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5 – A LOUCURA E SUAS METÁFORAS

matar...”

Susan Sontag

Este, é sem dúvida, o momento mais delicado deste trabalho. Tratar da loucura, tentando não repetir conceitos, numa arrumação que nada acrescenta para a vida desses sujeitos. Como traduzir, interpretar o olho de sapo, a gravidez não registrada, segredos delirantes, memórias fragmentadas, vãos de significados, que, no mínimo, transformam o conceito de experiência vivida num problema teórico. Fui obrigada, então, a percorrer, ainda que tateando, textos inspirados em Freud e Lacan, sem contudo ousar formar quadros conceituais complexos e explicativos através desses autores.

Considero que houve vários momentos difíceis na realização deste trabalho. O momento, porém, em que Raquel faz um mergulho completo em seu delírio, narrando com absoluta honestidade seu drama, que compreendeu , ao final, aceitar e amamentar uma criança que não soube sua, fez-me gaguejar, tentar emprestar algum sentido, juntando alguns elementos que, significativos para mim, poderiam amenizar o desconforto causado por aquelas palavras. Com eles, porém, isso não foi possível, embora tenham se esforçado muito para bem impressionar, para colaborar, para lembrar. Na introdução de uma coletânea de textos sobre a clínica das psicoses, Durval Checchinato, assim disse: “... a loucura precisa ser recebida... a clínica da loucura não é algo que possa ser generalizado e, sim, que importa descobrir o caminho de cada louco na reconstituição de sua história.”(Checchinato, 1985:7).

O episódio da gravidez de Raquel não foi, aparentemente, uma experiência vivida. Há em sua vida como que um buraco negro, semelhante ao fenômeno da explosão de uma estrela, onde toda energia circundante é sugada pela voracidade contida no núcleo do fenômeno. Como compreender isso? Certamente não como metáfora. Não houve para ela nenhum registro dessa situação, não houve nenhum lapso de memória, nenhum recalque.

Raquel engoliu “o olho do sapo”, literalmente e não metaforicamente, como tantos “sapos” que engole-se no cotidiano. Estava subjulgada no trabalho e , até então,

Raquel – Então uma voz falô assim prá mim: - pega prá você, cê vai vê como

sua vida vai mudá... cê vai ficá rica... pega prá você – Eu falei: onde eu vô guardá isso, né? Onde eu vô guardá isso agora?

Entrevistadora – Ah... você engoliu porque você não tinha onde guardar, é

isso?

Raquel – É, porque eu num tinha onde guardá. (risos). Eu senti uma diferença... Entrevistadora: ... o olho do sapo... que você resolveu por dentro do corpo... é

isso?

Raquel – É... eu senti uma diferença, senti uma diferença tão grande... Entrevistadora: Que diferença, Raquel?

Raquel – O mundo era diferente... tá agora que nem tá, tá, tá... até hoje desse

jeito, esse clarão aí que nós tamo vendo. Não era assim, não, minha vida num era assim, não. Num era assim, num era esse clarão...

Entrevistadora – Como que era? Raquel – Era escuro.”

Essa construção não é metafórica, é puro sofrimento psíquico. Para os que não passaram pela experiência da loucura, é possível, como nos sonhos, entrar e sair do outro lado do espelho. Para os loucos, não. Não sozinhos. É necessário ir buscá-los.

Toda construção dentro dos limites da razão que possuímos, não esquecendo que também é construída social e historicamente, serve, diante da ameaça da loucura, somente para nos defender e dizer: “...mas isso não é normal, ela é louca.” O fato é que todos os seres humanos vivem em torno de suas verdades, muitas delas utópicas e próximas da ficção e do delírio. Através da escuta da palavra, método da psicanálise, Freud aconselhou, segundo Checchinato, dar aos delírios o mesmo

pessoas se comporta com relação às produções delirantes alheias da mesma forma como conjura seus pesadelos: a expressão -“ela é louca...”, assinala o mesmo repúdio embutido na expressão “foi só um sonho...”, dirigido a um produto bastardo de um psiquismo distorcido, ainda que apenas temporariamente no caso dos sonhos. Os delírios se assemelham aos sonhos ruins, só que deles não é possível acordar e dizer: “foi apenas um pesadelo”.

Às vezes, parece mais fácil compreender e até aceitar a fome, a guerra civil com a qual convivemos, a violência sexual contra crianças, o racismo e outros tantos desatinos humanos, do que a história de uma mulher cujo drama humano é fantástico e bizarro. Freud, porém, em sua antológica análise do Caso Schreber, concluiu: “... tudo tornou-se indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como miraculado, apressadamente improvisado. (...) o paranóico constrói-o de novo [o mundo], não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (Freud, 1974:93-94). Para o esquizofrênico, a funda incompreensão de sua existência é a catástrofe e o delírio, sua forma particular de reparação.

No texto Totem e tabu e outros trabalhos, Freud, em 19l3-19l4, ao referir-se ao estudo dos maoris, tribo da região da Polinésia, fez referência às manifestações culturais referentes ao tratamento dado aos sujeitos que ocupavam-se dos ofícios dos mortos: “... qualquer pessoa que tivesse manuseado um cadáver ou participado de alguma forma de enterro ficava no mais alto grau de impureza e era quase cortado das relações com os seus semelhantes ou, como podemos dizer, era boicotada. (...) ‘A comida era posta no chão e ele então se sentava ou ajoelhava e, com as mãos cuidadosamente seguras por trás das costas, abocanhava-as como podia. Em alguns casos era alimentado por outra pessoas, que, com o braço estendido, esforçava-se por fazê-lo sem tocar no homem tabu...’ ( Frazer, in Freud 1974:72-73).

A expressão “homem tabu” parece própria para destacar a construção imaginária que há sobre os loucos. Portam como que um perigo, um mal que, não se

Segundo Freud, trata-se de um temor da impureza. Foram suas palavras: “O que está em questão é o medo do exemplo infeccioso, da tentação de imitar, ou seja, do caráter contagioso do tabu.(...) Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. Nisto, a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos: todos nós não passamos de miseráveis pecadores”(Freud, 1969:94).

Mais adiante, ainda tratando do homem tabu, Freud relatou, através das palavras de Frazer : ‘ Em quase toda aldeia populosa vivia uma criatura degradada, a mais baixa das baixas, que ganhava uma miserável gorjeta para assim atender ao conspurcado’.(Freud, 1974:73).

Encontrei, ainda, em Lévi-Strauss, no Capítulo IX da obra Antropologia Estrutural - O feiticeiro e sua magia –, uma referência sobre o que ele denomina de mecanismos psico-fisiológicos presentes nos rituais tribais religiosos: “... um indivíduo, consciente de ser objeto de um malefício, é intimamente persuadido, pelas mais solenes tradições de seu grupo, de que está condenado; parentes e amigos partilham desta certeza. Desde então, a comunidade se retrai: afasta-se do maldito, conduz-se a seu respeito como se fosse, não apenas já morto, mas fonte de perigo para seu círculo; em cada ocasião e por todas as suas condutas, o corpo social sugere a morte à infeliz vítima, que não pretende mais escapar àquilo que ela considera como seu destino inelutável. Logo, aliás celebram-se por ela os ritos sagrados que a conduzirão ao reino das sombras. Incontinenti, brutalmente privado de todas as funções e atividades pelas quais o indivíduo tomava consciência de si mesmo, depois encontrando essas forças tão imperiosas novamente conjuradas, mas somente para baní-lo do mundo dos vivos, o enfeitiçado cede à ação combinada do intenso terror que experimenta, da retirada súbita e total dos múltiplos sistemas de referência fornecidos pela convivência do

proclama morto, objeto de temores, de ritos e proibições. A integridade física não resiste à dissolução da personalidade social”(Lévi-Strauss, 1996:193-194).

As duas citações, Freud e Lévi-Strauss, foram úteis no presente texto por conterem semelhanças com as práticas da psiquiatria, mesmo nos dias de hoje. Claro que a eficácia dos rituais atuais raramente está alicerçada na concordância, como nas tribos antigas, do condenado. Há, inicialmente, por parte dos sujeitos que enlouquecem, uma discordância radical em aceitar a internação ou a contenção química e mecânica. A psiquiatria, porém, como mandatária social dessa ordem, reage a isso com métodos truculentos e enganadores, realizando muito pouco, se considerarmos seu violento aparato.

Aceita cultural, jurídica e cientificamente, a exclusão assim se processa e, ao final, muito freqüentemente, a própria vítima acaba vencida, não mais conseguindo resistir ao seu “destino”. Dessa forma, todos se tornam cúmplices desse ato, notadamente profissionais da área, na composição da microfísica do poder na instituição psiquiátrica (Foucault, 1984).

A própria escolha dos profissionais de nível médio passa por uma série de pré- requisitos, como força física, autoridade, gênero, etnia e outros critérios de caráter subjetivo. A omissão desse trabalho em cartas de apresentação demonstra, por exemplo, o estigma nele contido.

Já no primeiro hospício em São Paulo, o D. Pedro I, que funcionava na Av. São João, eram comuns as reclamações com relação a funcionários. Maria Clementina Pereira Cunha registrou esse dado. “Na verdade, os funcionários do hospício foram vistos, desde os primórdios da instituição, pelos seus diretores e médicos que a compunham, desde um ângulo extremamente desfavorável: se eram tidos como “desclassificados” os negros libertos que serviam no velho asilo da capital, são vistos como incapazes, indisciplinados, ignorantes e inadequados os funcionários recrutados para o novo hospício. O serviço, por sua vez, era extremamente penoso e sobrecarregado: cada pavilhão comportava apenas um enfermeiro e guardas na proporção de um para cada dez loucos internados, em jornadas que se estendem das 7 as 22 horas, em condições de alta insalubridade, como atestam as elevadas taxas de

sendo somente para destacar a concepção hegemônica sobre como eram considerados os que se ocupavam do trato dos loucos, que eram os negros recém libertos e os “portugas”, como eram chamados os imigrantes portugueses, trabalhadores do Juqueri.

E os loucos, o que diziam? Maria Clementina P. Cunha colocou uma carta de um ex-interno do Juqueri, encontrada nos arquivos, dirigida a Franco da Rocha: “... Lendo n’ O Estado de São Paulo de 1 do corrente mês o vosso artigo sobre os paranóicos, não pude deixar de sorrir quando deparei com as seguintes asserções: ‘Tivemos um doente desse gênero que não tomava remédio de espécie alguma; era inútil procurar convencê-lo da tolice de sua prevenção’. Sim, porque (e deveis estar lembrado de mim) eu, que aí achei-me internado de março a setembro de 1903, presenciei, por mais de uma vez, de que modo certos portugueses grosseiros, boçais, propiciavam os medicamentos aos infelizes que, receosos de serem envenenados, não queriam engolir os ditos remédios. Derrubavam o paciente, punham um pé (uma pata) sobre o pescoço do mesmo, apertavam-lhe o nariz, etc.” (Cunha, 1986:92).

Finalizando, a experiência aqui registrada foi uma sucessão de viagens ao outro lado do espelho. Raquel, pouco antes de sua partida, assim como o “Anjo de Klee”, olhou para trás e só viu ruínas, crescendo até o céu, obrigando-a a partir. O vôo do Anjo, porém, era rumo ao progresso. O vôo de Raquel representaria o seu último e mais cruel estigma: a loucura. Estigma que recobriu toda sua experiência social e fez parecer sem sentido toda sua trajetória, repleta de desencantos.

6 – A SUBALTERNIDADE, UM PONTO

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