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A SUBALTERNIDADE, UM PONTO CEGO NA EXPERIÊNCIA DA LOUCURA

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Academic year: 2018

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A SUBALTERNIDADE, UM PONTO CEGO NA EXPERIÊNCIA DA LOUCURA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço Social, sob orientação da Professora Dra. Maria Carmelita Yazbek.

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A pesquisa, realizada na Vila Brasilândia – SP, referiu-se à análise das categorias loucura, cultura e subalternidade na constituição da identidade dos portadores de transtornos mentais considerados graves e incapacitantes, analisando como a psiquiatria subsidiou, através do modelo manicomial de exclusão, o obscurecimento das experiências sociais desses sujeitos, criando, dessa maneira, uma dificuldade a mais na construção de um projeto societário que vise a superação da condição de subalternidade.

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This research studies the categories madness, culture, and inferiority in the identity of individuals with severe mental disorders. It analyses how psychiatry impaired their social experinces with its excluding asylum model, thus adding difficlties for setting up a social project to overcome their subaltern condition. The research was conducted in Vila Brasilândia, a district in the city of São Paulo, Brazil.

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Esta dissertação é dedicada à

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À Professora Maria Carmelita Yazbek, minha doce orientadora, pela acolhida, pelo carinho, pela sua confiança e, muito especialmente, pelo sorriso generoso de todas as horas.

À Professora Maria Lúcia Martinelli, pelo exemplo que vem sendo para mim, desde a primeira aula de Teoria de Serviço Social, em 1975, até hoje, através da coordenação do NEPI – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Identidade, responsável pela minha formação de pesquisadora na Metodologia da História Oral.

À Professora Silvia Helena Simões Borelli, pelas várias oportunidades, dentre elas a de poder compartilhar inestimáveis incursões intelectuais e, principalmente, por ter me ensinado olhar a cultura de um modo muito mais inteligente.

À Alice P. Vicente, Jô Cardieri, Léa Gândara e Thaís V. Lima.

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Capítulo 1 – O MODELO MANICOMIAL:CULTURA DA EXCLUSÃO ... 15

Capítulo 2 – TEORIA E MÉTODO EM TRÊS MOVIMENTOS ... 24

2.1 - Movimento um: a pesquisa quantitativa ... 25

Gráficos ... 26

2.2 - Movimento dois: “...Voltando ao Juqueri” ... 41

Construção da pesquisa qualitativa através da História Social. 2.3 - Movimento três: aprofundamento das categorias subalternidade, cultura e loucura para análise das narrativas ... 58

Capítulo 3 – A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS ... 67

Capítulo 4 – A HISTÓRIA DE VIDA DE RAQUEL ... 76

Capítulo 5 – A LOUCURA E SUAS METÁFORAS ... 107

Capítulo 6 – A SUBALTERNIDADE, UM PONTO CEGO NA EXPERIÊNCIA DA LOUCURA ... 114

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Iniciei as reflexões constantes neste texto em 1998, melhor dizendo, no século passado. As informações sobre o nascimento da clínica psiquiátrica e seus dispositivos foram buscadas no século XIX e, hoje, no século XXI, a situação dos sujeitos que enlouquecem ou adoecem mentalmente continua praticamente a mesma.

Se a pífia distribuição da riqueza produzida no país, a iniqüidade, a injustiça, a violência e o preconceito representam os marcos de luta para os sujeitos subalternizados no século XXI, o que dizer daqueles cujos gritos, protestos e súplicas são objeto de repressão, punição e exclusão? Que crime cometeram? Qual é a razão dessa intolerância, desse preconceito, desses castigos? Como se explica que, em pleno século XXI, a psiquiatria, através de um mandato social perverso e anacrônico, continue defendendo práticas que atentam contra a integridade moral e humana desses sujeitos?

Mudar a Lei? A Lei mudou. Em 07 de abril de 2001, o Presidente da República sancionou a Reforma Psiquiátrica, cujo Projeto de Lei tramitou no Congresso Nacional durante 12 anos. Há o que comemorar, então? Não. Não há o que comemorar. A luta apenas se iniciou.

Denunciar, denunciar, denunciar. Esta tarefa persiste na ordem do dia. De diferentes formas, por diferentes vozes, até que essa questão, assim como a pobreza com os contornos que adquiriu, especialmente no século passado, possa ser de fato confrontada através da construção de um projeto societário justo e igualitário. Esta é a intenção original deste trabalho, embora pareça um tanto antiquada. O autoritarismo também é antiquado e é com ele, presente em maior ou menor grau em cada um de nós, que temos que acertar nossas contas, cotidianamente. Nas palavras de Marilena Chaui:

“ Comemorar?

(...)

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subjetividade nem como alteridade. (...) Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político”(Chaui,2000:90-91).

É importante destacar que a trajetória de qualquer pessoa que tenha em sua história a marca de uma doença mental é caracterizada por situações de isolamento, de violência e, freqüentemente, por movimentos que mutilam sua identidade. Esse fenômeno não ocorre só pelas características das doenças mentais que, sem dúvida, deixam sinais, estereotipias, seqüelas, como se diz na linguagem médica. Há, porém, outros elementos nesses processos que fazem o contrário, ou seja, apagam as marcas. Marcas de história, de cultura, de humanidade enfim. É, portanto, no reencontro desses elementos, através da história de vida de alguns desses sujeitos, que se alicerçou esta pesquisa. Alguns pressupostos me guiaram nesse projeto, a saber:

• que a cultura é constitutiva dos sujeitos numa relação dialética e, portanto,

em constante movimento, compreendendo um delicado processo de trocas, ganhos, perdas e reformulações;

• que, embora as doenças mentais não atinjam somente as camadas mais

pobres de uma população, é através da subalternidade que se operam os mecanismos mais dilacerantes da humanidade desses sujeitos;

• que a psiquiatria, historicamente, é o modelo hegemônico de compreensão

não só da doença como também dos sujeitos que adoecem;

• que, para além do confronto ético-político desse modelo, se faz necessário

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fazendo-me estudar, trabalhar e conviver com a loucura. Antes disso, porém, já trazia comigo uma marca familiar, dado que hoje considero fundamental e que, creio, influenciou esta escolha (Capítulo 2, subtítulo 2.2).

Aprendi nessa trajetória que não é apenas a academia que forma um pesquisador. Antes dela, a própria história de vida desse sujeito forja experiências que moldarão esse pesquisador. Sua existência é repleta de sentidos que necessitam manifestar-se e interferirão de modo exemplar na escolha das referências teóricas, da metodologia e, sobretudo, em seu posicionamento ético. Saber de que maneira se está implicado com o tema da pesquisa é fundamental para que isto seja colocado de forma honesta e transparente, transformando a pesquisa num exercício intelectual vivo. Para seguir nesse caminho, José de Souza Martins indica: “O exercício teórico tem sentido e é necessário quando se submete o conhecimento a uma crítica fecunda. E só a História tem condições de fecundá-lo. Só o compromisso com a transformação da sociedade pode revolucionar o conhecimento, pode fazer da sociologia uma ciência e não um cacoete.”(Martins, 1978:12).

Os sujeitos da pesquisa – portadores de transtornos mentais considerados graves e incapacitantes - trazem em sua história episódios de alucinações auditivas, crises de agitação psicomotora, fraturas na capacidade de atribuição de sentidos para os próprios pensamentos, constituindo assim um modo muito específico de viver e, conseqüentemente, de narrar suas experiências. Trazem também o que mais adiante, de modo marcante, pude situar na categoria subalternidade, que Maria Carmelita Yazbek trabalhou com profundidade, assim definida através de Almeida, B.: “A subalternidade diz respeito à ausência de poder de decisão, de poder de criação e de direção” e em seguida, completa : “A subalternidade faz parte do mundo dos dominados, dos submetidos à exploração e à exclusão social.” (Yazbek, 1996:18).

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vinte anos, ora de trabalho, ora de estudo, ora de “militância” nessa área, arrisco afirmar que, do ponto de vista desses sujeitos, referindo-me à construção de uma identidade social, as variáveis que permanecem inalteradas são a experiência da pobreza e da exclusão social.

Estabelecer conexões em área tão diversificada e complexa, que envolve as atitudes humanas em nossa sociedade, igualmente complexa e diversificada, me parece cada vez mais uma tarefa bastante delicada. Após vários anos de leitura e de vivência dessa realidade, experimento constantemente um sentimento de desânimo em relação às conquistas neste campo, se confrontadas com a qualidade de vida desses sujeitos. Esta é a razão pela qual voltamos sempre ao mesmo ponto, ou seja, o de que a miséria em todas as suas manifestações é que de fato deve ser compreendida e enfrentada. Esse desafio para os trabalhadores das áreas sociais se coloca como uma verdadeira “profissão de fé”.

Temos nos apegado a muitas teorias, ou fragmentos delas, que supostamente nos levariam a uma compreensão tal que transformariam esse estado. Sabemos hoje que essa transformação que almejamos não virá através de fé ou da pura obstinação pessoal ou de um grupo. O momento atual é caracterizado por uma ordem da qual não podemos escapar. Nossos projetos, nosso trabalho e até mesmo nossos sonhos e utopias encontram-se atravessados por ela. Assim, encontro em David Cooper, em seu livro “A Linguagem da Loucura”, a seguinte afirmação: “... a consciência da opressão é, em primeiro lugar, uma consciência da nossa opressão – não dos pobres outros - caso contrário seríamos esses celebrados ‘libertadores profissionais’ dos outros – determinados psiquiatras, padres, trabalhadores sociais, professores, etc.” (Cooper, 1978:9-10).

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trabalho. O modelo de trabalho formal, com carteira assinada, é minoritário. A maneira como se dão os processos identitários em nossa sociedade, hoje, é complexa e multifacetada, exigindo novas maneiras de pensar as questões sociais e as formas de enfrentá-las.

Considerando que o Assistente Social exerce sua prática diretamente nesses processos, é necessário compreender suas ações a partir de um patamar ideo-político. Marilda Vilela Iamamoto e Raul de Carvalho, em “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil”, indicam questões para essa reflexão. Apontam , segundo referencial teórico marxiano, que “... a reprodução das relações sociais é a reprodução da totalidade do processo social, a reprodução de determinado modo de vida que envolve o cotidiano da vida em sociedade: o modo de viver e de trabalhar, de forma socialmente determinada, dos indivíduos em sociedade.”; mais adiante: “Entendida dessa maneira, a reprodução das relações sociais atinge a totalidade da vida cotidiana, expressando-se tanto no trabalho, na família, no lazer, na escola, no poder, etc., como também na profissão.”(grifos do autor). (Iamamoto, 1995:72-73).

Tais aportes teóricos são fundamentais para qualquer ação social, especialmente do Assistente Social que desempenha sua prática no fio da navalha, ou seja, nas seqüelas deixadas pela contradição entre capital e trabalho. Entretanto, o modelo neoliberal que ora vigora destaca conceitos como cidadania e solidariedade como estados a serem atingidos e que garantirão novas relações sociais, implicando direitos e deveres numa organização societária capaz de diminuir as injustiças sociais. Muitas vezes essas concepções são arquitetadas para encobrir a gravidade da situação em que nos encontramos e que compreende uma importante deterioração de valores éticos.

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A divisão deste trabalho é a seguinte: No Capítulo 1 – O modelo manicomial: cultura da exclusão - procurei situar os elementos que compuseram a cultura da exclusão nos marcos do modelo hegemônico de compreensão, a concepção científica e os movimentos que visaram seu confronto.

O Capítulo 2 – Teoria e método em três movimentos – registra exatamente isso, os movimentos na composição desta dissertação: o primeiro, um estudo quantitativo, através da prática profissional cotidiana; um segundo, já nas trilhas da História Social que exigiu um esforço radical de busca de motivações subjetivas para a realização deste trabalho, e, um terceiro, a composição do campo teórico da análise.

O Capítulo 3 – A história das histórias – é um recurso previsto na metodologia da História Oral para apresentar uma interpretação da pesquisadora sobre as narrativas.

O Capítulo 4 é a transcrição literal da fala de Raquel Gusmão Alves, um dos sujeitos desta pesquisa. Foi mantida sem edição para que conservasse todos os aspectos de sua linguagem.

No Capítulo 5, procurei destacar, através do delírio de Raquel, algumas metáforas para facilitar a compreensão de sua subjetividade.

Finalmente, o Capítulo 6 – A loucura: um ponto cego na experiência da subalternidade – pretendeu sintetizar as reflexões do percurso.

A pesquisa foi conduzida de maneira a possibilitar vários momentos, preparatórios e reflexivos, visando uma maior fidelidade à metodologia da História Oral. Iniciada pela coleta de dados quantitativos, foi posteriormente adensada por elementos encontrados na observação de situações, sujeitos e instituições, buscando empreender um percurso que permitisse a compreensão e a tradução do sofrimento psíquico.

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Fênix – Associação Pró-saúde Mental. Teoricamente, o destaque de autores como W.Benjamin, A.Gramsci, M.C.Yazbek, C.C.P.Cunha foi no sentido de buscar a direção e a consistência necessárias à análise do objeto desta pesquisa.

Por fim, ainda temerosa mas, certamente, mais preparada, realizei as entrevistas com os sujeitos que compuseram este trabalho.

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sua postura, gestos, modo de sentar, andar e falar. Ele está lá, quieto, resignado, pronto de antemão para abrir a boca e engolir o remédio que lhe vai ser empurrado goela abaixo. Esta obediência calada, pequena, severina, como diria João Cabral, é inumana.”

Jurandir Freire Costa

O desatino sempre foi uma marca no trato dos considerados loucos. Aparentemente paradoxal, podemos observar, através da história, que toda atenção dispensada resultou em morte: em sentido estrito, apedrejamentos, torturas e imolação; nos últimos duzentos anos, em sentido simbólico, preconceito, intolerância e clausura. Esta última, defendida pela medicina desde Philippe Pinel é, ainda hoje, o aparato terapêutico mais eloqüente e culturalmente difundido através da psiquiatria.

Segundo Isaias Pessotti: “O século XIX bem merece o título de ‘século dos manicômios’. Em nenhum outro século o número de hospitais destinados a alienados foi tão grande; em nenhum outro a terapêutica da loucura foi tão vinculada à internação; em nenhum outro século o número de internações atingiu proporções tão grandes das populações. Mais ainda, em nenhum outro século a variedade de diagnósticos de loucura, para justificar a internação, foi tão ampla(...) O manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialidade médica”(Pessotti, 1996:9).

O tratamento na clausura pressupõe disciplina rígida, incomunicabilidade, retirada de direitos civis, além dos mecanismos de contenção e torturas. Vale lembrar que esse regime ainda prevalece, não sendo necessário pesquisar muito para ainda encontrar esses desatinos, batizados com outros nomes. Exemplo máximo desse procedimento de renomeação pode ser encontrado no eufemístico “quarto de observação”, que mal disfarça seu parentesco com a famigerada cela forte.

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pela condição de degradação e desumanização do doente mental, assim como surgiu a concepção de que os manicômios foram e são a expressão máxima da segregação e da expropriação da humanidade de milhares de sujeitos que permanecem décadas ou toda uma vida aprisionados.

O quadro da assistência psiquiátrica no Brasil após o golpe militar de 1964 era o seguinte, segundo Heitor Resende: “Com uma rede ambulatorial ainda incipiente e que funcionou como autêntica malha de captação de pacientes para hospitalização, o quinqüênio 1965/70 foi marcado pelo fenômeno do afluxo maciço de doentes para os hospitais da rede privada; neste período, enquanto a população internada do hospital público permaneceu estável, a clientela das instituições conveniadas saltou de 14.000 em 1965 para 30.000 ao final do período. O movimento de internações seguiu a mesma tendência, pendendo a balançar francamente para o lado da empresa hospitalar, que em 65 internou 35.000 pessoas e em 70, 90.000”(Resende 1994:61).

Já naquela época, os hospitais psiquiátricos tinham se transformado em depósitos com péssimas condições humanas e materiais e foram, no auge da ditadura militar, utilizados como cárceres para prisioneiros políticos, consagrando seu uso habitual em qualquer regime ditatorial, em qualquer parte do mundo. Como articular uma proposta libertadora, democrática, em pleno regime militar? A fundamentação teórica do movimento, segundo entrevista de Joel Birman à revista Rádice- Revista de Psicologia, estava centrada na Rede internacional, idealizada por Felix Guatarri que propunha uma despsiquiatrização da loucura, preconizando a necessidade de se atuar no sentido de nunca desvincular qualquer desvio do contexto familiar, profissional e econômico.

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saúde mental no campo da teoria crítica, alicerçadas em experiências de trabalho e pesquisa com familiares e usuários de serviços de saúde mental nacionais e estrangeiros. Há, no que tange às modificações de oferta de serviços de saúde neste campo, uma visão otimista por parte do autor, destacando a abertura de leitos psiquiátricos em hospitais gerais e serviços abertos dia e noite, num movimento de transformação do trato dos sujeitos que apresentam sofrimento psíquico.

Atualmente, enquanto aguarda-se a implementação da reforma psiquiátrica que tramitou no Congresso Nacional durante doze anos e que, finalmente foi aprovada em 07/04/2001, existe uma convivência das duas práticas, a manicomial e a chamada alternativa ao modelo manicomial, implantada em alguns Estados. O recurso da internação psiquiátrica, com critérios discutíveis para a sua indicação, ainda funciona de modo a tamponar problemas familiares, médicos e sociais de compreensão e de intervenção no processo de desestruturação do sujeito. O mesmo se dá nos serviços de saúde ambulatoriais que, pela escassez de recursos e por condições de trabalho bastante precárias, além de problemas de concepção profissional, freqüentemente reproduzem o modelo manicomial, agindo de maneira bastante diversa da esperada como proposta alternativa. Roberto Tykanori Kinoshita, coordenador do Programa de Saúde Mental de Santos, no período de 1989-1995, apontou essa dificuldade: “Não tem sido automática a passagem de uma situação de desvalor para uma situação de participação efetiva no intercâmbio social. Ao contrário, é mais presente a tendência de estacionarmos em um patamar de assistência humanizada, mais tolerante, eventualmente até mais belo, porém igualmente excluída e desvalida” (Kinoshita, 1996:56).

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Em recente artigo na Revista USP, São Paulo, nº 43, de 1999, o Prof. Valentim Gentil, professor de psiquiatria da FMUSP e presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, dedicou-se a uma análise intitulada Uma leitura anotada do projeto brasileiro de “Reforma Psiquiátrica”, referida ao Projeto de Lei nº 3657, de 12/09/1989, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT-MG) que: Dispõe sobre extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. Nesse artigo, Gentil desqualificou a proposta da reforma psiquiátrica italiana, considerando Franco Basaglia “um líder carismático... Vale lembrar que esses profissionais [Franco Basaglia e seus colaboradores na Psiquiatria Democrática Italiana] jamais tiveram qualquer expressão acadêmica ou científica, inclusive na Itália”.

De fato, Basaglia abandonou a carreira acadêmica em 1961, como professor na Universidade de Pádova, assumindo através de concurso o cargo de diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia. Sobre essa questão, referiu: “ É muito simples para o establishment psiquiátrico definir nosso trabalho como desprovido de seriedade e de respeitabilidade científica. É um juízo que nos lisonjeia, pois finalmente nos identifica com a falta de seriedade e de respeitabilidade desde sempre atribuída ao doente mental e a todos os rejeitados” (Basaglia, 1985:11).

... voltanto ao texto:

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humor, álcool e drogas, adolescência, geriátrica, etc.(59) , tanto nos hospitais gerais quanto em um moderno hospital psiquiátrico. Poucos hospitais gerais poderão dispor de equipes tão altamente especializadas. Um conjunto de unidades psiquiátricas especializadas em um local com boa área verde seria ainda melhor.” Mais adiante, quando concluiu o artigo, postulou sua concepção de como deveria ser realizada a assistência psiquiátrica no Brasil : “De minha parte, mantenho a opinião de que é melhor extinguir os manicômios, garantir o direito de asilo e proteção aos necessitados, ampliar a rede extra-hospitalar, notadamente os ambulatórios psiquiátricos, e incentivar, também, investimentos em alguns bons hospitais psiquiátricos, públicos e privados.”

Dentre outras afirmações que fez sobre como deveria ser a assistência aos pobres, aos velhos, aos psiquiatrizados crônicos, etc., ficou explicitada sua discordância das determinações da II Conferência Nacional de Saúde Mental, de 1992, argumentando: “..algumas propostas descabidas, como a proibição do eletrochoque e da psicocirurgia sem atentar para suas indicações e técnicas internacionalmente aceitas...”.

Este texto, na verdade, é a depuração da concepção acadêmica dominante no contexto científico nacional. Foi citado aqui para permitir tecer uma contraposição teórica mas, sobretudo, para situar o campo por onde nos movemos. Em todos os setores há profissionais que comungam destes pressupostos por trazerem em si um apelo à necessidade de tratamento, da qual, creio, ninguém discorda, leigos ou profissionais. A questão que se coloca é: a modernização do Instituto de Psiquiatria da qual o autor falou e os modernos hospitais com áreas verdes que propôs transformariam a relação autoritária de poder e, portanto, excludente sobre os sujeitos assistidos historicamente pela psiquiatria, especialmente no Brasil? Se nem os “normais” das classes subalternizadas são dignamente tratados pelos serviços de saúde pública, o que dizer dos “doentes mentais”? Franco da Rocha, fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, que acabou de completar cem anos, também postulava o

1 O autor faz uma referência no texto que recebe n

• 59, informando: “Este é um conceito novo, que só foi

implementado em alguns centros avançados como o Western Psychiatric Institute and Clinic, da

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objetivaram a desconstrução da cultura manicomial, sintetizadas no projeto ético-político que originou a psiquiatria democrática. No Brasil, houve a retomada de um movimento social de grande peso, cujo slogan “POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS” explicitou o significado do tipo de exclusão praticada nesses locais, extensivo à sociedade em geral, mas sobretudo à exclusão dos pobres. São palavras suas: “ O tom polêmico e contestatório evidente nos testemunhos (médicos, enfermeiros e colaboradores) não se deve ao acaso, já que nossa ação parte de uma realidade que só pode ser violentamente refutada: o manicômio. Não se pode transformar uma realidade dramática e opressora sem violência polêmica, nos confrontos com aquilo que se quer negar, incluindo na crítica os valores que possibilitam e perpetuam a existência de uma tal realidade.” (Basaglia, 1985:9)

A ruptura das micro e macro estruturas de poder tem sido, a partir desse movimento, um grande desafio, considerando-se que, para tanto, é necessário transformar o próprio modo de viver, possibilitando novas experiências.

Um período de grande atividade desse movimento deu-se justamente no Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP, de 1982 a 1987, e engendrou uma alteração importante nessa direção, formando profissionais que protagonizaram processos que resultaram em mudanças culturais significativas. Recebeu-se nessa época, naquele Instituto, a visita de Robert Castel e Franco Rotelli, numa atitude generosa de apoio àquelas iniciativas.

Data de setembro de 1989 o Projeto de Lei sobre a Reforma Psiquiátrica, aprovada em 07 de abril de 2001, em cuja redação o prazo para extinção dos manicômios foi, a meu ver, sua expressão mais significativa e a principal razão pela qual sua tramitação foi tão lenta .

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Edgard de Assis Carvalho.

Data de 1984 a formação das primeiras equipes de saúde mental nos ambulatórios do Governo do Estado de São Paulo, inclusive o de Vila Brasilândia. As experiências de formação de equipes interdisciplinares nos serviços públicos de saúde, abertos ou fechados, pretendia, em alguns casos, uma modificação que compreenderia uma nova estrutura assistencial, calcada na participação do sujeito assistido e de seus familiares, visando sua maior integração à dinâmica social. Entretanto, quando avaliamos essa experiência ao longo desses dezessete anos, deparamo-nos com uma fratura imensa entre as concepções que deveriam orientar essas ações e as transformações na vida cotidiana desses sujeitos. Acachapados pela miséria de recursos e de relações, resta-lhes tão somente, na maioria das situações, a assistência médica tradicional, fornecida num ambulatório ou serviço de saúde do bairro onde ora faltam profissionais, ora faltam medicamentos, ora faltam ambas as coisas.

Na cidade de São Paulo, de 1989 a 1992, durante a administração municipal de Luiza Erundina de Sousa, caminhou-se na direção da construção de um modo alternativo de atenção à saúde mental sem, contudo, solidificar essa prática para enfrentar os manicômios, por razões administrativas, particularmente pelas dificuldades na implantação da municipalização da saúde. Nos oito anos seguintes a 1992, nas administrações municipais de Paulo Maluf e Celso Pitta, houve um desmonte desses trabalhos, mas também a geração de associações e institutos que objetivaram a manutenção dos espaços de reflexão e ação. Assim, em 1995 constituiu-se, na região da Freguesia do Ó/Brasilândia, a “ASSOCIAÇÃO 18 DE MAIO”, em homenagem ao “Dia Nacional da Luta Anti-manicomial”.

(23)

Serviço Social, que é o que significa, no Brasil, o terceiro setor como instrumento para o enfrentamento da condição de subalternidade desse segmento da população.

(24)
(25)

Saúde Mental de Vila Brasilândia, equipamento do Governo do Estado de São Paulo, para a obtenção do Benefício de Prestação Continuada, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

A amostra coletada (161 entrevistas) referiu-se somente aos que receberam diagnóstico de psicose e alguns dados coletados demostraram que:

• O início dos transtornos, em geral precoce, atingia uma parcela da

população já com baixa escolaridade e despreparada para competir no mercado de trabalho. (Gráficos – Início do Transtorno e Escolaridade).

• A maioria dos sujeitos pesquisados eram solteiros e residiam com os pais

ou familiares, não chegando a estabelecer um outro projeto de vida familiar. (Gráficos- Situação Conjugal, Número de Filhos/ Moradia/ Renda Per Capita).

• Mesmo com pouco preparo para ingressar no mercado de trabalho, muitos

conseguiram algum vínculo previdenciário, sendo as categorias “Aposentados e Pensionistas”e em “Auxílio Doença” as mais expressivas numericamente (44,37%).

• Apesar de muitos apresentarem uma situação sócio-econômica compatível

com os critérios estabelecidos para inserção no Benefício de Prestação Continuada, previsto em LOAS, no período anterior a essa pesquisa, apenas 6,25% estavam recebendo o salário mínimo mensal. Após avaliação, 30% foram encaminhados para a concessão desse benefício.

• Aquele ambulatório, único na região, destinado ao acompanhamento

(26)

0% 10% 20% 30% 40% 50%

1

Ocupação

(27)

Faixa Etária

5%

27%

37% 19%

12%

(28)

Cor

17%

16% 67%

(29)

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

1

Estado Civil

Desquitado

Divorciado

Solteiro Casado

Viúvo

Separado

(30)

Número de Filhos

55% 15%

11% 11%

8%

(31)

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40%

1

(32)

Moradia

69% 17%

14%

(33)

0% 10% 20% 30% 40% 50%

1

Ocupação

Nenhuma

Doméstica

Informal

Registrada

(34)

Salário Mínimo (Per Capita)

23%

33% 19%

4%

20% 1% <ou=1/2

(35)

Situação Profissional

14% 4%

30%

11% 34%

6% 1%

(36)

Idade de Início dos Transtornos

0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 1

(37)

67% 12%

(38)

Núm ero de Internações

23%

16%

9% 8%

8% 12%

21%

3%

(39)

30%

14% 26%

30% LOAS/BPC

(40)

O ano da realização da pesquisa registrou o momento mais otimizado do ambulatório, no que se refere ao número de profissionais contratatos e à uma nova modalidade de acolhimento dos usuários, diária e nos três períodos de funcionamento do serviço, denominada inicialmente “pronto atendimento”, posteriormente “plantão técnico”. Essa modalidade visava findar as “triagens” e as “listas de espera”, típicas dos serviços de saúde que operam sempre com repressão de demanda.

(41)

buscando através do olhar do pesquisador poder vislumbrar milhares de cores formando imagens esplêndidas, como num caleidoscópio. Para isso utilizei a metodologia da História Oral, atenta à necessidade do pesquisador de encontrar maneiras pelas quais possa expressar-se, compreendendo que está diretamente implicado com o tema de sua pesquisa, porém sem que isso resulte em perda de objetividade.

Do ponto de vista teórico-metodológico, quanto mais o pesquisador se conhece, se observa e se coloca de forma honesta, tanto mais sua pesquisa poderá adquirir elementos que lhe darão sustentação.

Para concretizar o que chamei de exercício de pesquisa, utilizei um estilo de narrativa que pudesse despertar dúvidas e curiosidades mas que, ao mesmo tempo, fosse construindo um preparo para a alma do leitor adentrar pela porta das instituições psiquiátricas; isto exige, além de uma disposição interna, alguns conhecimentos teóricos que localizam historicamente, na sociedade, de que maneira a concepção atual de doença mental foi sendo arquitetada. Dessa forma, a utilização da técnica de diário de campo parecerá deturpada pela introdução de dados biográficos e de reflexões, acreditando que, em Pesquisa Social, esse movimento deve ser dialético e pressupor caminhos através de processos intelectuais que não são necessariamente definitivos ou definidores, em detrimento de uma desejável linearidade. Muitas vezes, portanto, parecerá ao leitor que faltaram elementos: como se ele estivesse num trem em movimento e, de repente, algo saltasse aos olhos, trouxesse um enxame de sensações, mas não houvesse tempo para olhar com mais vagar, para deter-se. Confesso que essa maneira faz parte de uma tentativa de chamar a atenção do leitor para esse passeio, trafegando pela literatura e pela história, na tentativa de que isso o motive a voltar um dia.

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no Brasil. Todas as pessoas que ali vivem sob essa égide, porém, têm nome, têm dor, têm lembranças, ou seja, têm história, e a História Social nos possibilitou esse resgate.

O presente texto apresentará uma dessas histórias, por vezes apenas tocando em questões que permanecerão como desafios para futuras pesquisas ou reflexões.

“Secretaria dos Negócios da Educação e Saúde Pública do Estado de S. Paulo Departamento de Saúde do Estado

Serviço de Assistência a Psicopatas

HOSPITAL CENTRAL DO JUQUERI

EXAME NO ATO DA ENTRADA

NOME: ANTONIETA PERUCI PEREIRA

IDADE: 30 anos CÔR: branca

ESTADO CIVIL: casada NACIONALIDADE: brasileira.

DATA DO EXAME: 15 de junho de 1939

FÍSICO

Emagrecida, desnutrida.

MENTAL

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EXAME PSÍQUICO – Grau de cultura: atenção, compreensão; associação de idéias – fuga de idéias, ou simples aceleração na marcha do pensamento, confusão; exame dos escritos tanto na forma gráfica como no conteúdo. Memória, recordação dos fatos antigos e recentes; noção do meio, lugar e tempo. Percepção, ilusões e alucinações, que espécie de perturbação sensorial. Delírio – sistematizado, difuso, coerente, desconexo, lógico, absurdo, de caráter expansivo, depressivo, periódico, contínuo, quais as idéias predominantes. Psicomotricidade – movimentos voluntários, barragem, torpor, excitação. Estado de humor predominante. Sentimentos éticos – pudor, indiferença pelo meio social ou pela família. Capacidade de trabalho; reações ao meio social.

ANTONIETA PERUCA PEREIRA

25/7/939. A paciente apresenta-se calma. Obedece com retardo às ordens que lhe damos e às vezes mantem-se imovel, com as mãos postas como em oração, como se nada ouvisse. Facies ora indiferente ora tristonho, e às veses sorri. Manteve-se em mutismo absoluto. Não prestou nenhuma atenção às nossas perguntas. Tendência a manter as atitudes tomadas ativa ou passivamente.

4/9/939. Exame após ter tomado 3 doses convulsivantes de cardiazol2: continua a demonstrar indiferença e a sorrir, mas já fala um pouco em voz baixa e vagamente e dá informações quasi satisfatórias a seu respeito e a respeito de sua família. Usa dizer não sei bem ou ‘parece’ quando dá certas informações. Orientação no tempo satisfatória. Diz ignorar o lugar em que se acha e ignora porque veiu para cá. Atenção diminuida. Confessa ouvir há algum tempo vozes que falam ‘tantas coisas, tantas bobagens’.

2 “O tratamento com Cardiazol foi usado no caso de estados esquizofrênicos graves e depressão.

Tratava-se de uma injeção rápida endovenosa de Pentetrazol, uma droga estimulante do SNC, em uma solução a 10%, em dose suficiente para provocar uma ataque epiléptico.” (Bleuler, E. Psiquiatria, l5°ed., Rio de

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perguntando-nos onde estão. Confessa sentir-se ‘diferente’ mas não sabe explicar em que consiste essa diferença, assim como não sabe dizer porque manteve-se muda no princípio do exame.

No pavilhão já conversa um pouco quando lhe dirigem a palavra; mas em geral mantem-se isolada, quieta, com tendência à imobilidade.

Alimenta-se e dorme bem.

(a) Dr. José Bottiglieri

SÚMULA

Orientação no tempo satisfatória.

Desorientação no espaço, apatica.

Desinteresse.

Tendência ao mutismo e à imobilidade.

Afetividade diminuida.

Alucinações auditivas.

DIAGNÓSTICO

SÍNDROME ESQUIZOFRENICO 4 -TRATAMENTO

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corredores e salas, foi uma experiência magnífica. Por fora belo, verde, com loucos abobados pelo tempo de internação vagando ora apressados, ora assustados, porém sempre aparentemente alheios e indiferentes ao mundo que os cerca. Por dentro, paredes de cor cinza, descascadas, pessoas aguardando atendimento numa área que, apesar de se chamar “Pronto Socorro de Psiquiatria”, é consagrada como “Pré-Internação”. Nessa sala reinava um silêncio assustador. Havia lá, sentadas num banco de madeira, várias pessoas aguardando atendimento. Nas paredes alguns pequenos cartazes solicitavam informações sobre desaparecidos com fotos, descrições, data de desaparecimento, etc. Tudo de maneira precária e improvisada, própria dos manicômios, onde todos os relógios são parados e os calendários mostram anos que já se foram. Havia também duas funcionárias por trás de um alto balcão e todos estavam num silêncio absoluto, só quebrado pelo programa “Vídeo Show”, com o ator Miguel Falabella, na Rede Globo de Televisão. A única voz que se ouvia, ao longe, que me lembrava que ali existiam vidas, era a da médica que fui procurar para auxiliar na busca dos dados e que conversava com a mãe de um paciente sobre sua medicação e condução do tratamento. Se o paciente em questão estava presente não o ouvi, tampouco me dei conta dele quando do término da consulta. Nos manicômios os dias são assim: pode até existir vida, porém ela só é notada quando há agitação. Do contrário, a sensação que se tem é que o tempo parou num lugar feio, frio, sem cor, sem afeto e todo esforço é para que nada perturbe esse suposto vazio composto de gritos de solidão, de abandono e de pagamento por crimes não cometidos.

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aproximadamente vinte anos, não canso de me espantar com essa situação.

Prosseguimos nosso percurso e rapidamente chegamos ao setor desejado. Lá, mais surpresas: a médica que me acompanhava foi saudada por uma senhora que lhe disse: ”...você vai ficar livre de mim durante um mês...”. Ato contínuo, dirigindo-se a mim, disse alegremente: “... sou a secretária das causas difíceis...”. A médica então lembrou-se que, assim como eu, ela era assistente social e nos apresentou. Rapidamente, essa assistente social me informou sua trajetória dentro da instituição e que, desde 1973, morava dentro do Complexo Hospitalar com sua família, razão pela qual, mesmo estando em férias, circulava pelo Hospital. Na verdade, lá era a sua casa.

Com Raymond Williams, aprendemos a buscar a origem dos conceitos. Nada que está aqui hoje é desgarrado daquilo que o formou e o transformou. Essa dialética da presentificação seletiva do passado nos fornece caminhos preciosos sobre o real, se quisermos firmemente compreendê-lo e transformá-lo (Williams, 1979:17).

Foi numa dupla missão que me dirigi ao Hospital Psiquiátrico do Juqueri. A de aproximação empírica do meu objeto de estudo e, sobretudo, a de resgatar em meu passado uma herança histórica absolutamente valiosa. Não por coincidência, encontrei em minha própria história várias situações nas quais, de fato, pude constatar a concretização dos processos que originam e conformam nossa identidade, vivificando-as através dvivificando-as histórivivificando-as de vida.

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O que considero de grande importância ressaltar é que, em primeiro lugar, o pesquisador, mesmo para realizar um simples exercício como esse, pode lançar mão de dados tradicionalmente considerados irrelevantes ou mesmo repletos de elementos subjetivos e, além disso, pode recompor através da experiência social o que há para compartilhar, aquilo que, na identidade dos sujeitos, é elemento que forja a identidade de um determinado grupamento, de um segmento e, até mesmo, de uma classe social. Essa identidade é subjetiva mas também social, coletiva, com gênese histórica, fruto de uma complexa e diversificada teia que foi construída por muitos sujeitos e que, ao longo do tempo, foi desconsiderada pela história oficial. Quando muito, foi objeto de classificações de natureza diversa, mutilando dessa forma a riqueza do significado da experiência social, que se constitui num dos elementos culturais mais importantes para a solidificação do sentimento de pertinência na sociedade.

Como num diário de campo, o tom quase coloquial que utilizei foi devido à minha tentativa de transmitir, através da narrativa e para além da concretude da pesquisa, a força de uma investigação dessa natureza, onde a proximidade dos sujeitos no processo transforma a história em história do tempo presente. Recordo-me do Sr. José, personagem de José Saramago em seu livro “Todos os Nomes” (Saramago, 1997), que desenvolve uma verdadeira “obsessão” na ânsia de pesquisar aquilo que lhe cutuca a alma. Creio ser esse um momento excitante e privilegiado para o pesquisador, quando está prestes a obter acesso aos elementos, a apropriar-se deles, a dar-lhes sentido, enredo e visibilidade.

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representante da racionalidade que exclui, compreendi as noções já referidas de tradição e autenticidade: “O aqui e agora do original constitui o conteúdo de sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente, não apenas à técnica” (Benjamin, 1994:167).

O documento que pesquisei foi o prontuário médico de minha avó, Dna. Antonieta Petrucci, filha de imigrantes italianos que se estabeleceram no interior de São Paulo, no final do século XIX, internada no Hospital Psiquiátrico do Juqueri em 1939. Considerei esse documento exemplar para a minha pesquisa, dado que esse momento da sociedade brasileira, sobretudo na cidade de São Paulo, apresentou poderosas e sólidas modificações políticas, científicas e sociais. Pode-se revisitar a paisagem do início do século, tendo como base as implicações advindas do final da escravatura, da Proclamação da República e, mais adiante, algo mais complexo que é a chamada “revolução burguesa” no Brasil, objeto dos mais valiosos para a compreensão do que se busca classificar como “cultura brasileira” ao longo deste século que se encerra. Tive a feliz oportunidade de fazer esse percurso e de me sentir profundamente provocada. A resposta para esta provocação é, ao meu ver, audaciosa e poderá revelar-se criativa para aguçar a curiosidade para a minha própria experiência social. Essa reflexão tornar-se-á obrigatória a todos aqueles que, mensageiros do século que morre, pretendam continuar implicados na interpretação das vicissitudes do processo histórico brasileiro.

Objetivando compreender as formas de dominação e resistência no início do século, encontrei na Guerra de Canudos elementos que sugeriram uma analogia entre os sertanejos e esse segmento de excluídos na cidade de São Paulo. Como pode-se observar a partir de Euclides da Cunha em “Os Sertões”, abriu-se uma fresta e lançou-se um olhar para além das questões das instituições e seus sujeitos, aparecendo aqui e ali, quase a contragosto, outros sujeitos que nem ao certo se sabia existirem.

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Euclides da Cunha narra, no capítulo “Depoimento do Autor”, o seguinte fato: “Era o caso de uma velha que se aboletara com dois netos de cerca de dez anos junto à vertente em que acampava o piquete de cavalaria. Os pequenos, tolhiços, num definhamento absoluto, não andavam mais; tinham volvido a engatinhar. Choravam desapoderadamente, de fome. E a avó, desatinada, esmolando pelas tendas os restos das marmitas, e correndo logo a acalentá-los, aconchegando-lhes dos corpos os frangalhos das camisas; e deixando-os outra vez, agitante, infatigável, no desvelo, andando aqui, ali, à cata de uma blusa velha, de uma bolacha caída do bolso dos soldados, ou de um pouco d’água; acurvada pelo sofrimento e pela idade, titubeando de um para outro lado, indo e vindo, cambeteante e sacudida sempre por uma tosse renitente, de tísica, - constrangia os corações mais duros. Tinha o que quer que fosse de um castigo; passava e repassava como a sombra impertinente e recalcitrante de um remorso...” (Cunha, 1979:403-404).

O ponto sobre o qual gostaria de refletir é justamente a “entrada” desses novos sujeitos na história. Embora o próprio Euclides da Cunha tenha afirmado nesse mesmo capítulo que "... a História não iria até ali” (Cunha, 1979:404), podemos imaginar que, como Republicano que era, sabia que seus olhos haviam enxergado em demasia e que a história, como institucionalidade, não poderia transpor tamanha distância social, econômica e cultural. A riqueza teórica e literária dessa obra nos convida à reflexão e, ao mesmo tempo, desperta um turbilhão de inquietações. Temos a oportunidade de apreciá-la como um marco, tanto pela época em que foi produzida quanto pelo estilo adotado pelo autor mas, sobretudo, para mim, pela introdução dos sertanejos, seus rostos, falas, cores, expressões, dores e saberes.

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A história do tempo presente, sem dúvida, é um caminho bastante auspicioso, justamente por dar visibilidade aos sujeitos que foram excluídos da história.

Tenho me dedicado, ao longo de minha vida profissional, ao trabalho social com indivíduos portadores de transtornos mentais graves. Procurei localizá-los nos diversos momentos do período citado, partindo do princípio que eles sempre estiveram presentes. Por volta de 1900, no Nordeste, o final da Campanha de Canudos, a publicação de “Os Sertões”; em São Paulo, a criação do Hospital do Juqueri: lá os sertanejos dizimados; aqui, os loucos aprisionados.

O que haveria de comum nesses acontecimentos? Que tipo de tratamento estava sendo dado a esses sujeitos? Depositários de tudo o que necessitava ser extirpado da sociedade como crendices, misticismo, alcoolismo, etc., esses sujeitos morreram como mendigos, como toscos guerreiros ou como loucos. Em Canudos, eram os sertanejos e, em São Paulo, os ex-escravos e imigrantes, principalmente italianos. Todos esses fatos fazem parte do mesmo pulsar histórico3.

São Paulo, 05 de agosto de 1999.

Em minha segunda diligência, tive oportunidade de visitar a Biblioteca do Juqueri. Entre algumas consultas à biografia de Franco da Rocha 4, já em cópias xerox de partes dos livros e nas mãos da auxiliar administrativa, creio que para facilitar o trabalho dela e preservar os exemplares dos livros, observei uma estante totalmente trancada, com uma inscrição que dizia tratar-se de livros de Franco da Rocha, doados por alguém cujo nome estava encoberto por um pedaço de papel. Procurei ali livros de

3 O termo “pulsar histórico”, assim como parte desta reflexão são oriundos das aulas ministradas pelo

Prof. Dr. Carlos Guilherme Mota, na PUC-SP, em 1998.

4 Francisco Franco da Rocha, médico formado em 1890, mentor, fundador e diretor do Hospital do

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que não sabia da existência de uma lista e que eu deveria aguardar a chegada do médico psiquiatra responsável pela Biblioteca, que era a única pessoa que poderia me fornecer esse dado. Disse-lhe que era estranho que não fosse uma bibliotecária responsável pelo acervo e sim um médico. Ela concordou, parecendo nunca haver pensado nisso.

Considero esse aspecto de suma importância: o poder médico nessas instituições ainda é bastante presente. A psiquiatria, em especial, é chamada pela sociedade a responder pela totalidade da vida dos sujeitos. Desde a sua institucionalização no Brasil, no início deste século, pouco avançou para questionar e não assumir essa tarefa, atribuída já no início de sua sistematização.

Maria Clementina Pereira Cunha, em “O Espelho do Mundo – Juquery, a História de um asilo” (Cunha, 1986), dedicou sua pesquisa histórica à compreensão dos mecanismos que propiciaram a instalação de uma nova ordem no espaço urbano paulistano dessa época. Segundo relatou, havia no Brasil um grande conhecimento de teorias européias que fundamentavam as práticas de segregação. Referiu o seguinte: “Não será precipitado afirmar que o alienismo constitui a primeira destas tecnologias disciplinares nascidas do ambiente urbano e voltadas para a sua ‘higienização’ e organização. Longe de retirá-la do contexto da revolução burguesa e dos círculos políticos do capital, onde a história social tratou de inseri-la, esta perspectiva apenas reforça e confere historicidade a tal afirmação, ao identificar o espaço concreto de suas práticas” (Cunha, 1986:27-28).

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dentro do primeiro grupo de especialistas do país fortemente marcado pela teoria da degenerescência como pelo positivismo, que ganhava corpo no interior do saber médico brasileiro” (Cunha, 1986: 63-64).

Podemos afirmar que a exclusão da loucura, praticada desde a Idade Média, concretizou-se no Brasil como questão social antes mesmo de qualquer movimento para a definição de políticas públicas de assistência social no início da República. As teorias são higienistas e a medicina logo se encarregou da loucura, fundou suas posições teóricas sobre o alienismo e a tratou dissociadamente da questão social como um todo. Isso representou uma maneira específica de tratar esses sujeitos, ao mesmo tempo que expandiu a nosografia psiquiátrica. Luiz Eduardo W. Wanderley, no texto “A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e caribenho”, afirmou que a exclusão “se transforma efetivamente em questão social quando é percebida e assumida por um setor da sociedade, que tenta, por algum meio, equacioná-la, torná-la pública, transformá-la em demanda política, implicando em tensões e conflitos sociais” (Wanderley, 2000:59).

Com a loucura deu-se o mesmo fenômeno. Em 1852, ocorreu a fundação do primeiro hospício em São Paulo, destinado aos dementes que vagavam pelas ruas e também a criminosos. Dirigido por um alferes, implantado inicialmente no coração da cidade, na Av. São João, “... o Hospício São Paulo pretendia ser, antes de tudo, um equipamento de assistência pública, e não de medicina” (Cunha, 1986:62).

Creio que todas essas afirmações já estejam exaustivamente analisadas. Contudo, é necessário situar no processo histórico a “questão social” e, com isso, todo o aparato das políticas sociais. Na verdade, a pobreza, em toda a sua extensão, é o cerne dessa discussão.

Voltando ao Juqueri...

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São Paulo, 06 de agosto de 1999.

Finalmente, concluí minha tarefa. O xerox do prontuário médico de minha avó, com os nomes de “Antonieta Peruca Pereira” e “Antonieta Perucci”, me foi entregue por uma gentil funcionária que imediatamente me revelou: “... você se parece com ela...”. Ela havia visto a foto, tirada em 1939, por ocasião de sua internação. Confesso que me preparei para vários dados subjetivos que poderia encontrar e, mesmo utilizando uma metodologia que transita justamente no campo da subjetividade 5, não me preparei para esse encontro. Quando vi a foto, percebi uma estranha semelhança entre nós que me causou um sentimento impactante. Era de fato minha avó. O que fui buscar, portanto, não era somente um documento de época ou mesmo um sistema de linguagem que revelasse a história da cultura, das mentalidades. Era muito mais do que isso: representava o passado presentificado. A surpresa foi tamanha que solicitei ao funcionário que me permitisse olhar a foto original no prontuário. De fato, verdadeiramente ou não, me considerei e fui considerada por todos com os quais tive contato naquele setor parecida com minha avó, falecida seis anos antes de meu nascimento e de quem conheço parte da história, através dos depoimentos de minha mãe, utilizados para compor o presente texto.

Faço um parênteses aqui sobre a importância de utilizarmos, tanto quanto possível, como procedimento metodológico, material visual para auxiliar ou mesmo para registrar dados coletados além da palavra falada, transcrita de gravações. As fotos,

5 Sobre pesquisa qualitativa, especialmente, história oral: Ferreira, M.M.. Desafios e dilemas da história

oral nos anos 90: o caso do Brasil. São Paulo, Revista da Associação Brasileira de História Oral n°l,

1998, pp. 19-41., Martinelli, M.L., Pesquisa Qualitativa. Um instigante desafio. NEPI/PUCSP, São Paulo, Veras Editora, 1999, Mezan, R. Subjetividades Contemporâneas, Revista Subjetividades Contemporâneas n° l, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, 1997, pp. 12-17, Portelli, A. Tentando

aprender um pouquinho. Algumasreflexões sobre a ética na história oral . Revista Projeto História n° 15,

São Paulo, PUCSP, 1997 pp. 13-50. e Vilanova, M. La historia sin adjetivos com fuentes orales y la

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ampliar a potencialidade de uma narrativa, facilitando a compreensão de elementos constitutivos da cultura e, conseqüentemente, da própria identidade do sujeito. Nesta situação, chamou-me atenção a disposição nas fotos (frente e perfil), característica de recurso técnico utilizado para montar fichas policiais de supostos criminosos.

Totalmente tomada por esse torpor, fui indo embora, andando e lendo, tropeçando e sorvendo emocionadamente as palavras ali contidas.

Alguns dados clínicos encontram-se impressos no início deste texto por sua força como documento histórico. O relato, porém, que representou para mim tesouro de valor inestimável, dizia que durante os primeiros anos de sua internação, antes de ir para a Colônia, na condição de “demenciada”, foi submetida a injeções de “Cardiazol” (medicação hoje proscrita pela medicina), “Insulinoterapia”6 e, finalmente, sessões de “Eletrochoque”7. O que mais dizer sobre esses procedimentos médicos? Os dois últimos ainda são utilizados. No prontuário constava sua recusa sistemática em submeter-se a tais tratamentos, sendo que as sessões de eletrochoque foram administradas de 04-12-44 a 27-02-45, portanto, sempre segundo relato, já na Colônia, diagnosticada como “demenciada”, ou seja, sem nenhuma possibilidade de “cura”. Vale então indagar se foram de fato usados como procedimentos terapêuticos. Não pretendo, aqui, estender-me sobre a análise de tais procediestender-mentos do ponto de vista de sua utilização como instrumentos coercitivos ou mesmo de tortura. Estou, porém, convencida de que tudo isso fazia e faz parte, até os dias de hoje, de um arsenal “disciplinador” (Foucault, 1987).

A chamada cultura manicomial, elemento essencial no presente trabalho, está, na verdade, absolutamente atrelada à cultura de exclusão. No modo de exclusão

6 “Com o tratamento insulínico (Sakel, 1935), provocava-se quase diariamente um estado de

hipoglicemia, que se assemelhava a um coma, sendo que a dose de insulina necessária para sua indução era avaliada cuidadosamente mediantes tentativas (...). Depois de cerca de duas horas, o estado normal era restabelecido com Glucagon. A cura durava várias semanas. (...).” In Bleuler, E., op. cit.

7 “O tratamento com eletrochoque (Bini e Cerletti, 1937) consiste em suscitar uma série de ataques

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química e mecânica e, para completar, o total impedimento da prática de atos civis.

Embora essa degradação esteja sendo objeto de denúncias por setores da sociedade comprometidos com as questões sociais contemporâneas, esse estado de coisas permaneceu vigente ao longo deste século e adentrou o novo milênio. Segundo Antonio Gramsci, “criar uma nova cultura não significa apenas realizar individualmente descobertas originais; significa também e sobretudo difundir criticamente verdades já descobertas, socializá-las, por assim dizer, e, portanto, fazer com que se tornem base de ações vitais, elemento de coordenação, de ordem intelectual e moral. O fato de que uma massa de homens seja levada a pensar de modo coerente e unitário o presente real é um evento filosófico bem mais importante e original que não a descoberta, por parte de um gênio filosófico, de uma verdade, que permaneça patrimônio de pequenos grupos intelectuais” (Gramsci in Gruppi, 1978:77). Feita esta colocação, faço outra de igual importância: creio que para realizar empreitadas dessa natureza seja necessário o firme propósito de politizar essas concepções, sem o que corre-se o risco de banalizar e até mesmo de transfigurar noções, conceitos e categorias preciosas para o pensamento crítico.

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pesquisado, interpretado e compartilhado através da experiência social. Razão de tantas escolhas em minha vida, algumas de forma consciente. Estas, radicalmente constituídas politicamente, a partir de um dado lugar na história.

Finalizando, poderia encerrar este texto de várias maneiras. Optei, porém, por deslizar, ou “escorregar de manso”, sobre o anseio latente no sonho dos homens e mulheres por uma sociedade justa e igualitária. Não de toda humanidade, não por todas as vozes como num coro soando harmoniosamente, mas no desarranjo, na multiplicidade de fôlego exalado ora cansadamente, ora com hálito alcoólico, ora com hálito de fome, ora com hálito de doença. Neste sentido, considero minha intenção bastante arriscada. Para isso, nada melhor que o auxílio de alguns desses homens e mulheres que, de um lado, construíram com seus pensamentos e ações as possibilidades teóricas de transformação social e, de outro, a ajuda daqueles cuja existência é a razão primeira desta busca, num movimento que acredito deva ser baseado na razão mas, também, na solidariedade e na tolerância.

Há , inegavelmente, momentos na existência humana nos quais o corpo não consegue acompanhar os movimentos da alma. Esses, caracterizados pela total ausência de lógica e de sentido prático, nos tem aterrorizado desde crianças. É, creio, em parte, por causa desse terror que construímos castelos com membranas impermeáveis de uma racionalidade tal para nos afastarmos, tanto quanto possível, de qualquer sinal mais eloqüente dessa idiossincrasia.

Morta em 26-12-50, a última referência que havia sobre o sofrimento de Dna. Antonieta Petrucci no Juqueri era de 02-04-1940:

Nesta data consideramô-la como não influenciada pelo tratamento. Examinada, pudemos concluir que seu estado mental é demencial.

Como tal resolvemos removê-la para a colonia.

No momento do exame é acanhada alheiada, chorosa, diz que quer morrer que quer ir para o semitério.

Alega que não tem o corpo carregado de pecados para sofrer dessa maneira

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Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz

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loucura para análise das narrativas.

O trabalho de pesquisa, conforme mencionado, iniciou-se com um estudo quantitativo através de alguns indicadores tradicionais. Esses dados, referentes a um segmento específico, demonstraram–me que, para a compreensão do significado da doença e de suas manifestações na vida desses sujeitos, seria necessária uma investigação qualitativa e não só através da via institucional (pelos serviços de saúde) ou por diagnósticos e incapacidades.

No momento da realização da pesquisa de campo possuía em mãos formulários contendo referências de pessoas que havia entrevistado para a realização dos encaminhamentos mencionados inicialmente (Benefício de Prestação Continuada). Chamou-me atenção que havia, dentre todos os endereços, um que se repetia seis vezes: Rua Virajuba, na Vila Brasilândia.

Decidi começar por essa rua, tendo pesquisado, além do endereço finalmente escolhido, três outros e realizado duas outras entrevistas que não fazem parte deste texto.

As entrevistas aqui analisadas são de uma só família que agrega quatro irmãos que apresentam transtornos psíquicos, diagnosticados como portadores de Psicose esquizofrênica8.

A escolha dessa família como os sujeitos para compor esta pesquisa deu-se pela sua singularidade no contexto das famílias com portadores de transtornos psíquicos, em contrapartida à sua formação social, econômica e cultural, que tornou-a semelhante a muitas outras famílias pobres no Brasil.

Do ponto de vista metodológico, trafeguei pelo eixo: Pesquisa Qualitativa – História Oral – história de vida – estudo de caso. Segundo Tânia Maria Ramos Godói

8 “Psicoses esquizofrênicas – Grupo de psicoses, em que ocorre um distúrbio fundamental de

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analíticas mais complexas”(Diniz, 1999:45-46).

Buscando investigar e interpretar a visão que possuem do mundo do trabalho, das relações familiares, do território onde vivem e de tudo o que configura suas histórias de vida, creio poder contribuir no sentido de introduzir novos elementos para a compreensão dos múltiplos fatores que interferem para a manutenção do estado de exclusão.

A experiência social desses sujeitos foi o que movimentou a realização dessa pesquisa, que se forja durante a vida de qualquer homem através do cotidiano, das lutas e das resistências travadas por todos, sem exceção, mesmo para os que são considerados desprovidos de razão. Há, portanto, diferenças a serem consideradas e vivências a serem conhecidas. A entrevista eleita foi colocada sem edição para dar a dimensão da linguagem desses sujeitos e, conseqüentemente, de seu universo de vivências e significados.

Nesse sentido, Paulo Freire, no prefácio do livro “Trabalho e Sobrevivência”, de Sylvia Leser de Mello, referiu-se à importância dessa forma de pesquisar e a considerou essencial para o enfrentamento dos diversos estados de opressão, nos alertando “...da impossibilidade de fazermos uma tal pedagogia longe das classes populares, sem conviver com elas, sem nos ‘banhar’ nas águas, nos ‘córregos’ de sua cultura, sem perceber criticamente sua linguagem, suas metáforas, sua sintaxe. Sem perceber como percebem, como sabem o mundo e como se sabem nele, não, obviamente, para ficar parados, imobilizados, romanticistamente aderidos ao nível de seu saber de pura ‘experiência feito’. Pelo contrário, para superá-lo, mas, a partir dele.” (grifos do autor). (Freire in Mello, 1988:7).

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compreensão dos significados das coisas e das palavras para esses sujeitos. Arrisquei-me a interpretar esse estilo de narrativa e de apreensão do mundo como sendo típica de um olhar benjaminiano. Seu gosto pelos pequenos objetos e a atenção para aspectos pouco observados compuseram o que se destaca como gosto pelas alegorias.

Segundo Susan Sontag: “Suas sentenças não parecem gerar-se de maneira comum; elas não se concatenam. Cada sentença é escrita como se fosse a primeira, ou a última” ... “seu estilo de pensamento e composição, chamado incorretamente aforístico, seria melhor definido como barroco de estrutura fixa. Era uma tortura trabalhar esse estilo. Era como se cada sentença tivesse de expressar tudo, antes que o penetrante olhar interior da concentração total dissolvesse o objeto diante de seus olhos. Benjamin provavelmente não exagerava quando disse a Adorno que cada idéia em seu livro sobre Baudelaire e a Paris do século XIX ‘tinha de ser arrancada com violência de um mundo onde habita a loucura’”. (Sontag, 1986:100).

Gramsci também, de alguma forma, aludiu às alegorias quando falou do “folclore da filosofia”, referindo-se à multiplicidade de aspectos que compõem o senso comum, cujo principal traço é o de ser uma concepção “desagregada, incoerente, inconseqüente.” Gramsci se referia à diferença entre filosofia científica e filosofia do senso comum, um dos elementos da construção da filosofia da práxis. W. Benjamin referia-se aos “efeitos chocantes do surrealismo, a expressão descontínua, o senso de catástrofe histórica”(Sontag, 1986:94) e, ainda segundo a autora:“ Os temas recorrentes de Benjamin são, tipicamente, meios de espacialização do mundo: por exemplo, as idéias e as experiências vistas como ruínas. Compreender alguma coisa é compreender sua topografia, saber como mapeá-la. E saber como se perder” (Sontag, 1986:90).

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criminalidade. O desemprego e a falta de qualificação profissional também se fazem presentes de forma exemplar. Aqueles que possuem alguma atividade, emprego ou “bico” são obrigados a enfrentar a madrugada para chegar ao local de trabalho, voltando para casa, na maioria das vezes, à noite, exauridos pela dura jornada. A pobreza é dura de se ver. É necessário ultrapassar seu aspecto de farrapos e dela resgatar o sujeito que lá se encontra combatido pela dureza da vida. Definitivamente, não se pode “flanar”∗ por lá.

Essas afirmações, contudo, já são sabidas, são notícias de jornais, fazem parte do cotidiano de qualquer morador da cidade, rico ou pobre. Entretanto lá, na tal nada distante periferia, vivem muitas pessoas e convivemos com elas todo o tempo: fazem nossas comidas, limpam nossas casas, criam nossas crianças, constroem nossas moradias, mas jamais os aceitamos para nos aconselhar ou mesmo para despertar em nós a curiosidade para compreender seu gosto pela música popular dita de má qualidade, erotizada, ou pela comida farta e pesada. As diferenças culturais abrangem etnia, gênero, geração, crença e classe social. O mundo dos pobres é muito diferente do dos não-pobres e dos ricos e as manifestações da cultura absolutamente próprias são bastante visíveis. O modo de andar, de trajar, de falar e de se portar são os sinais demarcadores dessas diferenças. Contudo, os sujeitos se movem, ainda que o façam num campo que pode ser considerado restrito em virtude do lugar que ocupam no desenho engendrado pela formação econômica, ou seja, não são opacos ou meros espectadores sem juízo e sem repertório.

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