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Autor(es):
Moreira, Vital
Publicado por:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
URL
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URI:http://hdl.handle.net/10316.2/25924
Accessed :
27-Feb-2021 08:46:59
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VOLUME XVI 1 9 7 3
FACULDADE DE DIREITO
A sorte de Herbert Marcuse e as polémicas que à volta da sua obra se desencadeatam são conaturais a uma certa ambiguidade objectiva dos seus textos. Facto que não é novo na história das ideias: essa mesma equivocidade
e 'plurilocalidade' contribuiu para a glória de um SoreI
e também de um Max Weber. O objecto do ptesente texto - a teoria da revolução em Marcuse - é um
exemplo elucidativo dessa polissemia e in-defmição dos conceitos-base da sua teoria.
I - A TEORIA CRíTICA E A SOCIEDADE UNIDlMENSIONAL
A teoria da revolução de Marcuse só pode compreen-der-se integralmente quando inserida no quadro mais geral da fllosofta e da teoria social do autor. E esta inscreve-se e desenvolve-se num particular itinerário intelectual
(1).
(I) Sobre a vida e a obra em geral de Marcuse podem provei-tosamente consultar-se:
J.
HABERMA ,W. F. HAuc et aI/ii, AntlVorten aHf Herbert Mawm (Frankfurt 1968), Pierre MASSET, La pellsée de Herbert Marwse (Toulouse 1969),J
.
J.
PALMIER, Sur Marwse (Paris 1969), Frallçois PerrOllX interroge Herbert Mareuse ... qui répolld (Paris 1969), A. MAcINTlRE, Marcllse (trad. do inglês, Paris 1970), André VERGEZ, Marcuse (Paris 1970). E ainda: André NICOLAS, Marcuse, trad. portu-guesa (Lisboa, s/d [1971]), J. AMARAL NOGUEIRA, «As razões e as esperanças de M:ucuse-, in UIII hUlllallislllo à nossa lIIedida (Porto s/d [1972]) pp. 211-249.1. UIII especifico itillerário intelectual
Formado intelectualmente na Alemanha dos anos 20, Marcuse seguiu
aí
os mesmos passos e bebeu nas mesmas fontes de toda uma geração de intelectuais.Era uma época de ebulição no campo das ideias e das práticas sociais. A Revolução de Outubro e a derrota das tentativas revolucionárias europeias do após-guerra (na Alemanha, na HW1gria, na Itália), os conflitos e as cisões
no movimento socialista, a ascenção dos fascismos e a sua
vitória na Alemanha em 1933 culminando a crise mW1dial do capitalismo, tudo isto demarca uma época histórica de efer escência intdectual, particularmente no campo do marxismo. Korsch e Lukács tentaram eliminar a ganga
de dogmatismo e mecanicismo que os teóricos da SegW1da
Internacional haviam depositado sobre Marx, mas - ao
contrário de Lênine, menos f1lósofo - só o conseguiram
à custa de uma hipervalorização dos fW1damentos
hege-lianos, e idealistas em geral, do marxismo. Contra a teorização da «sociedade industriaL>, burocràticamente
orga-nizada, que Max Weber detectara no capitalismo
concen-tracionista que se estabelecia ràpidamente, não se
encon-trou outras armas senão a revalorização do «poder
revolu-cionário da imaginação e da utopia», tema que
parti-cularmente Ernst Bloch iria desenvolver.
É neste ambiente e sujeito às mesmas influências que
se inicia o itinerário intelectual de Marcuse, que vem a constituir com Horkheimer, Adorno, Fromm e outros
a que mais tarde ficou conhecida por «escola de Frankfurt»
ou «teoria crítica da sociedadCl>, formada em 1930 à volta do IlIstitut flir Sozialforschu/1g e da sua revista Zeitschrijt flir SozialforscllU/1g. As linhas mestras do seu pensamento
Em 1933, por força daquilo a que ele chamou a «contra-revolução preventiva» do fascismo alemão
(2),
aban-dona a Alemanha, estabelecendo-se no ano seguinte nos USA. (O mesmo caminho seguiram os seus companheiros de Frankfurt, Horkheirner e Fromm.) E seria aí que a sua estrela viria a brilhar com a publicação de um livro sobre a (<ideologia das sociedades industriais avançadas»: O Homem Unidimensional, publicado em 1964. Nele crista-lizam de forma sistemática todas as ideias-força que vinham sendo desenvolvidas desde Frankfurt, trinta anos antes.2. A filosofia negativa e a teoria crftica
A teoria crítica da sociedade
(a
expressão foi criada em 1937 por Horkheimer) não possui, desde o seu início, um conteúdo suficientemente defllÚdo. É ao mesmo tempo um modo filosófico e uma teoria social. As suas bases originais são o marxismo, na versão hegelianizada de Korsch e Lukács, e o idealismo alemão a partir de Kant. A sua identidade manifesta-se mais negativamente do que positivamente. As suas palavras-chave são «pensa-mento negativo», «filosofla negativa», «teoria crítica» e opõem-se a «pensamento positivo», «teoria tradicional», «positivismo»(3).
Enquanto a filosofia positiva traduz a «rendição do pensamento perante o que existe»
(4)
e a «subordinação(2) Ethik UI/d Revolutioll (adiante referido), p. 131.
(3) Cfr. MARCUSE, Reasoll and RevohJtion, Hegel and the rise of social theory (Londres 1941), particularmente pp. VII,26 sqq, 325 sqq; L'Homme Unidimensionl/el (trad. do inglês, Paris 1968) caps. 5-7 e ePhi!osophie und kritische Thcorie», in KultuT ul/d Gesellschaft I (Frank-furt, 8.' ed., 1968) pp. 102 sqq. Ver também Martin SELIGER. cLocke and Marcuse - Interrnittent and rnillenial revolutionisrm, in Pestschrift {ür Karl Loewenstein (Tubinga 1971) pp. 441 sqq.
da razão à aut ridade do facto estabelecido»
(5),
a filo ofia negativa pelo contrário, traduz uma «concepção de tru-tiva do que exi te»(
6),
«entra em conflito com a realidade social dominante»(7).
Enquanto a teor i social «tradi-cional» pretende bservar de fora a realidade social, e acaba por reproduzir teoricamente o processo de reprodução social, a teoria crítica da sociedade é, pelo contrário, desde logo sub ersiva da realidade. Conhecer é criticar e julgar. A razãoé
fundamentalmente negativa. O racionalismo filosófico e sociológicoé
intrinsecamente revolucionário. É neste quadro filosófico e teórico que Marcuse vai desen01
er a teoria da «sociedade unidimensional»(8,9).
(5) Reaso/l a/ld Revol"tio/l p. VII.
(6) Reaso/l a/l(1 Revollltioll p. 26.
(7) Reaso/l alld Revollltioll p. VII. _Fazer estoirar a realidade existente e mesmo subvertê-Ia é a tarefa histórica da filosofia ... t
- L'/lOl/Il/Ie Imidil/lellsio/lllel p. 20 .
(8) Outros principios definidores da teoria crítica são: um feroz radicalismo anri-capitalista, o historicismo - redução da história ao desenvolvimento fenoménico de uma essência - , o desprezo da ciência - considerada o paradigma da «teoria tradicional- - , e as teorias de Freud - com a sua concepção da civilização como repressão dos instintos humanos fundamentais.
(9) Sobre a «teoria crítica da sociedade- em geral, ver: G. E.
RUSCONI, Teoria edtica de la sociedad (trad. do italiano, Madrid 1969) - incidindo especialmente ~obre os aspectos metodológicos e epistemo-lógicos - e G. THERBORN, cThe Frankfurt Schoolt, in Nelv Left Review
63 (Set-Out 1970), pp. 65 sqq - especialmente sobre os aspectos ideoló-gicos. A escola de Frankfurt voltou a reconstruir-se no após-guerra, quando Adorno e Horkheimer regressaram do exílio (Marcuse perma-neceu nos USA, Fromm já se tinha afastado) e mantém ainda hoje um importante lugar no panorama ftlosófico e sociológico alemão. Novos dementos surgiram, nomeadamente Jurgen Habermas e Alfred Schmidt, ainda pouco conhecidos fora da Alemanha. Entretanto, a teoria crítica foi-se tornando cada vez menos defuúvel, cada vez menos sc-ciologia e mais filosofla, abandonou definitivamente a sua original base marxista e transformou-se naquilo que Thernborn (Ioc. cito pp. 70, 85) chamou um chumanismo metafísicot , .Iocalizado algures no espírito individual».
3. A sociedade unidimeusional
Tomando por modelo a sociedade norte-americana, Marcuse propõe no Homem Unidimensional uma tese central, depois desenvolvida e refinada em obras posteriores, nomeadamente no Fim da utopia (1968) e no Ensaio sobre
a libertação (1969)
(10):
a te~e de que a «sociedade industrial avançada», em que a única dimensão é a racionalidade técnica da produtividade, «unidimensionalizou» também o homem, tomado escravo das suas próprias criações.A lógica económica do rendimento, do lucro, do mercado permeia todas as estruturas da sociedade, penetra todos os interstícios da acção humana, até ao mais arcano da cultura, da arte, do íntimo do eros. A moderna socie-dade industrial é, no final, a refracção múltipla e a mani-festação extrema de uma tendência para a dimensão única da mercadoria, é o mundo da mercadoria e do valor de troca. Tudo nela está estandardizado, uniformizado, inte-grado segundo normas e valores comuns. O conformismo com o existente quase atinge o absoluto. A mimesis, a identificação total do homem com a estrutura social, não deixa lugar à contradição e ao conflito.
Contudo, analisada na sua real estrutura, a moderna sociedade industrial
é
lugar das mais profundas contra-dições. Por detrás da perfeita racionalidade formal da produção económica, descobre-se a irracionalidade da sociedade no seu conjunto; a par da abundância, existe, como sua condição, a mais pertinaz destruição de recursos e de homens; por de cima de uma aparente liberdade e tolerância, ergue-se a estrutura mais autoritária e repressiva (10) As ideias-base do HOII/elll Ullidill/ensiollal já se encontravam no «Epílogo. escrito para a 2.' edição de Reason alld Revolutio/l (Lon-dres 1955) pp. 433 sqq.de sempr : repr ão de todo o instintos criadores, através da linguagem, da moral, etc. E no fim, e como COl1Se-quência de todas estas contradições, a contradição máxima:
a ociedade industrial avançada
é
efectivamente aquela em que pela primeira vez na história se oferecem ao homem possibilidades reais de uma libertação genuína, em que pela primeira vez a «utopia» pode deixar de sê-Io, porreali-zação do seu conteúdo
(11).
Entretanto, porque essa possibilidade está escondida, por força da própria lógica do sistema, dos olhos daqueles que nele tão integrados, a sociedade industrial avançada repre enta, ao me mo tempo, a maior promessa de
liber-tação e a menor possibilidade real de alcançá-la. O
«Sis-tema» atingiu um tal grau de (<integração» do homem dentro da sua lógica, que retirou a este a própria capaci-dade de reflectir sobre a sua situação, de aperceber-se da
sua servidão e de imaginar sequer a possibilidade de (Jiber-tação».
A cOl1Sciência das possibilidades que a sociedade
industrial oferece à libertação do homem e à instituição de uma nova sociedade liberta da repressão e do domínio
está ao alcance apenas daqueles que o sistema não cOl1Seguiu
integrar, dos que lhe são ot",tsiders: as minorias étnicas, os párias, os cronicamente desempregados, os estudantes
(porque ainda não submetidos ao processo de «passagem»), os intelectuais, e também aqueles que, geogràflcamente
exteriores, suportam o peso principal da agressividade exploradora do sistema capitalista desenvolvido: os povos do 'terceiro mundo'. A classe operária - se ainda pode
afirmar-se a existência de uma classe operária no
capita-(11) efr. Vers la libératioll (trad. do inglês, Paris 1969) pp. 11 sqq;
lismo modemo - perdeu a sua consclcncia de classe e a consciência do papel revolucionário que durante um século reivindicou, foi integrada pelo aparellio econ6mico e ideol6gico do sistema e perdeu a possibilidade de ser o detonador do processo de destruição dele.
II - UMA NOVA TEORIA DA REVOLUÇÃO
Descritas assim nos seus traços mais típicos c gerais, as ideias de Marcuse abriram em leque para servir uma pluralidade de tendências bastante divergentes: desde funda-mento te6rico de movifunda-mentos de ideias e de práticas neo-;.anarquistas
(12),
até argumento de teorias que fazem da técnica e da indústria, s6 por si, o fundamento e a origem da servidão do homem (13).Não é porém a discussão do conjunto das teses do pensador germano-americano, nem o vário destino delas, que aqui importa. O objecto deste texto é bastante mais limitado: a teoria da revolução em Marcuse, ou mais exactamente, a revisão por ele operada na teoria marxista da revolução.
1. Revolução: uma (quase) impossibilidade
Que o tema da revolução suscitou um especial inte-resse de Marcuse mostra-o o facto de sobre ele se ter
(12) Marcuse transformou-se nomeadamente no inspirador ideo-lógico dos movimentos de ideias (e práticas) 'esquerdistas', especialmente entre os movimentos estudantis. Sobre isso ver Hans HELMS, «A revo-lução fetiche», in M(/rxismo e Alemanha Federal (trad. do alemão, Lis-boa 1971) pp. 47 sqq.
(13) As teorias de Marcuse sobre a sociedade industrial consti-tuem um pressuposto, e uma grande parte da substância, de A.
J.
SARAIVA, Maio e a crise da civilização burguesa (Amadora 1970).manife tado particularmente em duas casi -cs: Ética e
rel'O-IlIção (196S) e Reexallle do co/lceito de revolução (1968)
(14
.
15)
.
Compreende- e, aliás, que assim fosse'. e a sociedade industrial avançada e caracteriza preei amente por retirar
ao homem a pos ibilidade de apcrceber- e da exploração e da não-liberdade e lhe esconde as potcncialidades de uma no a ordem social, o problema da passagem, da libertação, enfim, da revolução, há-dc vir a ocupar um lugar central na te ria.
De de log , o conceito de revolução parece não mai poder ter lugar. Se o sistema corta cerce a própria ideia dela, a revolução é uma impossibilidade.
No entanto, o sistema não tapou todas as brechas por onde a ideia de libertação e de revolução pode fazer
a sua entrada. Se para aqueles integrados no sistema ela é uma au ência, é precisamente pela via dos não integrados, os marginais, que a ideia de revolução pode ser introduzida no sistema e é neles que a revolução pode encontrar ainda o agente detonador.
Contudo, esta possibilidade não justifica qualquer optimismo: por um lado, porque o processo integra cio-nista do sistema está em permanente movimento, absor-vendo os elementos não integrados; por outro lado, porque,
(14) Fontes aqui utilizadas: cEthik und Revolution. (trad. do
inglês) na colectânea Klllfur III/d GesellschaJr 2. 7.' ed. (Franco forte 1968) pp. 130 sqq; cRéexamen du concept de révolution •• in Diogene 64 (Paris 196 ) pp. 21 sqq.
(IS) Também o Ensaio sobre a libertação tem por objecto a análise das possibilidades de transformação da sociedade e retoma os temas propostos naqueles dois trabalhos. Considerações importantes sobre o
tema encontravam-se já no comentário aos A1arlllscritos ecollómico-filosó
-ficos de Marx. publicado em 1932 - incluído actualmente na recolha
Philosophie et révollltioll (trad. do alemão. Paris 1969) - e no já referido
embora possam ser o detonador da revolução, os marginaIs não podem constituir o agente revolucionário, não podem só por si levar a cabo a revolução.
2. O conceito marxista de revolução: um conceito a rever Mas se a revolução ainda é uma possibilidade real, se o conceito de revolução ainda pode ter lugar no discurso teórico, já se não trata da mesma revolução nem do mesmo
conceito que até aqui dominaram a teoria c a prática social. Se o conceito pode ainda existir tem de ser um conceito revisto, um conceito que tome em conta e reflicta as novas condições sociais e as novas circunstâncias da
prática revolucionária. O conceito a rever é
natural-mente o conceito marxista de revolução.
Segundo Marcuse
(
16
)
o conceito marxista de revo-lução pressupõe:(1)
que ela é levada a cabo por umaclasse maioritária da população que, tomando consciência da exploração de que é objecto, sente necessidade vital de mudança, de liquidar o sistema capitalista e introduzir a
propriedade colectiva dos meios de produção e o seu
controlo ditecto pelos produtores imediatos;
(2)
que asforças históricas da transformação se desenvolvem no
interior da sociedade estabelecida e são um produto da lógica interna do modo de produção capitalista: é a classe operária, base humana do processo de produção social, objecto da exploração capitalista, que é o agente da revolução; e
pres-supõe ainda (3) que o sistema após-revolucionário é,
apesar de tudo, uma continuação (<<superação») do sistema capitalista, na medida em que os métodos e os meios técnicos do aparelho produtivo são mantidos e
vido. É preci Jmente o facto de as relações capitalistas de produção impedir m o pleno aproveitamento das forças produti as di poníveis que provoca a necessidade da sua substituição pelo modo de produção socialista. As forças produtivas e a sua forma seriam pois no sistema socialista um desenvol irnento, não uma ruptura com o capitalismo. «Há - pronuncia Marcuse, interpretando Marx - uma continuidade na revoluçao: a racionalidade tecnológica, livre de restrições e de destruições irracionais, mantém-se e desenvolve-se na nova sociedade
(17)).
Na erdade, estes pressupostos do conceito marxista de re oluçao radicam na concepção geral do marxismo
sobre a sociedade capitalista e sobre a sociedade socialista. A um sistema assente sobre a apropriação privada dos meios de produção e do sobreproduto social, retirado da exploração de uma classe de trabalhadores separados dos meios de produção e extraído de um processo social de produção, sucede-se um sistema em que a apropriação dos meios de produção e do produto social por parte dos produtores directos elinlina aquela contradição funda-mental do capitalismo. A revolução consiste pois, em primeiro lugar, numa transformação das relações sociais de produção, que tem como pressuposto a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, e os agentes revolucionários são aqueles que no processo produtivo sofrem o peso da exploração
(18)
.
(11) L' hOlllllle utlidimensionnel p. 48.
(18) Sobre o conceito marxista de revolução ver: Pierre MASSBT,
Les 50 lIIots-clés dtl lIIorxisme (Toulouse 1970) pp. 149 sqq e as revistas referidas infra na nota ('6). Sobre as origens e as mudanças históricas
de sentido do conceito de revolução ver: G.
J
. FRIEDRICH,
Matl and"is gOllemllJetJt (Nova Iorque et allii 1963), cap. 34; Peter CALVERT,
011 Rellolutioll (Cambridge 1970) e Hannah ARENDT, Sobre o rellolJlção (trad. do inglês, Lisboa 1970).
Nos quadros da teoria marxista o conceito de revo-lução resulta pois coerentemente da teoria geral do capita-lismo e do socialismo. Ver-se-á como ao rever o conceito marxista de revolução é também e fundamentalmente essa teoria geral que Marcuse revê.
3. Os termos da revisão
De facto Marcuse revê todos os princípios do conceito marxista da revolução. Contra aquele que faz dela uma movimento da classe operária, consciente da exploração inerente às relações capitalistas de produção, Marcuse vem afirmar que a classe operária já não existe, ou já não está em condições de tomar consciência da sua situação; por isso, em segundo lugar, o agente revolucionário não pode sair de dentro do processo produtivo, terá de
surgir precisamente do seu exterior; finalmente, contra
o princípio de que o socialismo é a continuação do capi-talismo quanto à manutenção das forças técnicas de pro-dução, Marcuse vem afirmar a necessidade de ruptura
total com o existente, inclusive com as formas que as forças produtivas adquiriram no capitalismo. É na espe-cificação destas objecções à teoria marxista que se
desen-volve a altemativa teórica de Marcuse.
Em primeiro lugar, «o conceito marxista de revolução
enquanto movimento da maioria das massas exploradas
culminando na 'tomada do poder' e na instauração de
uma ditadura do proletariado que guiará os primeiros passos para a socialização - esse conceito fSlá 'u ltrapas-sado' pela evolução histórica)}
(1
9).
Esse conceito está desde(19) Réexal1lell ... p. 26 (sublinhado de Marcuse).
efr.
também Vers la libération p. 105.logo centrado sobre quadro nacional dos países capita-li tas indu trializado . Ora, por um lad , ne sas socie-dades, globalmente repre sivas, não é a classe operária-neutralizada cial e ideol gicamente, «força con ervadora ou me mo contra-revolucionária» (20) - que está em condi-ç-e de se opor eficazmente ao si tema. Somente os grupos marginais, a elite pr vilegiada dos intelectuais e dos estu-dantes e a população sub-previlegiada dos guêtos - isto
é,
os urucos grupo que l1ao têm qualquer compromisso com o si tema - , somente eles são capazes de uma visão e de uma prática negativas. Não a uma maioria econo-micamente expl rada, mas antes a uma minoria wcialmente alienada comp te agora a tarefa revolucionária. Por outro lado, o capitalismo contempolâneo não pode apreendt>r-se dentro do quadro nacional. Tem de ser considerado nas relações entre as «metr6poles» imperialistas e os «satélites» explorados. Forças negadoras do sistema são agora também os povos do «terceiro mundo» lutando pela ruptura dos laços imperialistas.
Por isso, em segundo lugar, a revolução já não surge como um desenvolvimento inerente ao sistema. A principal dificuldade da teoria tradicional da revolução reside mesmo «no conceito dialéctico segundo o qual as forças negativas se desenvolvem no interior de um sistema antag6nico existente»
(21).
Pelo contrário, «o poder do negativo nascefora dessa totalidade repressiva»
(22).
Do mesmo modo, e uma vez que a revolução nãoé
o produto de um processo interno da sociedade, ela nãoé
algo de forçoso, resultado logicamente esperado do processo de evolução do sistema.(20) Vers la libération p. 28.
(21) «Sur le concept de' negation dans la dialectiquet, in Pour Ime théorie critique de la sociíté (trad. do alemão, Paris 1971) p. 212.
Surge antes como algo de indeterminado, não necessário,
quase acidental, aparecerá como uma «desintegração difusa,
aparentemente 'espontânea' do sistema, um relassamento
geral dos laços que tecem a sua coesão>}
(23).
Finalmente, sendo os agentes da revolução definidos pela sua posição de exterioridade em relação ao processo produtivo, e em oposição a ele, a revolução significa uma
ruptura completa com ele, com o sistema que ele deter-mina - com os seus valores, com as suas relações de produção - e também com a forma das forças produtivas: uma ruptura também no «aparelho técnico da produtivi-dade!>, pois que a continuidade tecnológica constituiria um
«encadeamento fatal» entre o capitalismo e o socialismo.
O aparelho técnico da sociedade industrial avançada tor-nou-se só por si, na sua estrutura e alcance, um aparelho
de sujeição e douúnio. O «Wllverso de paz e beleza»
após-revolucionário pressupõe a ruptura desse laço tecno-lógico, a fim de que os homens possam guiar-se exclusi-vamente «pela sua consciência e sensibilidade>). O objecto
da violência revolucionária já não é (apenas) a classe detentora dos meios de produção e de exploração, é (também) agora o próprio aparelho produtivo, o anónimo
e impessoal aparelho técnico
(24,25).
(23) Réex(/mell ... p. 28.
(24) O desenvolvimento do argumento e as frases transcritas
encontram-se em Réex(/lIIen ... p. 29.
(25) E se uma transformação substancial da sociedade mas sem
ruptura com a estrutura técnica do capitalismo não resolve, segundo Marcuse, os problemas do homem na sociedade industrial, muito menos os podem resolver as reformas dentro dos quadros do
capita-lismo. As reformas não são mais do que formas de integração das
oposições ao sistema. O aumento quantitativo das reformas não pode
nunca mudar-se qualitativamente em revolução. Se para ele as revo-luções socialistas até ao presente não foram suficientemente negativas, as reformas não possuem qualquer teor negativo. Destas
considera-Nesta última tese de Mar use não est.1. contida, é fácil ver-se, apenas uma nova alteração ao conceito marxi ta de revolução; está implicada também uma
rede-fillição do cOllceito de socialismo
(26).
Este não pressupõe agora (apenas) a apropriação e controlo directo, por parte dos produtores associados, dos meios de produção e do produto social, pressup-e (também) fWldamentalmente uma recon-versão das forças produtivas, a libertação da sujeição anónima da racionalidade técnica, herdada do sistema capitalista .IIl- AS DIFICULDADES DE UMA NOVA TEORIA
DA REVOLUÇÃO
Antes de se entrar na análise das relações entre os conceitos marxista e marcuseano de revolução, interessa analisar mais de perto os elementos da teoria que ficou esboçada nos seus traços mais gerais.
Toda a teoria da revolução terá de definir pelo menos os seguintes pontos:
(1)
o que é que se revoluciona - i. é, qual é o objecto da revolução?(2)
quem é que faz, e de que modo se faz, a revolução - i.é,
quemé
o sujeito e qualé
o processo de revolução? (3) em vista de queé
que se faz a revolução - i.é,
qualé
o fim e o resultado da revolução?Ora, o mais característico da teoria da revolução de Marcuse
é
que nenhum dos elementos apontados recebe contornos defuúdos, nenhuma das questões a que tem de responder uma teoria revolucionária é efectivamente solu-cionada wúvoca e decisivamente.ções retira Marcuse a sua posição de rejeição total do reformismo e de toda a prática de oposição dentro dos quadros ou da 'legalidade' do sistema.
1. Capitalismo ou sociedade industrial?
Um dos pontos menos nítidos é sem dúvida a definição do objecto da revolução. Trata-se de destruir o quê? O capitalismo ou a sociedade industrial?
Marcuse refere ora um ora outro, quando não con-funde simplesmente os dois conceitos. Umas vezes parece ser o capitalismo, a apropriação privada dos meios de produção, o feticrusmo da mercadoria que estão no centro das suas preocupações. Outras vezes, ao invés, o que está em causa é a sociedade industrial, como tal, indepen-dentemente dos modos de produção em que ela se mani-festa: a racionalidade tecnológica, a falta de liberdade, a manipulação do indivíduo. (Nesta linha Marcuse não deixa de ser coerente quando considera o mundo soviético no mesmo plano das outras sociedades industriais.)
Nesta indecisão conceituaI denota-se uma grave inde-cisão teórica. Marcuse parece oscilar entre as duas grandes visões das sociedades modernas: aquelas que, partindo ambas de Saint-Simon, divergem subsequentemente em dois ramos fW1damentais. Um deles é a teoria da sociedade industrial, que se inicia em Comte e, através de Max Weber, domina a sociologia ocidental. O outro ramo é a teoria do capitalismo e deve a Marx os seus principais fundamentos.
Tal como a teoria do capitalismo, também a teoria da sociedade industrial segrega uma ideologia agressiva e defensiva. Os traços principais desta ideologia são dois: por um lado, através da denominação comum, identi-ficam-se as sociedades industrializadas, qualquer que seja o seu regime económico, desvalorizando as diferenças entre elas; por outro lado, lança-se todo o peso na distinção sociedades industrializadas - sociedades não
industriali-da te ria d capitalismo, é negada e ideol gical11ente neutralizada.
Marcuse não fugiu a esta ideologia
(27),
embora, contraditoriamente, continue a operar com o conceito de capitalismo, no seu sentido estrito. Inevitàvelmente, o objecto da revolução toma-se flutuante, senão indefinido (cfr. infra n.O 3).C nexionado com esta matéria, nasce ainda um outro problema: o do fundamento da revolução. Também neste ponto o discurso de Marcuse deixa lugar a duas leituras. O fundamento da revolução ora aparece directa-mente relacionado com a exploração económica, inerente às relaçõe capitalistas de produção, ora, mais frequente-mente, aparece ligado à opressão «anónima» do aparelho técnico-ideológico da sociedade industrial. De qualquer modo, parece que a revolução não surge como resultado da solução de uma contradição caracterizada, operante no cerne da estrutura da sociedade, mas sim de uma diferença entre o existente e o projecto do futuro.
2. RelJo/ução sem agente rello/ucionário?
Também quanto a este aspecto a indecisão de Marcuse é notória. Na sociedade w1idimensional que é a sociedade industrial modema, a revolução só pode ser levada a cabo por agentes exteriores ao «Sistemal). A classe
operária não está nessas condições, somente os marginais podem aspirar conscientemente à revolução. Mas os marginais só por si, como minoria que são, não podem
levar a cabo a revolução. Logo: qualquer revolução terá em última análise de ser feita pela classe operária ...
Na realidade, Marcuse não se furta a afirmar gue a classe operária continua a ser «ainda e sempre o único agente em potência de uma revolução possíveL>
(28.29),
mas esta afirmação dificilmente se pode coadunar com o contexto geral dos seus argumentos. Nesse contexto, a classe operária, se ainda é o agente, é-o apenas instrumen-talmente, não o criador e fundamento real da transfor-mação revolucionária. Para Marcuse os agentes histó-ricos da transformação social não são classes, definidas a partir da sua posição no processo produtivo, mas sim sujeitos precisamente estranhos a esse processo e cuja força lhes não é criada pela dinâmica do próprio sistema, antes surge por defeito de integração do sistema, por estarem fora do raio de acção dessa dinâmica.A indeterminação de Marcuse não acaba aí. Forças revolucionárias são também (ou são principalmente?) os povos do terceiro mundo. Mas logo surge a questão: os povos do terceiro mundo estão cm relação com que «sistema»? Com um país particular ou com o conjunto dos países industriais? E, neste último caso, a revolução não terá de ser mundial?
Marcuse parece não reproduzir a ideia - derivada de uma errada interpretação dos escritos de MaoTséTung -segundo a qual os povos do 'terceiro mundo' seriam as únicas forças da revolução. Segundo ele esta deve assentar numa sincronização entre essas forças e aquelas que (28) Réexalllell ... p. 26; cfr. também Vers la libératioll p. 75 sqq.
(29) Marcuse utiliza aqui a dicotomia an sich - flir si,,,. típica da
filosofia alemã e que se encontra também nos escritos de juventude de
Marx. O proletariado é ainda em si a classe revolucionária mas já
não é efectivamente o titular consciente da prática revolucionária
(cfr. Vers la libératioll pp. 28. 43 e 110).
actuam nas 'metrópoles'
(30).
Por outro lado, para Marcuse, essas forças revolucionárias - o p vos do terceiro mundo - são exteriores ao «Si tema», istoé,
à formação social do capitali~mo avançado, mas não ao sistema capita-lista no seu conjunto.Contudo, o sentido dos termos «interior» - «exte-rior» em relação ao ~ istema» é permanentemente ambíguo em Marcuse
(31).
Essa ambiguidade resulta de uma indefi-nição dos limites do «sistema» e em geral da estrutura geográfica do capitalismo. Quando Marcuse afirma queas forças re olucionárias contemporâneas (incluindo os povos do terceiro mW1do) só podem encontrar-se no exterior do sistema, parece que o ( is tema»
é
ainda e apenas o quadro nacional dos países capitalistas avançados. Quando, ao contrário, afuma que o quadro da revolução tem de ser mundial, porque mundial é o quadro docapi-talismo, parece que nes a lógica os povos do terceiro mundo terão de ser considerados forças internas ao «sistema». Mas Marcuse não desenvolve a análise necessária a fundar teoricamente esta última via da alternativa. Não
desen-volve por exemplo a teoria das <mações ricas - nações proletárias», proposta nomeadamente por Arghiri Emanuel
e por André G. Franck (e que encontra eco em autores como Sweezy, Magdoff, Jallée e até o último Varga) e
segundo a qU21 o sistema capitalista é um único sistema mundial, em que à exploração e oposição de classes dentro do quadro nacional se substitui a exploração e oposição
entre as nações ricas e as nações proletárias
(32).
(30) RéeX(/l/Iel1 ... p. 27.
(31) O único lugar em que Marcuse tentou clarificar esta questão
é .Sur le concept de negation ...• , pp. 216 sqq.
(32) Note-se que esta teoria, levada às suas últimas consequências,
exigiria a aliança da classe operária com a classe capitalista nos países
expio-Uma tal tese daria à sua teoria uma base coerente, dado que as forças revolucionárias continuariam a ser
internas ao sistema. (Nem todas: os outsiders dos países ricos continuariam um elemento estranho na teoria.) E embora haja sugestões dessa ideia nos seus livros, o certo é que Marcuse não se decidiu por ela: talvez porque a análise económica lhe interessou pouco (ela é em geral débil na sua obra); talvez porque se apercebeu das fraquezas dessa teoria; talvez - last but not the least - porque a exterioridade das forças de oposição ao sistema se torna necessária para lhe permitit fundamentar uma outra revisão do conceito marxista de revolução e uma outra def1l1ição do socialismo: ruptura completa com o sistema
existente
(33).
O sujeito da «negação absoluta» terá de sercompletamente estranho ao objecto negado. Considerar os povos do terceiro mundo como elementos integrantes
e necessários do sistema impediria essa negação.
3. Socialismo ou um «novo mundo amoroso)?
Esta indecisão fundamental no que respeita à base
social da revolução, implica uma indecisão igualmente
fundamental na configuração da sociedade
após-revolu-cionária.
Se a sociedade a destruir não se define apenas (ou
sequer?) pela exploração económica, mas também (ou
principalmente? ou exclusivamente?) pela repressão
gené-rica; se a contradição que interessa resolver não se dá
apenas (ou sequer?) ao nível da prodnção, mas também
ração das nações proletárias - , e exigiria igualmente a aliança da . bur-guesia nacional» das nações proletárias com o respectivo operariado e com o campesinato - porque também ela é objecto da exploração dos países ricos.
(ou principalmente? ou exclu ivamente?) ao ruvel da pessoa e da sua quotidianeidade - , então a cidade do futuro nao pode d fmir-se principalmente por uma nova organização econ' mica e social.
Mas também aqui Marcuse é particularmente pouco explícito. O projecto da sociedad futura ora se resume à libertação do instintos; ora se refere mais amplamente a uma organização social não repressiva; ora se restringe pura e simple mente a ociali mo».
O conceito cha e é aqui o de n/pt/na. Recusa total do xistente, quebra das raízes do passado. A cidade do futuro descleve-se negativamente, os seus contornos são indefuúveis
(34).
Em nenhum lugar tentou Marcuse demarcá-los. De qualquer modo, a sua principal dimensão parece que será a estético-erótica(
J5
),
e, se ainda se pode chamar ~ ocialista», não teria a sua base em relações de produção caracterizadas.Nesta (in)defm.ição do socialismo está expressamente implicada por Marcuse uma rejeição das formas de
socialismo até agora realizadas (nomeadamente as de
'modelo so i 'tico') que, por terem copiado e <"mulado as formas tecnológicas do capitalismo, não flzeram mais do que reeditar em novos moldes a dominação deste
(36).
(34) Cfr. P. MASSET, La pellsée ... pp. 33 sqq.
(J5) La fill de I'utopie p. 15.
(36) .Sabemos agora que nem a utilização racional destas forças
(produtivas das sociedades industriais avançadas], IIcm - e isto é essen
-cial-o scu COIItrolo colectivo pelos 'produtores imediatos' (os
operá-rios), são suficientes para suprimir a dominação e a exploração •. - Vers
la libératioll p. 12 (sublinhado meu). A crítica do omodelo soviético. fê-la Marcuse especialmente no livro: j\111rxislllo soviético, lilI/a alláli!e crítica (1958), mas também O hOlllelll fll1idilllc/lsio/llll pretende aplicar-se igualmente às sociedades de tipo soviético. (Cabe assinalar que o seu
-Ao invés, a nova sociedade pressuporá o fim da economia,
o termo do «princípio do rendimento», a liberdade da necessidade, para que o «princípio do prazer» desabroche irreprimido (37).
Simple mente, a abundância, a liberdade da
neces-sidade só pode assentar no desenvolvimento acrescido da técnica. E, então, uma questão exige resposta terminante: como é que a técnica, hoje considerada um instrumento
repressivo, se transrormará em condição necessária da «libertação» ? Para esta questão fundamental em vão se
procura na já vasta obra de Marcuse ao menos um
prin-cípio de resposta satisfatória. Na realidade, porém, a ideia
de ruptura, só por si, não tem capacidade bastante para
se efectivar a si mesma ...
saltos como professor em universidades norte-americanas, mesmo durante o maccarthysmo.) Note-se contudo que no Marxismo soviético Marcuse mantinha-se ainda fiel à concepção marxista da neutralidade
da técnica. A concepção contrária - a técnica como sistema de domi-nação em si - só aparece no HOlllelll Ullidil11ellsional. De resto - e isto
é um traço comum à «teoria críticat e aos vários «csquerdismost-,
a crítica do «socialismo soviético. aproveita-se de uma importante confusão teórica na anáüse do capitalismo: a identificação entre
capita-lismo e produção mercantil. Isso permite confundir duas coisas
perfei-tamente diferenciadas na anáüse marxista: o fetichismo da mercadoria - comum a toda a economia mercantil-, e a exploração - exclusiva
do capitalismo. Como as formas mercantis permanecem durante um
tempo mais ou menos longo nas «sociedades de transiçãot, eis aí um fundamento para a teoria crítica lhes aplicar os modelos analí-ticos utiüzados para o capitalismo e retirar daí as mesmas ilações. (37) Recorde-se que para Freud a repressão do «princípio do prazert deriva precisamente do «princípio da realidade-, isto é, da luta pela subsistência. O mundo novo da sociedade não repressiva pressupõe pois a eliminação do «princípio da realidade-, a libertação da neces-sidade. Essa possibilidade está inscrita no progresso técnico e na auto-mação. E é nesta admissão da compatibilidade entre a realização do
«princípio do praze[) e a «civilização» que reside a diferença entre
Freud e Marcuse, embora este pretenda ser essa a verdadeira inter-pretação de Freud. Cfr. Eros e Civilização (1955).
E, fInalmente - para colocar apenas as questões mais
importantes - , neste (<novo mundo amoroso», da
abwl-dância e do prazer, que sentido tem a luta d s povos do
terceiro mWldo? Na erdade, eles não lutam pela abwl-dância e pela libertação do Er s: lutam comezinhamente pela ruptura com a relação de dependência, lutam contra a fome ...
4. A l6gica da rei olução: hist6ria OH filosofia?
Todas as diflculdades da teoria da revolução de
Marcuse entroncam muito mais fundo, no próprio cerne
do fundamento ontológico da revolução. O que é a
revo-lução? Porque é que ela terá de ser efectivada por forças exteriores ao sistema? Porque é que ela terá de se afIrmar como ruptura total?
Na exposição acima feita da teoria de Marcuse (supra li, 3) ela foi apresentada com uma lógica que na
realidade
é
apenas uma das interpretações possíveis. Defacto é questionável a relação de precedência acima
pressu-posta das Su:lS teses: se é a tese da integração do operariado que implica a tese da exterioridade e esta a da ruptura
total, ou, ao invés, se é esta que implica aquelas.
A primeira interpretação tenta ainda salvar em
Marcuse a precedência da análise económica e
socioló-gica sobre as posições filosófIcas. Mas não
é
líquido que esse aspecto ainda possa ser salvo. Na verdade, talvez seja de aplicar ao próprio Marcuse aquilo que ele escreveua propósito de Marx: «É precisamente uma concepção
intransigente da essência humana que funda a revolução radical e se torna o seu motor: ver na situação de facto do capitalismo não somente uma crise económica ou política, mas sim uma catástrofe da essência humana,
é
condenar antecipadamente ao fracasso toda a reformapuramente econ6mica ou política e reivindicar
absoluta-mente a abolição catastr6fica do estado de facto pela revolução total. Somente depois de a teoria estar assente
sobre estas bases ( ... ) é que surge a questão das condições e dos
agentes históricos da revolução ( ..
.»>
(38).
A esta luz a l6gica da revolução é toda outra. Não
se trata de defInir a revolução para as forças e para as
condições existentes, trata-se antes de encontrar as forças e defInir o processo para a revolução pré-defInida. Mas,
então, não se correrá o risco de não encontrar as forças para a revolução desejada e esquecer aquelas capazes de levar a cabo a revolução poss{vel?
IV - UMA REVISÃO ILEGíTIMA
A apreciação total da teoria da revolução de Marcuse não pode bastar-se com a análise da sua coerência te6rica
e l6gica. Tem, em primeiro lugar, de indagar pelo estatuto
de legitimidade te6rica da nova teoria e, em segundo lugar, de aferir os seus pressupostos de facto.
1. A teoria marxista em questão
Quanto ao primeiro ponto, Marcuse pretende
legi-timar a sua teoria a partir da própria teoria marxista. A sua revisão pretende-se uma revisão interna da teoria marxista da revolução, uma revisão que resulta da 16gica do
desen-volvimento dialéctico da conceptologia marxista.
(38) «Les Manuscrits économico-philosopruques de Mano, in
É Marcu e quem escreve: «a teoria marxista é uma força no seio d conflito hi t ric , e acta mente na medida em que eu con eito traduzidos' em prática se tornam força de re istência, de transformação e de reconsti-tuiça ; tal como a própria teoria, esses conceitos práticos estão ubmetidos às vici situdes do conflito histórico que
el
s r flectem e englobam mas não dominam. O 'reexall/e'é pois
/I'"
elell/ellto do collceito de revol/lção, uma parte inte-grante do seu de en olvimento interno»(
39).
Ainda mais expllcit mente: «O alcance de te novo exame encontra-sedrfi/lido pela pr6pria teoria marxista que exige o
desenvol-vimento da intenção dialéctica dos seus conceitos na análise da realidade social»
(40).
Por isso mesmo, conclui Marcuse, «as modificações que con ém aplicar ao conceito marxista aparecem então não como aditivos estranhos ao conceito ou adaptaç-es dele mas antes como umaelabo-ração da pr6pria teoria marxista»
(41).
Mas o que é que torna necessária esta revisão? Segundo Marcuse, é a nova realidade do capitalismo que a impõe. Por isso que o capitalismo contemporâneo, monopolista é 'organizado'
(
42
),
«é diferente de todas as formas anteriores do capitalismo, nas quais se inspirou a análise marxista»(43),
os conceitos desta, incluindo o de revolução têm de sofrer uma revisão à luz das novas(39) Réexollle/l ... p. 21. Sublinhado meu.
(40) Réexalllf/l ... p. 23. Sublinhado de Marcuse. (41) Réexalllfl1 ... p. 31. Sublinhado meu.
(42) Marcuse utiliza a expressão ccorporate capita/is",., que na
socio-logia norte-americana de raiz institucionalista pretende acentuar o
papel da grande empresa, na forma de sociedade por acções - ucor po-ration. designa a companhia, a sociedade an6nima. Demarca-se assim a diferença entre o capitalismo actual, em que a grande organização económica teria vida institucional própria, e o capitalislllo illdividua -lista do séc. 19, em que a empresa era uma manifestação do capitalista.
relações económicas e sociais. Os conceitos estão necessà-riamente em relação dialéctica com a realidade. A concep-tologia marxista original foi elaborada por um estádio de evolução do capitalismo do qual o contemporâneo difere qualitativamente. Por conseguinte, há que repensar aqueles conceitos, necessàriamente alterados pela evolução da realidade que pretendem 'agarrar'.
Afirmada assim a fidelidade a uma certa matriz teórica, o problema desdobra-se em dois aspectos. Trata-se por um lado, de saber se as transformações da realidade exigem efectivamente as alterações propostas; trata-se, por outro lado, de saber se estas respeitam realmente a 'lógica' da teoria original.
2. Limites da revisão marxista do marxismo
Quanto ao último ponto, e quando tomadas como princípio metodológico, as considerações de Marcuse são absolutamente correctas. Os conceitos são instrumentos de captação do real, não planam independentes por cima dele. A generalidade dos conceitos são conceitos situados, reflectem um certo estado de coisas e portanto são soli-dários das suas alterações. Mas sucederá isso com todos os conceitos? Poderá dizer-se isso, dentro da lógica do marxismo, por exemplo dos conceitos de relações de produção, capitalismo, mais-valia, classe, estado, etc., que pela sua generalidade foram ab inítio construídos para abarcar todo um modo-de-produção ou até todos os modos-de--produção?
A posição de Marcuse parte fundamentalmente da ideia de que a crítica marxista foi pensada apenas para o primeiro estádio do capitalismo, para o capitalismo concorrencial inglês dos meados do século passado. A forma
do capitalismo das actuais sociedade indu triais avançadas pro ocou mudanças profwldas no modelo oitocentista,
por um lado, estabelecendo uma 'sociedade afluente'
em que se embotou a capacidade negadora da classe operá-ria (e ta também pr fundamente m di.ficada na sua
estru-tura pela transformação económica), por outro lado,
estabelecendo o capitalismo como sistema económico mWldial não apreensível no estreito quadro nacional de cada paí. Uma das consequências teóricas dessa trans-formação da realidade histórica é a revisão de conceitos como o de revolução.
Ora, este pres uposto teórico é altamente questio-nável. A análise marxista - particularmente o
Capital-não se pretende a análise de uma forma concreta do modo--de-produção capitalista. Pretende-se antes a teoria do sistema capitalista' puro', independentemente da sua forma concreta de realização, teoria essa ilustrada pela realidade nessa altura existente: a do capitalismo concorrencial. É o próprio Marx que ao expor o objecto do Capital con-templa expressamente esse problema, nos seguintes termos:
«O que estudo nesta obra é o modo-de-produção capitalista
e as relações de produção e de troca que lhe correspondem. A Inglaterra é o lugar clássico dessa produção. Eis porque é desse paí que recolho os factos e os exemplos principais que servem de ilustração ao desenvolvimento das minhas teorias»
(44).
Além do mais, da própria análise do capita-lismo oitocentista Marx concluiu que este não era a única forma de realização do modo-de-produção capitalista e que a ela Se; seguiriam outras formas, nomeadamente aquela que a teoria marxista contemporânea designa por (44) K. MARX, Prefácio à 1.' ed. do Livro I de O Capital, in Oell-vres I (Paris 1965) p. 548. Sublinhado de Marx, excepto o últimocapitalismo monopolista. É pois a própria teoria original que prevê e integra outras formas do capitalismo.
A este propósito, e embora referindo-se apenas à
teoria do estado capitalista e não à formaçâo
capita-lista no seu todo, Poulantzas escreveu: «frequentemente
viu-se [no Capital] um estudo do capitalismo privado,
lendo-se aí uma descrição da não intervenção do estado liberal na economia. De facto [porém] o Capital dá-nos
as chaves de uma construção do conceito [geral] do
estado capitalista»
(45)
e, poder-se-á acrescentar, pretende seruma teoria geral do capitalismo como modo-de-produção.
Se isto é assim, então há um conjunto de elementos fundamentais para uma teoria marxista da revolução
- não se pode dizer que Marx chegou a elaborar completa-mente uma teoria da revolução - que, dentro dos seus
pró-prios quadros, não podem ser essencialmente alterados.
Estão nessas condições as definições de capitalismo, conflito de classes, socialização dos meios de produção, etc. Ver-se-á
que na revisão de Marcuse não se contém apenas uma
revisão da teoria da revolução mas também uma revisão dos traços e~senciais da teoria marxista do capitalismo e da sociedade
(46).
Evidentemente, o não se poder limitar a validade da teoria marxista apenas à fase individual e concorrencial (45) Nicos POULANTZAS, POllvoir politique et classes socía/es de l'état capitaliste (Paris 1968) p. 163.
(46) Em geral as revisões do marxismo assentam nesse argumento, segundo o qual (1) O Capital é uma teoria do capitalismo concorren-cial individual do séc. 19 e (2) o capitalismo contemporâneo, mono-polista e 'colectivo', é qualitativamente diferente daquele. São esses os mesmos pressupostos que servem de fundamento a toda a crítica contemporânea ao marxismo como teoria da sociedade, desde Raymond Aron a Robert Tucker. Pode dizer-se que hoje virtualmente ninguém nega a validade da análise sociológica de Marx para o séc. 19. Quase a mesma unanimidade, mas de sentido inverso, vigOlava 110 seu tel/lpo.
do capitali m ,nã impede a reVlsao legítim da teoria
da re olução. Na erdade, a teoria marxista da revolução
não faz parte da teoria do capitali m apenas a pressupõe.
É pois pas ível de revi ão (v. g. Lênine, Mao-Tsé-Tung)
sem ter de in oear, como Marcu e, a caducidade da teoria geral do capitalismo, e sem rever esta, como Marcuse
também faz.
3. ocialislllo Otl barbárie: um imperat; vo ético
Ainda que o conceito marxi ta de revolução seja
situado e portanto passível de revisão à luz de novas
situa-ções, poderá dizer-se que a revisão produzida por Marcuse é ainda, como ele pretende, «uma elaboração da própria
teoria marxista»?
É o próprio Marcuse a afirmar que há um ponto em que a sua revisão se não coaduna com o fundo teórico de
Marx: não corresponde à «veia [marxista] que pode
qualificar-se de racionalista» e que consiste na ideia de necessidade lústórica da passagem a uma «etapa mais alta
da evolução humana) (47). Na verdade, para Marx o
dilema «socialismo ou barbárie» não se punha. Põe-se
para Marcuse. A revolução deixou de apresentar-se como uma necessidade !ústórica, pois é a própria história
que a está a tomar numa quase impossibilidade. A
revo-lução é agora um problema de opção humana, entre o socialismo e a barbárie, entre a liberdade e a servidão
(
48
).
(41) Réexamen ... p. 34.
(48) «As contradições sociais - escreve Perroux, interpretando (bem) o pensamento de Marcuse - não explodem por si mesmas, nem sequer propõem ocasiões claras e indiscutíveis à estratégia rever lucionáriat - François Perrollx illferroge Herbert Marcuse ... , já refe-rido, p. 124. Note-se entretanto que a representação mecanicista da revolução em Marx é um tanto caricatural. A ideia de «c
Mas se a revolução deixa de apresentar-se como . neces idade' hist6rica, se os conflitos sociais não a implicam como objectivo último, o que
é
que pode fazê-la surgir? Que factores determinam a opção humana? Qual o seu fundamento?A resposta de Marcuse
é
clara: um imperativo moral. No actual estádio de desenvolvimento das sociedades industriais avançadas, em que o aparelho produtivo fun-ciona como aparelho de opressão mas simultâneamente encerra em si possibilidades j;)mais existentes de libertação humana, constitui um imperativo moral reconverter a sociedade e levar à prática essas possibilidades.Aliás, a revolução s6 se deixa legitimar historica-mente quando permite alargar o campo de liberdade (mais do que apenas o de felicidade) do homem: a Hüt6ria é a hist6ria da sua procura. «As revoluções hütóricas - afirma - foram em geral proclamadas e postas em marcha em nome da liberdade, ou melhor, cm nome de uma maior liberdade para mais camadas d:l população»
(49).
Não llue Marcuse sobreponha à história um
abso-luto imperativo de liberdade, à maneira de Kant. Para
ele o critério da liberdade e da felicidade é um critério histórico, a revolução
é
o pôr cm acto do potencial de liberdade que uma determinada situação histórica inclui e faz prever mas não realiza. A liberdade a realizar é sempre uma liberdade possível, não a liberdade absoluta. O que Marcuse afirma é que a históriaé
a evoluçãocm Marcuse. A revolução em Marx e em Lêninc e noutros não é o resultado do desfecho de uma contradição simples, mas sim, na expressão de Althusser, de uma contradição «sobrcdeterminadat por uma multi-plicidade de factores operantes cm todas as estruturas sociais. - Cfr. L. ALTHUSSER, POlir Marx, 2.' ed. (Paris 1971) pp. 92 sqq.
para uma cada ez maior felicidade c liberdade. Contudo,
«em relação às pos ibilidade reais de liberdade vivemos
sempre numa situaçã de relativa in-liberdade. O grande
fosso entre as possibilidade reais e o efectivo, entre o
racional e o real nilllca foi preenchido»
(50).
A Hi tóriaé
pois a permanente perseguição de uma concordâncianilllca atingida. O que acontece
é
que hoje esse fossoé maior do que nunca. Na realidade, «as possibilidades de liberdade e felicidade humanas [contidas] na sociedade indu trial desen
01
ida não são de modo nenhumcompa-rá eis à existentes em etapas anteriores da história»
(51)
- são muito maiore .Neste conflito hi tórico entre a promessa da
liber-dade e a realiliber-dade da não-liberliber-dade não se trata agora da utopia abstractra mas sim da «utopia concreta»,
reali-zável, porque já contida em potência na realidade. Não
se trata também do ideal absoluto kantiano de uma socie-dade de homens livres, limite da história e do qual ela
se aproximaria assintoticamente. Em Marcuse, o ideal é definido também historicamente e, como tal, mutável.
Mas, tal como o ideal kantiano, não deixa de ser um
padrão de aferição das situações históricas, uma tábua de
valores em função dos quais se pode julgar a realidade
e em função de cujo juízo se pode e deve actuar
(52).
(5~ Ethik ... p. 136 sq.
(51) Ethik ... p. 126.
(52) A distinção entre «utopia concreta» e «utopia abstracta» deve-se a Ernest BLOCH: Das Prillzip Hoffilll/1g (1954). Utopia abstracta
é aquela em que o projecto do futuro abstrai completamente do presente, não encontra neste qualquer princípio ou apoio. A utopia concreta, ao invés, é um projecto que representa uma «possibilidade
objectiva-mente real. de efectivação a partir da sociedade existente. Cfr.Werner
MAmoFFER, cIdeologie und Naturrecht», in W. Maihoffer (ed.), Ideologie Imd Recht (Frankfurt 1969) pp. 122 sqq. e Ernst BLOCH, Über Karl
4. O cálculo revolucionário
É Marcuse quem escreve: «A ética da revolução
testemunha assim o confronto e o conflito entre dois
direitos hist6ricos: por um lado, o direito daquilo que é,
a sociedade estabelecida, da qual dependem a vida e também talvez a felicidade dos indivíduos; e, por outro lado, o direito daquilo que pode e talvez deva ser, porque pode reduzir a dor, a miséria e a injustiça - pre~supondo sempre
que esta hip6tese (Chance) pode fundamentar-se em reais
possibilidades. Uma tal prova tem que fundar-se em
ctitérios racionais ( ... ): estes devem ser critérios hist6ticos.
Como tais partem de um 'cáculo hist6rico',
nomeada-mente de um cálculo das possibilidades de uma sociedade
futura face às da sociedade existente no que lespeita ao progresso humano, isto é, na medida em que o progresso técnico e material possa ser de tal modo utilizado que
aumente a liberdade individual e a felicidade individm1>
(5
3
).
Ora, a sociedade industrial contemporânea não aumenta apenas as possibilidades da liberdade e da felicidade; permite também uma prova racional dessas possibilidades,
dada a «crescente calculabilidade dos nossos r(cursos
científicos, técnicos e materiais acompanhada do progresso do poder científico sobre o homem e a natureza»
(54).
Mais: este cálculo não é uma mera compreensão te6rica
(53) Ethik ... p. 137. Note-se: do indivíduo, não do homem. Aqui trai-se também o fundo individualista que integra todo o pensamento de Marcuse. No fundo, é a destruição do indivíduo, independente, autónomo e esclarecido da filosofia do iluminismo, de Kant e de Hegel, que o preocupa. No centro do seu pensamento e da sua sociedade revolucionária está a efectivação desse modelo. Evidentemente, não é o modelo marxista de socialismo que lhe pode servir para esse fim ...
Para Marx a realização do indivíduo só pode ter lugar com o comunismo.
da Hi t' ria, é a verdadeira e 'plicação de la: «a história foi efecti amente no eu pontos de iragcm decisivos uma tal experiência calculada»
(55).
Por outr lado, por isso que a revolução
é
uma pção ética calculada, os seus agentes s-o aquele que podcm tomar con ciência dessa opção. Está a im aberto o caminho para o elitismo: «quanto mais calculável e controlável se toma o aparelho técnico da modema sociedade indus-trial, tanto mais as possibilidades do progresso técnico dependem das qualidades intelectuais e morais dos diri-gentes bem como da sua disposição e capacidade para educar a populações e levá-las a reconhecer a possibili-dade, ou antes, a necessidade de pacificação e humani-zação»(56).
S. Fim da Htopia Ot~ regresso à utopia?
Vista no scu conjwlto a revolução marcuseana é a realização do imperativo ético da liberdade, da felicidadc e da paz. É a realização da harmonia humana, a passagem para uma nova Cidade, a cidade do Amor, do Belo, do Eras libertado.
E uma pergunta surge - é o próprio Marcuse que a faz: (Mas pode esta noção aparentemente utópica apli-car-se às forças [produtivas,] políticas e sociais existen-tes ~»
(57)
Não atribuirá efectivamente Marcuse possibili-dades à actual sociedade industrial (ainda que «avançada») que só poderiam encontrar eventualmente efectivação num(55) Ethik ... p. 138. efr. também F. PERROUX, ob. cito p. 131. (56) Ethik .. p. 145 sq. Denota-se aqui a sugestão equívoca da separação elite-massas que Marcuse herdou de um dos seus mestres de juventude: Heidegger. - efr. A. VERGEZ, ob. cito p. 8.
grau bastante mais evoluído da humanidade? Não conti-nuará a utopia tão abstracta e inabarcável como dantes? Não pressuporá a realização daqueles valores precisamente
aquilo que Marx - cauto e 'realista' até na admissão da utopia - considerou condição da sociedade comunista: a
liberdade da necessidade, um estado de abundância total, de bens livres?
(
58).
E uma segunda pergunta: pode esseconceito utópico de revolução reclamar - como Marcuse pretende - qualquer fundamento marxista?
O conceito marxista de revolução nâo tem nada de utópico ou romântico - é o próprio Marcuse a recoJ
nhecê-Io
(59).
Nem tem, há que acrescentar, o carácter 'essencialista' qua Marcuse lhe confere. Para este a revo-lução já se não insere no plano das forças sociais emergentesdo processo produtivo historicamente situado, como em
Marx, mas antes no plano bío16gíco, isto é, no plano da «constituição humana como tal», no do ('potencial do homem, numa determinada situação lústórica»
(60).
A revolução já pouco ou nada tem a ver com a infra-estrutura económica, com a luta de classes, mas sim com a infra-estrutura humana e com a luta do belo contra
o feio, do bom contra o mau, do justo contra o injusto. O titular histórico do poder revolucionário já não
é
umaclasse (ou os homens ocupando uma determinada situação de classe) mas sim - nas palavras de Perroux - «o homem enquanto homem, independentemente da classe, da nação,
(58) cfr. K. MARX, Crítica do Prograllla de Cotha, in OeulJres I, Clt. p. 1420.
(59) Réexalllell ... p. 30.
(60) Ethik ... p. 130. Cfr. também Vers la libération p. 13 e cap. I (<<os fundamentos biológicos do socialismo») e ainda PERROUX, <Jb. cito
p. 125 (a revolução de Marcuse apresenta-se como «uma revolução no plano biológico»).
d ide I gi h mem ameaçad c m t do os cus
semelhante pelas técnica e pela imp tência de todas as política em
fi
rccer de env lvimcnto da liberdade.( ... ) Nã é c mo pr dút r direct , trabalhador assa-lariado, que o h mem acede à qualidade de libertador da humanidade. É como membr de uma c pécie
amea-çada enquant tal por toda, a bur cracias de opres ão
e de exploração»
(61).
Do me mo modo, objecto darevoluçao, já nã é, como m Marx, um determinado
modo-de-pr duçã , W11 especial i tema de relações sociais,
um particular modo de apr priaçã d produto social
por uma elas e dcterminad . É ante próprio aparelho técnico de produção, a estntlHra iII/pessoal das forças produ-ti as. O fim da revolução já não é a superação do exis-tente, mas antes, a ruptura total, a negação absoluta,
a construção ex 110110.
6. ma Ilova teoria da sociedade
A revisao de Marcuse não é pOIS, bem. vistas as
cois~, apenas uma revisão do conceito de revolução. É, mais profwldamente, uma revisão dos princípios funda
-mentais da análise marxista do sistema capitalista e uma levisão dos princípios constitutivos do socialismo. Mais:
é também uma revisão da própria ideia fundamental do
marxismo, quer como teoria geral da sociedade - a ideia
de que o determinante é a forma da utilização das forças
produtivas, que as sociedades se distinguem pelo modo
de produção, isto é, pelas relações sociais que nesta se estabelecem, porque é a estrutura económica que deter
-mina o modo de funcionamento das restantes estruturas da sociedade - , quer como teoria da história - a ideia