáucaso às fronteiras da Etiópia. Porém não conseguiu completar a ambição de unir o império Macedônio ao Persa e formar uma nova dinastia.

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principalmente no que diz respeito à política, já que esta cidade havia deixado de honrar a figura do rei desde o período arcaico, para honrar as leis de uma democracia justa e que agora era banida.

Atenas também deixa de ser o principal eixo político-econômico-cultural, cedendo seu lugar a Alexandria, cidade fundada no Egito por Alexandre.

Maria Helena da Rocha Pereira (1979, p.335), Lloyd-Jones (1965) e Rostovtzeff (1977, 265) concordam que, embora o tempo da independência política tenha passado, em relação à cultura a Grécia ainda era a senhora. Daí este período ter recebido o nome de Helenístico ou

Elenisthés que designa quem partilha da língua e da cultura gregas.

Esta força da cultura grega pode ser explicada pelo grande respeito e admiração que sempre cativou nos demais povos. Inclusive Alexandre foi criado nos moldes gregos. Porém, se por um lado a cultura foi mantida autêntica, de outro as fronteiras da pólis tinham sido derrubadas, e isto significou para os gregos a quebra de alguns conceitos. Um deles foi o de que a Grécia seria o centro do mundo e que nada mais haveria depois dos muros da cidade. Outro conceito que foi mudado era o de que a pólis, com toda a sua organização pública, forneceria a segurança de que o cidadão precisava. Desse modo, sem a proteção da pólis, o homem grego sentiu-se inseguro diante dos novos horizontes e foi buscar abrigo no seio da família.

Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (1979, p.440):

“Agora, o polithésnão era o participante em potência na governação de sua cidade, mas o indivíduo no meio de uma desnorteante variedade de raças e culturas”.

É evidente que todo esse contexto acabou por influenciar não só a filosofia, mas também a arte, em especial a literatura. De acordo com Jacqueline de Romilly (1984, p.230), o tempo das eclosões criadoras havia passado, mas a literatura ainda produzia gêneros novos, com interesse

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voltado para o indivíduo, sua psicologia e suas aventuras, o que gerou, de um lado a biografia e do outro a narração fictícia: o Romance Antigo.

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1.2Esclarecimentos Preliminares.

Quando se fala em Romance Antigo2, em princípio o que chama a atenção é o próprio uso do termo “romance”, já que este surgiu muito tempo depois das ficções em prosa, gregas e latinas, terem sido escritas. O fato é que a Antigüidade não sentiu que era preciso classificar essas obras, o que acabou por se tornar, séculos depois, um problema que divide os estudiosos do assunto. Alguns se recusam a usar esse termo, como é o caso de Heiserman (1977 apud SCHMELING, 2003, p.01) que se refere aos textos antigos como “proto-romances”. A escolha dessa designação pode ser explicada pelo fato de que, para Heiserman, e outros pesquisadores da Literatura Inglesa, notadamente Ian Watt (1952 apud SCHMELING, 2003, p.01) e J. Paul Hunter (1994 apud SCHMELING, 2003, p.02), a definição de romance teria sido criada pela classe média inglesa, portanto qualquer obra escrita antes dessa realização ficaria excluída do gênero.

Este argumento foi contestado por inúmeros estudiosos dentre eles Tatum (1994 apud SCHMELING, 2003, p.02), que acredita que Heiserman, Watt e Hunter:

“[...] isolaram-se dentro de uma literatura nacional, protegeram seu campo mantendo os outros longe dele e protegeram seu poder controlando o nome de um gênero”.3

M. Doody (1996 apud SCHMELING, 2003, p.01) compartilha a crítica feita por Tatum e ainda acrescenta que o romance “é de fato produto da mente greco-romana”.4 Juntam-se a Doody, dentre outros, Frye (1976 apud SCHMELING, 2003, p.02), Niklas Holzberg (1995) e Gareth Schmeling (2003) que se referem aos textos gregos e latinos como romances. Para tanto,

2 Alguns autores chamam os Romances Antigos de Romances Gregos, porém, como existem textos escritos em latim preferiu-se, neste trabalho, utilizar a primeira classificação em detrimento da segunda.

3

“[…] isolated themselves within one national literature, protected their turf by keeping others away from it and protected their power by controlling the name of a genre.” Observação: as traduções de textos teóricos serão feitas, ao longo do trabalho, por mim e seus originais em língua estrangeira estarão disponíveis em notas de rodapé para eventual confronto.

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Schmeling baseia-se nas definições de E. F. Foster (1974 apud SCHMELING, 2003, p.02) e do

Oxford English Dictionary (apud SCHMELING, 2003, p.02) respectivamente:

“Talvez nós devêssemos definir o que um romance é antes de começar... É... ‘uma ficção em prosa com uma certa extensão’....”

“[...] prosa narrativa ficcional ou história de considerável extensão na qual personagens e ações representativas da vida real do tempo passado ou presente são retratadas num enredo de maior ou menor complexidade.”5

Na verdade, essa discussão sobre como os textos antigos devem ser referidos acaba “herdando” um problema atual: a própria complexidade que se encontra na definição do que é o romance. Como este não é o objetivo que se busca nessa pesquisa, fica-se com o termo adotado pela maioria dos estudiosos, que, apesar de concordarem ser um termo anacrônico, levam em consideração as similaridades existentes entre os romances medievais e modernos e os antigos.

Portanto, ao longo desse trabalho, também será aplicado o termo “romance” que poderá equivaler a prosa ficcional antiga.

Outro aspecto que salta aos olhos é o fato de o romance antigo ter sido considerado, durante muito tempo, uma literatura decadente, fruto de uma época decadente. Segundo Gareth Schmeling (2003, p.03) somente nos últimos vinte e cinco anos é que o romance antigo passou a despertar o interesse e o respeito de estudiosos, não só de literatura, mas também de história e de religião, que viram nesses textos uma fonte rica de informações.

É preciso, ainda, que se ressalte um ponto problemático em relação ao Romance Antigo: a dificuldade em encontrar um critério para situar os muitos e variados textos escritos num único

5

“Perhaps we ought to define what a novel is before starting…It is...a ‘fiction in prose of a certain extent’...” “...fictitious prose narrative or tale of considerable length in which characters and actions representative of the real life of past or present times are portrayed in a plot of more or less complexity”

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grupo homogêneo. Niklas Holzberg (2003 apud SCHMELING, 2003, p. 11) em seu capítulo “The Genre: Novels Proper and the Fringe” discute essa questão, apresentando não só seu argumento, mas os de autores que considera importantes. Serão expostas a seguir as informações que foram extraídas dele.

O primeiro a expor uma classificação dos diversos tipos de romance, de acordo com Holzberg (2003) foi Rudolf Helm’s, que organizou os textos em oito grupos: romances históricos, romances mitológicos, romances de viagem e utopias, romances eróticos, romances cristãos, biografias, paródias dos romances e romances cômico-satíricos. Para Helm’s, todos esses textos poderiam ser inseridos num único gênero, pois, segundo ele, ainda que sejam tão heterogêneos; teriam se originado de uma mesma raiz. Entretanto ele não se fixou na discussão dessa origem comum.

Heinrich Kuch também não se preocupou em responder a essa questão, mas seu estudo é importante na medida em que procura explicar a grande diversidade de textos, à luz das mudanças sócio-econômicas. Segundo ele, cada romance foi escrito num determinado momento e isso determinou a disparidade entre eles.

Enquanto Kuch e Helm’s debruçaram-se no que havia de diferente entre os romances antigos, Wehrli e Perry avançavam nos seus estudos, enfocando o que havia de igual. Dessa forma centrando sua pesquisa no tema e na estrutura narrativa utilizada, concluíram que havia muitas semelhanças entre os romances Quéreas e Calirroé de Cáriton, As Efesíacas, de Xenofonte de Éfeso, Leucipa e Clitofonte, de Aquiles Tácio, Dáfnis e Cloé, de Longo e As

Etiópicas de Heliodoro. Esses cinco textos estão completos, mas somam-se a eles ainda mais oito

fragmentos: Nino e Semíramis, Sesonchosis, Metíoco e Partenope, Megamedes e Quíone,

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romances idealistas e possuem o mesmo enredo: contam a história de um casal que se apaixona e enfrenta inúmeras adversidades para ficarem juntos.

Além dos romances idealistas haveria também os cômico-realistas, que dialogam com os primeiros por se caracterizarem como uma espécie de sátira deles. Este grupo seria representado por obras como: Satíricon, de Petrônio, Iolaus e Romance do Asno, ambos de Luciano e

Metamorfoses ou Asno de Ouro de Apuleio.

Assim, para Wehrli e Perry, somente esses dois grupos poderiam, pelas características que compartilham, constituir um gênero.

Como conseqüência, os demais textos ficaram conhecidos como romances periféricos6 e foram subdivididos em Biografias Ficcionais, Romances de Viagem Fantástica ou Utopia, Romances Epistolares, Romances Troianos e Romances de Cristianismo Primitivo.

Muitos estudiosos não concordam com esta divisão, que consideram radical, e defendem a inclusão dos romances periféricos no gênero. No entanto, segundo Holzberg (2003), mais importante que questionar essa teoria é procurar entender e considerar o que os críticos da Antigüidade pensavam desses textos.

Uma das poucas informações que se tem sobre esse assunto é que os antigos costumavam distinguir as obras de acordo com a verdade contida nelas. Dessa forma, Holzberg (2003) apresenta três grupos: as obras que desviavam da realidade ou eram inteiramente irreais; obras que tratavam do real e obras que eram inventadas, mas que mesmo assim pareciam muito reais.

Diante de tal divisão, fica claro que os críticos da Antiguidade descartavam a hipótese da existência de um único grupo, no qual estariam inseridos todos os romances. Dessa forma, cabe questionar como os textos foram distribuídos nessa classificação. A resposta pode ser encontrada

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na seguinte citação que Holzberg (2003, p. 15) apresenta do comentário de Macrobius, constante da obra Somnium Scipionis (1.2.7 –8):

Fabulae, quarum nomen indicat falsi professionem, aut tantum conciliandae auribus voluptatis, aut adhortationis quoque in bonam frugem gratia repertae sunt. Auditum mulcent vel comoediae, quales Menander eiusve imitatores agendas dederunt, vel argumenta fictis casibus amatorum referta, quibus vel multum se Arbiter exercuit vel Apuleium non numquam lusisse miramur. Hoc totum fabularum genus, quod solas aurium delicias profitetur, e sacrário suo in nutricum cunas sapientiae tractatus eliminat.

As histórias das quais a maioria dos títulos tratam de eventos fictícios eram feitas simplesmente para entreter seu público ou também com o propósito de dar conselhos práticos. O ouvido era agradado por comédias tais como as encenadas por Menandro e imitadores, ou por narrativas fictícias cheias de aventura de amantes, um tema sobre o qual Petrônio freqüentemente lançava mão e que até Apuleio, como notamos com espanto, encenava na ocasião. O objetivo de toda essa classe de histórias é entreter o público, um tratado filosófico é banido de seu santuário para o berço das amas.7

Segundo Holzberg (2003), o termo que Macrobius utiliza para narrativa ficcional é

argumenta fictis e as obras que ele considera como fazendo parte desse termo são as que tratam

de amor e de aventura, juntamente com as de Petrônio e Apuleio. Portanto a teoria literária antiga considerava que os romances idealistas e os cômico-realistas fazia parte de um mesmo fabularum

genus e que se caracterizam por serem histórias inventadas com o único objetivo de entreter o

público, definição essa que as insere no terceiro grupo e no que, modernamente, o dicionário

Oxford apresenta como romance.

7

The stories of which the very title points to an account of fictional events were made up either purely to entertain their audiences or also for the purpose of giving practical advice. The ear is pleased by comedies such as those staged by Menander and imitators, or by narratives full of the fictional adventures of lovers, a theme which Petronius frequently tried his hand at and which even Apuleius, as we note with amazement, played with on occasion. This whole class of stories, the sole aim of which is entertain the audience, a philosophical treatise banishes from is sanctuary to nannies’ cradles.

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Ainda que se possa ter elucidado, através das palavras de Macrobius, uma parte do problema, permanece a dúvida sobre os demais textos. A hipótese de Holzberg (2003) é que os Romances Troianos e os de Viagem Fantástica ou Utopia seriam considerados, baseado em seus temas, como irreais, já que os primeiros tratavam da guerra de Tróia, portanto de fatos mitológicos, e os últimos falavam de lugares e povos perfeitos, ou seja, como o próprio nome já diz, utópicos.

As Biografias Ficcionais, os Romances Epistolares e de Cristianismo Primitivo pertenceriam por sua vez à categoria das obras que relatam fatos reais. Muito provavelmente, por falarem de personagens que realmente existiram (como Alexandre, Ciro, Platão, etc) e por uma certa ignorância dos leitores em relação à história, a ficção que se mistura nessas obras não teria sido percebida.

Na verdade, os autores dos romances não deixavam evidentes os limites entre o real e o ficcional. Um exemplo disso é que muitas vezes nos romances idealistas, aparecem nomes de pessoas e menção a fatos que são históricos. Em Quéreas e Calirroé, há a referência ao general Hermócrates e ao imperador da Pérsia Artaxerxes II, em Nino e Semíramis o protagonista Nino é uma figura histórica assim como Sesonchosis. Aquiles Tácio por sua vez não utiliza nomes, mas escreve em primeira pessoa, procurando assim imbuir seu personagem de maior credibilidade.

Os romances considerados reais por sua vez se utilizam da ficção, como é o caso da obra

Vida de Esopo, na qual Esopo aparece recebendo o dom da fala das mãos da deusa Ísis, ou seja,

uma figura mitológica dentro de um texto lido como real.

Para Holzberg (2003), quando na ficção eram inseridos aspectos da realidade, representados não só por nomes ou fatos que aconteceram, mas também por uma certa verossimilhança, isso era feito com o objetivo de fazer com os leitores acreditassem que tudo pelo qual os protagonistas passavam, poderia acontecer com eles também.

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O mesmo pode-se dizer de romances como o Romance de Alexandre, uma biografia ficcional que, apesar de falar de um homem que existiu, coloca-o em situações ficcionais que o aproximam do leitor.

“Mas mesmo leitores sem qualquer voz política encontrariam este Alexandre enfrentando situações que poderiam imaginar facilmente para eles mesmos”.8 (HOLZBERG, 2003, p. 21)

Desse modo, segundo Holzberg esse jogo entre realidade/ficção que os autores buscavam, tinha o objetivo de atingir a necessidade de um público perdido e impotente diante das mudanças político-sociais, ou seja, um homem não mais protegido nem responsável pela pólis.

Portanto, essa característica escapista seria, ainda segundo Holzberg, comum a todos os romances:

[...] nós podemos dizer agora que, na mesma medida que os ‘romances idealistas’ como Quérias e Calirroé, as biografias ficcionais, os romances epistolares e os relatos feitos por testemunhas ficcionais sobre a Guerra de Tróia das épocas Helenística tardia e Imperial foram todos projetados para satisfazer uma necessidade bem específica do consumidor… ( ibid, p. 26)9

E já que nosso levantamento de textos nos mostra agora que os dois tipos de escrito pseudo-histórico são comparáveis em seu efeito pretendido, nós não temos razão para não empregar a classificação de ‘romance’ também para as biografias ficcionais, ‘romances epistolares’ e relatos feitos por testemunhas ficcionais sobre Tróia, ao invés de confiná-los no grupo dos ‘periféricos’.(ibid, p.27)10

8

“But even readers without any political voice would find this Alexander facing situations which they could easily picture for themselves...”

9

“...we can now say that, in the same measure as ‘idealistic novels’ like Chariton’s Callirhoe, the fictional biographies, the ‘letter-books’ and the fictional eye-witness reports of the Trojan War from late Hellenistic and Imperial times are all designed to meet quiet specific consumer needs…”

10

“And since our survey of the texts has now shown us that both types of pseudo-historical writing are comparable in their intended effect, we have no reason not to attach the label ‘novel’ to the fictional biographies, ‘letter-books’ and fictional eye-witness reports from Troy as well, rather than confining them to the ‘fringe’”.

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Porém, mesmo que Holzberg (2003) tenha encontrado uma característica comum a todos os romances e que isso os torne parte de um mesmo gênero, ele próprio repete o argumento de que os críticos e leitores da Antiguidade devem ser considerados, e eles não viam entre os textos semelhanças as quais os fizessem constituir um único grupo. Para eles, alguns eram inventados, mas continuavam verossímeis, outros eram irreais e outros reais. Somente os leitores que tinham um grande conhecimento de história e literatura é que conseguiam apreciar o jogo entre realidade/ficção e entender sua finalidade.

“E no entanto, paradoxal como pode parecer, estes poucos eruditos – entre eles os próprios teóricos literários – estes leitores que sozinhos poderiam ter feito a conexão, não julgaram mesmo necessário dar um nome ao gênero.” (ibid, p. 27)11

Dessa forma, Holzberg conclui:

“No final das contas, então, os únicos textos que nós podemos classificar corretamente como romance são aqueles que a maioria dos leitores antigos teriam entendido como ficção, na mesma definição teórica de argumenteum”. (ibid, p.28)12

Portanto, aqui serão adotadas as definições tradicionais do romance antigo, as quais serão mais detalhadamente descritas a seguir.

11

“And yet, paradoxical as it may seem, these erudite few – amongst them the literary theorists themselves – these readers who alone could have made the connection, did not even deem it necessary to give the genre a name.”

12

“In the final count, then, the only texts that we can properly class as novels are those which the majority of ancient readers will have understood as fiction in the same of the theoretical definition argumentum.”

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1.3 Características principais do Romance Antigo e suas divisões.

O romance Ocidental nasceu no século I a.C. e sobreviveu até o século IV d.C., duração bastante ampla se se compara com a vigência das formas dramáticas, por exemplo. Percebe-se por esta data que o romance viveu muito mais tempo sob o período imperial ou romano, que sob o período helenístico. Porém, as alterações que este último provocou na vida social e na arte foram tão decisivas que acabaram por definir as características não só de seu tempo, mas dos futuros também.

A maioria dos textos foi escrita originalmente em grego, mesmo sendo seus autores de sangue oriental. Para dar exemplos, segundo Heinrich Kuch (1989 apud SCHMELING, 2003, p.211), Cáriton e Xenofonte de Éfeso viviam na Ásia Menor. Aquiles Tácio era egípcio, Heliodoro e Luciano eram sírios e Jâmblico (autor d’As Babilônicas) não se sabe ao certo se veio da Babilônia ou da Síria. Tal escolha feita por autores não-gregos é explicada pelo fato de que, como já foi dito anteriormente, a Grécia ainda era a senhora no que dizia respeito à cultura. Dessa forma, aponta Gual (1988) que escolas gregas onde se ensinavam desde as primeiras letras até os exercícios retóricos mais complicados podiam ser encontradas nas principais cidades helenísticas. Como conseqüência de tal difusão, a língua grega acabou sendo adotada como oficial. Assim, se os autores quisessem gozar de popularidade teriam que escrever em grego. E foi isso que fizeram, com exceção de Petrônio e Apuleio que utilizaram o latim.

As primeiras manifestações do romance se perderam, como provam alusões de outros escritores e fragmentos de papiros. Os que foram resgatados, como já foi dito anteriormente, foram divididos em romances idealistas, romances cômico-realistas, e romances periféricos.

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1.3.1 Romances Idealistas e Cômico-Realistas.

Perry (1967 apud HOLZBERG, 2003, p. 12) e Wehrli (1965 apud HOLZBERG, 2003, p. 13.) e os teóricos antigos concordam, mesmo que com pontos de vista diferentes, que esse é um grupo homogêneo, e por esse motivo são considerados como os verdadeiros romances antigos. Holzberg (2003), apesar de possuir uma outra teoria, adota essa divisão por achar importante considerar o que os leitores e críticos da Antiguidade pensavam sobre esses textos.

Seguindo essa mesma linha de pensamento buscar-se-á, nesse momento, descrever as características que são comuns às obras que fazem parte desse grupo.

A respeito dos romances idealistas, um comentário já foi feito: o enredo delas é quase sempre o mesmo. É a história de um casal jovem, de beleza incomparável, e que provém de famílias distintas. Estes jovens se apaixonam à primeira vista e ao noivarem ou logo após se casarem, são raptados e separados (isto geralmente acontece como um castigo enviado por algum deus ofendido pela hýbris, ou do rapaz, ou da moça). Inicia-se assim uma longa jornada, e o casal enfrenta tempestades em alto-mar, naufrágios, assaltos de piratas, e o perigo sempre iminente de serem assassinados ou violentados. Desse modo, passam anos em terras estrangeiras e exóticas, vivendo como escravos a serviço de ricos senhores ou senhoras, que os cobiçam por sua beleza. Mesmo assim, conservam o juramento que fizeram mutuamente de serem sempre fiéis um ao outro e, para continuarem castos, não descartam o suicídio. Ao final da história, o casal se reencontra, volta para o país onde nasceu e passa a viver uma vida abençoada ao lado dos seus.

Dentro deste enredo encontram-se, de acordo com Carlos Miralles (1968, p.52) os três fatores especialmente importantes para o esquema argumental dos romances antigos: a beleza dos heróis, o amor e as viagens.

Praticamente em todas as obras, o que diferencia os heróis dos outros personagens é sua beleza corporal considerada divina. As heroínas são comparadas com Ártemis e Afrodite, e

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muitas vezes chegam a ser adoradas como se fossem as próprias deusas. Já os rapazes são descritos como Aquiles, como Hipólito ou como Alcibíades, todos símbolos de beleza.

Porém, se por um lado a perfeição física é milagrosa, pois causa a piedade de muitos nos momentos difíceis, por outro é uma desgraça, já que atrai os desejos mais infames e a inveja dos que cercam o casal.

García Gual (1988; p.129) justifica esta busca por parte do autor pela beleza da seguinte maneira: “Porque a beleza é, mais universalmente que a glória, a cultura ou a bondade, um ideal popular”.13

Já Miralles (1968, p.52) acredita que a criação desses personagens ideais se explica pelo próprio amor ideal que vivem:

“[...] tendo o romance, como leit-motiv gerador o amor de ambos protagonistas, é normal que o autor se preocupe em fazê-los, se não psicologicamente, ao menos sim fisicamente, o mais idôneos possível para o amor”.14

O amor, segundo fator citado por Miralles, é o tema helenístico por excelência. Como já foi dito anteriormente, o homem grego foi buscar abrigo no seio da família porque a pólis já não garantia sua segurança. Sem interesse pelos assuntos comuns da cidade, o patriotismo já não existe e, portanto não inspira mais a arte. O amor então passa a ser a preocupação do indivíduo exilado em sua intimidade. O casal refugiado se une para enfrentar um mundo que se tornou hostil, e a felicidade não é mais adquirida no convívio com a sociedade, já que esta passa a ser mero pano de fundo na vida conjugal.

13

“Porque la belleza es, más universalmente que la gloria, la cultura o la bondad, un ideal popular.”

14

“[...] teniendo la novela, como leit-motiv generador, el amor de ambos protagonistas, es normal que el autor se preocupe por hacerlos, si no psicológicamente, al menos sí físicamente, lo más idóneos posible para el amor.”

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Essa predileção pelo tema amoroso é fruto também da maior valorização da mulher. Esta começa a ser vista pelo homem como uma companheira, e não mais como um castigo enviado por Zeus, segundo acreditava a tradição mítica clássica. Assim, a importância da figura feminina dentro da família, e como leitora de romances influenciou não só o tema, mas a maneira de tratá-lo15. Poucos romances se atreveram a não falar do amor e este sentimento aparece mais espiritualizado, mais “romântico”.

É o amor a força que faz agir o casal protagonista. Por ele abandonam-se os pais e até os filhos. Os vilões também atuam pela influência da paixão, seja raptando, planejando a morte do rival ou tentando violentar suas vítimas. Porém o estupro nunca é de fato realizado, tendo em vista que ao tema do amor está ligado o da castidade, exigida tanto para a mulher quanto para o homem.

Ao resistir a todas as seduções e escapar de todas as investidas o casal casto ganha, no final feliz, sua recompensa; uma vida conjugal abençoada. Dessa maneira, o romance sugere que todas as atribulações são vividas antes do casamento, porque depois impera a tranqüilidade da vida amorosa.

O último dos três fatores é a viagem. Os protagonistas conhecem terras estrangeiras que são, muitas vezes, cuidadosamente descritas pelos autores. Isto mostra que não só a Grécia se abriu para o mundo, mas o mundo para a Grécia. Ou seja, o conhecimento de outros povos e outras culturas passa a ser ingrediente obrigatório dentro do novo gênero, que começa a abranger o público de uma sociedade mais aberta, como a da época helenística.

Fruto dessa época é a crise, tanto política, quanto econômica. Em razão disso o homem sentiu-se angustiado e, como ocorre sempre quando a situação histórica se agrava, procurou uma compensação da vida real. Isso os autores dos romances lhes deram, pois através das viagens e

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portanto das aventuras dos heróis, o leitor sai da monotonia de viver como um membro de uma sociedade que não mais o vê como peça fundamental para seu funcionamento. Desse modo, mesmo que o herói sofra, o leitor deseja estar na pele dele, pois pelo menos assim, vai estar ligado a aventuras. Portanto, o romance foi uma possibilidade de evasão. Este argumento escapista, além de ser defendido por Holzberg como sendo um ponto importante, pois modernamente poderia garantir a inclusão de todos os romances num mesmo grupo, também é considerado por Perry (1967 apud HOLZBERG, 2003, p.21) e Reardon (1969 apud HOLZBERG, 2003, p.21): “[...] ‘romances idealistas’ são essencialmente literatura escapista, escritos como uma reação à mudança da situação política e social do cidadão [...]”.16

No entanto, mesmo sendo invejado, o herói dos romances já não é aquele, como era o do gênero épico e trágico, que representava valores nobres. E nem poderia ser, pois isso só é possível numa sociedade onde esses valores são tipificados por costumes e tradições uniformes. Segundo García Gual (1988, p.122), num mundo amplo como o helenista não há como fixar conceitos e assim o homem sente-se perdido. Os protagonistas dos romances representam então essa impotência em face de um destino irrequieto no qual a coragem é a paciência. E é esta que garante o final feliz. Dessa forma, o que fica para o leitor é a esperança (que sempre fica com os homens) num desenlace melhor.

Os mesmos expedientes narrativos são encontrados nos romances cômico-realistas. O amor continua sendo a base dos enredos e o final feliz persiste. O que é peculiar nestes romances, como o próprio nome já denuncia, é a escolha por descrições mais realistas e cômicas, em detrimento das representações ideais, o que resulta numa espécie de paródia do primeiro grupo.

16

“ [...]‘idealistic novels’ are essentially escapist literature, written as a reaction to the changed political and social situation of the individual citizen[…]”

(21)

1.3.2 Os Romances Periféricos

Fazem parte deste grupo obras que possuem características bem distintas dos romances idealistas e cômico-realistas. Não há enredo, estrutura narrativa ou temas fixos, o que justifica a dificuldade que os leitores antigos encontravam de considerá-los variações de uma mesma categoria.

São eles subdivididos de acordo com o tema tratado e, dessa forma, serão expostos aqui.

1.3.2.1 Viagem Fantástica ou Utopia

Os romances que tratam deste tema são escritos em primeira pessoa e o narrador é o próprio viajante que conta o que viu durante a jornada. O motivo para a narração em terceira pessoa, muito mais comum na época, não ter sido escolhida para este tipo de obra é o fato de que, em primeira pessoa a história ganha mais credibilidade. Esta característica acaba servindo para dar um contraste interessante, já que o que é contado pelo autor é algo inacreditável. Assim, o leitor deparava-se com descrições de lugares exóticos, onde viviam sociedades perfeitas. Segundo Consuelo Ruiz-Montero (2003, p.42), estes modelos de organização social ou mesmo de educação eram idealizados e sempre carregavam uma mensagem.

São representantes deste grupo a obra A Sagrada Inscrição de Eufemêros e os textos de Jambulus, dos quais se desconhecem o título. Atualmente se tem contato com esses autores apenas através de fragmentos ou resumos.

1.3.2.2 Biografia Ficcional

Dentro desses romances, homens historicamente famosos foram transformados em personagens, e suas vidas são narradas do nascimento até a morte. São eles: Vida de

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Ciro ou Ciropedia, de Xenofonte de Atenas; Vida de Esopo, cujo autor é anônimo; Vida e Feitos de Alexandre da Macedônia, de Calístenes; e Vida de Apolônio de Tiana, de Filóstratos.

Essas quatro obras apresentam um fundo fictício que é utilizado como um atrativo a mais para a biografia, e segundo Holzberg (2003), com um objetivo escapista. Para ilustrar seu argumento ele discute o Romance de Alexandre ou Vida e Feitos de Alexandre da Macedônia. Calístenes apresenta Alexandre em situações que o aproximam do herói picaresco. Como exemplo, Alexandre aparece lutando com o rei da Índia, Porus. Este último é maior que Alexandre, mesmo assim é derrotado, pois, durante a luta, um ruído o distrai. Tal momento é aproveitado por Alexandre que o fere com sua espada, num golpe mortal. Numa cena como essa, Alexandre, o Grande, é igualado a qualquer pessoa de baixa estatura que tenha que enfrentar alguém maior. Dessa maneira, Calístenes aproxima o protagonista de sua obra ao leitor, pois este se coloca facilmente no lugar de Alexandre. Outro aspecto que Holzberg aponta nessa obra é que Alexandre, mesmo tendo conquistado um vasto império, morreu miseravelmente, mostrando que o poder, tão desejado por inúmeras pessoas, pode ser relativo. Sobre isso ele ainda acrescenta:

“[...] isto pode ter sido em algum sentido um conforto para o pequeno sujeito: os sonhos escapistas inspirados pelo ‘Romance de Alexandre’ não poderiam nunca se tornar realidade para ele, mas pelo menos ele seria poupado de um fim como aquele”. (HOLZBERG, 2003, p.22)17

Dessa forma, o leitor encontraria nesses romances um mundo de aventuras, ou seja, uma alternativa para fugir do cotidiano monótono.

17

“[...]this may have been in some sense a comfort for the little fellow: the escapist dreams inspired by the ‘Alexander romance’ could never become reality for him, but at least he would be spared an end such as that.”

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1.3.2.3 Romances Históricos em forma epistolar.

São coleções de cartas fictícias, organizadas cronologicamente, e que falam de acontecimentos vividos por um narrador em primeira pessoa, identificados com nomes importantes na história.

As cartas conhecidas atualmente são: Cartas de Platão, Cartas de Temístocles, Cartas de

Eurípides, Cartas de Sócrates, Cartas dos Socráticos, Cartas de Hipócrates, Cartas de Quíon de Heracléa e Cartas de Ésquines. Há evidências ainda de cartas no nome de Alexandre, o Grande.

Segundo Holzberg (1995, p.21) estas obras podem ser classificadas como precursoras do romance epistolar moderno.

1.3.2.4 Cristianismo Primitivo

Os romances que tratam deste tema apareceram pela primeira vez no século II d.C e tornaram-se mais populares no século III.

Possuem uma ligação com os romances idealistas, na medida em que também falam de inúmeros obstáculos para se chegar a um final feliz. Porém, esse é o único ponto comum entre eles.

O casal apaixonado é substituído por relações entre a família e, se há separação, esta ocorre mediante perseguições da sociedade que ainda é pagã. Além disso, os escritores deste tipo de romance estão mais preocupados em defender o cristianismo do que em criar um enredo como o dos romances idealistas.

Pode-se citar como exemplo as obras, Romance de Clemente, que se caracteriza por ser uma autobiografia ficcional do sucessor do Apóstolo Pedro como bispo de Roma, e História do

rei Apolônio de Tire, que trata das aventuras deste rei e de sua família. Os autores de ambos são

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1.3.2.5 Romances Troianos

Relatam a Guerra de Tróia sob uma ótica bem diferente da de Homero. Assim, os autores Dictis Cretense, que escreveu Diário da Guerra de Tróia, e Dares Frígio, cuja obra denominou

História da Destruição de Tróia, desviaram a visão mitológica tradicional para acontecimentos

que propõem como verdadeiros. Dessa forma, buscando o reconhecimento e a credibilidade dos documentos históricos, Dares e Dictis reduzem seus trabalhos a uma batalha entre homens comuns.

Em virtude de tudo o que foi mencionado, torna-se notória a diferença entre as obras que são tradicionalmente consideradas fazendo parte do gênero romance e os romances periféricos. Porém, é impossível não perceber certas ligações, que têm intrigado e levado muitos estudiosos a renunciar a esta divisão.

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1.4 Heranças dos gêneros literários para o romance.

Nos tempos modernos, sempre foi comum a coexistência dos mais variados gêneros literários. Porém, entre os gregos, que os criaram por assim dizer, os gêneros tiveram períodos bem definidos, sucedendo-se entre si.

Segundo Gual (1988, p.25), isso acontece pois cada um dos gêneros surge num determinado momento histórico. Para exemplificar ele afirma que a tragédia se limita ao contexto da democracia ateniense do século V, pois as condições sócio-políticas dessa época a tornam irrepetível. Dessa forma, a sucessão dos gêneros seguiria a seguinte ordem: épica, lírica, drama, relato histórico e filosófico e, por último, o romance. Sendo assim, segundo García Gual (1988):

“Filho tardio de uma família outrora nobre e pródiga, veste uma roupa pitoresca, composta de remendos misturados de seus irmãos maiores, e conserva em seu traje relíquias gloriosas, como em um depósito de trapeiro”.18

Portanto, tendo o romance herdado características de seus antecedentes, faz-se indispensável descrevê-las, o que será feito tendo em vista as principais influências.

1.4.1O Gênero Épico

Os autores dos romances foram inspirados pela épica, e isto não se percebe apenas pelas técnicas narrativas, mas principalmente pelo tema da separação do marido e da esposa encontrada no enredo dos romances, que faz lembrar a separação de Odisseu e Penélope. A própria jornada enfrentada pelo casal – como a de Odisseu em seu regresso para casa - e o reencontro seguido de inúmeros reconhecimentos, são pontos que ligam a narrativa ficcional em prosa à Odisséia, mais especificamente que à Ilíada.

18

“Hijo tardío de una familia otrora noble e pródiga viste un pitoresco ropaje, compuesto de remiendos abigarrados de sus hermanos mayores, y quedan en sus mallas reliquias gloriosas, como en un almacén de trapero.”

(26)

Há também citações, principalmente da Odisséia, encontradas nos romances. Cáriton usa citações de Homero para comparar as heroínas com deusas ou para relatar cenas do romance comparadas com aquelas de Homero.

A obra de Heliodoro ganha um começo in medias res graças a Homero, e vale lembrar que as peças teatrais também começavam dessa maneira.

Mas, não foi só a Odisséia que influenciou o romance. Há ainda a obra de Apolônio de Rodes, a Argonáutica, que é um exemplo de épica helenística.

A esta última os romances idealistas devem um de seus temas principais: o amor. Tanto é assim que Apolônio ressalta o poder de Eros sobre Medéia, fazendo com que ela desviasse sua atenção do velo de ouro para se preocupar em conquistar Jasão. Sobre esta obra, Consuelo Ruiz-Montero (2003, p.57) ainda chama a atenção para o fato de que o livro IV centra-se nas aventuras do casal fugitivo que se casa e enfrenta diversos perigos no mar, mostrando assim o quão semelhante é este enredo e o dos romances idealistas.

A Argonáutica emprestou ainda a técnica de antecipação, seja pelas profecias, seja por sonhos ou pelos próprios comentários do autor. A intriga e o suspense encontrados nos romances também são heranças da obra de Apolônio de Rodes. Há também um paralelo no que diz respeito ao tratamento dado aos heróis. Na Argonáutica, Jasão é apresentado como um herói pacífico e civilizado que persuade com suas palavras honrosas. É caracterizado ainda como o “herói amante” que conquista por sua beleza, mas que não é logo de início conquistado. Este aspecto o diferencia dos heróis dos romances, que são acometidos pelo amor à primeira vista e fazem de tudo para ficar com suas amadas.

Se o modo de apresentar o herói aproxima a Argonáutica da prosa ficcional antiga, por este mesmo motivo esta última é afastada das obras de Homero já que, ao contrário do que acontece na Ilíada e na Odisséia, nas quais os protagonistas lutam por uma causa social, nos

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romances os heróis buscam alcançar uma realização pessoal, no caso, representada pela concretização do amor.

No entanto não há somente similaridades. Na épica, por exemplo, as aventuras da heroína não são desenvolvidas, enquanto nos romances ela é tida como equivalente ao herói e por isso mesmo ganha tanto espaço quanto ele.

1.4.2 O Gênero Dramático

Tendo como influência, principalmente, as tragédias de Eurípides, os romances absorveram muitas características do drama.

Consuelo Ruiz-Montero (2003, p. 48) lembra que Aristóteles ressaltou na Poética o prazer causado pelas lamentações, pelas aventuras e pelos salvamentos ocorridos no último instante. Algumas dessas características aparecem nas tragédias. Na Antígona, por exemplo, as lamentações das filhas de Édipo em relação às leis estabelecidas por Creonte, abrem a peça. Nos romances há lamentos sobre o destino e sobre a distância do amado nos monólogos proferidos pelas heroínas. Em relação às aventuras, nem é preciso que se diga que estão presentes e que são essenciais. O elemento surpresa, por sua vez, também é bastante utilizado para causar impacto nos leitores. Outra característica bem marcante na prosa ficcional antiga é o final feliz. Esse tipo de desenlace, segundo Ruiz-Montero (2003), liga os romances não só às comédias de Menandro, mas também a Eurípides.

Tragédia e romance ainda compartilham elementos como a mudança da fortuna, o reconhecimento e a presença do patético. O primeiro deles, que nas tragédias acontece da felicidade para a desgraça, ocorre nos romances primeiramente no mesmo sentido trágico, e posteriormente, no decorrer da história, passa da desgraça para a felicidade e assim termina.

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O reconhecimento, já citado como elemento que pode ser encontrado também na épica, é importante na tragédia e, segundo Ruiz-Montero (2003), é um componente chave em Eurípides. O romance apresenta dois tipos de reconhecimento: o que ocorre entre marido e mulher, e entre filhos e pais. O primeiro tipo pode ser encontrado em obras como Nino e Semíramis, Quéreas e

Calirroé e n’ As Efesíacas. O segundo figura n’ As Etiópicas.

A presença do patético, ou seja, de ações ligadas ao sofrimento, está, no romance, associada às mortes supostas e às tentativas de estupro sofridas pela heroína.

Todas essas características são provas de que a tragédia ainda vivia dentro dos romances

1.4.3 A Comédia Nova

No período helenístico, a comédia deixa de ser engajada. Neste contexto, a obra de Menandro se destaca por representar bem os temas e estruturas em voga. Desenvolvendo personagens típicos que crescem em importância em detrimento do coro, que desaparece, este autor cria uma comédia mais voltada para a psicologia dos personagens, levando ao público o sentimento de fraternidade dos novos tempos. Dessa forma, enquanto só figuras ilustres apareciam em cena nas tragédias, na Comédia Nova ganham espaço pessoas comuns, que viviam problemas do cotidiano.

Esta será a linha seguida pelos romancistas, que certamente muito deviam à Comédia Nova. Dela, por exemplo, saíram as cenas de amor à primeira vista, tão caras aos romances idealistas.

O romance emprestou também muitos “tipos”, principalmente de Menandro. Dessa forma, os escravos e outros empregados fiéis -que ajudam seus senhores com zelo e esperteza - os parasitas, as cortesãs e os soldados são exemplos da herança desta comédia.

(29)

“Assim nós vemos que os romancistas às vezes tiram sua inspiração da Comédia Nova sem recorrer ao desadornado plagiarismo. Alguns personagens no romance são inspirados de perto dos tipos cômicos, mas não os copiam.”19

É claro que muitos personagens foram criados pelos romancistas, porém é inegável a ligação de suas obras com a Comédia Nova.

1.4.4A Historiografia

Percebe-se a influência da historiografia primeiramente pelo título – As Etiópicas, As

Efesíacas, As Fenícias e As Babilônicas - que segundo Holzberg (1995, p.36), são similares aos

que eram dados para trabalhos de etnografia e geografia. Holzberg ainda afirma que é difícil de acreditar que nomes como Xenofonte de Éfeso ou Cáriton de Afrodísia sejam os nomes reais dos autores, sugerindo que estes últimos estariam fazendo uso de um pseudônimo, prática esta usada por alguns historiadores.

Em relação ao texto propriamente dito, as longas narrativas em prosa, situadas em espaço geográfico bem definido e em tempo passado, com narrador em terceira pessoa, e a própria apresentação dos romances em livros, denunciavam a ligação com a historiografia. Além disso, as digressões em relação às características geográficas e etnográficas, seriam, para Holzberg (1995), remanescentes em Heródoto.

Como já foi mencionado anteriormente, alguns personagens do romance são conhecidos historicamente. É o caso do rei assírio Nino (Nino e Semíramis), do rei egípcio Sesonchosis (Sesonchosis), da filha do general Hermócrates, Calirroé (Quéreas e Calirroé), do filho do general Miltíade, Metíoco, do filósofo Anaximedes e do poeta Íbicos (Metíoco e Partênope).

19

“Thus we see that the novelists at times take their inspiration from the New Comedy without resorting to unadorned plagiarism. Some characters in novels are drawn close to comic types but do not duplicate them.”

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Essas referências a pessoas reais guiam os estudiosos por caminhos diferentes. Holzberg (2003), Perry (1967.) e Reardon (1969) viam nelas objetivos escapistas, já outros consideram que isso seria um indício de que o romance seria uma espécie de derivação da historiografia. Ludvískovský (1925 apud RUIZ-MONTERO, 2003, p. 45), por exemplo, compartilha este ponto de vista e ainda vai mais longe. Para ele a obra Nino e Semíramis seria um marco de transição entre os dois gêneros.

Não cabe aqui discutir qual das duas vertentes está mais correta, se é que devem ser analisadas em termos de certo e errado. O que é importante é que, tanto uma quanto a outra concordam com as influências da historiografia dentro do romance.

(31)

1.5 O Público do Romance Antigo.

Segundo Ewen Bowie (2003, p. 88), o melhor que se pode oferecer sobre esse assunto são inferências plausíveis e não provadas.

Cientes de tal realidade muitos foram os estudiosos que se debruçaram sobre esta questão, dividindo-se entre aqueles que acreditam que os romances foram escritos para uma nova categoria de leitores, segundo Bowie representada por “[...]homens e mulheres que eram alfabetizados mas não intelectuais, residentes nas enormes cidades helenísticas que ‘déracinement’ os incentivou a se identificar com os freqüentes personagens isolados nos romances e achar um significado para suas próprias vidas no modelo de suas aventuras”20e aqueles que afirmam que esses textos foram escritos para a mesma elite social e intelectual que apreciava as obras da épica e as tragédias. Ewen Bowie (2003) declara que compartilha das idéias desse segundo grupo. Já García Gual (1988, p. 41) é representante do primeiro, argumentando que o romance antigo “pretende somente distrair e emocionar a este público tão difuso” 21. Para ele, tendo a prosa ficcional antiga esses objetivos alcançava um público novo, que buscava fantasias e sensações também novas, como forma de libertar-se do cotidiano fastidioso.

Dessa forma, os romances ganharam uma popularidade indiscriminada, demonstrada por Gual através de uma citação de O. Weinreich (apud GUAL, 1988, p.39), que vale a pena ser transcrita:

Quem lia os romances gregos de amor? Ricos e pobres, mostram os fragmentos de papiros: às vezes exemplares caligraficamente ricos, às vezes simples mercadoria de massa. Pagãos e cristãos, como se vê na criação de lendas em torno de Heliodoro e Aquiles Tácio, e os vemos em

20 “[...]men and women who were literate but not intellectual, residents of huge Hellenistic cities whose

déracinement encouraged them to identify with the often isolated characters in the novels and to find meaning for their own lives in the pattern of their adventures[…]”

(32)

suas influências nas apócrifas Actas dos Apóstolos e nas Clementinas. Césares e filósofos, médicos e enfermos, poetas e sábios e tantos mais. E o imperador Juliano, poucos anos depois de um panegírico, que mostra conhecimentos sobre Heliodoro, dirige, como pontífice máximo nas reformas do clero pagão no ano de 363, uma carta ao primeiro sacerdote da Ásia Menor, na qual proíbe aos sacerdotes a leitura de romances amorosos porque despertam as paixões e acendem ardorosas chamas;[...]22

Cada grupo social encontrava um atrativo para o romance, e para dar um exemplo interessante disso, os médicos costumavam indicar a leitura dessas obras como estimulante contra a impotência. Tal popularidade é reafirmada por Perry (1967 apud RUIZ-MONTERO, 2003, p. 82), que acredita que o propósito de cada autor dos romances é atingir novas demandas sociais:

“A conclusão foi uma visão do romance como um gênero popular, indicada para as massas e ignorada pela refinada literatura oficial”.23

Seguindo essa linha Tomas Hägg (1983 apud BOWIE, 2003, p.96) ainda inclui como leitores novos os analfabetos, a população não-urbana e as mulheres. Para ter tal difusão, Hägg lança a hipótese de que escrivões e uma espécie de secretários liam os textos em voz alta, em vilas ou em reuniões familiares. Ele baseia esse argumento no estilo e na forma dos primeiros

22

¿Quién leía las novelas de amor griegas? Ricos y pobres, muestran los restos de papiros: a veces ejemplares caligráficamente caros, a veces mala mercancía de masa. Paganos y cristianos, como se ve en la creación de leyendas en torno a Heliodoro y Aquiles Tácio, y lo vemos en sus influjo en las apócrifas Actas de los Apóstoles y las

Clementinas. Césares y filósofos, médicos y enfermos, poetas y sabios y tanto los más. E emperador Juliano, pocos años después de un panegírico, que muestra conocimientos de Heliodoro, dirige como Pontífice máximo en las reformas del clero pagano en el 363 una misiva al primer sacerdote del Asia Menor, en la que prohíbe a los sacerdotes la lectura de novelas amorosas porque despiertan las pasiones y encienden ardorosas llamas;[...]

23

“The conclusion was a view of the novel as a popular genre, aimed at masses and ignored by the cultivated official literature.”

(33)

romances. Como exemplo Hägg aponta alguns elementos como a recapitulação dos eventos no começo de cada capítulo, a presença de repetições freqüentes e a antecipação dos acontecimentos. Bowie (2003) não concorda com Hägg (1983), e explica a presença de tais elementos sob um ponto de vista diferente. A repetição, por exemplo, é para ele algo que funciona como uma espécie de recapitulação necessária, já que o rolo de papiro, no qual eram escritos os romances, pode ter acabado, dessa forma, tendo o escritor que começar outro, essa prática fazia-se imprescindível.

Em relação ao adiantamento de informações, Bowie (2003) argumenta que, mesmo para pessoas que liam por si mesmas, essa técnica é válida, já que estimula a leitura.

Ruiz-Montero apresenta em seu texto as idéias de Stephens (1994 apud RUIZ-MONTERO, 2003, p. 84) que também contesta a hipótese de Hägg (1983):

“O romance seria entretenimento para a elite educada, e não faz sentido falar de uma ‘literatura de massa’ na antiguidade: não havia classe média, somente uma estrutura piramidal. Os papiros eram caros, e o nível de alfabetização baixo”.24

Ruiz-Montero ainda afirma que Wesseling (1988 apud RUIZ-MONTERO, 2003, p. 84), Bowie (2003) e Stephens (1994) acreditam ter sido impossível a inclusão da mulher como leitora pois, segundo eles, o número de mulheres que tiveram a oportunidade de estudar ainda era pequeno.

24

“The novel would be entertainment for an educated elite, and it makes no sense to talk of a ‘mass literature’ in antiquity: there was no middle class, only a pyramid structure. The papyri were expensive, the level of literacy low.”

(34)

Ainda que Hägg (1983) defenda a inclusão de vários tipos de leitores, não acredita que todos eles conseguiam entender os romances completamente. Segundo ele:

“[…]o suspense narrativo, o impacto emocional, a função escapista estavam lá para todos, o enfeite retórico e clássico para alguns”.25

Essa apreciação incompleta da prosa ficcional antiga por parte de alguns leitores já tinha sido observada por Holzberg (2003, p. 19) com a ressalva de que, para este último, “a função escapista” também tinha sido entendida “por alguns”.

Dessa forma, “o enfeite retórico e clássico”, por imbuir a obra de uma linguagem mais trabalhada, na qual se percebe uma intertextualidade, não só com os textos clássicos, mas também com a “nova literatura”, acaba por atingir somente leitores capazes de compreender tais recursos em sua totalidade. E esse teria sido o público, segundo Hägg (1983) e Bowie (2003), visado por autores como Aquiles Tácio, Longo e Heliodoro, já que eles próprios eram considerados intelectuais.

Bowie (2003, p. 105) ainda acrescenta que mesmo os outros romances, que são mais sentimentais e possuem formas narrativas mais simples, foram escritos para leitores que tinham um conhecimento de literatura bastante amplo. Dessa forma, conclui que os romances foram escritos para serem lidos por leitores intelectuais e, mesmo que algumas pessoas de cultura inferior (o que não inclui analfabetos e mulheres) também tenham tido acesso a esses textos, elas não possuíam o mesmo nível de apreciação.

25

“[...]the narrative suspense, the emotional impact, the escapist function were there for all, the rhetorical and classicizing embellishment for some.”

(35)

1.5.1 O Público Feminino

Muitos estudiosos acreditam, como Hägg (1983), que outra inovação que o Período Helenístico trouxe foi a inclusão das mulheres como leitoras. Isso seria fruto de uma maior valorização da figura feminina, conseqüência da desintegração da pólis, que fez com que os homens se voltassem para uma vida privada, ou seja, para as relações com a família.

Defender que a mulher passou a ser mais valorizada significa dizer que antes ela não o era, e esse assunto segundo Sarah Pomeroy (1975, p.58) é delicado. Alguns pesquisadores como F. A. Wright (1923 apud POMEROY, 1975, p. 58) acreditam que, no século V, as mulheres tinham uma vida um pouco melhor que a dos escravos. Admitindo uma visão totalmente oposta, A.W. Gomme (1925 apud POMEROY, 1975, p. 59) afirma que as mulheres, se não tinham tantos direitos quanto os homens, também não eram vistas como seres inferiores e, portanto, eram dignas de muito respeito e admiração. Existe ainda uma outra linha, seguida por W.K. Lacey

(apud POMEROY, 1975, p. 59), que defende um sentimento de superproteção dos homens em

relação às suas esposas, daí serem elas mantidas em reclusão.

Para Pomeroy (1975), cada uma dessas três teorias tem um ponto negativo. A primeira delas, defendida por Wright (1923), teria pecado por ser generalizante, isso porque havia uma diferença no tratamento das mulheres de classe social diferente. Em relação à reclusão, por exemplo, Pomeroy chama a atenção para o fato de que as mulheres casadas de classe alta que possuíam escravos não precisavam sair já que seus criados faziam por elas tudo o que tinha de ser feito fora de casa. Já as mulheres de classe baixa, como não tinham escravos, precisavam elas mesmas sair para buscar água, lavar a roupa ou para emprestar utensílios. Portanto, se para as mulheres ricas somente era permitido sair em festivais ou funerais, para as mulheres pobres, por questão de necessidade, isso não era possível, mas nem por isso elas eram repreendidas ou mal vistas.

(36)

Em relação à teoria de Gomme (1925), Pomeroy afirma que ele foi influenciado por sua admiração pelos atenienses, o que fez com que relutasse em acreditar que eles não tratavam suas mulheres da mesma maneira cultivada pelos homens do século XX.

O fato é que as mulheres eram tratadas de uma maneira diferente, não por superproteção como acredita Lacey (1975), mas segundo Pomeroy, por não possuírem os mesmos deveres que os homens. A estes últimos cabia a participação direta no governo, isso significava assumir cargos públicos, votar, servir de jurado ou soldado. Todas essas obrigações necessitavam de uma educação avançada, na qual era incluída lições sobre arte da retórica e educação física.

Já as mulheres eram criadas para serem subservientes, se manterem em silêncio e afastadas dos prazeres masculinos. Ou seja, deviam preparar-se para o casamento, para cumprir seu papel na pólis, que era o de honrar seu marido com filhos legítimos.

Dessa forma, segundo Renate Johne (2003, p.152), a esposa deveria agir com moderação e ter senso de decência.

Na verdade, segundo Pomeroy (1975), há pouquíssimas informações sobre a mulher do século V. As que existem, remontam a Atenas. Como conseqüência, acaba-se estendendo as características do comportamento feminino ateniense a todas as outras mulheres.

O contrário acontece em relação à época helenística. Além de haver uma abundância de dados sobre a mulher, estes não são exclusivos de Atenas, mas são provenientes das mais variadas regiões da Grécia. Essa situação acaba levando a maioria dos pesquisadores a acreditar numa modificação no que diz respeito à mulher dentro da sociedade quando na verdade, isso já poderia ter acontecido no século V, em outros lugares que não Atenas. Porém, como não há documentos que provem esta hipótese, resta permanecer com a idéia de “emancipação” feminina somente na época helenística.

(37)

Muitos são os nomes de mulheres que surgem nessa época, e isso pode ser explicado em parte pela grande admiração que os escritores antigos devotavam a Arsínoe (do Egito), Lívia (esposa de Augusto) e Cleópatra, por exemplo, que são mulheres que se tornaram memoráveis por se envolverem nas atividades políticas, antes território exclusivamente masculino.

Houve também uma expansão da opção das mulheres com respeito ao casamento, papéis públicos, educação e conduta na vida privada.

Se antes era comum que o pai desse sua filha em casamento a quem ele determinasse, e da mesma forma, continuaria tendo direito a ela, podendo inclusive dissolver seu matrimônio, na época helenística isso começa a mudar.

“O direito da filha casada de decidir contra a autoridade paterna começa a ser afirmado”.26 ( POMEROY, 1975, p.129)

Uma das principais expansões da mulher, segundo Pomeroy, foi em relação ao uso do poder econômico:

“Documentos mostram mulheres como compradoras, vendedoras, arrendadoras, arrendatárias, pedindo emprestado e emprestando; mulheres que foram tão suscetíveis quanto os homens aos impostos inseridos nessas atividades comerciais”.27 ( ibid, p.127)

É claro que a liberdade sócio-econômica da mulher não foi completa, ela precisava sempre ser acompanhada por uma espécie de guardião.

No que diz respeito à educação as mulheres também obtiveram algumas conquistas importantes. Há evidências de que em alguns lugares da Grécia as mulheres podiam praticar

26 “The right of the married daughter to self-determination against paternal authority began to be asserted.”

27

“Documents show women as purchasers, sellers, lessons, lessees, borrowers, lenders; women were as liable as men for the various taxes that attached to these commercial activities.”

(38)

atletismo, música e leitura. Há documentos que mostram que a partir do século I elas começam a participar de competições e seus nomes figuram nas inscrições.

Mas a mais importante aquisição nesta área, mesmo que conquistada somente por mulheres de classe alta, foi o direito a freqüentar escolas e aprender a ler e a escrever.

É essa habilidade que leva estudiosos como Hägg (1983) e Renate Johne (2003, p.153) a acreditar que, como leitoras ativas, as mulheres acabavam por influenciar os escritores do romance antigo, principalmente no que diz respeito à escolha do amor e na preocupação com o mundo feminino. Para Bowie (2003, p.96) este argumento não prova coisa alguma já que tais temas aparecem em Eurípides, e ele escrevia principalmente para homens. O fato de existir um público essencialmente masculino para as tragédias de Eurípides é contestável, já que não há provas, segundo Pomeroy (1975, p. 94), de que as mulheres não podiam assistir a elas. Dessa forma, é preferível que se desvie as atenções do público que Eurípides atingiu, para suas tragédias propriamente ditas.

De acordo com Pomeroy (1975, p.103), Eurípides foi o único dos três principais autores de tragédias que ganhou a reputação de misógino e para a estudiosa esta é uma fama mentirosa. Para advogar que Eurípides na verdade estava do lado das mulheres, diz que para este último “os horrores do patriarcado compõem um pano de fundo da ininterrupta miséria feminina”.28 (ibid.,p.110)

Para representar tais horrores Pomeroy mostra como exemplo que Andrômaca foi forçada a compartilhar a mesma cama que o assassino de seu marido. Cassandra tornou-se a concubina de Agamêmnon, destruidor de sua família e cidade. Hermione casou-se com Orestes, que já a tinha ameaçado de morte. Clitemnestra casou-se com Agamêmnon, o assassino de sua filha e de seu

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