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Direitos potestativos

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COOPERAÇÃO” E A NOÇÃO DE “IMPLICATURAS” [VERSÃO PROVISÓRIA]

[O texto que agora se dá a lume reproduz, com actualizações e desenvolvimentos, duas ou três notas da nossa dissertação de doutoramento, A representação sem poderes no direito civil português. A ratificação, Porto, 2009]

Ao Professor Heinrich Ewald Hörster

1. Sem outra pretensão senão a de proceder a um levantamento do tema, o qual reconhecidamente apresenta um objecto complexo e heterogéneo, e recensear os principais problemas nele envolvidos, analisar-se-á de seguida a categoria (“Ordnungsbegriff” e não “Rechtsinstitute” pretende CRISTHIAN HATTENHAUER) dos direitos potestativos. Passar-se-á em revista o conceito, os respectivos elementos, estrutura e fisionomia (mormente por contraposição com os direitos subjectivos stricto sensu), como correntemente são expostos; simultaneamente, à luz da doutrina recente, questionar-se-ão alguns dos “dogmas” da teoria tradicional. Semelhante indagaçquestionar-se-ão justifica-se facilmente numa homenagem a quem dedicou à matéria uma proficiente e límpida (embora sucinta) análise – HEINRICH EWALD HÖRSTER, Nótula referente a alguns aspectos pontuais dos direitos potestativos (motivada pela Lei n.º 24/89, de 1 de Agosto), RDE, 15 (1989), págs. 347 e ss., e Id., A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1992, págs. 243 e ss. Quer-se, de algum modo, estabelecer um como que diálogo com as ideias aí expostas.

2. É sabido que aos direitos potestativos, termo originário da doutrina italiana, cunhado por GIUSEPPE CHIOVENDA, apelidam os autores alemães “Gestaltungsrechte” – o que se pode traduzir literalmente

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por “direitos de conformação ou conformativos”, o nome com que os

baptizou o romanista e canonista EMIL SECKEL: “Ich möchte

vorschlagen, die fraglichen Rechte als Gestaltungsrechte zu benennen. Dieser Name knüpft an die charakteristische Eigenschaft besagter Rechte an, die ihnen mit keiner anderen Rechtsgruppe gemeinsam ist”. O valor expressivo, a sugestividade, a aptidão descritiva de tal designação (de que E. SECKEL estava bem consciente: “[…] der Terminus gleitet leicht von den Lippen, er ist sprachlich gestaltungsfähig und er vermag die erwünschte Fühlung zu gewinnen mit dem neuerdings […] für die sogenannten konstitutiven Urteile aufgenommen Namen ‘rechtsgestaltendede Urteile’ ”; a expressão “conformação” ou “conformar” merecera aliás especial predilecção por parte de R. JHERING na descrição da “construção jurídica” e dos respectivos conceitos e na aproximação da jurisprudência às ciências naturais) fizeram com que ela rapidamente se tornasse preponderante no espaço alemão. Antes, ERNST ZITELMANN tinha-lhes chamado, “até se encontrar um bom nome”, “(reine) Rechte des rechtlichen Können” ou “Kann-Rechte”. Entre os autores suíços e franceses usa falar-se de “droits formateurs” ou “pouvoirs

formateurs” (em italiano, também “diritti formativi”).

Verdadeiramente nenhuma das designações sugeridas se mostra à prova de reparos, como o comprova a crítica logo empreendida por E. SECKEL à terminologia de E. ZITELMANN.

Quanto à expressão latina “direitos potestativos”, embora consagrada, ela acaba por invocar uma faceta afinal presente, ainda que porventura em medida diferente, em todos os direitos e no respectivo exercício (ou até mesmo na autodeterminação ou autonomia privada): a potestas, o “poder de vontade” ou a “soberania do querer”, derivada, afinal, da “situação de prevalência” atribuída pela ordem jurídica ao seu titular. No exercício (ou não) do direito subjectivo, no fazê-lo valer (ou não) perante outrem (ou, se se quiser, na exigência de cumprimento do correspondente dever

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deste último), está contido sempre um inegável momento conformador (nesse sentido, o direito subjectivo traduz-se num “poder conformador”, como o acentua por exemplo HANS-MARTIN PAWLOWSKI, que o insere aliás na competência geral de participação na criação ou concretização do direito atribuída aos particulares).

Semelhante translação de sentido leva por vezes, irreflectidamente – mas não se pretende negar que essa seja uma possível configuração legal –, a designar ou qualificar como potestativos direitos ou situações onde sobressai a “livre disposição” ou o “exercício incontrolado” do titular, como o direito de resposta no âmbito da Lei da Imprensa, ou o direito de agendamento dos partidos e dos grupos parlamentares nos termos do Regimento da Assembleia da República. Ainda a E. SECKEL se costuma atribuir a “paternidade” da figura. Ele terá sido o seu “descobridor” ou “inventor”, na expressão de HANS DÖLLE, Juristische Entdeckungen, in Verhandlungen des 42. Deutschen Juristischentages, Tübingen, 1958, págs. B 1 e ss., que celebra as páginas escritas por SECKEL como das mais brilhantes da dogmática civil alemã. Com efeito, no seu estudo com o título Die Gestaltungsrechte des Bürgerliches Rechts (in Festgabe der Juristischen Gesellschaft zu Berlin zum 50jährigen Dienstjubiläum ihres Vorsitzenden Richard Koch, Berlin, 1903, págs. 205 e ss.) logo se encontra a seguinte definição que ainda hoje no essencial permanece válida: “O direito de conformação [potestativo] privado é de definir como o (concreto) direito subjectivo privado, cujo conteúdo consiste no poder de conformação de uma concreta relação jurídica mediante um negócio unilateral”. E aí se contém um estudo relativamente detalhado e sistemático, conquanto para o autor se tratasse apenas de um esboço a completar posteriormente, dos mais grados problemas da morfologia e dos traços de regime que demarcam ou autonomizam a figura: a sua “essência”, origem,

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classificação, regras sobre a sua transmissibilidade e extinção, e modos e limites do respectivo exercício. A partir de então os direitos potestativos alcançaram a sua alforria – como espécie de direitos subjectivos, a par dos direitos subjectivos em sentido estrito, absolutos e relativos –, estatuto que não mais perderam, embora permanecessem alvo de tormentosas discussões (em parte não libertas de laivos conceptualistas).

Rapidamente a figura conheceu sucesso em várias latitudes da civil law. Embora a sua admissibilidade continue controvertida em Itália. Em Portugal, apesar do cepticismo inicial de JOSÉ TAVARES (que escrevia, em Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, I, Coimbra, 1922, págs. 255 e ss., na esteira e reproduzindo em parte NICOLA COVIELLO: “[E]ntendemos que não é de aceitar a nova categoria dos direitos subjectivos. Em primeiro lugar, porque não se pode falar de direito a que não corresponde um dever, positivo ou negativo, genérico ou específico; qualquer que seja o conceito do direito subjectivo, implica sempre uma relação do sujeito com outra ou outras pessoas sôbre quem recái a necessidade do seu respeito, ou seja, o dever jurídico. Em segundo lugar os chamados direitos potestativos ou não são direitos, ou, se são autónomos, em nada diferem de todos os outros”), das reservas de CABRAL MONCADA (em Lições de Direito Civil, Parte Geral, Coimbra, 1995 – de acordo com a edição preparada em 1962, mas no ponto muito semelhante à edição de 1932 –, págs. 65 e ss.; o ilustre autor, na esteira também de COVIELLO e de LEHMANN, mostrava-se aí céptico em relação à categoria dos direitos potestativos: ao “rigor científico e até à utilidade de tal doutrina”, “no fundo pensamos que, dum ponto de vista exclusivamente científico esses novos direitos outra coisa não são senão desdobramentos do conteúdo de outros direitos subjectivos já atribuídos pela lei irradiando de si novas competências”) e da posição dubitativa de PIRES DE LIMA (em Lições de Direito Civil, I, Coimbra, 1945, págs. 176 e ss.; aí se lê: “Só que a única obrigação,

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porventura existente nesses casos, seria a de respeitar o direito alheio, obrigação que nada tem de específica, e que, portanto, não pode contrapor-se ao direito potestativo. Na situação daquelas pessoas cuja esfera jurídica pode ser alterada pelo exercício do direito, há algo mais do que essa obrigação geral e a que o próprio têrmo obrigação não quadra devidamente. Quando muito, enquadraremos êsses direitos nas faculdades jurídicas, as quais podem ser de carácter geral ou individualizadas. São estas últimas, precisamente, que constituem os chamados direitos potestativos”), a recepção da figura foi rápida e praticamente unânime. Nos nossos dias, ela continua a exercer um “fascínio” (assim, já EDUARD BÖTTICHER) muito particular.

3. Introdutoriamente tem interesse comparar a noção de SECKEL com outras posteriores que no fundamental nela se inspiram. Por exemplo, com a dada cerca de vinte anos depois por JOSEF FENKART: “direito subjectivo privado através do qual é assegurado o poder de conformar uma concreta situação jurídica através de um acto de vontade unilateral”, onde, como logo ressalta, se prescinde da alusão a uma concreta relação jurídica, permitindo aí agregar mais facilmente os “direitos renunciativos”, mormente o abandono, e os “direitos apropriativos”, entre os quais se contará talvez a ocupação. Ou com a definição de L. ENNECCERUS / H. C. NIPPERDEY (Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, I, Tübingen, 1959, pág. 441), aproximadamente cinquenta anos depois (mas contida em termos semelhantes nas várias edições da mesma obra bastante anteriores à que se cita): “poder jurídico por virtude do qual uma alteração jurídica é susceptível de ser produzida (apenas) por nós, ou ocorre a nosso favor também sem a nossa vontade, em qualquer caso sem o contributo ou colaboração do outro”. Noção esta bem mais ampla,

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pretendendo inclusive incluir hipóteses onde a alteração jurídica ocorre sem qualquer concurso da vontade do sujeito em causa, como por exemplo em certas situações de expectativa ou nos “direitos a adquirir”, dos quais os autores dão como exemplos, no BGB, o direito do herdeiro fideicomissário ao fideicomisso nascido com a abertura da herança, §§ 2108 e 2139, e o direito de ocupação, nos termos do § 973.

Ou aproximá-la da noção, de algum modo “canónica” na doutrina alemã, proposta por K. LARENZ / M. WOLF (Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, München, 2004, pág. 15) aproximadamente um século depois (embora presente em moldes similares nas várias edições anteriores à que se cita, apenas da autoria de KARL LARENZ, onde porém o tema é tratado de modo menos desenvolvido e onde a inserção dos direitos potestativos nos direitos subjectivos, a sua autonomização das meras “faculdades”, se faz depender da sua transmissibilidade autónoma): “direito que cabe ou compete a uma certa pessoa de produzir, através de uma declaração conformativa como acto unilateral, uma alteração jurídica, constituindo (ex novo), determinando no seu conteúdo, alterando, terminando ou extinguindo uma relação jurídica”.

Entre nós, por ora, tome-se a muito glosada (e repetida quase ipsis verbis nas várias edições do manual Teoria Geral do Direito Civil de CARLOS ALBERTO DE MOTA PINTO, nomeadamente na 4.ª edição [2005] por A. PINTO MONTEIRO e P. MOTA PINTO, a págs. 178 e s.; em termos muito próximo também ORLANDO DE CARVALHO em Teoria Geral do Direito Civil, Sumários desenvolvidos, Coimbra, 1981, págs. 85 e ss., autor que prefere designar os direitos subjectivos propriamente ditos por direito subjectivos em sentido estrito) definição de direito potestativo – integrada na noção de direito subjectivo em sentido amplo ao lado dos direitos subjectivos propriamente ditos – dada em 1944, por MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, Coimbra, 1960, págs. 3 e 12 e ss.: “faculdade ou poder atribuído pela

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ordem jurídica a uma pessoa […] de por um acto da sua vontade – com ou sem formalidades –, só de per si ou integrado depois por um acto de autoridade (decisão judicial), produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inevitàvelmente a outra pessoa (adversário ou contraparte)”. Ou com a fornecida, nas suas Lições de Direito Civil de 1945, por PIRES DE LIMA: “poder de, mediante um acto da sua vontade, criar, modificar ou extinguir direitos por meio dos quais vai alterar a esfera de outrem”.

4. É certo que primeiramente vários autores tinham identificado a categoria, pelo menos algumas das suas manifestações, e intuído o seu valor dogmático. O mérito de SECKEL esteve em reunir esses contributos e orientações, em os sintetizar e estruturar, em pensá-los até às últimas consequências (todavia, por regra, desembocando em formulações bastante cautelosas).

Também a ocasião exerceu a sua influência. Embora o terreno já houvesse sido desbravado, por um lado, pela análise (e dissociação) empreendida pelo jusnaturalismo e pelos canonistas dos elementos da conclusão do contrato e pela elaboração do conceito de negócio jurídico e de declaração de vontade, culminada na pandectística, e, por outro, pela dissociação preconizada por BERNHARD WINDSCHEID (em Die Actio des römischen Civilrechts, vom Standpunkte des heutigen Rechts, Düsseldorf, 1856) da actio romana nos seus aspectos material e processual, a sua decomposição numa “pretensão material” e numa “acção processual”. Ademais, no fim do séc. XIX a possibilidade de conformação jurídico-privada através de negócios unilaterais tinha já amplo reconhecimento legal em institutos tão importantes como a compensação, a anulação e a resolução (por não cumprimento). Mas só após a entrada em vigor do BGB (o qual não utiliza a expressão, ao contrário do que por exemplo sucede com “pretensão”, “Anspruch”, logo definida no § 194 como “o direito de

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exigir de outrem um fazer ou um omitir”), e com a configuração que os referidos institutos aí conheceram (mas pioneiros nesse aspecto são o ADHGB, de 1861, e Código Civil da Saxónia, de 1863), se reuniram as condições para a cabal autonomização da figura dos direitos potestativos (“privados”, ou seja, exercíveis mediante um negócio jurídico unilateral) e para a sua inserção, de pleno direito, dentro dos direito subjectivos (cuja teoria moderna tão-pouco tinha então ultrapassado os seus primórdios).

Entre os precursores de SECKEL, como o próprio indica, destacar-se-á pela clareza, precisão e carácter abrangente das suas considerações, embora incidindo sobretudo sobre o direito de anulação, ERNST ZITELMANN (Internationales Privatrecht, II, München, 1912 – mas que na parte em consideração remonta ao ano de 1897, tendo sido publicada pela primeira vez em 1898 –, págs. 32 e ss. e 42 e ss., Id., Das Recht des Bürgerlichen Gesetzbuchs, I, Allgemeiner Teil, Leipzig 1900, págs. 23). Conforme mencionado, ZITELMANN falava, tomando como ponto de partida a anulação, de “direitos do poder (jurídico)”, os quais “concederiam uma força sobre um determinado efeito jurídico”, por contraposição aos “Rechte des rechtlichen Dürfens” ou “Dürfen-Rechte”, “direitos do lícito”, os direitos absolutos, e aos “Rechte der rechtlichen Sollens” ou “Soll-Rechte”, “direitos do dever”, os direitos relativos ou obrigações. A categoria compreenderia os “puros direitos do poder jurídico” (os direitos potestativos, afinal, ou o cerne destes; na definição dada, aqueles cujo conteúdo consistiria na possibilidade, através dum negócio jurídico, de operar certo efeito jurídico, especialmente se concedida a certa pessoa), ao lado dos “direito ‘a direitos’ ” (“Rechte ‘an Rechten’ ”), dos “direitos de apropriação” e “pré-direitos” (“Aneignungs- Vorrechte”) e dos “direitos de expectativa” (“Anwartschafsrechte”). Indicava o autor ainda tratar-se de “direitos secundários” ou de “natureza secundária”, sem pretensão, incidindo do “exterior” nos “direitos primários”, conferindo um poder – individualizado e não geral – sobre certo efeito

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ou situação jurídica: determinando-a, modificando-a ou extinguindo-a. Não perturbaria, acrescenta enfaticamente, a unidade da categoria o facto de o exercício de alguns direitos potestativos ter de ser integrado por um acto de um juiz ou de um funcionário administrativo.

Precedentemente, LUDWIG ENNECCERUS (Rechtsgeschäft, Bedingung

und Anfangstermin, Marburg, 1889, págs. 600 e ss. e 610 e ss.) havia destacado a categoria das “faculdades aquisitivas”, “Erwerbsberechtigungen”, dando como exemplos a ocupação (de coisas móveis, de tesouros, de animais bravios pela caça e pela pesca), a “venda a retro” (“Wiederverkaufrecht”; a qual, na Alemanha, é comummente entendida pela jurisprudência como estipulação de uma compra sob condição suspensiva da declaração de querer comprar de volta do vendedor, devendo ainda recordar-se que a compra e venda não tem nesse país “efeitos reais”), a expectativa dos herdeiros (ou eventualmente a aceitação da herança). A aquisição do direito poderia dar-se ipso iure, sem requerer uma determinada actuação do sujeito em causa (hipóteses que não serão posteriormente acolhidas nos direitos potestativos). Sublinhava ainda ENNECCERUS que as “Erwerbsberechtigungen” não se inseririam nem nos direitos absolutos, reais (pois não atribuiriam o domínio sobre nenhuma coisa) nem nos direitos relativos (porquanto faltaria um devedor). E estudava-as sobretudo do ponto de vista estático – ao invés da perspectiva dinâmica depois adoptada para a caracterização dos direitos potestativos –, do estado de pendência medio tempore existente e da correspondente posição do respectivo titular.

E já antes ERNST IMMANUEL BEKKER (System des heutigen

Pandektenrechts, I, Weimar, 1886, págs. 89 e ss.) tinha individualizado a categoria dos “direitos negativos”. Estes traduziriam

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poderes cujos efeitos consistiriam (apenas) na suspensão, paralisação ou eliminação de outros direitos – esses “positivos”, com aqueles em “conexão antitética” e constituindo o seu objecto –, extinguindo-se aliás com eles (qualquer que fosse a causa do desaparecimento), mas capazes de surgir quer coevamente (raramente no caso de normais Tatbestände, mais frequentemente na hipóteses de Tatbestände incompletos ou imperfeitos dos direito positivos), quer em momento posterior (com base em eventos ulteriores ou pelo simples decurso do tempo). Exercíveis segundo a vontade do respectivo titular (aquele ou aqueles ante os quais o “direito positivo” haveria de ser exercido), o seu conhecimento ex officio pelo tribunal estaria excluído. A respectiva extinção, por vontade do detentor ou independente desta, “fortaleceria” os direitos positivos (um fenómeno de convalescença). Direitos esses subsumíveis, nos termos actuais, nos direitos potestativos extintivos, embora compreendessem também hipóteses hoje qualificadas como “excepções” (aliás, BECKKER mantém-se predominantemente no contexto processual).

Em termos análogos, CARL CROME (System des Deutschen

bürgerlichen Rechts, I, Einleitung und Allgemeiner Teil, Tübingen, 1900, págs. 176 e ss.) havia cunhado o conceito de Gegenrechte, “contra-direitos” (ver ainda FRIEDRICH ENDEMANN, Lehrbuch des Bürgerlichen Rechts, I, Berlin, 1903, págs. 511 e s.), direitos subjectivos, ou pelo menos merecendo tal reconhecimento, pelos quais alguém detém o poder de, por meio de um acto de vontade, extinguir direitos alheios ou libertar-se ele próprio de deveres (ou, mais em geral, impugnar ou impedir certos efeitos que a ordem jurídica não nega sem mais, mas apenas se determinada pessoa invocar certas circunstâncias referentes ao seu surgimento ou posteriores mas capazes de naqueles influírem). Tais direitos – anulação, compensação (legal), resolução de um contrato, “recuperação” de uma coisa previamente alienada, de denúncia, e ainda divórcio e separação judiciais e expropriação – seriam

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susceptíveis de serem divididos naqueles que destroem o efeito jurídico primário (a anulação), nos que o “cancelam” (os demais direitos enumerados) e noutros que apenas permitem negar o cumprimento dos deveres decorrentes do direito aos quais são opostos (as “excepções”, tratadas por CROME à parte). Mas todos eles diferenciar-se-iam dos restantes direitos subjectivos, porque apenas o respectivo exercício lhes conferiria um conteúdo efectivo ou real. Aluda-se ainda a KONRAD HELLWIG (em Anspruch und Klagerecht, Jena, 1900, págs. 2 e ss. e 443 e ss., e Lehrbuch des deutschen Civilprozessrecht, I, Leipzig, 1903, págs. 232 e ss.), autor que, acolhendo a terminologia de ZITELMANN (“Rechte des rechtlichen Können”; mas aludindo também a “direitos a uma alteração jurídica”), alargou todavia o campo de aplicação da categoria, nomeadamente às excepções materiais. HELLWIG advertia ser igualmente possível à lei, nas hipóteses em que quer conceder um direito à alteração de uma situação jurídica existente, atribuir uma pretensão a que a outra parte emita uma declaração nesse sentido ou realize a actuação jurídica necessária (ressalvados os casos em que a contraparte ou ambos em acordo não estão em condições de produzir tal efeito, como no divórcio ou numa alteração com efeitos retroactivos). E assinala ter, em certos direitos potestativos, a declaração do titular de ir acompanhada de uma sentença constitutiva (pensável mas rara seria a hipótese de a acção ter por conteúdo a verificação da existência do correspondente “direito” ou “competência”, “Berechtigung”). Em comum teriam os direitos em causa o facto de só poderem ser exercidos uma vez, logo se extinguindo desse modo. Ademais, por norma, o exercício de tais direitos seria insusceptível de reservas. Emergiriam eles como componentes de uma relação preexistente, visando a sua desenvolução, ou teriam uma vida autónoma (como a anulação por

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indignidade sucessória, o pedido pelo Ministério Público ou por um terceiro de declaração de nulidade do casamento, o direito de compensação). Distinguia ainda o autor entre direitos modificativos, designadamente extintivos (com efeitos ex tunc ou ex nunc, podendo surgir simultaneamente um outro direito; por exemplo, anulação, resolução, revogação, denúncia, direito de recusar a prestação, direito de compensação, “direito ao divórcio”, repúdio da herança), e constitutivos (com efeitos ex tunc ou ex nunc; por exemplo, ratificação, aceitação da herança ou de um legado, direito de escolha nas obrigações alternativas e noutras relações similares, direito de preferência, interpelação para cumprimento com constituição do devedor em mora, faculdade, estipulada contratualmente, de conceder a um terceiro o direito à prestação, direito de ocupação exclusivo, direito de expropriação).

Menção merece igualmente AUSGUST THON (Rechtsnorme und

subjectives Rechts. Untersuchungen zur allgemeinen Rechtslehre, Weimar, 1878, especialmente págs. 325 e ss.), cuja discussão à volta do enquadramento da “faculdade ou poder de disposição” (“Verfügungsbefugnis”, para o autor não incluída no conteúdo do respectivo direito) e da “faculdade de ocupação” já antecipa os traços que mais tarde servirão para caracterizar os direitos potestativos. Na sequência da teoria imperativista, dentro da visão de que o direito subjectivo “surge, para o sujeito tutelado pela norma, da disposição do direito objectivo, segundo a qual, no caso de infracção da própria norma, àquele é assegurado um meio, a pretensão, a fim de realizar o comandado ou remover o vedado”, e da subsequente crítica que dirige à concepção, mormente a de WINDSCHEID, do direito subjectivo como “domínio ou prerrogativa da vontade”, como “Wollen-Dürfen”, THON não integra os “Befugnissen” nos direitos subjectivos, reconhecendo, precursora embora indiscriminadamente, aí uma nova

e autónoma categoria (mais tarde, B. WINDSCHEID, no seu

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especialmente nota 3, retomará as ideias de THON, mas inserindo tais “faculdades” nos “direitos de segunda espécie”, onde a vontade do titular seria decisiva para a constituição, extinção ou modificação dos “direitos da primeira espécie” – direitos “a um determinado comportamento, um fazer ou omitir, de uma pessoas ou de várias pessoas em face do titular” –, não, portanto, para a realização de imperativos da ordem jurídica mas para a sua própria existência). Na literatura italiana, sobressai o contributo, contemporâneo e

independente do de SECKEL, mas acostando-se igualmente aos

precedentes contributos sobretudo de WINDSCHEID, BEKKER, ZITELMANN e HELLWIG, de GIUSEPPE CHIOVENDA (L’azione nel sistema dei diritti, Bologna, 1903, agora em Saggi di diritti processuale civile, I, Roma, 1930, págs. 20 e ss.). Partindo do conceito de acção (o direito de acção seria afinal um direito potestativo, porventura o direito potestativo por excelência, entrando nesta categoria não apenas aqueles direitos tendentes à produção de um estado jurídico novo, mas também aqueles dispostos para fazer corresponder o “estado dos factos” ao “estado do direito”, e portanto a acção de simples apreciação e de condenação e a acção executiva), propõe o autor precisamente a designação “direitos potestativos” (sugerida pela denominação dada às condições cujo “cumprimento depende da vontade de um dos contraentes” pelo Art. 1159 do Codice Civile italiano de 1865), depois de ter afastado a de “direitos facultativos” (dado o seu carácter equívoco e o uso estabelecido em sentido diverso: os direitos facultativos compreenderiam verdadeiros direitos potestativos mas também meras faculdades, res merae facultatis). Começa aliás por inventariar, nos campos do direito provado e público, várias faculdades integráveis em tal categoria: “os direitos de

impugnar actos jurídicos diversos, contratos, testamento,

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concessão de patentes, sentenças, actos executivos; o direito de impugnar a qualidade hereditária de um indigno; o direito à separação pessoal; a separação do dote; a rescisão por lesão; a denúncia de um contrato; a revogação de um mandato; a revogação de uma doação; o direito à divisão; à dissolução de uma sociedade; à aposição de termos; à demarcação de prédios; o direito de aceitar ou renunciar a uma herança; o jus praelationis; o direito de resgate; o direito à concessão de uma servidão de aqueduto ou de passagem forçada, e de passagem de fios condutores eléctricos; o direito de expropriação por utilidade pública; o direito de reversão de parcelas sobrantes e cento de outros”. Já por carecerem de autonomia, constituírem um mero aspecto ou faceta de outro direito, não seriam direitos potestativos o pagamento ou cumprimento por parte do devedor, a obrigação do credor de aceitar o pagamento, nem o direito de escolha nas obrigações alternativas ou constituição em mora. Indica depois que em todos aqueles primeiros casos se depara um poder do titular de desencadear mediante uma manifestação de vontade um efeito jurídico no qual tem interesse, ou a cessação de um estado jurídico desvantajoso; isso perante uma pessoa, ou mais, que não se encontra obrigada a nenhuma prestação em face dele, mas está apenas sujeita, não podendo subtrair-se, ao efeito jurídico produzido. CHIOVENDA recorta com grande exactidão o “lado prático importante da figura dos direitos potestativos”: a sujeição da pessoa perante aquele a quem o poder pertence, a sujeição da sua vontade enquanto não pode querer que o efeito não se produza. Daí estar-se, conclui, inegavelmente ante um direito subjectivo e não uma mera faculdade (a qual não impõem limitações à liberdade de outrem). Tratar-se-ia de um poder puramente ideal: o poder de querer certos efeitos jurídicos, por parte daquele a quem a lei o concede, e sem que seja possível conceber um comportamento que o contrarie, senão o que impeça a acção física necessária a manifestar a correspondente vontade (onde se concebesse diferente oposição, por o direito

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requerer para o seu exercício outra acção física, então não caberia falar de um direito potestativo, como ocorreria no direito de caça reservada ou de ocupação privilegiada; e mesmo valeria onde o nascimento dos efeitos jurídicos não dependesse da pura vontade do titular do direito mas doutros factos, como nos direitos a termo ou condicionados). Os direitos potestativos não seriam nem direitos reais, ao não suporem um senhorio ou domínio sobre uma coisa, nem direitos de crédito, por não suporem um comportamento de outrem. A sua natureza de direitos-meios aproximá-los-ia das obrigações (enquanto outras características o acercariam do direito reais), e dela derivaria a circunstância de se exaurirem com o seu exercício.

5. O conteúdo dos direitos potestativos consiste então, podemos já dizê-lo, na possibilidade de configuração ou influenciação unilateralmente – por acto unilateral, sem que seja necessário o acordo, colaboração ou participação de outras pessoas – de uma situação ou relação jurídica ou de um direito. “[D]ireitos que tem uma pessoa de influir com a sua declaração de vontade na condição jurídica doutra pessoa, sem o concurso da vontade desta, ou fazendo cessar um estado jurídico existente, ou produzindo um novo efeito jurídico”, “direitos de produzir outros direitos”, era a noção

apresentada por JOSÉ TAVARES (que acrescentava serem as

características de tais direitos duas: “a primeira é que o direito consiste sempre no poder de declarar a própria vontade com o fim de obter um efeito jurídico, a segunda é que falta um correspondente dever de outra pessoa”). “Poder exclusivo de por acto de sua vontade produzir um certo efeito jurídico novo que vai influir na esfera duma outra pessoa, ampliando-a ou limitando-a […] ou vai até – diz-se ainda – criar um direito novo a favor dessa pessoa [, …] o exercício

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dessa faculdade contém em si o gérmen dum novo direito, dum direito futuro”, no dizer de CABRAL MONCADA.

No sentido descrito, ao tenderem para uma criação ou uma alteração (no mundo jurídico), todos os direitos potestativos podem também ser apelidados direitos constitutivos, como o faz PIRES DE LIMA, ou direitos de alteração, mudança ou modificação, como o procedem ENNECCERUS / NIPPERDEY. São eles dirigidos a produzir um efeito que vai projectar-se na esfera jurídica de outro sujeito (DIAS MARQUES).

Nos termos da teoria dos “actos de fala”, inaugurada por JOHN L. AUSTIN e desenvolvida por JOHN R. SEARLE, logo se identificará no seu exercício um acto performativo, “dizer é fazer”, mais especificamente do tipo “declarativo”, “dizer faz sê-lo” (“acto constitutivo ou dispositivo” será porventura uma terminologia mais familiar aos juristas; na classificação de K. Bach / R. M. Harnish a que adiante aludiremos, tratar-se-á de um acto ilocutório convencional efectivo, effective convencional illocutionary act, pelo qual se produz uma mudança, um novo facto num contexto institucional). “The illocutionary point of a declaration is to bring about changes in the word, so that the word matches the propositional content solely in virtue of the successful performance of the speech act” (J. R. SEARLE / D. VANDERVEKEN). Ou seja, a simples enunciação não só realiza (em alemão, verwirklicht) directamente uma acção mas opera (modifica; em alemão erwirkt) contextual e automaticamente, ex opere operata, o estado de coisas (Sachverhalt) que o enunciado “significa”, tendo portanto o condão de directa e imediata instaurar uma nova situação (verificadas certas condições, ditas “condições de felicidade”; existem

certos performativos, “puramente linguísticos” onde a

auto-verificação é incondicional, mas que no domínio que nos interessa não têm aplicação). Tratar-se-á, se se quiser, de um “enunciado operativo” com a “faculdade demiúrgica de se auto-executar e se autoverificar”, uma “palavra mágica criadora” agindo sobre a realidade e capaz de determinar o curso das coisas.

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Como também se observa, a performatividade tem aqui um fit nos dois sentidos “word-world” e “world-word”. “All successful declarations have a true propositional content and in this respect declarations are peculiar among speech acts in that they are only speech acts whose successful performance is by itself sufficient to bring about a word-world fit”. Significativamente, observam ainda J. R. SEARLE / D. VANDERVEKEN que inexistem variações no grau de força (a força de um enunciado é afinal o modo como ele é utilizado) com o qual o objectivo ou propósito do “acto declarativo” pode ser atingido: ou é realizado ou não; e o “modo de realização” da força ilocutória suporá sempre que o locutor invoque, pelo menos implicitamente, o poder ou autoridade de modificar o mundo (scl., social) pela execução do acto de enunciação apropriado (sobre tudo isto ver ainda adiante). Mas cabe reconhecer importarem genericamente todos negócios e contratos (e estes últimos eram já indicados por J. L. AUSTIN como exemplo dos cooperative speech acts) e eventualmente todos os actos jurídicos, pelo menos os lícitos, uma mutação do estado jurídico preexistente, e terem, se assim se quiser dizer, um valor ou objectivo ilocutório do tipo descrito (enquanto aqui interessam-nos apenas mutações unilateralmente suscitadas e às quais corresponda anteriormente uma sujeição pelo lado passivo, como melhor se verá). De resto, em termos gerais, observar-se-á que nalguns actos (do género dos que aqui tratamos, num contexto institucional ou legal) se pode identificar, para além do seu “carácter declarativo”, uma componente adicional, um supletivo objectivo ilocucionário, o qual pode consistir em qualquer das demais forças ilocucionárias, ou seja, servindo-nos ainda da classificação de R. SEARLE / D. VANDERVEKEN, assertiva, compromissiva, directiva, expressiva (assim, expressamente, e aproveitando algumas sugestões do próprio Searle, Dick W. P. Ruiter; acerca disto ver ainda

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mais à frente). Com efeito, numa promessa (bem sucedida), ver-se-á também uma imedita alteração do “estado de coisas”, doravante o promitente fica obrigado a cumprir a promessa; uma ordem legítima instaura automaticamente o dever de a cumprir para quem a recebeu.

6. Mais concretamente, o exercício do direito potestativo redunda na constituição ou criação, na modificação (eventualmente configuração ou complementação, determinação ou consolidação do seu conteúdo) ou na extinção de um direito, de uma relação. Surgem-nos então, tomando como critério os efeitos produzidos, direitos potestativos constitutivos (por vezes também ditos positivos), modificativos e extintivos (também apelidados negativos ou ainda eliminativos ou aniquilativos; porventura os mais numerosos e importantes em termos práticos).

Dê-se um muito repetido exemplo da cada uma dessas espécies, tirados todos do mesmo contexto. Assim, o proprietário de um prédio encravado, isto é, sem comunicação suficiente para a via pública, pode dirigir-se ao tribunal para constituir uma servidão de caminho ou passagem, um direito real de passagem, através do prédio rústico vizinho, como resulta do art. 1550.º (que alude no entanto – como já acontecia no projecto, mas diferentemente do anteprojecto onde se falava de “podem constituir servidões” – à “faculdade de exigir a constituição da servidão” [itálico nosso], fórmula explicável pela possibilidade de constituição voluntária e, na falta de acordo, pela necessidade de uma acção em juízo) conjugado com o art. 1547.º, n.º 2 (doravante todos os preceitos citados sem menção em contrário pertencem ao Código Civil). E, segundo o que dispõe o art. 1568.º, cabe-lhe igualmente o direito de modificá-la, mormente mudá-la para um sítio diferente do primitivo (alterando o assento ou trajecto da servidão), se disso lhe advier vantagem, contanto que inexista prejuízo para o proprietário do prédio serviente. Por seu lado, este

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último tem o direito a fazer cessar ou extinguir a servidão se esta se tornou entretanto desnecessária, nos termos do art. 1569.º, n.ºs 2 e 3.

Pense-se ainda no divórcio sem consentimento de ambos os cônjuges – direito extintivo do casamento –, na separação judicial de pessoas e bens – direito modificativo do vínculo conjugal respectivos deveres (mas convertível posteriormente em divórcio, nos termos do art. 1795.º-D) –, e na simples separação judicial de bens – direito modificativo apenas com incidência no plano das relações patrimoniais entre os cônjuges.

E, para ilustrar um direito potestativo (meramente) complementativo ou colmatativo, determinativo do conteúdo de uma relação jurídica ou direito (e, por isso, por vezes difícil de distinguir das faculdades destes dimanantes), aponte-se o direito de nomeação (facultas eligendi) no contrato para pessoa a nomear (arts. 452.º e ss.; pelo menos se o contrato valer para o contraente originário, na falta de nomeação), o direito de determinação da prestação (art. 400.º; de resto a realizar em termos equitativos se outros critéros não tiverem sido estipulados, mesmo que pertença ao devedor) e o direito de escolha nas obrigações genéricas ou alternativas (arts. 539.º e ss. e 543.º e ss.), o direito de aceitação (pura e simples ou a benefício de inventário) da herança. Em todos estes direitos ou pelo menos nalguns, conforme assinala E. BÖTTICHER (autor que deles se ocupou em especial, chamando a atenção para as suas particularidades, tendo-os denominado “ausfüllende Gestaltungsrechte”, “direitos

preenchedores”, por oposição aos “einbrechenden

Gestaltungsrechte”, os quais “nadariam contra a corrente”), existe um “momento criador” (obtível também, em regra, por acordo entre as partes), ausente da generalidade dos direitos do tipo de que nos ocupamos, os quais normalmente têm uma função autonomizável e

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estão dirigidos a um objectivo final unívoco (ver todavia o que se diz adiante sobre os “direitos autónomos” e sobre os “direitos de direcção”).

Muito próximos encontram-se aqueles direitos potestativos a que se poderá denominar “adaptativos” ou “actualizativos” do conteúdo de uma relação a novas e diferentes circunstâncias ou vicissitudes. Haja em vista apenas o direito de alteração do contrato nos termos do art. 437.º, o direito de redução do preço da obra conferido no art. 1222.º. E atente-se ainda em certos direitos potestativos com efeitos mais ténues, apenas “consolidativos” ou “confirmativos” (mas tais expressões nem sempre se revelarão muito felizes). Assim, o direito de adesão do terceiro beneficiário num contrato a seu favor (art. 447.º), cujo resultado do respectivo exercício consiste apenas (visto que o terceiro não precisa de aceitar adquirindo o direito ao benefício ou à prestação independentemente da aceitação, nos termos do art. 444.º, n.º 1; haver ainda que considerar eventualmente como efeito da adesão a extinção do poder de rejeição pelo terceiro não muda muito as coisas) em excluir a possibilidade de revogação, em extinguir esse outro direito potestativo (também ele extintivo, ou mais em geral de disposição do benefício) da contraparte (referimo-nos, claro, ao promissário a quem pertence o direito de revogação assim extinto; embora a lei, no n.º 3 do art. 447.º, exija que a revogação seja feita tanto ao promitente como ao promissário, mas a comunicação ao primeiro tem apenas a ver com a necessidade que se lhe reconheceu de saber se ainda pode ser dispensado da obrigação de fazer a prestação ao terceiro – a fórmula utilizada por muitos autores “saber se está obrigado ou não a satisfazer a prestação” é pelo menos dúbia). O direito de renúncia à herança, o qual, dentro do sistema da aditio subjacente à nossa lei, apenas exclui a futura aceitação (ou seja, analisa-se numa renúncia ou extinção do direito potestativo de aceitação – se este assim se pode configurar, ao ser aí difícil identificar um estado de sujeição

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correspondente – que só ele traria a aquisição, retroactiva embora, da herança). Ou o direito de confirmação (ao qual voltaremos), cujo exercício no essencial preclude o direito de anulação. Ou o direito de revogação ou rejeição do negócio celebrado sem poderes, pelo qual se extingue o direito de ratificação da outra parte (direito potestativo constitutivo – conquanto haja quem negue tal classificação, pelo menos nos casos referidos, precisamente por existir um direito de revogação ou rejeição da contraparte – cujo exercício teria como efeito conceder eficácia ao negócio representativo, passando este a ter efeitos em face do representado, como inculcam os dizeres da lei, conquanto se julgue difícil conceber, até uma eventual ratificação, uma verdadeira vinculação negocial com correspondentes deveres apenas para a contraparte, donde não se ter mencionado acima como consequência do direito de revogação a supressão de tais efeitos); ou o direito de assinalar um prazo para a ratificação (próximo aliás de uma revogação a termo certo suspensivo ou, noutra possível configuração, de uma revogação condicionada suspensiva ao facto negativo da não ratificação durante certo prazo), cujo efeito será o de considerar esta negada se não tiver lugar dentro de tal tempo, tornando-se, por conseguinte, o negócio representativo de interinamente em definitivamente ineficaz. Ou o direito de retractação ou revogação de uma declaração antes da sua eficácia (cfr. nomeadamente art. 230.º e 235.º). Ou a revogação do testamento. Como se constata, nestes casos – ao contrário do que acontece por exemplo na revogação do mandato (art. 1170.º) ou da procuração (art. 265.º, n.ºs 2 e 3), ou da doação por ingratidão do donatário (arts. 970.º e ss.) –, o exercício do direito potestativo não extingue uma relação preexistente (e efectiva) mas apenas impede que ela se possa vir a constituir (efectivamente).

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Como se vê, e teremos oportunidade de comprovar, sucede que

alguns direitos potestativos, a que poderemos chamar

“contra-direitos potestativos”, tenham como efeito o não surgimento de outro direito em sentido estrito ou potestativo (ou a impossibilidade de ele surgir ou de ser exercido; também se deparará com direitos potestativos dirigidos à inutilização dos efeitos decorrentes do exercício de outros direitos potestativos, levando à reversão à anterior situação – na classificação dos “actos de fala”, os reversible performatives ou, parafraseando o conhecido título de

AUSTIN, “how to undo things with words”). Ou impeçam a renovação

de certa relação (assim, a oposição à renovação do contrato de arrendamento, nos termos do arts. 1054.º, n.º 1).

Como indicou SECKEL, a anterior divisão ou classificação, atinentes à natureza do efeito desencadeado, ao resultado obtido, não se mostra perfeita: existem direitos potestativos cujo exercício produz simultaneamente efeitos dessas várias espécies, e, muitas vezes, quer para o titular do direito quer para o sujeito passivo (e eventualmente para terceiros). A resolução de um contrato não só põe fim aos efeitos contratuais (ou às obrigações de prestar) como instaura obrigações recíprocas de devolução das prestações. O mesmo ocorre na anulação (destacando aliás alguns autores que ela surte um efeito impeditivo e não extintivo). A rejeição do terceiro beneficiário num contrato a seu favor (art. 447.º, n.º 1), exercício de um direito potestativo, acto negocial renunciativo, destrói retroactivamente o seu direito, mas tem também consequências, na relação entre o promissário e o promitente, por vezes constitutivas ou modificativas – reverter a prestação para o promissário, passando este a poder exigir que esta seja realizada a ele ou até que de todo em todo ela seja cumprida (cfr. art. 444.º, n.º 2, parte final). E o exercício de um direito de opção (para quem veja nele um direito potestativo), constituindo um contrato (bilateral), faz surgir direitos e deveres para ambas as partes.

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Mas as objecções apresentadas serão ladeadas se se toma como critério os efeitos directamente produzidos e intencionados na relação ou situação imediatamente atingida, da perspectiva do titular do direito potestativo. Claro que, em concreto, as repercussões do exercício se revelam as mais díspares: de índole real, de índole obrigacional, de índole potestativa, efeitos ex nunc, efeitos ex tunc; etc. Tal diversidade não contenderá todavia com a unidade do conceito. Porém, uma cesura, com tradução a nível do regime, parece existir entre os direitos positivos (basicamente, os constitutivos) e os negativos (fundamentalmente, os extintivos) – e portanto uma certa falta de unidade interna do conceito (assim, por exemplo, ROLF STEINER).

Numa outra classificação aparentada com a anterior, os direitos potestativos repartir-se-ão em puramente vantajosos para quem os exerce, e em detrimento do sujeito passivo (e só estes queria RUDOLF SOHM incluir entre os direitos potestativos, por só para o respectivo círculo ser possível enunciar regras suficientemente gerais; embora indique que entre os “negócios de conformação” em desfavor da contraparte também se contem muito excepcionalmente contratos), desvantajosos, e em favor por conseguinte da contraparte (logo ocorrerão aqui os actos de renúncia que constituam o exercício de um direito potestativo e a própria confirmação de um negócio anulável), simultaneamente vantajosos e desvantajosos, e neutrais. Também esta classificação se mostra relativamente imprecisa (e por razões em parte paralelas àquelas com que acima se confrontou a classificação dos direitos potestativos em constitutivos, modificativos e extintivos) e conhece várias nuances (numa apreciação divergente segundo a perspectiva em que nos coloquemos: acima tomamos a posição do titular, mas também para este haveria muitas vezes que proceder a um saldo que se subtrai eventulamente a uma consideração

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objectiva; demais o efeito vantajoso ou desvantajoso para o titular não tem de, imediata e necessariamente, redundar numa consequência prejudicial ou beneficiosa para a contraparte).

A este propósito, quer-se apenas aludir a dois aspectos particulares. O primeiro é o de que a ordem jurídica, por vezes, impõe (ainda) uma obrigação à contraparte de ressarcir os prejuízos causados e, eventualmente, as vantagens frustradas para o titular do direito em virtude do seu exercício, sobretudo se através da concessão daquele quis facultar um meio para pôr fim ou remediar uma actuação ilícita imputável à outra parte. Haja em vista a anulação de contrato por dolus malus e o concomitante surgimento de uma obrigação de indemnização, a cargo do deceptor, fundada nomeadamente no art. 227.º; ou a hipótese de inadimplemento definitivo imputável ao devedor, onde a resolução se cumula com um direito de ressarcimento pelos danos sofridos pelo credor. O segundo ponto tem a ver com a existência de direitos com efeitos neutros. Nestes poderão inserir-se ainda, se a categoria for de acolher (a principal objecção residirá na ausência, po regra, de um interesse próprio do terceiro), aqueles com efeitos numa relação ou situação onde não participa o autor da declaração, por exemplo a escolha de uma das prestações alternativas ou a determinção do preço por um terceiro. Por os efeitos se darem na esfera doutro sujeito, R. STEINER, classifica-os até dentro dos “Stellvertretungstatbestände” – embora, nalguns casos, em utilidade ou benefício de quem age e não do “representado” (ou não estritamente deste), como no caso da procuração no interesse do representante (concebível é também que a determinação da prestação por um terceiro sirva o interesse ou objectivos deste, haja em vista a hipótese de várias “vendas encadeadas” ou de o comprador ir utilizar os materiais comprados numa obra do terceiro).

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7. Uma espécie de direitos potestativos – que deve ser realçada pela sua função específica, e correspondendo aos principais casos no

começo subsumidos na categoria, dando-lhe origem, os

“Ur-Gestaltungsrechte”, como lhes chamou H. HELMREICH – consiste naqueles, mais frequentemente extintivos, com uma finalidade de “compensação ou correcção” (ditos por isso “ausgleichende Gestaltungsrechte”), de “defesa ou reacção”, visando repor o equilíbrio da relação e dos interesses em presença, eventualmente rompido ou (pe)turbado pela outra parte, reagindo contra a ilicitude desse comportamento, contrapondo-se à pretensão ou direito daquela (trata-se, por isso, dos casos mais importantes de

“contra-direitos”, “Gegenrechte”, aliás confinantes com as

“excepções”, as quais de resto desempenham muitas vezes uma função similar à que aqui está em causa – pense-se apenas na excepção de não cumprimento ou no direito de retenção). São, entre outras, várias das hipóteses dos direitos de anulação (mormente por dolo, por coacção moral, por usura), o direito de revogação da doação por ingratidão do donatário, o direito de resolução,

nomeadamente por incumprimento e por alteração das

circunstâncias. Porventura, como sublinha R. STEINER, a ausência de uma “posição de privilégio” e a ilicitude do comportamento da contraparte justificam neste domínio a atenuação de certas das precauções que em geral rodeiam a concessão de direitos potestativos e o seu exercício.

Próximos da categoria anterior, e em boa parte intersectando-a, estão certos direitos potestativos que acabam por representar também uma excepção à regra de que os contratos só se podem extinguir (ou modificar) por mútuo consentimento das partes (pacta sunt servanda; mas aqui está em jogo mais genericamente a vinculação a uma promessa, à palavra dada, ao declarado).

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Consistem em “direitos de eliminação ou remoção”, “Beseitigungsrechte”, de uma declaração ou de um negócio ou contrato, dos respectivos efeitos ou do respectivo Tatbestand (da vinculação, afinal; e não sendo os seus fundamentos atinentes a circunstâncias supervenientes ao negócio, por exemplo respeitantes à fase de cumprimento). Para os quais será possível descobrir uma estrutura minimamente unitária e decantar regras gerais (a que PETER MANKOWSKI dedicou recentemente um exaustivo estudo; na doutrina francesa, embora porventura com um âmbito mais vasto, abarcando os direitos potestativos com “efeitos destrutivos” – embora o autor que cunhou a expressão tivesse em vista basicamente a nulidade – lembre-se a categoria dos “droits de critique” adoptada por RENÉ JAPIOT). Aí se inserirão a revogação da proposta e da aceitação (apesar de o seu efeito ser meramente o de impedir que outra declaração se torne eficaz, o de “remover antecipadamente” tais efeitos), a generalidade dos casos de anulação, o “direito de livre resolução do consumidor”, a revogação ou rejeição do negócio pela contraparte na representação sem poderes, a revogação do testamento, etc.

8. Apontar-se-á desde já que, embora o direito potestativo – uma (mera) potência – tenha com o seu exercício uma relação especial, um íntimo e inextrincável nexo, sendo até muito dificilmente pensável sem se convocar do mesmo passo os efeitos para que tende – como já se intui e será amplamente glosado ao longo destas páginas (e se documenta particularmente bem nas hesitações experimentadas quanto aos direitos potestativos de exercício judicial e na aplicação indiscriminada, como E. BÖTTICHER denunciava, de limites legais para controlo do conteúdo de negócios jurídicos ao controlo do exercício dos direitos potestativos – conquanto na prática faça quase nenhuma diferença invocar aqui, tomando o direito português, o art. 280.º ou o art. 334.º, no relevo aí concedido aos bons costumes) –, se impõe

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distinguir entre, por um lado, o surgimento ou a existência do próprio direito (dados certos pressupostos) com a sua relevância própria – por exemplo, haver (doravante) o direito de resolver, anular ou impugnar o contrato (resolúvel, anulável impugnável), ou ter o direito ou poder de constituir uma servidão (legal) – e o correlativo estado de sujeição, e, por outro, o respectivo exercício e os daí emergentes efeitos (nomeadamente os direitos e as correlativas obrigações resultantes) – por exemplo, instauração de uma “relação de liquidação” ou destruição da relação contratual, com os correspondentes direitos e obrigações de restituição do que foi prestado, ou existência de um direito (real) de passagem (encargo constituído). A distinção, longe de ser especiosa, revela-se fundamental para caracterizar devidamente os direitos potestativos. E para demarcá-los das simples manifestações da autonomia privada e da capacidade jurídica geral, por um lado, e das faculdades ou poderes contidas no comum dos direitos subjectivos ou integrando o respectivo conteúdo. Havendo, quanto a este último ponto, que afastar a objecção de que todo o conceito (de direito potestativo) representa um “inútil e perigoso duplicado” ou uma excrescência, “pois a mutação jurídica, que deveria surgir como efeito do direito potestativo, por meio da manifestação da vontade do próprio sujeito do direito, [já preexistiria afinal] como direito a tal manifestação, a qual [serviria apenas] para tornar actual a obrigação logo presente

com o estado latente” (GIUSEPPE AULETTA; em exposição no

fundamental da concepção de FRANCESCO CARNELUTTI), ou seja, a ideia de que a própria manifestação representaria o exercício do direito (o qual aquela, na teoria corrente do direito potestativo, deveria antes criar). Só se escapará a semelhante aporia, conseguindo-se, antes já do exercício do direito potestativo, identificar uma situação jurídica

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especial tutelada juridicamente, manifestando-se num poder jurídico específico a que corresponde uma concreta posição de sujeição.

Ademais, será viável separar o nascimento do direito potestativo do condicionalismo que o torna exercitável. Nomeadamente, os pressupostos ou fundamentos do seu surgimento nem sempre terão de continuar a estar presentes na altura do exercício. E, ao invés, os “condicionalismos” da sua actuação poderão incluir exigências ou condições próprias (adicionais; cuja inobservância acarretará normalmente como consequência a ineficácia). De uma maneira mais geral, o exercício do direito potestativo tem de obedecer a certos requisitos (de eficácia ou de “regularidade”) para se darem os efeitos intencionados. Neste contexto, convém também distinguir entre eventuais “causas de exclusão” atinentes ao exercício do direito ou à declaração correspondente, e “pressupostos negativos” do próprio direito, impedindo ou pospondo o seu surgimento ou restringindo o seu conteúdo. Por exemplo, o direito de compensação fica excluído nas hipóteses descritas no art. 853.º; a revogação da doação por ingratidão está afastada nas situações referidas no art. 875.º. Por vezes, aliás, a lei alude à renúncia ao direito como um pressuposto negativo extintivo. Mas aí, como noutros casos – a mero título de exemplo indique-se o disposto no art. 851.º, n.º 2 – tais elementos (negativos) apenas preenchem, na economia da facti species, uma mera função aclarativa.

Por outro lado, retomando o anterior fio de pensamento, a existência do direito em si é capaz de assumir relevância própria, ter

consequências materiais (inibitivas), porventura com uma

consistência não directa e imediatamente subsumível na relação em que se integra nem nos efeitos que aí venha a produzir, para além da possibilidade de valoração jurídico-económica própria expressa eventualmente na possibilidade de (autónoma) renúncia, transacção e de transmissão (entre vivos e mortis causa). Estamos a pensar naqueles casos onde a existência do direito, por si (mas a

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necessidade de invocação como “excepção” – dilatória? – não terá aqui um significado independente?), coíbe o exercício de certo diferente direito ou pretensão de outro sujeito. Assim, a anulabilidade é susceptível de ser invocada, extrajudicialmente (e de resto, a todo o todo o tempo, art. 287.º, n.º 2), para negação do cumprimento pelo sujeito legitimado. E a impugnabilidade do negócio donde provém a obrigação justifica a recusa do cumprimento por parte do fiador (art. 642.º, n.º 2). Este segundo caso afigura-se mais representativo, pois trata-se neste contexto sobretudo, como se compreende, de situações onde àquele a quem está facultada a invocação da “excepção” não é o titular do direito potestativo (de natureza pessoal, pois doutro modo o fiador poderia socorrer-se do disposto no art. 637.º), mas sim parte de uma relação conexa, costumando falar-se aqui de excepções ex jure tertii. Além disso, há-de assinalar-se o carácter extraordinário de semelhante possibilidade, pois ela traduz-se, como também observa E. BÖTTICHER, em adiar a aclaração da situação imediatamente alcançável com o exercício do direito potestativo (embora os exemplos acima figurados tendam a ser, entre nós, de direitos cujo exercício carece de uma acção judicial), enquanto a “excepção” quer precisamente evitar a demora decorrente de se ter de fazer valer a pretensão em juízo através de uma acção ou de uma “contra-acção” (o autor salienta ainda a diferença entre estas situações e aqueloutras onde a “excepção” consiste na invocação da existência de um direito subjectivo sensu stricto à extinção do direito a que aquela se opõe). Outros casos de efeitos materiais do mesmo género dos anteriores serão identificados quanto às “excepções” (algumas das quais porventura integráveis nos direitos potestativos).

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9. Muito sucintamente (a certos aspectos mais específicos teremos oportunidade de voltar) diga-se que os direitos potestativos podem surgir da vontade contratual das partes (ou porventura até unilateral, como à frente se aventa) ou directamente da lei. Terem proveniência convencional ou legal. Alguns são susceptíveis de nascerem de ambos os modos.

Não parece que se possa defender na nossa ordem jurídica a existência de um numerus clausus de direitos potestativos. Antes intervirá aqui o princípio da autonomia privada e da liberdade contratual (art. 405.º): a modelação ou conformação do conteúdo da relação é deixada, dentro dos limites da lei, ao critério das partes. Nisso se compreenderá a possibilidade de criação de direitos potestativos, cujo exercício venha a incidir sobre essa mesma relação. O mútuo consentimento necessário para a alteração ou extinção da relação contratual, exigido pelo art. 406.º, n.º 1, pode perfeitamente exprimir-se antecipadamente e traduzir-se no direito atribuído a uma das partes de produzir esse efeito. São pensáveis diversíssimas hipóteses em que isso corresponde a um interesse atendível das partes (conquanto a nossa lei se mostre nalguns desses casos mais previdente do que outras, por exemplo admitindo direitos de preferência tendo por objecto outros contratos que não apenas o de compra e venda, nos termos do art. 423.º). O princípio da tipicidade que vigora para os negócios unilaterais segundo o art. 457.º (e cuja justificação muitas vezes se coloca em tela de juízo) não se afigura, pelo menos segundo a sua letra (que refere a

“promessa unilateral de uma prestação”), aplicável ao

estabelecimento convencional (e, portanto, nesse sentido sem quebra do “princípio do contrato”) de direitos potestativos (sendo certo que estes serão, por regra, exercidos mediante um negócio unilateral). A protecção necessária da contraparte sujeita ao exercício do direito, se de algum modo se mostra mais premente, não diferirá substancialmente da que se lhe concede noutras situações e vínculos,

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nomeadamente obrigacionais, a que se submeteu voluntariamente (sobre isto ver ainda adiante), e da que em geral decorre das cautelas que devem rodear sempre o exercício dos direitos potestativos. Os limites legais, a ordem pública e os bons costumes intervirão também aqui. Assim como hão-de ser salvaguardados eventuais interesses de terceiros, nomeadamente o da não produção de efeitos (desfavoráveis) para eles (nos mesmos moldes dispostos para a eficácia dos contratos em relação a terceiros – cfr. art. 406.º, n.º 2). Com tais ressalvas, não se excluirá liminarmente sequer a viabilidade da criação por acordo de direitos potestativos com alcance real (incidindo sobre direitos reais). Tão-pouco o princípio da tipicidade que vigora em matéria de direitos reais (e cuja justificação também não é absolutamente convincente) parece impor solução diferente. Aliás, segundo a interpretação que temos por melhor, o art. 1306.º diz respeito aos próprios direitos e não às formas ou modos por que eles podem ser constituídos (desde logo, embora prevendo a lei a possibilidade de um direito real se transferir por contrato, não arreda a hipótese de poder ser ele atípico ou inominado). A necessidade de certeza e clareza das relações jurídicas reais será aqui servida pelos mesmo instrumentos predispostos legalmente para a sua conformação consensual. Concebíveis são ainda, salvo quando a lei o proíbe e nos limites da ordem pública e dos bons costumes, alterações convencionais aos direitos potestativos legalmente conferidos.

10. Vários autores acentuam o carácter “secundário”, “acessório” ou “adjectivo” (mas, para o aspecto que agora está em destaque, calhará melhor a qualificação de “meta-direitos” ou “direitos de segundo grau”) dos direitos potestativos. Como vimos, assim procede E. ZITELMANN, notando que eles incidem, do “exterior”, nos “direitos

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primários”. E CHIOVENDA indica que, mesmo quando têm um fundamento autónomo (como no caso de indignidade para suceder), tal traço não fica ausente: o direito aparece como meio para remover um direito existente, ou como “tentáculo de um direito possível que aspira a surgir” (esse direito actual ou possível imprimiria ao direito potestativo o seu carácter patrimonial ou não e o seu valor). Por seu lado, A. VON TUHR reconduz os direitos potestativos à categoria dos “direitos secundários” (sekundäre Rechte – designação que A. VON TUHR acaba por preferir à designação de E. ZITELMANN de Rechte des rechtlichen Könnens, concedendo embora que esta última traduz certeiramente o conteúdo precípuo de tais direitos), consistindo na faculdade (“competência” ou “autorização” – “Befugnis”) de afectar um outro “direito de senhorio ou domínio”, na titularidade do mesmo sujeito ou doutro, ou uma relação jurídica (no caso, semelhante faculdade não se subsumiria no direito primário, por ter pressupostos próprios ou existir autonomamente sem ligação com o “direito de domínio”). Segundo o autor, aí se inseririam ainda o poder de representação – que juntamente com o poder de disposição, Verfügungsmacht, constituiria aquilo que o mesmo autor chama Machtbefugnisse – e os “direitos de apropriação”, Aneignungsrechte. Repisa também o aspecto em apreço L. RAISER, integrando os direitos potestativos, ao lado das “pretensões”, nos “direitos secundários”, aos quais atribui uma mera função auxiliar ou ancilar, “instrumentos da técnica jurídica ao serviço da protecção e realização, sobretudo por via processual, das posições e relações jurídicas primárias”, e cuja inserção, embora hajam adquirido dogmaticamente autonomia, na categoria dos direitos subjectivos (conjuntamente com os direitos primários) dificultaria todas as tentativas de definição destes, dado a sua função e peso muito específicos.

Particularmente quanto aos “direitos potestativos originários (ou autónomos)”, estes, como aqui os entendemos, não pressuporiam nem derivariam de uma prévia ou pré-constituída relação,

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faltando-lhes, portanto, a nota da “alteridade”. E, diferentemente do que sucede nos direitos “potestativos derivados”, o titular pelo seu exercício (o qual, de resto, em muitas situações seria difícil de destrinçar do direito em si) alteraria apenas a sua própria esfera jurídica (o que é menos viável nos direitos potestativos modificativos e até nos extintivos). Assim, não lhes corresponderia nenhum estado de sujeição do outrem, de determinado sujeito. Quando muito, atingiriam apenas mediata ou reflexamente, per reflexum, a esfera alheia. SECKEL designou-os por “direitos de autoconformação”, “Eigengestaltungsrechte”, entre os quais se destacariam os “direitos de apropriação”, “Zugriffsrechte” (por oposição, atendendo à esfera afectada, aos “direitos de intervenção”, “Eingriffsrechte”, que contendem directamente com o círculo de determinada ou determinadas pessoas; a distinção de SECKEL, pelo menos vertida nesses termos, não conheceu porém grande sucesso), como será o caso da ocupação (fala-se também de “Aneignungsrechte”). Se se quiser, os efeitos dão-se em face de todos, ou de ninguém em particular senão o próprio (notar-se-á que o mesmo se dirá nos casos de renúncia puramente abdicativa ou sendo os efeitos atributivos associados considerados “meros” efeitos legais ulteriores). E, logo por

isso, como assinala DIETER MEDICUS, se compreende não ser

necessário, nem possível, exigir para a produção dos efeitos uma declaração dirigida a uma outra pessoa. Aí se inseririam, o testamento, a promessa pública, a instituição de uma fundação, o abandono, a ocupação.

Porém, a nós parece-nos que o “Eingriffwirkung” (automático) numa esfera alheia deve ser encarado, conforme o faz a maioria dos autores, como um elemento de uma “importância eminente”, espelhando o núcleo, uma nota essencial ou maiúscula do respectivo conceito. Muitas das especificidades e dos problemas de regime dos

Referências

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