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Kijan moun yo ye? Famílias, relacionalidades e pessoas móveis em Jacmel/Haiti 1

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Academic year: 2021

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Kijan moun yo ye? Famílias, relacionalidades e pessoas

móveis em Jacmel/Haiti

1 Nome: Flávia Freire Dalmaso

Instituição: Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“No fundo não se está a viajar do ponto de vista geográfico, mas está-se a viajar por pessoas.”

Mia Couto

Resumo

O presente texto está baseado na pesquisa de campo que desenvolvo desde 2008, em Jacmel, capital do departamento sudeste do Haiti. Seu objetivo é apresentar alguns dados etnográficos em torno dos significados atribuídos localmente a ideia de família e as esferas a ela relacionadas. Tais esferas se revelam em um contexto de intensa circulação de pessoas por dentro e para fora do país e implicam em diferentes formas possíveis de relacionalidade através das quais os haitianos constroem seus vínculos afetivos, de confiança, amizade ou parentesco e estabelecem suas ligações com os espíritos, assim como em diversas maneiras de conceber os espaços da casa, da terra, do dinheiro e do comércio. Longe de serem tratados como domínios estanques e separados estes campos devem ser tomados como uma verdadeira amálgama que matiza, orienta e complexifica o dia a dia dos haitianos.

Palavras-chave: família, relacionalidade, circulação.

Introdução

“Ok Solange, tudo bem! Mas me diga quem você vai chamar para socorrê-la se você tiver um problema durante a noite hein?”

Solange tinha acabado de dar mangas a uma amiga que passava pelo seu jaden [pequena área de cultivo] naquele momento, Mona, sua vizinha que observara a cena de longe, veio logo em seguida reclamar sua parte. A pergunta transcrita acima foi feita a Solange por Mona logo depois que a primeira se negou, em meio a brincadeiras, a dar mangas para ela assim como tinha dado a amiga que morava

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Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.”

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“longe”. Nela estão sintetizadas as principais ideias relacionadas às atitudes de ajuda mútua que os vizinhos devem ter uns em relação aos outros. Como me disse certo dia uma moradora de Lafon: “Os vizinhos não são família, mas eles são família. Eles são uma sub-família, pois representam a sua família, entram no lugar dela para te ajudar quando você precisa”. No caso relatado, apenas Mona é vizinha de Solange, mas o fato é que tanto ela, quanto a amiga que recebeu as mangas poderiam se enquadrar do ponto de vista dela, na categoria mais ampla de

moun mwen que traduzida em termos literais significa “pessoa minha”. Esta

expressão seguida pelas suas variações moun yo [as pessoas] e moun paw [suas pessoas] são utilizadas corriqueiramente tal como na pergunta que deu nome a esta comunicação Kijan moun yo ye? [como vão as pessoas?] e serve para se referir a todos aqueles que lhes são afetivamente próximos sejam eles vizinhos, amigos ou familiares.

Como descrito no resumo este trabalho tem como propósito apresentar alguns dados etnográficos relativos às diversas maneiras pelas quais uma pessoa pode estar especialmente relacionada à outra em Jacmel, privilegiando certas dimensões que considero centrais para o seu entendimento. Tais dimensões envolvem fundamentalmente o conhecimento mais aprofundado sobre as noções locais de família, amizade, conjugalidade, parentesco e residência tendo em vista a intensa circulação de pessoas, objetos e espíritos, deslocamentos que me parecem ser estruturantes da realidade haitiana.

Breve histórico e situação atual da pesquisa

A primeira viagem que fiz ao Haiti foi realizada em 2008 quando cursava o mestrado no PPGAS do Museu Nacional. Nessa época eu, assim como outros colegas de curso e professores integrávamos o projeto “Mercados e Moedas em Port-au-Prince (Haiti): uma etnografia coletiva no/do espaço internacional”, coordenado pelo professor Federico G. Neiburg. Embora inicialmente tivéssemos escolhido a capital do país como local de destino, por uma série de razões nossos planos se modificaram e nos desviamos para a cidade de Jacmel, onde moramos (eu e outros três amigos) por dois meses. O convívio diário com os habitantes de Jacmel proporcionado por esta primeira estadia somado à leitura de uma bibliografia acadêmica sobre o vodu haitiano resultou na produção de minha dissertação de mestrado intitulada: “A magia em Jacmel: uma leitura crítica da

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literatura sobre o Vodu haitiano à luz de uma experiência etnográfica”, defendida em março de 2009. Logo após a defesa ingressei no curso de doutorado na mesma instituição e optei por dar continuidade a pesquisa em Jacmel com a realização, até o momento, de mais três períodos de campo e uma inevitável mudança de foco.

Sobre Jacmel e o trabalho de campo

Como mencionado anteriormente, Jacmel é a capital do departamento Sudeste do Haiti2. Ao todo, este departamento possui 10 comunas que, por sua vez são divididas em seções comunais. De acordo com dados fornecidos pelo Institut

Haïtien de Statistique et d’Informatique (IHSI) referidos ao ano de 2003, a

população geral do departamento Sudeste somava um total de 524.382 habitantes, dos quais 154.682 estavam na comuna de Jacmel que é composta pela cidade de Jacmel e por mais treze seções comunais3. Atualmente meu trabalho de campo se concentra em duas áreas bem próximas, ambas localizadas dentro da comuna de Jacmel, mas diferenciadas pelos seus habitantes que as classificam como “vila” e “campo”. A vila, onde morei durante as minhas estadias, faz referência à cidade de Jacmel em si e constitui uma região que é vista pelas pela população como “mais desenvolvida”, onde há eletricidade, muitos carros e mercado diariamente. Em contrapartida, o campo é assinalado como um lugar pouco desenvolvido, principalmente pela falta de energia elétrica e de estrutura para recebê-la. Note-se aqui que estas denominações apesar de serem efetivas também são uma maneira resumida e grosseira de alusão a estes lugares que possuem muitas outras formas de referência que variam sempre de acordo com o contexto que está em jogo. No caso da minha pesquisa, o campo trata-se de parte de uma região chamada Lafon que conheci em 2009, situada há cerca de 30 minutos de moto do centro de Jacmel. Lafon é definida pelos seus moradores como uma “zona” ou “localidade” e possui cerca de 15.000 habitantes que se dividem entre as duas margens do rio La Gosseline. Em termos administrativos seu território também está separado em

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O território haitiano é dividido em 10 departamentos: Noroeste, Norte, Nordeste, Artibonite, Centro, Oeste (cuja capital é Porto Príncipe), Sudeste, Nippes, Sul e Grand´Anse.

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As dez comunas pertencentes ao departamento Sudeste são: Jacmel (capital), Bainet, Belle Anse, Marigot, Côtes de Fer, Cayes Jacmel, La Vallée de Jacmel, Thiotte, Anse à Pitres e Grand Gosier. Jacmel, por sua vez, possui 13 seções comunais.

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duas partes, uma pertencente à seção comunal de Bas Cap Rouge e outra a seção comunal de Montagne La Voûte.

Durante os dois últimos períodos que passei em Jacmel residi na casa da família de uma amiga haitiana chamada Kettelie que conheci em 2008. Nesta casa moram seus pais, seu irmão e uma prima, mas na verdade, devo observar que o habitual vai e vem de pessoas que a caracterizam, faz com que seja difícil chegar a uma definição precisa de quem são os seus moradores, sem que isso esteja temporalmente localizado. De fato, como pude notar, no Haiti, um indivíduo vive em muitos lugares e casas diferentes ao longo de suas vidas, por vezes habitando duas ou mais casas em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, na mesma localidade, em localidades diferentes, dentro ou fora do território nacional.

Logo comecei a perceber que as constantes idas e vindas das pessoas não ocorriam apenas onde eu morava, mas em todos os lugares pelos quais circulava, de maneira que a população de uma casa parecia sempre oscilante com a saída ou entrada de um membro novo, que poderia ficar por muito ou pouco tempo. Este aspecto também foi observado pelos pesquisadores Federico Neiburg, Natacha Nicaise e Pedro Braum que no texto “Lideranças em Bel Air” afirmam que:

As residências são também flexíveis no sentido de que, nelas, as pessoas não somente moram; por elas, as pessoas também passam: mulheres comerciantes que viajam (entre Porto Príncipe e o interior, entre Porto Príncipe e as capitais comerciais haitianas situadas fora do país, como Miami, Santo Domingo ou Panamá); homens que emigram para trabalhar na República Dominicana ou que moram nos Estados Unidos e voltam eventualmente ao país.

(Neiburg, Nicaise e Braum, 2011 no prelo).

Sob este prisma tais movimentações devem ser tomadas como um dos eixos centrais por meio do qual encontramos uma janela para abordar o tema não apenas da família, mas também de outras formas de relacionalidade no Haiti.

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Deslocamentos

Segundo dados do relatório da PNUD de 2009 a taxa de emigração haitiana correspondia a 7,7% da população que neste mesmo ano correspondia a quase 10 milhões de habitantes, de acordo as estimativas feitas pelo IHSI (Institut Haïtien

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de Statistique et d’Informatique)4

. Infelizmente e apesar de sua validade estatística, dados sobre migração não dão conta dos muitos outros pequenos movimentos diários que fazem parte da vida no Haiti. Mesmo entre a diáspora as idas e vindas entre o país estrangeiro e o Haiti são bastante frequentes e as justificativas para elas bastante variadas. Muitos haitianos idosos, por exemplo, conseguem visto de residência nos EUA o que torna possível que realizem constantes viagens entre os dois países. Muitos que tive a oportunidade de conhecer me diziam não suportar o frio, passando os meses de inverno com a parte da família que vive no Haiti e os outros meses mais quentes com a parcela dos familiares que se mudaram para lot bò dlo [outro lado da água], forma corriqueira de se referir aos EUA. Funerais, visitas aos familiares e incumbências relativas ao universo espiritual do vodu também podem ser apontados aqui como outros motivos frequentes pelos quais os haitianos que vivem no exterior voltam ao seu país natal. Esta população é responsável não apenas pelas remessas em dinheiro, mas também pelo envio aos familiares e amigos que permaneceram no Haiti, de diversos objetos que variam desde comida e roupas até produtos para higiene pessoal como sabonete ou pasta de dente, por exemplo. Os lwas [espíritos] definidos pelos meus amigos como “seres invisíveis que estão por toda parte” e que “moram em vários lugares”, seja em Miami, em Jacmel ou na África também compartilham destes deslocamentos podendo, inclusive, serem mandados embora, para o exílio como me contou uma amiga de Lafon.

Para além dos imigrantes que vivem fora e que podem retornar ao Haiti quando precisam ou querem, há ainda aqueles que vivem a andar pelo país ou que cruzam seus limites constantemente, fazendo um movimento que é conhecido como antre soti [entrar, sair]. Sob este aspecto, o comércio nos mercados de rua e o surgimento de oportunidades relativas a algum tipo de trabalho remunerado podem ser citados como os principais impulsionadores para o engajamento das pessoas nas suas constantes idas e vindas em um país onde é rara a possibilidade de contar com um salário fixo e cuja renda per capta é estimada em U$S 1,25. As

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http://pt.scribd.com/doc/27169334/Relatorio-do-Desenvolvimento-Humano-2009-Mobilidade-e-desenvolvimento-humano-PNUD-ONU e http://www.ihsi.ht/. Há ainda informações fornecidas pelo site da CIA, onde a população estimada do Haiti em julho de 2011 era de 9.719.932 habitantes e de 8,32/1000 migrantes. https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ha.html.

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De acordo com estimativas disponibilizadas na página da CIA, o índice de desemprego no Haiti totalizava 40,6% da população em 2010. Já estimativas realizadas em 2003 apontam que 80% da população vivia abaixo da linha de pobreza.

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https://www.cia.gov/library/publications/the-world-6

madams saras estudadas por Mintz (1964), comerciantes que circulam entre os

muitos marchés que se espalham por todas as ruas e vilarejos do país podem ser citadas como paradigmáticas destes constantes deslocamentos. Considerar a situação destes andarilhos que em poucos dias podem cruzar várias cidades e mercados assim como outras tantas jornadas empreendidas diariamente nos leva, necessariamente, a interrogações sobre quais as noções locais de residência, de casa e de moradia que estão em jogo em um contexto onde o pressuposto é este ir e vir rotineiro e concreto do cotidiano, o movimento e não o repouso. Apesar disso, cabe ressaltar aqui que durante a pesquisa de campo não fez parte dos meus planos acompanhar de maneira sistemática meus amigos haitianos em suas andanças nem por dentro e nem para fora do país. Por isso meu olhar sobre a circulação de pessoas está formulado a partir da perspectiva da casa. Em outras palavras, ele está informado principalmente por aqueles que estavam (seja de passagem ou não) em Jacmel durante o mesmo período que eu. Nesta direção trago para o texto agora, certos episódios relativos à vida de algumas pessoas com as quais convivi e morei e que revelam um pouco a dinâmica dos deslocamentos que fazem parte do dia a dia no Haiti .

Elmita e seu pai Manô chegaram a casa em março de 2011, um pouco depois de mim. Manô é irmão de Brunette (mãe de minha amiga Kettelie) e vivia há muitos anos na República Dominicana com a esposa, embora também possuísse uma casa em Porto Príncipe para onde viajava constantemente. Segundo me contou ele entra e sai do Haiti constantemente para comprar e vender roupas entre os mercados dos dois países. Apesar de ter sua casa em Porto Príncipe e viver na República Dominicana, Manô me contou que estava passando um período na casa de Brunnete e não sabia dizer quanto tempo ia ficar e nem se quando voltasse seria para Porto Príncipe ou para a República Dominicana. Nesta época, Tô (marido de Brunnete) estava empenhado na reconstrução de um prédio, que havia desabado com o terremoto em 2010 e cuja proprietária e financiadora da obra é uma de suas irmãs que mora nos EUA. Manô estava trabalhando como pedreiro nesta obra o que me levou a imaginar que ele ficaria hospedado na casa de sua irmã enquanto ela durasse, mas em 2012 quando voltei, o prédio estava pronto e Manô continuava lá. Agora, não faz nada, mas não quer voltar para Porto

factbook/geos/ha.html Vale a pena ressaltar que os dados estatísticos mais recentes e confiáveis sobre o Haiti são produzidos fora do país, por órgãos como a CIA ou a PNUD, por exemplo.

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Príncipe e largou a esposa que continua na República Dominicana. Já Elmita morava em Porto Príncipe até se mudar para a República Dominicana onde foi cursar o último ano do ensino médio e posteriormente uma faculdade de administração. Ela passou cerca de seis meses na casa da Kettelie até que arranjou um emprego em Porto Príncipe e voltou para a sua casa (casa de seu pai Manô) onde está até hoje vivendo só, pou kont li [por conta dela, sozinha] como falam os haitianos.

Philomene é a sobrinha de Brunnete, prima de Kettelie que mora na casa também, embora durma todos os dias com Ivroise (irmã mais velha de Kettelie que mora em uma casa bem próxima a de seus pais) para não deixá-la sozinha durante a noite, já que seu marido vive em Nova York e vai ao Haiti apenas uma vez por ano. Ela foi viver sob a responsabilidade da tia quando tinha 16 anos para fazer o ensino secundário na cidade. Depois de um tempo ela se mudou para a casa de Manô na capital onde ficou até 2006 quando voltou a viver com a tia em Jacmel. Depois que deixei o Haiti em junho de 2011 soube que ela estava na casa que havia sido de seus pais (ambos já morreram) na seção comunal de La Montagne, a cerca de uma hora e meia da vila porque tinha arrumado yon ti travay [um pequeno trabalho, um bico] relacionado à construção de habitações através da Cruz Vermelha haitiana. Isso provocou um rearranjo também na vida de Ivroise que passou a contar com Miluse (uma amiga que mora em Lafon, mas que estuda na vila) para dormir em sua casa todos os dias no lugar de Philomene e está lá até hoje. O trabalho de Philomene durou cerca de dois meses e quando terminou, ela voltou para a casa de Kettelie e continua a dormir na casa de Ivroise.

A questão da oportunidade (seja de trabalho, estudo ou até mesmo de um prato de comida) é primordial nos três exemplos apresentados. Como indicado anteriormente, o Haiti é um país pobre, onde há pouca chance de se ganhar salários e também com escassa atividade agrícola. Portanto, neste universo social grande parte da mobilidade das pessoas encontra-se relacionada ao aparecimento de pequenos bicos em troca de algum dinheiro. É justamente nestas ocasiões que elas passam temporadas longas ou curtas nas casas de parentes ou amigos, um lugar onde sabem que podem comer e dormir. No entanto, apesar de ser um ponto chave na vida dos haitianos nem sempre são estas oportunidades que levam aos deslocamentos. Além disso, na maior parte das vezes as coisas estão misturadas o que faz com que as causas e explicações para se estar em um lugar ou em outro

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sejam vários ao mesmo tempo. Sendo assim, devo esclarecer que o Manô do relato acima foi sim a Jacmel basicamente porque havia uma oportunidade de trabalho garantida por lá, mas, além disso, ele também foi resolver uma questão jurídica relativa a uma terra que sua antiga mulher possuía na região e ainda aproveitou para visitar os parentes e passar um tempo com outra moça com a qual tem um caso não assumido por ele publicamente.

Finalmente, devo lembrar que os exemplos relatados aqui são apenas uma pequena amostra do dia a dia de alguns dos meus amigos de Jacmel. O fato é que estar diante de um universo social fortemente caracterizado pela circulação de pessoas nos leva obviamente a interrogações sobre as noções locais de residência. Sobre esse ponto posso afirmar que existem muitos modos de se referir aos locais de moradia em Jacmel, mas as interpretações sobre o que são ou ao que exatamente se referem não são consensuais. Enquanto estava em Jacmel pude observar que embora as pessoas passem por vezes longas temporadas em outras casas que não as suas, a percepção de estar de passagem não costuma ser perdida, de maneira que a casa seria “ao mesmo tempo um lugar de passagem e uma referência permanente” (Marcelin, 1999:36). Neste sentido, como me disse Manô sua casa é em Porto Príncipe, ainda que ele esteja vivendo (temporariamente) na casa de sua irmã.

Uma casa em Jacmel não é, todavia, apenas um lugar de residência e passagem. Simultaneamente ela pode ser (e comumente o é) um espaço para o comércio de todo gênero de coisas, desde comida e bebida até artigos de higiene como sabonetes, esponjas etc. Geralmente, os compradores são pessoas da vizinhança ou até mesmo os parentes que vivem sob o mesmo teto. Como a casa é considerada, sobretudo, como um local de intimidade, onde se pode ficar a vontade, os desconhecidos ou aqueles que não são íntimos nunca entram para comprar, sendo atendidos na varanda, no quintal ou na porta, muitas vezes de maneira impessoal, ao contrário dos que são considerados familiares. De qualquer forma, a casa se torna um espaço complexo onde se juntam os domínios das relações de intimidade que envolvem os sentimentos pessoais e da racionalidade das transações econômicas que, segundo Zelizer (2009), são frequentemente tratados por “pesquisadores da vida social” como esferas separadas. Para a autora, esta “teoria dos mundos hostis” que divide a vida social “de acordo com dois princípios organizadores separados e contraditórios” cujo “contato entre os dois,

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corrompe ambos” não funciona nem para descrever e nem para explicar “espaços sociais concretos” que, assim como as casas no Haiti, “não revelam” do ponto de vista dos haitianos, “nem esferas separadas nem mundos segregados hostis” (idem, pgs. 239 e 240).

2 – Relacionalidades

Ao longo da pesquisa pude observar que há muitas maneiras através das quais um indivíduo pode estar especialmente ligado a outro. A relacionalidade construída com base no parentesco consanguíneo é, sem dúvida, central para a compreensão daquilo que está em jogo quando o assunto é família no Haiti. A linguagem das relações de sangue se expressa através do termo fanmi [família], embora esta mesma palavra possa ser utilizada em diferentes contextos para dar conta de relacionamentos criados sobre outros fundamentos que não os do compartilhamento do mesmo sangue como os da conjugalidade, da vizinhança e da amizade. Sendo assim, tendo a concordar com Lambert que, em referência ao norte da Índia, sustenta que: “o parentesco consanguíneo constitui o modelo ideal de relacionalidade e as formas optativas de relação invocam este modelo, ao invés de serem inteiramente identificados com ele” (Lambert, 2000: 85). Em Jacmel, por exemplo, ir morar com a minha amiga fez com que a todo o momento eu fosse chamada tanto pelas outras pessoas da casa e da vizinhança de “filha dela” (pitit

li), pois estava sob sua responsabilidade, sendo visto como uma obrigação dela o

ato de cuidar de mim, o que significava basicamente me proteger e não me deixar com fome.

A comensalidade também tem sido apontada por alguns autores como uma das formas possíveis de se estabelecer relações privilegiadas entre os indivíduos. Ela é inclusive a base de uma das “formas optativas de relação” as quais Lambert se refere, sendo um exemplo de afeição. Carsten é outra autora que toca no assunto quando sustenta que entre os malaios “a relacionalidade é criada tanto pelos laços de procriação quanto pelos atos diários de alimentação e de viver junto em uma casa” (Carsten, 2000:18). De acordo com as minhas observações, posso afirmar que no Haiti, o compartilhamento da comida é fundamental para o estabelecimento de fronteiras afetivas entre as pessoas, sejam elas vizinhos, amigos ou parentes. Isso se torna especialmente relevante se levarmos em conta o

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fato de que a comida é uma preocupação constante para a maioria dos haitianos em um universo social onde ter o que comer a cada dia não é nada evidente.

Além disso, a comida é central no que diz respeito ao universo espiritual. Os sevité [servidores] devem alimentar seus lwas, sob o risco de serem castigados e ao fazerem isso estabelecem um vínculo de obrigações recíprocas com os espíritos. O ato de comer com eles, é considerado extremamente perigoso, sobretudo pelos adeptos das religiões protestantes e todas as vezes que ia a uma festa vodu as pessoas da minha casa (todas batistas) depois que viam que não tinham conseguido me convencer a não ir, me alertavam para eu não comer a comida que seria servida na festa. Compartilhar a comida com os espíritos me faria entrar em uma relação especial com eles o que, na opinião de alguns amigos, me tornaria vulnerável diante dos lwas que acabariam, por sua vez, “me comendo”, l’ap manjé w [ele vai comer você], me diziam (o que significa basicamente que eles iam me matar).

2.1 – Relacionalidades e formas de agrupamento: a fanmi, a eritaj e os espíritos ancestrais

Fefê e Merope são irmãos e, assim como muitos outros membros de sua família vivem nos EUA há mais de trinta anos, mas retornam constantemente a Lafon onde possuem casas, terras, parentes e amigos. Em 2011 eles estavam empenhados nos preparativos de um pwogam [programa, festa] para alimentar o seu lwa bitasyon [espírito que habita a terra de sua família], Tye Boule.6 Os lwas

bitasyons são comumente definidos como “uma coisa antiga”. Eles são espíritos

familiares, na medida em que são passados, por herança, de geração a geração desde o primeiro mèt bitasyon [dono da terra] para todos os seus descendentes7. Assim como a terra, os lwas bitasyons fazem parte da eritaj de um indivíduo, palavra que faz referência ao mesmo tempo tanto a herança em si, quanto ao grupo de parentes que compartilham esta herança. De acordo com Solange, prima de Fefê e Merope e moradora de Lafon, “se nós somos todos primos e moramos

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No livro Migration and Vodou, Richman chama a atenção para o fato de que os lwas são reverenciados no âmbito da família em um esforço coletivo com o objetivo de evitar seus ataques. Além disso, ela afirma que: “os migrantes não escapam da órbita móvel dos lwas” e que, “de fato, os migrantes são as primeiras escolhas de espíritos vingativos”, além de serem “os primeiros patrocinadores dos ritos que acontecem na volta para casa.” (Richman, 2005, p. 23).

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Além dos espíritos familiares existem os pwens, espíritos pessoais que alguém pode simplesmente “ter na sua cabeça” ou que podem ser comprados. Ao contrário dos lwas bitasyons, os pwens não podem ser herdados.

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em uma mesma bitasyon [terra] nós somos a mesma eritaj”. Em teoria, cada indivíduo pode pertencer a duas eritajs, na medida em que ela é transmitida separadamente pelo lado paterno e materno. Solange vive na mesma bitasyon onde ficam as casas de seus dois irmãos, e de outros primos dentre os quais estão incluídos Fefê e Merope, tendo herdado estas terras de sua avó por parte de mãe, o que quer dizer que esta é a eritaj de sua mãe. Tye Boulé é o lwa desta bitasyon e faz parte da herança dos descendentes da família Janis, chegando até a família de Fefê e Merope também por parte de mãe.8 Tais observações me levam a concordar com Karen McCarthy Brown quando ela destaca que “no campo, herança de terra também significa herança de relações com os espíritos que os ancestrais enterrados naquela terra serviram” e, “no vodu tradicional, a terra, a família e os espíritos são, de alguma maneira, um e o mesmo.” (McCarthy Brown, 1991, p. 36).

De acordo com Lowenthal (1987) que trabalhou em sua tese com as categorias de fanmi e eritaj, esta última englobaria os grupos familiares com base em uma descendência linear por parte de pai ou mãe, mais os ancestrais mortos. Desta forma, as ligações entre os indivíduos pertencentes a uma mesma eritaj se construiriam a partir de um determinado ego (vivo no presente) a todos os seus antecedentes até chegar ao seu primeiro ancestral, o mèt bitasyon se diferenciando, por exemplo, dos sistemas de linhagem agnáticas como as dos Nuer. Ainda segundo este autor, o pertencimento se baseia apenas no parentesco de sangue, com todos os seus membros igualmente relacionados a este ancestral fundador. Nas suas palavras:

A eritaj claramente representa um mais elaborado e sucintamente articulado sub-sistema de relações sociais que aqueles “frouxamente estruturados pelo parentesco” tão atribuídos as sociedades caribenhas; ou seja, ela não é sistematicamente contingente às variadas organizações sociais, tais como residência ou decisões administrativas de terra, e assim não está sujeita aos caprichos da escolha individual; e, finalmente, enquanto não é nem patri e nem matrilateral, e de forma alguma constitui uma linhagem no sentido

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Em tese, toda bitasyon possui um ou mais lwas. No entanto a conversão ao catolicismo ou a algum segmento do protestantismo pode fazer com que eles sejam deixados sob os cuidados de membros da família que não se converteram ou até mesmo abandonados. Nos dois casos há, no entanto, o risco de perseguição por parte destes lwas. Em 2011 conheci uma senhora que havia se convertido ao catolicismo e que reclamava constantemente de estar sendo perseguida tanto pelos seus lwas pessoais como por aqueles da bitasyon que morava. Segundo ela, toda a sua família se converteu não restando ninguém mais que se disponibilizasse continuar cuidando destes lwas bitasyon que, atualmente, se vingam e a perseguem trazendo para a sua vida todo o tipo de males.

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clássico, ela apesar disso possui um caráter corporado e duradouro raramente relatado na região. (Lowenthal, 1987: pgs. 209 e 210).

2.2 – Fanmi, vwazinaj e moun mwen

Como mencionado anteriormente o termo fanmi é utilizado em Jacmel para designar as pessoas relacionadas por consanguinidade, sendo a linguagem primordial pela qual o parentesco de sangue se expressa. Também foi assinalado que tal palavra, pode aparecer em referência a outros tipos de relação como as de vizinhança, amizade e conjugalidade. Neste sentido, como veremos mais adiante, a fanmi acaba por designar espaços de pertencimento e relacionalidades diferentes que variam conforme as interações que estão em jogo em um determinado contexto. Como sustentado por Marcelin, a fanmi pode englobar as relações de proximidade, tais como aquelas que marcam a convivência com os vizinhos. Segundo ele, “a palavra em kreyol haitiano que designa ao mesmo tempo parentesco (kinship) e família (family) é fanmi” e nela estariam inclusos “os mortos e os vivos assim como todos os níveis de colateralidade” e, ainda, “por extensão” ela também faria referência “aos vários níveis de proximidade e familiaridade”, (no prelo in American Antrhopology, pg. 3). No entanto, devemos ter em mente que em Jacmel, o compartilhamento do mesmo sangue dentro de uma família não é visto como uma escolha e coloca as pessoas, automaticamente, em relação, ainda que isso muitas vezes não seja desejado por elas. De maneira geral, pessoas que tem o mesmo sangue correndo em suas veias são consideradas como sendo mais parecidas entre si do que com aquelas que não o tem principalmente no que diz respeito a sua personalidade e caráter. Neste sentido, o pertencimento a uma mesma família acarreta formas de interação social nas quais são esperados comportamentos e atitudes similares por parte dos seus membros, na medida em que são percebidos integrantes de um único grupo (Woodson, 1990).

Os sentimentos de confiança, de solidariedade e de segurança parecem ser os que melhores traduzem o ideal das relações familiares em Jacmel e, como mencionado anteriormente, estas relações podem ser expressas também em situações de proximidade e de convivência entre dois ou mais indivíduos, onde nem sempre há o compartilhamento do mesmo sangue. Como pude notar, em várias ocasiões quando alguém queria me dizer que estava tudo bem, que eu

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poderia ir a algum lugar com esta ou aquela pessoa me dizia isso utilizando o termo fanmi ou outros que designavam uma relação de parentesco, mais comumente irmão ou irmã. No dia da festa para Tyé Boulé, por exemplo, dormi em Lafon e de manhãzinha encontrei um morador que me perguntou se tudo tinha se passado bem comigo durante a noite. Eu respondi que sim e ele com sua simpatia habitual me abriu um sorriso e falou: ou ka vini la toujou san pwoblèm,

se tout fanmi nou ye! [você pode vir sempre aqui (em Lafon) sem problemas, nós

todos (os moradores) somos família]. Em outras palavras, sua mensagem era a de que Lafon era um lugar seguro, onde eu não corria perigo tendo em vista que seus moradores podiam ser vistos a partir dos princípios de confiança, respeito e solidariedade que em tese devem reger o relacionamento entre parentes9. No entanto, ela também aponta para a possibilidade de se criar relacionalidades especiais – na medida em que são expressas pela utilização da palavra fanmi – que tem como base o pertencimento a um mesmo lugar de origem ou de moradia.

Além deste exemplo, a convivência diária com os moradores de Lafon me fez descobrir que os vizinhos, referenciados pelo termo vwazinaj [vizinhança], podem ser vistos como se fossem da família, sendo tratados a partir dos mesmos princípios que são associados a ela. Em 2011, logo após a minha chegada a Jacmel uma senhora morreu em Lafon e Solange passou todos os dias que antecederam e que sucederam o velório e o enterro ajudando nos preparativos, principalmente cozinhando. Um dia perguntei para o seu filho se elas eram da mesma família ao que ele me respondeu que não, mas que eram como se fossem porque eram vwazinaj e vwazinaj se dra blanc. Pelo que ele me explicou, a ideia contida na expressão dra blanc é a de dar cobertura, quando uma pessoa dá apoio a outra quando esta passa por algum momento difícil.10 Na verdade, não apenas Solange, mas vários outros vizinhos e vizinhas se empenharam em cozinhar, arrumar, limpar e organizar todas as coisas necessárias antes e depois do enterro.

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De maneira geral pude perceber que as pessoas com as quais convivi ao longo das minhas estadias em Jacmel tem muito medo de não estar entre família, como por exemplo, em lugares desconhecidos ou com pessoas desconhecidas. A noite também é encarada como sendo especialmente perigosa, momento propício para o aparecimento de dyabs ki manjé moun [diabos que comem as pessoas] que podem ser tanto bandidos, lou gawous, quanto espíritos. Em Hurbon (1988) podem ser encontrados relatos sobre as sociedades secretas que se reuniriam a noite no Haiti, causando medo nas pessoas.

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Imagino que o termo dra seja derivado da palavra francesa drap que significa lençol, ou drapeaux, de bandeira. De qualquer forma, além da concepção inicial relacionada a um tecido que pode cobrir, a junção do adjetivo blan, do francês blanc [branco] pode nos levar a associações com a ideia de bandeira branca símbolizando a paz que deve reinar entre vizinhos.

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Ao mesmo tempo em que parece existir uma obrigação moral de ajuda mútua entre vizinhos ou amigos e que, conforme assinalado por Pitt- Rivers (1973), deve ser expressa através de ações - uma falha nas ações pode ser interpretadas como uma falta de reciprocidade dos sentimentos – ocasionalmente acontece de um parente de sangue não gozar deste mesmo sentimento e respeito. Neste caso a família surge como algo que pode ou não ser “adotada”, dependendo da escolha individual. Quando interroguei Solange sobre se a família de Frida, uma jovem que morava bem perto de seu jaden [área dedicada ao cultivo de produtos agrícolas] era da sua família também, ela imediatamente respondeu: wi

yo fanmi’m, men m’pa adopté yo paske yo remen jouré toutan [sim, eles são

minha família, mas eu não os adotei porque eles gostam de brigar o tempo todo]. A fala de Solange nos remete a dois aspectos que merecem ser explicados, pois estão relacionados à hipótese levantada por mim no início deste tópico sobre o peso do sangue para as relações familiares em Jacmel. O primeiro aspecto para o qual gostaria de chamar atenção é o fato dela não ter negado pertencer à mesma família de Frida, elas têm o mesmo sangue e isso não pode ser facilmente desconsiderado. Já o segundo tem a ver com o fato de que por ter o mesmo sangue de pessoas que são “briguentas” (leia-se, com má fama, ou péssima reputação), pessoas que eram consideradas por alguns em Lafon como sendo movè moun [más pessoas], ou de movè ras [má raça] Solange corre o risco de ser prontamente identificada, pelos outros (seus vizinhos, por exemplo), com elas. Esta identificação dada a partir do grupo familiar ao qual Solange pertence faria com que ela própria fosse vista como mové ou como tendo mové san [sangue ruim] e é isso que faz com que ela queira se afastar e não “adotar” esta parte de sua família. Devo notar que o uso da palavra adoção aponta principalmente para o caráter seletivo que pode estar envolvido nessas relações e confirma a ideia de que o parentesco não é algo simplesmente e naturalmente dado, mas sim continuamente construído diariamente nas interações. Assim, estou de acordo com Marcelin quando ele sustenta que: “se o sangue é a condição necessária para identificar aqueles que são parentes (parentes de sangue), não o é, entretanto, condição suficiente”, sendo um parente somente aquele que é “reconhecido como tal”. (Marcelin, 1999: 45).

Como relatado no início do texto, em Jacmel é a expressão moun mwen [pessoa minha] que é utilizada para dar conta tanto das relações entre parentes

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como das relações entre amigos e vizinhos. Em várias situações, antes mesmo que me falassem sobre uma determinada pessoa em termos de parentesco de sangue (quando era este o caso), muitas vezes utilizava-se a sentença moun mwen. Desta maneira, ela pode ser sinônimo para o termo fanmi, mas ao mesmo tempo é maior que ele, na medida em que também pode estar referido a outras pessoas afetivamente próximas, como é o caso dos vizinhos e amigos. Apesar da utilização da expressão moun mwen ser recorrente entre aqueles com quem convivi, me lembro que só atentei para ela no dia em que Solange brincava com uma criança de falar no telefone. Ela pegou o telefone e disse: Bonjou Cristi, kijan

ou ye? Kijan moun yo ye? [Bom dia Cristi, como vai você? Como vão as suas

pessoas?]. Foi neste dia que percebi que tanto moun yo [suas pessoas], quanto

moun mwen serviam para falar de pessoas, mas não de quaisquer pessoas e

também não só das pessoas de sua família, mas sim daquelas com as quais alguém convive diariamente ou está acostumado e ligado por laços de amizade cujas relações estão baseadas principalmente na confiança e na solidariedade.

2.3 - Família, conjugalidade e relações entre os gêneros

Em Jacmel, algumas pessoas me diziam que um casal pode se tornar fanmi, na medida em que os dois sangues são encontrados em seus filhos, enquanto outras discordavam completamente desta ideia. Para Ramonite, uma jovem moradora de Lafon, por exemplo, um filho pertenceria à família de seu pai e de sua mãe e, ao mesmo tempo, seria o elemento que os faz ser família um do outro, pois é através dele, no seu corpo, que ocorre o contato e a união dos sangues de seus pais. No entanto, que este ponto de vista não é consensual e muita gente não considera que um casal, mesmo com filhos, seja família um do outro, de maneira que é preciso aprofundar as pesquisas neste campo.

Em Lafon era esta a opinião mais comum quando este assunto era tema em alguma conversa, não havendo grandes complicações ou elucubrações a respeito disso, mas nas interações diárias com as pessoas percebi que as coisas podiam ser muito mais confusas e misturadas. Isso ficou bem claro quando presenciei um conflito por causa de um enterro. Neste caso, os parentes de sangue da moça que tinha morrido tinham decidido (por vários motivos) enterrá-la no quintal onde ficava a casa de um de seus ex-maridos (já morto), pai de dois de seus filhos e onde ela tinha vivido por muitos anos. Acontece que o irmão do seu ex-marido

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que agora estava vivendo neste mesmo terreno não concordava com esta decisão e pôs-se a brigar com a família da moça (filhas e sobrinhas) e com a vizinhança por causa disso. Seu argumento principal era o de que ela não podia ser enterrada em seu quintal porque tinha trocado seu irmão por outro homem e por isso não tinha mais nada a ver com ele. Já as filhas, as sobrinhas e os vizinhos tentavam convencê-lo de que o certo seria enterrá-la justamente naquele terreno, pois ela era

fanmi do seu irmão morto, tinha morado com ele lá e, sobretudo, tinha tido filhos

com ele.

Na literatura acadêmica sobre o Haiti que trata das uniões envolvendo sexo entre homens e mulheres podemos encontrar diversos termos para descrever e classificar as diferentes maneiras de se estar com alguém (Herskovitz, 1937, Simpson, 1942, Lowenthal, 1987, Woodson, 1990). No entanto não se deve perder de vista que estes trabalhos, além de terem sido baseados em pesquisas desenvolvidas em locais específicos e feitas apenas por homens, também não são recentes o que nos leva a crer que podem ter havido mudanças nos hábitos sociais concernentes ao sexo, ao dinheiro, à família e à relação entre os gêneros. Durante as minhas estadias no Haiti reparei que alguns destes termos são frequentemente utilizados no cotidiano, enquanto outros raramente aparecem. Em Jacmel, por exemplo, as palavras mais usadas para definir as relações conjugais são plasaj e

mariaj, a primeira em referência a uniões não legalizadas juridicamente e a

segunda concernente aquelas que o são. De maneira geral, quando um casal estava em uma relação de plasaj, ou seja, quando alguém me dizia que uma mulher era

fanm placé de um homem, queria dizer que eles “ainda” não haviam se casado

nem na igreja e nem no civil, li poko marié [eles ainda não se casaram]. O uso do “ainda” é um indicativo de que esta situação é vista pelos meus interlocutores quase sempre como passageira, mesmo que perdure por muitos anos.

No Haiti é um senso comum a ideia de que todos os homens se relacionam com mais de uma mulher ao mesmo tempo, sejam eles casados ou não. Na maioria das vezes, isso é tomado como uma característica que pertence a natureza do homem haitiano. Sendo assim é “normal” e sob o ponto de vista de muitas mulheres, perdoável, que seus maridos ou namorados tenham filhos fora de suas relações assumidas publicamente. No entanto, as genealogias que construí com os habitantes de Lafon mostraram que grande parte das mulheres também se relaciona sexualmente com vários homens, pois muitas delas tinham filhos com

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pais diferentes, o que torna necessário que ampliemos um pouco nossa lente de observação sobre o assunto11. Até aqui, apenas posso afirmar que as mulheres não são vistas como seres “naturalmente” propensos a se relacionarem sexualmente com vários homens ao mesmo tempo e as que o fazem podem ser vistas como

penda [puta] ou outros nomes pejorativos além de correrem o risco de serem

fisicamente agredidas pelos seus parceiros. É claro que isso não as impede de flertar com muitos homens até se decidirem por um, mas se a relação se torna séria, de maneira geral, ela deve ser fiel. Devo acrescentar ainda que reclamações sobre o abandono dos parceiros homens depois que nascem os filhos são bastante comuns entre as mulheres que dizem que eles gostam delas até elas engravidarem e que depois “não querem mais saber” delas.

Como no Haiti ti gason pa dwe chita lakay li [os homens não devem ficar em casa], ou seja devem sair em busca de dinheiro, as mulheres (sejam as mães, as tias, as avós ou as madrastas) são centrais no cuidado das crianças, embora as tarefas relativas a este cuidado não sejam consideradas de exclusividade feminina. Isso não quer dizer que as mulheres não saiam para ganhar dinheiro. Como já assinalado no início do texto elas ocupam um lugar tradicional nos mercados que se espalham pelo país e, como sustenta Mintz a respeito dos sistemas de mercado nas sociedades camponesas, “estas mulheres frequentemente se engajam no comércio mais ou menos independentemente dos empreendimentos econômicos dos seus maridos” (Mintz, 1971:247). Em Lafon é comum encontrar casas onde moram apenas mulheres, parentes de sangue e crianças, mas a ausência física dos pais em casa não quer dizer que eles não existam ou que sua figura não seja importante e as regras de nomeação haitianas são um exemplo disso. Assim, quando uma criança nasce é registrada com o sobrenome apenas de seu pai. Exceção a esta regra ocorre quando um homem casado tem um filho com outra mulher que não a sua esposa. Neste caso, ele é impedido legalmente de colocar seu sobrenome na criança que acaba levando o sobrenome da mãe e leva na sua certidão a anotação de “pai ausente”. Apesar disso, conheci pessoas que tinham o pai “ausente” nos registros, mas ignoravam este preceito jurídico-legal utilizando

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Em 2011 construí uma série de genealogias com os moradores de Lafon. Algumas destas genealogias foram fundamentais para a minha compreensão da atual ocupação do espaço territorial em Gaste, localidade na qual concentrei meu estudo. Além disso, elas me possibilitaram conhecer um pouco sobre a história de Lafon, principalmente em relação a sua fundação com este nome e aos seus primeiros habitantes depois disso.

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o sobrenome paterno mesmo assim. Isso demonstra que “os nomes funcionam como marcas de relações afetivas”, sendo “o surgimento de uma criança” um “processo prolongado e que engaja emocionalmente todos os que passam a estar ‘relacionados’ com essa criança” (Pina-Cabral, 2005:2 e 12). De qualquer forma, os pais também se sentem muito vaidosos de seus filhos e ter muitos filhos, registrados no cartório com seus sobrenomes ou não, é sinal de virilidade e motivo para orgulho e felicidade.

Em Jacmel há um consenso de que certas atividades são próprias de mulheres e outras de homens. Tradicionalmente o comércio é identificado como uma atividade feminina em uma associação tão profunda que esta característica pode ser encontrada não apenas nos mercados de rua, mas também dentro das casas, na arte naïf haitiana e nas músicas. A venda não é considerada um tipo de trabalho e a forma mais comum de se referir a esta ocupação é dada pela expressão fè comès [fazer comércio]. Aos homens fica reservado o trabalho agrícola (este sim visto como um trabalho), principalmente as funções de limpar e arar a terra, uma tarefa considerada dura por eles e difícil de ser desempenhada por mulheres. Apesar disso, atualmente é bastante comum ver homens vendendo nos mercados das cidades, principalmente objetos eletro eletrônicos, e no campo mulheres trabalhando na terra. Muitos homens também são motoristas de caminhões, de tap taps [caminhonetes] ou das motos que fazem serviço de taxi por todo o país. Já as tarefas de cozinhar, lavar e passar roupas dificilmente são executadas por homens, embora eles afirmem o tempo todo que podem fazê-las sem qualquer problema. De qualquer maneira, há uma correlação tão forte entre a figura da mulher e o ato de cozinhar que é dito sobre a mulher que não sabe fazer comida, que ela não é uma mulher, assemelhando-se a uma criança, ou seja, ela não pode casar e ter filhos, estando fadada a viver como uma filha para o resto da vida.

Sendo assim, a união conjugal não traz para as mulheres grandes mudanças em relação ao desempenho das tarefas consideradas de seu domínio e responsabilidade; elas continuam lavando, passando e cozinhando para as pessoas da casa onde estão vivendo. O mesmo não ocorre com os homens que, quando se relacionam amorosa ou sexualmente com uma mulher devem passar a ajudá-la financeiramente. Eles não têm esse papel em relação à casa de seus pais, de maneira que não é uma obrigação os filhos contribuírem com dinheiro quando

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moram com suas mães ou irmãs, por exemplo. Ao pesquisar sobre as relações de parceria (mating) sexual em uma localidade rural haitiana, sejam elas conjugais ou não, Lowenthal (1987) chegou a conclusão de que:

A sexualidade feminina é de fato - diretamente e explicitamente - trocada por coisas que o homem pode providenciar, incluindo presentes em dinheiro ou produtos e, em um relacionamento longo, trabalho. Sob nenhuma circunstância a gratificação sexual é, em si própria, considerada uma recompensa justa para a mulher por seus serviços sexuais. Acima de tudo, sexo é trabalho para a mulher, não diversão (1987, p. 75).

Ainda na opinião de Lowenthal, o sexo, sendo visto como uma necessidade masculina, mas não feminina deixaria as mulheres em vantagem em relação aos homens estabelecendo uma troca desigual entre eles. Não sei até que ponto a posição de Lowenthal pode ser tomada como verdadeira, seria necessária uma pesquisa mais aprofundada sobre os sentidos que tem o sexo para as haitianas e tenho certeza de que a situação é um pouco mais complexa da que ele apresenta, ainda mais se levarmos em consideração que suas observações são baseadas em uma visão masculina. Da parte dos homens, posso seguramente afirmar que o dinheiro é visto como fundamental para seus relacionamentos amorosos com as mulheres. Segundo a opinião de muitos de meus amigos home as mulheres só querem ficar junto deles, enquanto os mesmos tiverem dinheiro para dar para elas. Se perdem o emprego, ou se permanecem um período mais longo sem arrumar um trabalho e consequentemente sem ter dinheiro, elas o abandonam. Este sentimento dos homens de “predação feminina” também foi encontrado nas pesquisas realizadas com lideranças comunitárias em Bel Air, na capital Porto Príncipe por Braum, Neiburg e Nicaise (2011:40, no prelo). No entanto, do ponto de vista das mulheres os homens são “mentirosos”, pois dizem a uma mulher que a amam, quando não é verdade. Para elas isso está ligado, justamente, ao fato deles se relacionarem com muitas mulheres ao mesmo tempo ou as abandonarem depois de uma gravidez.

As paqueras e casos que não são sérios são tratados pela expressão ti

ménage que pode ser literalmente traduzida como namoradinha (o). É comum os

jovens, terem vários ou várias ti ménages e o tempo todo eles caçoam uns dos outros apontando quem é o ou a ti ménage dos seus amigos que, por sua vez, negam sempre. Como minha convivência mais íntima foi com as meninas percebi

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que isso acontecia mesmo quando somente elas estavam presentes. Ao invés de contarem umas as outras o que se passava entre elas e seu ti ménage, isso era escondido e negado, embora sempre entre risos denunciadores. Esta postura me chamava atenção, pois imaginava as amigas como confidentes, principalmente de segredos amorosos. Confesso que ficava um pouco sem entender o que se passava, até que um dia estava em casa conversando com um grupo de mulheres jovens que me disseram que no Haiti o namoro é privé [privado] e não piblik [público] e esta era o motivo pelo qual elas escondiam seus romances umas das outras e pelo qual eu raramente via casais namorando nas ruas durante o dia. Na verdade, como pude observar, mesmo quando se trata de uma relação de casamento entre um homem e uma mulher, ela é marcada por uma atitude pública de distanciamento um do outro que, aos nossos olhos poderia parecer hostil.

Não sei dizer até que ponto poderia rolar ou não sexo entre as relações de

ti ménage. As mulheres da minha casa eram todas batistas e, em tese, adeptas do

sexo só após o casamento. No entanto, se o ti ménage virasse ménage [namorado] a relação ficava mais séria e a coisa poderia mudar de figura. De qualquer maneira, algumas jovens apontaram ser difícil fazer sexo com seus parceiros enquanto eles ainda não eram casados pela falta de privacidade. Segundo elas, sempre havia gente em todas as casas e dificilmente uma pessoa tem um quarto só para si, o que dificultaria as coisas.

O telefone celular é um objeto fundamental tanto para os namoros, quanto para as relações de ti ménage e, conforme pude notar, o francês é a linguagem do amor. As mensagens de flerte são frequentemente mandadas nesta língua, ao invés do kreyol e é comum que pequenas declarações feitas pelo celular sejam ditas também em francês. Segundo Mamoun, uma moça que passou uma temporada na minha casa em Jacmel:

Para uma menina se tornar namorada de um homem ele precisa falar muito antes. Deve dizer que gosta dela, que gostaria de construir uma casa com ela e que gostaria que ela fosse madam (esposa) dele. A mulher não diz nada, só escuta. Ela deve dizer sim ou não. Algumas mulheres podem levar um mês para dizer sim e outras podem levar anos para dizer não. Neste caso, os homens dizem que elas que elas os fizeram de bobos, porque enquanto a mulher não fala nada, eles entendem que podem ter esperança.

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Além disso, Mamoun contou que depois que a mulher diz sim, os homens “podem pedir uma prova” e que, “muitas vezes, a prova é fazer sexo”, o que não é encarado com bons olhos pelas minhas amigas. De acordo com minhas próprias observações das meninas com as quais convivi bem de perto, pude notar que entre as relações de ménages e de ti ménages, o ato dos homens de presentear faz parte do jogo de sedução e que elas os atiçam nesse sentido. No entanto, isso não é, de maneira nenhuma, garantia de sexo e da parte das meninas parecia uma diversão tremenda à custa dos rapazes o que reforça a tese de que pode haver muitas outras coisas em jogo além de um simples interesse econômico por parte das mulheres em relação aos homens.

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Referências

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