R.Pol.públ., v. 8, n.2, p.171-182, jul./dez.2004
O PROCESSO DE FOCALIZAÇÂO NO PLANO NACIONAL DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL
Maria Eunice Ferreira Damasceno Pereira
*Maria Virgínia Moreira Guilhon**
RESUMO
Análise do processo de localização no contexto da Política Nacional de Qualificação do Trabalhador - PLANFOR. Discutem-se as modificações recentes do Capitalismo em âmbito mundial, situando a localização no contexto das inovações adotadas nos processos de gestão pública com vistas à redução e à racionalização dos gastos enquanto parte das estratégias de enfrentamento da crise capitalista. Parte-se de alguns resultados obtidos pela política para mostrar os limites desta estratégia de focalizaçào na vigência de medidas macroeconômicas desfavoráveis ao investimento produtivo e ao emprego.
Palavras-chave: Focalizaçào. Qualificação profissional. Brasil.
l INTRODUÇÃO
De 1996 a 2002, foi implementado o Plano Nacional de Educação Profissional (PLANFOR), definido como um dos programas prioritários do Governo federal na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Esse Programa tinha em vista contribuir para a construção de uma política pública de trabalho e renda no país que pudesse atender às demandas postas pelo novo momento de internacionalização capitalista, de reorganização produtiva e de reforma do Estado assim como atenuar os efeitos da política de estabilização económica sobre o mercado de trabalho brasileiro. Nessa perspectiva, visava garantir a empregabilidade dos treinandos, sendo esta "entendida não apenas como a capacidade de conseguir
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Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão e aluna do Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduaçâo em Economia Aplicada d do Instituto de Economia da UNICAMP.
**Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão e aluna do Curso de Doutorado do Programa
de Pós-Graduação em Economia Aplicada d do Instituto de Economia da UNICAMP.
um emprego, mas de manter-se em um mercado de trabalho em constante mutação".
(BRASIL, MTb. SEFOR, 1995).
Para fazer face a esse desafio, o Plano objetivava ofertar ações de qualificação e requalificação profissional, em bases modulares e permanentes, contemplando conteúdos de habilidades básicas, específicas e de gestão. Em termos de meta, o Plano previa uma ampliação gradativa da oferta de ações de qualificação, de modo a atingir capacidade suficiente para qualificar ou requalificar, anualmente, pelo menos 20% da PEA (População Economicamente Ativa). Para tanto, propunha a articulação dos diferentes sujeitos que atuam nesse campo, ou de natureza pública ou privada, promovendo integração das ações e a potencialização dos recursos existentes. Pretendendo incorporar ainda outros aspectos inovadores no campo da educação profissional, o PLANFOR propunha uma atuação articulada com os demais eixos da Política de Trabalho e Renda (intermediação de mão-de- obra, seguro desemprego e programas de geração de renda), além de conexão com as demais políticas públicas vigentes, especialmente com a educação básica.
Ademais, o PLANFOR se embasava nos princípios da descentralização e da participação da sociedade civil tendo o poder público a responsabilidade de definir os parâmetros operacionais e a alocação dos recursos. Sendo assim, o processo de implementação da política se efetivou através de dois mecanismos - os Planos Estaduais de Qualificação Profissional (PEQ's) e as parcerias firmadas com as entidades e organizações formadoras como o Sistema S, outros órgãos e Ministérios.
A clientela-alvo do Plano, sobre a qual foram focalizadas as ações de qualificação, foi constituída de trabalhadores de baixa escolaridade, desempregados, trabalhadores afetados pela reestruturação produtiva e segmentos de população em desvantagem social (jovens, mulheres, negros, detentos etc.).
O presente artigo trata exatamente da focalização como mecanismo de gestão das Políticas Públicas, buscando analisar os paradoxos deste conceito, seus limites e possibilidades de efetivação. No caso particular do PLANFOR, procurou-se caracterizar como ele se efetivou nessa política, ou seja, verificar se de fato ele atendeu (e em que medida) a quem se propôs fazê-lo.
Para tanto, discutiu-se a crise de acumulação que o capital vem enfrentando desde os
anos 1970, ensejando o ressurgimento ou revigoramento de perspectivas teóricas e
políticas de cunho
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conservador, que colocou a necessidade de assegurar a liberdade do mercado e, portanto, promover a desregulamentação, flexibilização, descentralização, assim como a focalização e a participação da sociedade civil no processo das Políticas Públicas. A seguir, discorreu- se sobre o princípio da focalização no campo das Políticas Públicas, tomando como referência o PLANFOR para, logo após tecer algumas considerações finais.
2 CRISE DO CAPITAL E REFORMA DO ESTADO: a focalização como estratégia de ajuste
A inflexão, a partir dos anos 1970, no padrão de acumulação vigente desde a II Guerra Mundial ocorreu a queda na taxa de lucro da indústria, como consequência do acirramento da concorrência intercapitalista e da desaceleração no ritmo de crescimento da produtividade industrial. Diante desse quadro, o capital buscou deslocar fundos monetários para a esfera financeira, inserindo-se nesse contexto e reforçando um amplo processo de financeirização da Economia em âmbito mundial.
Diante disso, os Estados Nacionais foram seriamente afetados na sua capacidade de tomar decisões de política económica porque ficaram presos à necessidade de mostrar credibilidade aos mercados financeiros. Com isso, os governos passaram a adotar, sob orientação neoliberal, medidas de combate à inflação, por meio de políticas monetárias restritivas e políticas orçamentarias contencionistas, em detrimento do crescimento económico e do emprego. Paralelamente, o Estado passou a reforçar a competitividade e a inserção da Economia nacional na nova ordem mundial globalizada.
Essa postura, aliás, veio atender também às exigências colocadas pêlos processos de reestruturação promovidos pelo capital que permaneceu na esfera da produção. Tais processos significaram a reformulação do paradigma produtivo e tecnológico até então dominante e a mudança nos padrões competitivos.
Para isso, foi quebrado o modelo até então vigente de estabelecimento das normas
salariais e contratuais, expresso nas Negociações Coletivas, e foram eliminadas ou
fortemente reduzidas as legislações social e trabalhista que exerciam controle social sobre
a alocação e o uso da força- de- trabalho pelas empresas. Ao mesmo tempo, as políticas de
integração do Welfare State, de cunho universalista e redistributivo, foram substituídas
pelas chamadas
políticas de inserção, de caráter residual e focalizadas nos grupos mais vulneráveis para atender aos imperativos da redução dos gastos.
No Brasil, esse quadro se apresentou mais claramente só nos meados dos anos 90 do século XX e se efetivou em consonância com as determinações colocadas pelo Consenso de Washington para os países subdesenvolvidos: "(...) abertura das economias nacionais, desregulação dos mercados, corte nos gastos sociais, flexibilização dos direitos trabalhistas, privatização das empresas públicas e controle do déficit fiscal". (Dei PINO, 2001, p. 72). Esse processo exigiu reforma do Estado com vistas a promover uma revisão dos seus mecanismos de gestão político-administrativos que racionalizasse suas ações e melhor objetivasse os gastos. Desse modo,
Altera-se, substancialmente, a orientação e a funcionalidade das Políticas Públicas. Sua orientação se modifica na medida em que estas são retiradas da órbita do Estado, ou seja:
são privatizadas, ao passarem para o âmbito da sociedade civil;
sua orientação muda igualmente na medida em que não assumem mais uma perspectiva de universalização, quer dizer, passam a ser focalizadas em determinados grupos carentes; da mesma forma, sua orientação se altera visto que passam a ser desconcentradas, ou seja, descentralizadas. (GUILHON e PEREIRA, 2002, p. 118).
Para Oliveira (1999, p. 76), o Estado reformado de acordo com os ditames neoliberais fica "condenado a ser o algoz de seu próprio povo", haja vista que perde sua capacidade de administrar sua moeda, privatiza o património público, é obrigado a fazer acordos extorsivos para pagamento da dívida externa e cortes orçamentários constantes com vistas à redução do déficit fiscal. Desse modo, ele fica imobilizado para fazer política de desenvolvimento ampla que venha promover a incorporação social de todos. Neste cenário, crescem as assimetrias e reduz-se a capacidade de seu enfrentamento pêlos Estados Nacionais, sobretudo naqueles mais pobres.
Nesse contexto, em que o aumento da demanda (devido à retração dos níveis de
emprego, a precarização nas formas de inserção no mercado, assim como ao rebaixamento
dos ganhos decorrentes do trabalho) ocorre concomitantemente aos cortes nos gastos
sociais, os organismos internacionais preconizam a focalização das Políticas Públicas, além
da sua privatização e descentralização, conforme definido abaixo:
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focalização, que se apoia na comprovação de que o gasto social do Estado não chega, salvo em ínfimas proporções, aos setores pobres. Em consequência, é necessário redirecionar o gasto para concentrá-lo nos setores de maior pobreza;
privatizaçào dos serviços que teria o significado de diminuir o compromisso do Estado com aquelas camadas da população que dispõem de recursos para comprar no mercado os bens e serviços de que necessitam; e
descentralização da gestão e operação dos serviços que é entendida como a abertura de possibilidades de melhor interação, a nível local, dos recursos públicos e dos não- governamentais para o financiamento das atividades sociais, assim como a introdução de formas alternativas de produção e operação dos serviços, mais facilmente organizadas a nível local, municipal, etc. (DRAIBE et ai, 1991, p. 110)
Contudo, ainda que seja justificada como estratégia capaz de elevar o padrão de eficácia do gasto social, ou seja, com potencial para garantir recursos nas áreas e grupos mais atingidos pela pobreza, a focalização promove, na verdade, ações residuais e compensatórias, desde que seus potenciais resultados são anulados pêlos efeitos perversos produzidos pela política económica. Esta, pautada na busca da estabilidade, no controle da inflação e no equilíbrio orçamentário, produz situações numa proporção maior do que a capacidade de atendimento das políticas sociais.
Portanto, a focalização vem se constituindo em princípio orientador das políticas sociais e não somente daquelas destinadas aos tradicionalmente excluídos do mercado de trabalho; vem fundamentando também as ações voltadas aos válidos e aos qualificados que, vitimados pelo desemprego e pela precarização das relações de trabalho, passaram a se constituir, tal como aqueles, segmentos vulnerabilizados pelo atual modelo de acumulação.
3 LIMITES DA FOCALIZAÇÃO: o caso do PLANFOR.
O público-alvo do PLANFOR foi definido a partir de dois mecanismos de focalização. O primeiro, tendo como referência o mercado de trabalho, direcionou as ações para quatro grupos:
pessoas desocupadas, em risco de desocupação, empreendedores e que trabalham de forma
autónoma, associada ou autogerida. O segundo priorizou o acesso a pessoas consideradas
mais vulneráveis económica e socialmente e com escassas oportunidades de qualificação.
Inicialmente, é importante destacar que houve, no PLANFOR, crescimento constante e significativo das metas físicas, pelo incremento gradual do número de pessoas treinadas.
Especificamente quanto à cobertura, isto é, ao percentual de treinandos no conjunto da PEA (População Economicamente Ativa), esta cresceu gradativamente, seguindo a ampliação da cobertura municipal pelas ações de qualificação, como resultado do esforço de descentralização da Política. Nesse processo, ampliou-se, de forma relevante, a participação daqueles grupos considerados mais vulneráveis, a saber daqueles constituídos de desocupados, dos sem renda, de mulheres, especialmente as mulheres chefes de família, dos negros, das pessoas menos escolarizadas etc.
Apenas para exemplificar, no Maranhão, o número de trabalhadores qualificados passou de 6.000 em 1996 para 108.000 em 2001, o que representou um incremento da ordem de 1.700% nesse quantitativo. Por outro lado, o órgão estadual encarregado pela implementação do Plano aumentou sua eficiência em termos de cumprimento de metas de tal forma que em 2001 conseguiu atingir 97,30% da meta de treinandos contratada com o Ministério do Trabalho, em contraste com o ano de 1996, quando só alcançou 46,15% dos trabalhadores objetivados. A esse aumento da meta realizada de treinandos correspondeu um incremento de 207,5% dos investimentos realizados entre 1996 e 2001, resultando numa redução significativa no custo-aluno, que passou de R$ 326,60 em 1996 para R$
86,58 em 2001. Ademais, ao longo do período citado cresceu o número de municípios contemplados com as açôes de qualificação: no ano inicial foram atingidos apenas 39,71%
dos municípios do Estado, enquanto em 2001 foram contemplados 99,08% dessa unidade.
(LIMA, 2004)
Todos os esforços e recursos despendidos em âmbito nacional, contudo, resultaram na incorporação de um percentual de trabalhadores que representava, em 1999, apenas 3%
da PEA, o qual sequer ficava próximo dos 20% objetivados pela Política. Ademais, foram tímidos os resultados em termos da eficácia das ações implementadas, sobretudo no que se refere à obtenção de emprego e melhoria de renda.
Um primeiro fator que condiciona e limita uma política de emprego focalizada nos
mais vulneráveis no Brasil diz respeito à
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natureza historicamente heterogénea e excludente do mercado de trabalho brasileiro. Este sempre deixou à margem uma parcela significativa da população que nunca foi incorporada em relações típicas de assalariamento, apresentando, além do mais, um perfil caracterizado por baixo nível de escolaridade e de qualificação profissional. Nos anos 1990, os processos de abertura, de ajuste e de liberalização económica ampliaram as características de informalização e precarização das relações de trabalho no país, fazendo também crescer significativamente o desemprego e a vulnerabilização dos trabalhadores, inclusive de segmentos anteriormente incluídos.
De fato, houve tendência contínua de crescimento do desemprego ao longo da década de 1990, o que resultou em uma taxa que, em 1999, abarcava cerca de um quinto da PEA das regiões metropolitanas consideradas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED).
Se for considerada apenas a Região Metropolitana de São Paulo, o número de desempregados era três vezes maior em 1999 do que em 1989 (MATTOSO, 2001, p. 14).
Por outro lado, o tempo médio de procura de trabalho, que era de 15 semanas em 1989, passou para 40 semanas nos primeiros meses de 1999. Além de segmentos já tradicionalmente discriminados no mercado de trabalho, a configuração atual das relações de trabalho vem colocando maiores dificuldades de inserção tanto para jovens, caracterizando o desemprego de inserção, quanto para trabalhadores de mais idade (40 anos ou mais), inclusive com alta escolaridade, consubstanciando o desemprego de exclusão (AZEREDO, 1998).
Ademais, as oportunidades de inserção têm crescido mais significativamente em setores, em geral, menos estruturados, nos quais predominam relações de trabalho mais flexíveis, com vínculos mais vulneráveis, expressos pela inexistência de carteira assinada, pelo trabalho autónomo em condições precárias, pelo emprego doméstico, etc. Assim, cada vez mais
a dicotomia entre emprego e desemprego foi dando lugar a um
caleidoscópio de situações ocupacionais, em que o emprego em tempo
integral e com proteçào social e o desemprego aberto tornam-se
manifestações cada vez menos representativas das condições de
funcionamento dos mercados de trabalho nacionais. (DEDECCA, 1996,
p.20)
Essa situação vem significando, por outro lado, uma diminuição relativa da taxa de cobertura do seguro-desemprego 1 , ainda que este tenha aumentado, de forma gradativa e constante, não apenas o número de atendimentos realizados como também o volume dos trabalhadores habilitados a receber o beneficio. Realmente, verifica-se uma tendência nacional de ampliação do atendimento do Programa, expresso numa taxa de habilitação (que retraía a relação entre habilitados e atendidos) situada próximo de 100%. Apesar disso, e ainda que o benefício seja relevante como instrumento de reposição da renda para os trabalhadores de níveis salariais mais baixos (AZEREDO, 1998, p. 49), esse Programa não consegue fazer frente às dimensões do problema do desemprego, mesmo no setor formal. Isto porque, além de cair para em torno de 65% a taxa de cobertura, se for considerada a relação segurados/ demitidos sem justa causa, dele ficaram de fora os jovens que estão ingressando no mercado de trabalho, além daqueles demitidos por justa causa ou que estão voluntariamente desempregados. Ademais, o benefício não incorpora o trabalhador por conta própria e também o sem registro em carteira.
Dessa forma, ainda que tenham crescido os recursos disponíveis (com a instituição do Fundo de Amparo ao Trabalhador -FAT), possibilitando a constituição de um Sistema Público de Emprego, isso não redundou em uma proteção efetiva dos trabalhadores por ter ocorrido num quadro de crescimento de demanda maior que a capacidade de atendimento pelas ações públicas. Esse crescimento, por sua vez, expressa a maior vulnerabilização da força-de-trabalho que tem acompanhado a crescente insegurança colocada pelo atual contexto económico.
Nesse quadro, o que se vê é que o crescimento do desemprego e das incertezas diminui as chances daqueles trabalhadores que historicamente estiveram em desvantagem.
Isto porque, por um lado, os empregadores tendem a utilizar as exigências de educação e de qualificação como fator de seleção nos processos de contratação, mesmo que tais exigências não correspondam às competências
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