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Inês Castilho e Mulherio: um estudo sobre pautas feministas como forma de resistência à ditadura civil-militar

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Academic year: 2021

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MARIA JÚLIA CASTRO JANUÁRIO

INÊS CASTILHO E MULHERIO:

UM ESTUDO SOBRE PAUTAS FEMINISTAS COMO FORMA DE RESISTÊNCIA À DITADURA CIVIL-MILITAR

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MARIA JÚLIA CASTRO JANUÁRIO

INÊS CASTILHO E MULHERIO:

UM ESTUDO SOBRE PAUTAS FEMINISTAS COMO FORMA DE RESISTÊNCIA À DITADURA CIVIL-MILITAR

Monografia submetida ao curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obrigatório para a obtenção do grau de Bacharelado. Orientadora: Joana Maria Pedro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CURSO DE GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 9,5 ao aluno Maria Júlia Castro Januário na disciplina CNM7280 - Monografia, pela apresentação deste trabalho.

Banca Examinadora:

--- Joana Maria Pedro

--- Janine Gomes da Silva

--- Maria Adaiza Lima Gomes

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AGRADECIMENTOS

Ainda parece um pouco irreal que este momento chegou - prometi a mim mesma que só redigiria estas palavras quando o trabalho estivesse, de fato, concluído -, mas aqui estou, escrevendo os agradecimentos do meu trabalho de conclusão de curso.

Meu primeiro agradecimento vai, com toda certeza, para minha família. Minha mãe Roselei, meu pai Gerson e minha irmã Marina: gratidão pela vida que tenho! Todo o apoio, motivação e carinho que vocês me deram e continuamente dão ao longo destes quase 24 anos de vida fizeram e fazem toda a diferença para a pessoa que sou hoje.

Às pessoas incríveis que a vida me deu e que tenho a sorte de constantemente ter junto a mim, seja fisicamente ou em pensamento: Lais, Gabriela, Luana, Luísa, vocês são maravilhosas e foram fundamentais para acalmar esse coraçãozinho inquieto e ansioso que é o meu, bem como para me amparar nos momentos de instabilidade e simplesmente compartilhar felicidades e risos. Amo vocês.

Às Brigadas Populares, por ser uma organização séria, coerente e comprometida com a revolução brasileira, meu agradecimento por me ter como militante, permitir a construção constante da minha pessoa, dos espaços que atuo e da própria estrutura, sempre de maneira dialética. Um salve especial pra Brigada 21 de Junho e meus camaradas (que não cito nominalmente por questões de suporte) e um mais especial ainda ao Milezzi, por ser não apenas um camarada incrivelmente astuto, mas também sensível e essencial à mim neste processo. Venceremos!

Ao CARI, a entidade estudantil que acompanhou toda a minha trajetória na UFSC, que me moldou e ao mesmo tempo eu ajudei a moldar e tenho muito orgulho de tudo o que fizemos em nome dos estudantes de Relações Internacionais, bem como das nossas contribuições ao Movimento Estudantil da nossa universidade e do nosso país: gratidão pelos espaços, pelas disputas, pela construção e pelo crescimento sempre com conhecimento. Novas jornadas se desenham no meu futuro e novos espaços também, mas sempre terá um espaço cheio de carinho na memória.

À Joana, minha orientadora. Acredito que tivemos uma jornada muito boa durante esse quase um ano que trabalhamos juntas; sou muito grata por todo o respeito com o qual sempre fui tratada na nossa relação, por toda a compreensão que sempre senti e por todas as palavras de aconselhamento, pelas conversas e pelo apoio. Acho que não poderia ter tido uma orientadora melhor.

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À Bruna, minha analista, que entrou no meio desse processo comigo, mas foi fundamental para a conclusão do mesmo. Gratidão por todo o trabalho que estamos construindo e por todos os conselhos.

Às mulheres brasileiras, por sermos tão aguerridas como somos e não desistirmos. Escrevi este trabalho pensando majoritariamente em nós; em contribuir para nossas lutas, que serão ainda mais acirradas nos tempos que virão, e em nos valorizarmos - precisamos cuidar de nós mesmas e mostrar que estamos aqui: vivas, unidas e articuladas. Gratidão por nós.

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"Maria, mulher de luta. Mulher de luta, sim senhor." Dandara Manoela

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RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo central mostrar que as pautas feministas foram uma forma de resistência à ditadura-civil militar instaurada no Brasil durante o período de 1964 até 1985, através do trabalho realizado por Inês Castilho no jornal Mulherio.

O primeiro capítulo fala um pouco sobre a vida pessoal de Inês, bem como o início de seus trabalhos enquanto jornalista. Ele possui três sessões: na primeira, é feito um resgate do momento histórico referido, com enfoque nas formas de repressão que aconteceram e nos agentes existentes que se colocaram contrários ao regime. Em seguida, é abordada a questão do movimento feminista, suas pautas e disputas históricas e como elas aconteceram no Brasil. Na última sessão relatamos os sujeitos opositores ao período ditatorial e como se expressaram suas resistências; damos destaque à imprensa brasileira e aos periódicos alternativos feministas como Brasil Mulher e Nós Mulheres.

No segundo capítulo, onde abordamos o jornal Mulherio e questões referentes à Constituinte de 1988, conseguimos ver com maior clareza o trabalho de Inês, principalmente durante o período de quatro anos em que foi editora-responsável no jornal. Aqui são trabalhadas questões referentes ao movimento feminista sob a análise do conteúdo do jornal e, em seguida, mostramos as pautas do movimento no momento da constituinte, onde é possível ver as mesmas questões sendo reivindicadas no âmbito legal.

Nas considerações finais, apontamos como o movimento feminista e os movimentos sociais são importantes para compreendermos as mudanças que precisamos realizar na sociedade para alcançarmos a igualdade que reivindicamos em nossas lutas, bem como entendendo como estes grupos possuem potencial de transformação social.

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ABSTRACT

This work has as main goal to show that the feminist guidelines were a form of resistance to the military-civilian dictatorship established in Brazil during the period from 1964 to 1985, through the work carried out by Inês Castilho in the newspaper Mulherio.

The first chapter tells a bit about Inês's personal life, as well as the beginning of her work as a journalist. It has three sessions: first, a rescue of the historical moment referred to, with a focus on the forms of repression that took place and the agents that were opposed to the government. Next, the issue of the feminist movement, its historical patterns and quarrels, and how they happened in Brazil are discussed. In the last session we report the opposition to the dictatorship period and how its resistance was expressed; we highlight the Brazilian press and alternative feminist journals such as Brasil Mulher and Nós Mulheres.

In the second chapter, where we discussed the Mulherio newspaper and issues relating to the 1988's Constituent Assembly, we were able to see Inês's work more clearly, especially during the four-year period she was editor-in-charge in the newspaper. Here we discuss issues related to the feminist movement under the analysis of the content of the newspaper and then we show the guidelines of the movement at the moment of the constituent, where it is possible to see the same issues being claimed in the legal scope.

In the conclusion, we point out how the feminist movement and social movements are important for understanding the changes we need to make in society to achieve the equality we claim in our contests as well as understanding how these groups have potential for social transformation.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...9

2 RELATOS HISTÓRICOS...14

2.1 SOBRE A DITADURA...14

2.2 SOBRE O FEMINISMO...23

2.3 SOBRE OS SUJEITOS HISTÓRICOS...28

2.3.1 Sobre a imprensa brasileira...34

3 MULHERIO E O TRABALHO DE INÊS CASTILHO...48

3.1 MULHERIO...49

3.2 SOBRE AS MULHERES E A CONSTITUIÇÃO DE 88...62

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...66

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1 INTRODUÇÃO

“Do exposto até o momento podemos tirar uma primeira

dedução, a saber: movimento social refere-se à ação dos homens na história. (...) Os movimentos são como ondas e as marés, vão e voltam e isto ocorre não por causas naturais (...), [mas sim] segundo a dinâmica do conflito social, da luta social, da busca do novo ou reposição/conservação do velho. (...) Movimentos sociais são uma das formas possíveis de mudança a transformação social.” (GOHN, 2007)

Tudo ao nosso redor está em constante mudança, o tempo todo, devido ao caráter de oposição fortemente presente em nossa realidade; vida e morte, dia e noite, riqueza e pobreza, nós mesmos, inclusive, somos uma constante luta de opostos - para nascerem novas células, precisam as antigas morrerem, para não sermos ignorantes, precisamos adquirir conhecimento e assim sucessivamente. Desta forma, sendo a sociedade o resultado das relações humanas, ela também está em constante conflito e constante construção.

Isso se dá porque não existe uma fórmula para a convivência social perfeita: os interesses das pessoas também conflitam entre si e precisamos pensar formas éticas de convivência em sociedade de forma que esse conflito não gere disparidades desnecessárias ou nocivas para as pessoas. Como se a própria essência contraditória da vida não fornecesse trabalho suficiente para a construção de um convívio social harmônico, a sociedade moderna é edificada em exploração em suas mais diversas formas; mas principalmente na exploração do homem pelo homem, o que é um problema devido ao seu caráter nocivo e excludente. À esta organização baseada na exploração é dada o nome de capitalismo.

Dentro do sistema econômico-social conhecido por capitalismo, a distribuição dos meios de produção necessários para o trabalho não acontece de forma igualitária. Grupos minoritários detém as ferramentas - sejam elas materiais, sejam elas científicas - que impulsionam a produção de riquezas e também acumulam para si estas riquezas, às custas da grande maioria da população. Nesta análise, é importante ressaltar como essa exploração vai além do ambiente econômico, apesar da sua manifestação principal ser neste, bem como seus estudos mais frequentes; ela também ocorre no âmbito racial, cultural, sexual, psicológico, geográfico, ambiental e de outras variadas maneiras.

Tendo uma consciência ética acerca das relações humanas e abordando-as com uma visão de que as mesmas devem ser construídas a partir da coletividade e igualdade, acreditamos que existem maneiras mais justas de convivência em sociedade a serem construídas. Para isto

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acontecer, é necessário estimular a consciência e organização da população sobre a sua condição de explorado dentro do sistema vigente. Essa conscientização não acontece de forma espontânea - pelo contrário; o capitalismo possui ferramentas para intensificar a alienação das grandes massas acerca de sua condição -, de forma momentânea ou única - como exposto acima, estamos em constante mudança, então nossa consciência sobre o que nos cerca também é continuamente remodelada - e também se expressa das mais diversas formas. Esse processo de compreensão do seu papel enquanto sujeito político, por mais que possa trabalhar com uma perspectiva de projeto social coletivo, acontece de forma individual - cada pessoa tem suas próprias experiências em vida, num espaço específico, convivendo com outras pessoas e outras situações que são particulares à sua história.

Uma das expressões que podemos ter deste processo de conscientização é o movimento social. Uma das classificações que podemos utilizar para os movimentos sociais é a de termo técnico para as ações coletivas de um grupo ou segmento social que, insatisfeitos com algum aspecto ou debate da realidade vigente, objetiva alterar as práticas em curso naquele determinado período histórico. Assim, temos os movimentos sociais não apenas como um meio de expressão das contradições inerentes ao capitalismo, mas como uma maneira de se combater ativamente estas contradições.

Uma característica importante dos movimentos sociais que é necessária ser destacada para a sua completa compreensão é a autonomia afirmada pelos mesmos. Tendo sua origem na Grécia Antiga e sendo aplicável em diversas instâncias e de múltiplas maneiras, a autonomia se relaciona com o princípio de liberdade e de autossuficiência. Assim, dependendo do aspecto sob o qual se utiliza o termo, a análise do método corresponde à necessidade de utilização. Como as tramas abordadas nesta pesquisa orientam-se por estudos políticos e científicos, pautamos a autonomia como a liberdade de um grupo, região ou segmento social para a construção de suas reivindicações e objetivos sem interferências de terceiros, assim como na edificação de suas estratégias, táticas de ação e regras de convivência.

Pensando dentro desta abordagem acerca de autonomia, a reivindicação da mesma se faz muito coerente para os grupos originários de conflitos de classe ao colocarem-se em campo de disputa das lutas; na estrutura vigente, as classes dominantes são as detentoras dos aparatos de controle e exploração destes grupos (por isso são chamadas de dominantes) e, portanto, ter um movimento autônomo é um dos caminhos mais seguros e lógicos para a organização de ações que se colocam contrárias às ideias em hegemonia naquele momento histórico. Depender de alguma instituição, governo ou outros grupos políticos podem ameaçar a existência deste movimento; passam a existir possibilidades de se tornarem reféns dos interesses externos ao

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movimento ou à burocracias que não foram pensadas pelos mesmos, o que pode atrapalhar suas ações e sua pauta política, por exemplo.

Além disso, acreditamos ser pertinente explanar acerca das questões de paradigmas sobre os movimentos sociais. Sendo paradigmas um conjunto de elementos que servem de exemplo ou padrão dentro do contexto de uma determinada estrutura, podemos entender que a importância dos mesmos reside na forma com que embasam as linhas de pesquisa de um trabalho; se é a partir das ideias defendidas por um paradigma que se constroem o pensamento de um trabalho, é necessário escolher com muito cuidado os referenciais teóricos que se utiliza numa pesquisa para que ela tenha coerência com o que se deseja refletir.

Os paradigmas iniciais de estudos na área de movimentos sociais eram, compreensivelmente, estrangeiros. Levando em conta a construção tecnocrata e importada da universidade brasileira como temos até os dias atuais1, o investimento nacional em educação sempre foi baixo e também com direcionamento para formação de mão-de-obra técnica (em detrimento da produção científica qualificada) para alimentar o processo de industrialização que aqui ocorria. Assim, as pesquisas brasileiras no campo das ciências sociais e humanas se desenvolveram tardiamente em relação ao nível de estudos globais sobre vários aspectos. Porém, apesar disso, julgamos necessário apontar que acreditamos que não há melhores perspectivas sobre os movimentos sociais latino-americanos do que a partir de análises críticas provindas da própria América Latina; dentro desta lógica de pensamento, temos como referenciais teóricos para esta pesquisa os estudos de Maria da Glória Gohn2 e André Gunder Frank3 sobre movimentos sociais.

Assim, dentro das estruturas e marcos sociais que nos encontramos hoje em dia, em especial a sociedade brasileira e sua história construída em moinhos de gastar gente4, entendemos a necessidade dos resgates históricos acerca das lutas e reivindicações feitas por seu povo. Trataremos aqui de um período ainda muito controverso e que demanda mais atenção do que as instâncias institucionais destinam para o mesmo a época da ditadura militar e a intensa repressão antidemocrática que marcou este ciclo.

1 Em seu livro Universidade Necessária, Darcy Ribeiro nos mostra a universidade brasileira desde seus primórdios;

sob quais objetivos as mesmas começaram a surgir em nosso país (para servir ao interesse das classes dominantes na manutenção do status quo e não para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil) e como isso reflete até hoje em toda a cadeia de produção intelectual brasileira - refinando a superexploração da mão de obra nacional para os interesses do capital estrangeiro e encontrando poucos espaços para pensar a realidade latino-americana enquanto centro das questões debatidas.

2 GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 5. ed. São

Paulo: Loyola, 2006. 383 p.

3 FRANK, André Gunder; FUENTES, Marta. Dez teses acerca dos movimentos sociais. Lua Nova, São Paulo,

n. 17, p.19-48, jun. 1989.

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Temos os movimentos sociais como importantes instrumentos para a disputa pela democracia por dois motivos principais: primeiro por serem expressões das contradições do sistema de exploração que vivemos e segundo, e mais importante, por serem canais de potenciais mudanças deste sistema. Tendo movimentos que são independentes da ordem vigente e de seus sujeitos políticos - devido à sua autonomia - e que se colocam em sua concepção contrários ao sistema atual com a proposição de mudá-lo - devido aos seus paradigmas de análise -, o potencial transformador destes movimentos torna-se evidente.

A partir desta perspectiva potencializadora de mudanças dos movimentos sociais, trazemos para o âmago desta pesquisa o movimento feminista brasileiro e sua atuação no período ditatorial enquanto resistência na disputa pela democracia nacional. Entendendo que essa resistência aconteceu por amplas frentes e de diversas maneiras, colocamos as pautas e lutas das mulheres brasileiras em destaque neste trabalho por entendermos que, apesar de décadas já terem passado desde as repressões severas que ocorreram àquele período, a situação social da mulher brasileira ainda carece de muita atenção. Mesmo com todos os debates realizados e pautas defendidas, o avanço acontece em passos lentos, precisando de muito esforço perante muita resistência conservadora que ainda existe em nossa sociedade.

Objetivando análises concretas a partir de marcos teóricos e temporais pré estabelecidos, nosso foco nesta pesquisa será o trabalho que a jornalista Inês Castilho desenvolveu no jornal

Mulherio durante os anos 1981 a 1988. Sendo um dos maiores jornais da imprensa alternativa

feminista e que esteve ativo durante o período de redemocratização brasileira, pretendemos mostrar as pautas que o movimento feminista abordou durante esse momento transitório e minimamente traçar esboços sobre o que foi contemplado destas demandas na Constituição de 1988.

Em tempo, ao longo deste trabalho nos utilizamos vários recursos de pesquisa para construir a versão final que aqui apresentamos. Desde livros com relatos históricos, outros com abordagens teóricas, artigos acadêmicos até fontes primárias como entrevistas, cartas, fontes informais de conhecimento como filmes e o próprio acúmulo pessoal das pesquisadoras, tanto na área acadêmica quanto na área da militância, entendendo como não apenas o contato, mas também a construção dos movimentos sociais é importante para uma compreensão cada vez mais completa desse fenômeno.

Devido a abordagem historiográfica que optamos para construir nossa narrativa, nossos referenciais teóricos são múltiplos tanto em quantidade como em temáticas. Conforme explanado previamente, em relação aos movimentos sociais focamos na abordagem trazida por Maria da Glória Gohn e André Gunder Frank. Dentro das questões de ditadura, nosso principal

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autor é Carlos Fico. Nos relatos sobre mídia brasileira, mídia independente e feminista, a principal pesquisadora por nós abordada foi Karina Woitowicz, valendo também destacar os trabalhos de Juliana Tamião e Elizabeth Cardoso. Por fim, dentro da temática do feminismo, trabalhamos com os escritos de Céli Pinto, Joana Pedro, Maria Amélia Teles, Amelinha Teles, entre outros.

Finalizamos a introdução atentando para o fato de que, dentro desta pesquisa, além das questões objetivas enquanto pesquisadoras acadêmicas que nos propusemos a elucidar, existe também a motivação da militância impulsionando nosso trabalho. Entendemos a necessidade de pesquisar sobre mulheres, de ressaltar seus trabalhos dentro dos nossos marcos teóricos (um de nossos esforços foi o de ter o maior número possível de autoras embasando esta pesquisa), de destacar que as mulheres são parte ativa da história e da produção de conhecimento como uma forma de lutar pela igualdade que, como Inês, também almejamos para todas as pessoas em nossa sociedade.

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2 RELATOS HISTÓRICOS

2.1 SOBRE A DITADURA

Para iniciar este trabalho, precisamos apresentar nosso objeto de pesquisa, que permeará todos os temas apresentados ao longo da pesquisa que trazemos nestas páginas: o trabalho de Inês Castilho no jornal Mulherio. No entanto, esta apresentação não se dará de forma isolada; a história de Inês será narrada concomitantemente à história do Brasil - às lutas aqui travadas, aos marcos que disputaram o imaginário da população brasileira, aos sujeitos políticos que ocuparam seu lugar na narrativa da constante construção do nosso país.

Nascida na pequena cidade de Avaré, no interior do estado de São Paulo, em fevereiro do ano de 1947, nos dias atuais Inês Castilho ainda atua muito com as pautas dos movimentos sociais que construiu na época da resistência à ditadura. Trabalhando atualmente com jornalismo e cinema especificamente, é assessora de imprensa, compondo os editoriais de jornais internos de empresas, integra a equipe do site Outras Palavras5 e produziu dois curtas metragens focados na questão das mulheres - um terceiro projeto incompleto está em andamento no momento.

Atingindo a maioridade e ao mesmo tempo iniciando sua vida adulta e política junto ao início da ditadura militar, é necessário explanar um pouco sobre esse contexto histórico importante não apenas para entendermos nosso país, mas também as ações de Inês nesse período.

Ao fazer um resgate histórico acerca da estrutura política brasileira, qual não é a surpresa ao nos depararmos com o fato de que o Brasil teve menos períodos democráticos em oposição aos não democráticos? Contabilizando o período imperial pós 1822 em que existimos sob regime independente; a Era Vargas, com um debate ainda existente sobre o mérito democrático e a ditadura civil-militar em 1964, é seguro afirmar que a democracia brasileira é um conceito ainda frágil.

Em relação ao último período não democrático, devido às formas com que a ditadura civil-militar acabou e às dificuldades que o Estado brasileiro tem em lidar com questões referentes às atrocidades cometidas no regime, ainda há muito a ser descoberto, revelado e estudado. A questão da justiça de transição, por exemplo, nome dado ao mecanismo utilizado

5 O site Outras Palavras é um espaço virtual composto por diversos ramos da sociedade, desde jornalistas à

tradutores, geógrafos e professores, que trabalham na construção do que chamam de “jornalismo colaborativo”, focado em um jornalismo crítico, atrelado à novas visões de interpretação do mundo e de suas estruturas hegemônicas, formas alternativas de comunicação e disseminação de informação na vida social e bem como construindo um espaço denominado “mídia livre”. Para mais informações: <https://outraspalavras.net/>

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para lidar com as violências do passado e demandar respeito à memória, verdade, reparação e justiça6, é algo ainda muito recente no Brasil; a lentidão com que os processos de justiça e memória se desdobraram faz com que ainda hoje, mais de 30 anos após o fim da ditadura, corpos continuem desaparecidos e torturadores não tenham respondido por seus crimes.

Outro exemplo de tema com ampla área de pesquisa é o movimento feminista na ditadura militar, também em destaque nesta pesquisa por ser a área de atuação da personagem estudada. Historicamente relegadas à sombra do masculino, os relatos sobre os feitos das mulheres por muito tempo só receberam espaço nas narrativas devido à sua relação com os homens; mulheres que atuaram em conjunto ou que se sacrificaram por homens ou por causas por estes lideradas7. Essa questão começa a mudar a partir do momento que as próprias mulheres tornam-se protagonistas não apenas de suas vidas, mas também dos espaços que as cercam e passam a produzir narrativas sobre suas vivências, demandas, crenças e todas as outras questões que lhes foram negadas por séculos.

Para entender a importância deste movimento contra o regime ditatorial brasileiro, é necessário entender o regime em si. As análises sobre o Golpe de 64 são múltiplas e complexas já em sua plural existência: não existe um consenso acerca do determinante principal e/ou central do golpe nem do ator mais importante para esse fato histórico. Existem fontes8 que afirmam que o papel do imperialismo estadunidense foi crucial para o golpe; que o papel desempenhado pelo embaixador Lincoln Gordon e os Estados Unidos da América na orquestração do golpe, empenhados em lutar contra a dita “ameaça comunista” no continente, foi central para a unificação de diversos focos nacionais já contrários aos rumos que o governo Goulart tomava no início da década de 60.

Uma segunda leitura referente à estrutura do golpe é a abordagem clássica marxista, uma das quais, inclusive, estava mais em alta durante o século 20. Durante a década de 50, após a industrialização brasileira com os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK), o processo de desenvolvimento por substituição de importação já estava chegando ao fim9 e isso

levou à um acirramento das forças capitalistas para a manutenção do sistema vigente. Aliando esse esgotamento do modo de produção capitalista do período às reformas anunciadas por João

6REVISTA ANISTIA POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO. Brasília: Ministério da Justiça, v. 1, jun.

2009. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/2009revistaanistia01.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2017.

7 TELES, M. Breve história do Feminismo no Brasil. 1 ed. São Paulo: Editora brasiliense, 1993. p. 11-13 8 O dia que durou 21 anos. Direção: Camilo Galli Tavares. Produção: Karla Ladeia. Brasil. Tv Brasil e Pequi

Filmes. 2013.

9 Ver TAVARES, Maria da Conceição. Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil. In:

Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro: Record/CEPAL, 2000. p. 217-237. Disponível em: <http://repositorio.cepal.org/handle/11362/1614>. Acesso em: 09 ago. 2017.

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Goulart e à unidade popular de esquerda que existia à época no Brasil, como afirma Gorender10, o golpe militar teve um caráter preventivo em relação às forças revolucionárias comunistas.

A terceira corrente de análise historiográfica sobre o tema foca na questão militar. Enquanto alguns autores11 alegam a participação de empresários, Igreja e até mulheres na preparação do golpe como em ações como a “Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade”, outros atentam para o protagonismo dos militares no golpe em si. Também há relatos12 sobre a incisão das tropas, a distribuição desigual de cargos de alto escalão (incluindo aqui, inclusive, a escolha da presidência assim que João Goulart abandonou seu posto) e a “progressiva institucionalização do aparelho repressivo” como exemplos da dominação militar durante as duas décadas de ditadura. Sobre esse assunto, é válida atenção ao parágrafo seguinte:

“O economicismo do pensamento político e social na América Latina fez com que se fosse buscar nas elites econômicas os responsáveis pelo golpe. O golpe, porém, foi essencialmente militar: não foi dado pela burguesia ou pela classe média, independentemente do apoio que estas lhe prestaram.” (SOARES, 1994, p. 27 apud FICO, 2004, p. 38, grifo no original)

É visível a complexidade do assunto quando apresentadas as diversas abordagens acerca do tema, todas com boas fundamentações teóricas e argumentos históricos plausíveis para suas afirmações. Ao debatermos a estruturação do golpe, se de fato houve uma conspiração centralizada e articulada e, ainda, sobre quem ocupou esse epicentro, acreditamos que uma abordagem plural seja a medida mais proveitosa; a amplitude de atores e suas respectivas agendas, bem como a instabilidade econômico-política da época e as restrições que se seguiram no período faz com que uma única resposta definitiva sobre o assunto seja algo improvável de acontecer.

“A dificuldade de estabelecimento de nexos causais entre elementos tão diferentes é problema antigo tanto das ciências sociais quanto da história, mas importa dizer que

todos esses aspectos devem ser considerados - e não, exclusivamente, um ou outro -

quando da análise de fenômenos complexos, como visivelmente foi o golpe de 64.” (FICO, 2004, p. 43)

Enquanto a estrutura do golpe é um assunto com diversas abordagens e possibilidades a serem exploradas, alguns dos seus subtemas não são tão nebulosos - um deles é a censura no

10 GORENDER, J. Era o golpe de 64 inevitável? In: TOLEDO, C. N. de. (Org.) 1964: visões críticas do golpe:

democracia e reformas no populismo. São Paulo: Unicamp, 1997

11 TELES, Maria Amélia de Almeida. O protagonismo de mulheres na luta contra a ditadura militar. Revista

Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, v. 2, n. 2, p.9-18, jun. 2014. Disponível em: <http://www2.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/173/97>. Acesso em: 09 ago. 2017.

12FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record,

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período ditatorial. Devido à forma com que o regime foi instaurado - às pressas, com atropelamento por parte de certos setores militares, com menos planejamento que o desejado e com uma convergência quase orgânica de focos contrários ao governo Goulart quando a oportunidade se fez presente -, a consolidação e reafirmação do mesmo foi algo mais importante do que nunca.

Um dos exemplos de censura é visível logo cedo na vida de Inês: ao ingressar na universidade, escolheu cursar Ciências Sociais na USP, porém precisou abandonar o curso (que já não lhe contemplava muito nas questões entre teoria e prática, conforme seus relatos) devido ao fechamento da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) em 1968 devido à repressão do governo às universidades públicas brasileiras devido à disseminação de ideias contrárias que esses espaços estimulavam.

Além das universidades, a mídia também foi bastante perseguida pelo regime, porém de forma mais velada. Relataremos com mais profundidade nas próximas páginas acerca da censura midiática no regime militar devido à profissão de Inês: a de jornalista. Foi após o fechamento da USP que encontrou-se neste ramo profissional - e teve contato com o jornalismo por sorte, conta Inês. Em entrevista cedida à Pedro13, ela relata que:

“(...) quando eu saí, um dia eu vi esse jornal [do bairro] e, “opa, ele é aqui perto”, “vou lá ser jornalista, talvez”. Bati na porta, me atende um sujeito, diz, “Olha, sinto muito, a gente não… A gente trabalha com jornalistas profissionais”, que eu cheguei e falei “eu quero ser jornalista”. Mas aí, antes de ir embora, ele me disse, “mas eu vou te dar um teste. Vai numa esquina tal, ali do bairro, tão reclamando que tem muita batida, no sinal”, eu fui escrever alguma coisa e ele me contratou. Eu sabia escrever.”

Dentro da censura à mídia nacional, o controle sobre informação foi uma das formas de manutenção do regime: administrar o tipo de notícia veiculada em cada meio de comunicação de acordo com a demanda dos governos é uma ação crucial na formação de opinião da população. Na mídia majoritária, tinha-se a imagem de um Brasil em desenvolvimento e com muitas oportunidades de crescimento. É pertinente destacar que nos anos 70 a conjuntura internacional era, no mínimo, complicada: as crises do petróleo dificultavam os câmbios econômicos e a crise estrutural do capitalismo devido ao esgotamento do modelo fordista-taylorista deixava os países subdesenvolvidos ainda mais expostos aos problemas oriundos da sua colonização. Com as tecnologias ultrapassadas e instabilidades políticas, a comunidade internacional precisava da imagem de um bom país para não perder o interesse de investimento.

13 CASTILHO, I. [4 de ago. 2005]. Entrevista concedida à Joana Maria Pedro, disponibilizada via e-mail pela

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Outro motivo para a censura era a consolidação do próprio regime militar: por mais que os militares possuíssem as ferramentas necessárias para a tomada do poder, era necessário convencer a população brasileira do funcionalismo deste governo. Quando a mídia é livre para discursar sobre qualquer tipo de assunto e principalmente sob qualquer viés que lhe parecer pertinente, um governo com uma frágil estruturação pode não suportar e sucumbir em pouco tempo. E, ao estudar o regime ditatorial, é interessante destacar a questão da censura devido ao histórico brasileiro com a liberdade de expressão; 1964 foi a primeira vez desde que o território passou de colônia portuguesa para país independente em que a mídia nacional foi censurada de maneira explícita. Conforme o trabalho de Soares14 nos mostra:

“A liberdade de imprensa foi assegurada aos brasileiros em 28 de agosto de 1821, assinada por D. Pedro I. Cento e cinqüenta e um anos depois, precisamente no dia 6 de setembro de 1972, o decreto de D. Pedro foi censurado pelo Departamento da Polícia Federal, com a seguinte ordem a todos os jornais do País: "Está proibida a publicação do decreto de D. Pedro I, datado do século passado, abolindo a Censura no Brasil. Também está proibido qualquer comentário a respeito". A proibição de se referir, nos meios de comunicação de massa, ao ato de D. Pedro revela a orientação da Censura. Protegida pela própria censura, ela não hesitava em fazer proibições ridículas, segura de que elas não chegariam ao conhecimento público. Houve muitos outros episódios que seriam cômicos, se não fossem humilhantes para o País. A Censura, parte do Estado autoritário, o protegia e, protegendo-o, protegia a si.”

Isso é uma amostra pertinente da tensão que se instaurou no país nesse período, tensão essa que costuma ser suavizada e catalogada como apenas mais um momento na história brasileira. Mesmo no período imperial, onde existia a ilusão de independência de Portugal enquanto, paradoxalmente, o dirigente do território era o herdeiro português, a população e a imprensa tinham plena liberdade para se expressar em relação a quaisquer coisas que aconteciam no país. Já no período da Ditadura Militar, em que vários oficiais sequer reconheciam o Estado de Exceção sob o qual mantinham a nação, todos os meios de comunicação sofreram controle estatal em diversos níveis.

Soares15 mostra que jornais com conteúdo ideológico mais de esquerda e/ou pró João Goulart, como Politika, e Folha da Semana tiveram ações violentas de represália, entre elas destruição do material midiático e depredação das oficinas de trabalho. Ainda citando o autor, jornais mais moderados, como o Correio da Manhã, que fez uma oposição ferrenha à Jango, mas também denunciou os abusos dos militares e até mesmo jornais que mais tarde viriam a

14 1989, p. 21 15 idem, p. 22

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trabalhar com o regime, como o O Estado de São Paulo (hoje Estadão) tiveram vetos em suas publicações, confisco de material e reestruturação de editoriais.

Um dos jornais que Inês trabalhou, o Folha da Tarde, um dos jornais da época que ainda cobria a atuação sindical, foi o último a “dar resistência para a ditadura”, nas palavras da jornalista. Ela relata que estava afastada por licença maternidade por um período e, ao retornar da gravidez, encontrou o jornal ocupado pela ditadura. Após dois meses saiu do jornal por “não aguentar” a situação16 e retornou ao jornal de bairro citado previamente nesta pesquisa.

A estrutura e aplicação da censura refletiu o curso do regime a nível nacional: heterogêneo e com fases. Se a instauração do golpe deu-se às pressas por parte de certos militares que acreditavam numa administração mais rígida, ao organizar o momento pós golpe houve um maior cuidado com as nomeações feitas para os cargos de alto escalão de modo que se conquistasse a consolidação do regime antes da aplicação de métodos mais repressivos. Os dois primeiros presidentes, Castelo Branco e Costa e Silva seguiram uma linha mais branda de intervenção militar em comparação com seu sucessor, Médici - cujo mandato é popularmente conhecido como “Anos de Chumbo”. Em seguida houve os governos Geisel e Figueiredo, onde se iniciou a distensão política para a democratização que viria nos anos finais do regime.

Quando nos referimos à questão de imprensa, a represália iniciou logo no primeiro governo militar com a Lei de Imprensa assinada por Castelo Branco, impondo diversas restrições ao trabalho dos periódicos17. Nos anos seguintes, com Costa e Silva, acontece um dos momentos mais marcantes da Ditadura, que é a assinatura do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Denominado “o golpe dentro do golpe”, este ato permitia aos militares aplicações de punições arbitrárias e eliminava quase todas as liberdades individuais e direitos políticos existentes à época - entre estas a liberdade já restrita da imprensa.

Apesar de levar quase uma década para a aplicação de métodos mais rígidos do autoritarismo militar, Fico18 ressalta que sempre houve um projeto de linha dura para a ditadura brasileira, vide o Inquérito Policial Militar expedido por Castelo Branco ainda no primeiro semestre de 1964, que seria a semente originária da comunidade de segurança e informações do governo Médici - já que este estaria insatisfeito com a operação limpeza realizada com o inquérito referido. Porém, era necessário consolidar o regime antes de instaurá-lo de fato.

16 Nas palavras de Inês, “os caras entraram de metralhadoras lá dentro”, tornando o ambiente do jornal

insustentável para ela.

17 Há uma tabela temporal sobre as ações contra a liberdade de imprensa ao longo dos governos ditatoriais em

SOARES, Glaucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais,

Rio de Janeiro, v. 4, n. 10, p.21-43, jun. 1989. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/266022803_A_Censura_durante_o_regime_autoritario>

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À este período da ditadura foi dado o nome de “Anos de Chumbo” e o título existe por motivos muito concretos: a arbitrariedade e barbárie do período estendeu-se com força sobre qualquer parte da população que ousasse opor-se ao regime. De Florestan Fernandes à Fernando Henrique Cardoso, não havia civil que estivesse imune à censura do Estado. Jornais foram invadidos, depredados e fechados, seus editores foram presos e seu material modificado de acordo com a vontade dos militares. Soares19 afirma que:

“É claro que o AI-5 deu à linha dura civil e militar a oportunidade de exercer, na prática, a sua fé fascista e antidemocrática. Em diferentes pontos do País, ações repressivas, inclusive várias contra a imprensa, foram levadas a cabo, sugerindo, por um lado, que elas foram parcialmente coordenadas e, por outro, que as forças antidemocráticas estavam à espera do AI-5 para agir contra as pessoas e instituições contrárias à ditadura.”

Já no governo Geisel a estabilidade do regime entrava em declínio. As consequências do milagre econômico começavam a aparecer no endividamento externo brasileiro, inflação e recessão. Com a mudança na presidência estadunidense, que decidiu por interromper o apoio aos governos ditatoriais na América Latina e com a independência das colônias africanas para países socialistas de onde o Brasil ainda extraia certo recurso externo, a transição para a democracia iniciava-se. No entanto, ela foi realizada no ritmo ditado pelos militares “distensão lenta, gradual e segura” como foi chamada e sem responderem pelos crimes cometidos ao longo dos anos.

Dentro dessa lógica de crise do regime, a forma com que a imprensa foi administrada também se alterou; segundo o site Memórias Da Ditadura20, Geisel permitiu a propaganda eleitoral do partido contrário à Arena - Aliança Renovadora Nacional, o MDB - Movimento Democrático Brasileiro extinguiu a censura prévia à imprensa e no último ano de governo revogou o AI-5. Com estas ações, a imprensa conseguiu mais espaço para organizar seus trabalhos e fortalecer seus focos de resistência contra o regime. Assim, é possível afirmar que “[...] A história da repressão (e da liberdade de imprensa) divide-se claramente em três períodos: antes do AI-5, entre o AI-5 e o início do governo Geisel, e de então até a restauração da democracia.”21

Além das questões burocráticas e temporais acerca da censura no período do regime militar, é interessante para esta pesquisa destacarmos o caráter político sob o qual estas medidas

19 1989, p. 22

20DITADURA, Memórias da. A maior referência na web sobre a ditadura militar no Brasil. Disponível em:

<http://memoriasdaditadura.org.br/>. Acesso em: 10 set. 2017.

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se fundamentaram. Havia dois vieses da censura com os quais o regime trabalhava: um deles era em relação à cultura, alegando proteger a sociedade da degradação moral que certas manifestações artísticas poderiam causar. O outro era informativo: a censura podava atividades jornalísticas que pudessem atingir pontos sensíveis em relação ao regime - ironicamente, a existência da própria censura era algo negado pelas autoridades quando questionadas sobre o assunto.

No entanto, essas eram apenas as formas de expressão de uma questão ideológica mais profunda, da qual a censura midiática era apenas uma ferramenta para a manutenção sistêmica. Ao analisarmos o sistema internacional na conjuntura da época, é de fácil percepção a divisão ideológica que existia entre os países, traduzida para os campos geográficos, econômicos e sociais. Com a mudança estrutural das sociedades russa e cubana, como exemplos mais fortes, os Estados Unidos começaram uma campanha intensa em nome da suposta liberdade e bons costumes existentes no regime capitalista: tratava-se da Guerra Fria, centralizada no plano das ideias e da cultura, quando comparada às guerras de décadas anteriores, mas ainda assim com expressões físicas no mundo.

Uma dessas expressões era o apoio financeiro estadunidense ao combate de governos comunistas na América Latina. No Brasil, esse apoio se iniciou com a Doutrina da Segurança Nacional, que se fundamentou com os militares brasileiros após frequentarem cursos militares nos EUA. Aplicando suas teorias de defesa nacional ao retornarem, instituições como o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) foram criadas, com o intuito de controle midiático sobre a formação de opinião pública no Brasil.

Dentro desse âmbito, visava-se lutar contra os “inimigos internos” (que sempre foram os comunistas) e compreendia-se, segundo Carvalho, que “os meios de comunicação eram vistos como um espaço central no combate ao comunismo, dada a sua forte influência na formação da opinião pública.22” Ainda sobre os estudos de Carvalho23, “A censura se constituiu como um mecanismo essencial de proteção aos pilares do regime autoritário, inserindo-se como parte relevante da Doutrina da Segurança Nacional, que concebia os meios de comunicação como espaços estratégicos para a formação e direcionamento da opinião pública.”

Nesta lógica de um inimigo maior que precisava ser combatido, deve-se destacar a importância que essa ideia tem para a manutenção de um sistema. O estado de crise é o ambiente

22CARVALHO, Lucas Borges de. A censura política à imprensa na ditadura militar: fundamentos e controvérsias.

Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, v. 1, n. 59, p.79-100, 2014. Disponível em: <http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/36349>. Acesso em: 21 ago. 2017.

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ideal para a imposição de restrições de liberdades e direitos individuais, dando espaço para as arbitrariedades das quais o regime militar dependia para estabilizar-se; e foi isso que se deu em meados dos anos 60 com as Marchas por Deus e pela Família e com a instauração do regime militar como um todo - um esforço conjunto para combater o avanço comunista.

Também é necessário ressaltar outros dois pontos sobre a censura midiática. Primeiro, a legalidade (ou falta de, em alguns momentos) da censura brasileira. Além da carga política mais explícita que a censura à imprensa carregava - e aqui vale destacar como a arte e a cultura também são manifestações políticas, porém com diferentes formas de expressão e às vezes sem o conteúdo explícito que as notícias continham -, a mesma não era legalizada como a censura cultural. Existia toda uma organização logística governamental para garantir que o controle de informação, mas, de acordo com Carvalho (2014, p.84) “o principal órgão responsável pela censura prévia aos veículos de comunicação - o Serviço de Informação ao Gabinete (Sigab) -, não se encontrava, formalmente, integrado à estrutura burocrática federal.”

Devido principalmente à questão legal, há diferentes leituras em relação à legalidade e legitimidade da censura no período. Carlos Fico ressalta como o Decreto-lei nº1077/1970 referia-se às regras para publicações em televisão, revistas e livros - mas não incluía diretrizes sobre a regulação da imprensa24. Assim, aqueles que defendem o regime afirmam que não existia censura à imprensa, apoiando-se no argumento da não existência da mesma nos anais dos atos institucionais, enquanto aqueles que denunciam os malefícios do regime, apresentando questões como as perseguições e depredações de jornais, a presença de censores nas redações e material históricos como os telefonemas e bilhetinhos25, afirmam que a censura existiu e que foi realizada, muitas vezes, de forma ilegal.

Sendo estes motivos, como afirmado previamente, a consolidação do regime e a massificação do pensamento ideológico daqueles no poder e partindo de uma análise marxista de como ideologia refere-se às ideias da classe dominante, é possível afirmar que a censura no Brasil foi um fator decisivo acerca da consolidação do regime ditatorial militar da forma com que se sucedeu.

Explanamos acerca destes assuntos no primeiro momento da pesquisa aqui realizada por entendermos a necessidade de contextualização do momento histórico que está no plano de fundo deste trabalho - mas não menos importante por isso. O cenário de instabilidade e

24 FICO, Carlos. ‘Prezada Censura’: cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, dez. 2002.

25 O termo “bilhetinhos” refere-se aos telefonemas e pequenas anotações datilografadas que informavam aos

censores quais as ordens em relação à censura midiática, realizados de maneira informal devido à suposta inexistência de censura no período.

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repressão social sob o qual o Brasil encontrava-se durante a juventude de Inês Castilho é de essencial exposição para compreendermos de maneira completa como as lutas desta mulher foram travadas ao longo de sua vida.

Dentro desse contexto de repressão institucional em diversas esferas da vida da sociedade brasileira, almejamos destacar as lutas das mulheres nesse período inóspito. Historicamente já relegadas à margem, durante a ditadura militar foi necessária muita articulação e esforço coletivo para que a voz das mulheres ecoasse na resistência que aqui tivemos e fazer valer as reivindicações das mulheres enquanto segmento social insatisfeito com os poucos direitos sociais que lhes eram tão dificilmente pensados e institucionalizados.

Para narrar estes acontecimentos, abordaremos nas próximas páginas um pouco sobre o movimento feminista, a chamada “segunda onda feminista”, suas pautas no Brasil e de que forma Inês participou desse movimento durante a ditadura militar.

2.2 SOBRE O FEMINISMO

A definição exata de um movimento social da complexidade do movimento feminista não é algo fácil de se construir; em tempo, na maior parte dos casos não é sequer produtivo ter uma definição engessada acerca do tema, vide a organicidade do mesmo e as constantes atualizações de pautas e demandas da sua militância. No entanto, para os fins desta pesquisa, tentaremos contribuir o máximo possível para esta explicação, com enfoque nos objetivos de pesquisa previamente determinados.

É necessário destacar, além disso, que não pretendemos definir cada vertente do feminismo que existe atualmente; seria contraproducente e inconsequente de nossa parte. Nosso objetivo é contextualizar o feminismo enquanto teoria e o referenciar no período histórico de nossa pesquisa, bem como descrever a articulação e atuação do movimento no Brasil a época e estimular novas formas de pesquisa acerca desta temática.

Devido a força de suas crenças em fraternidade e igualdade, bem como a paixão com que as manifestações sobre estas aconteciam, Inês sempre foi tida como a filha “rebelde” e “radical” da família desde o período da infância. Quando questionada sobre o momento que se entendeu como feminista, ela relata que isso também se deu num momento muito inicial de sua vida; recorda quando era adolescente e via notícias sobre queima de sutiãs e marchas nos Estados Unidos - e como percebia os sinais de identificação e reconhecimento com as lutas e pautas abordadas pelo feminismo. Depois, quando adulta, que compreendeu melhor como o feminismo sempre esteve dentro de si.

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Segundo Alves e Pitanguy, “o feminismo busca repensar e criar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que se adaptar a modelos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam atributos do ser humano em sua globalidade.” (1985, p. 9) Essa descrição é um bom início para o debate acerca dos objetivos em comum do movimento feminista, independente da vertente referida.

Sendo o feminismo um movimento político inserido numa lógica complexa de organização social, é necessário atentar para as diferenças ideológicas de cada vertente ao expressar-se sobre o assunto. Apesar disso, existem múltiplos pontos em comum desta luta que são dados à qualquer pessoa ou movimento que queira atribuir à si o título de feminista. Citando Pedro26:

“(...) A grande questão que todas queriam responder, e que buscavam as várias ciências, era o porquê de as mulheres, em diferentes sociedades, serem submetidas à autoridade masculina, nas mais diversas formas e nos mais diferentes graus. Assim, constatavam, não importava o que a cultura definia como sendo atividade de mulheres; esta atividade era sempre desqualificada em relação àquilo que os homens, desta mesma cultura, faziam.”

Portanto, entendemos como um dos pontos principais para a explanação acerca da teoria feminista o consenso não apenas do questionamento sobre a subordinação feminina ao masculino dentro da organização social vigente, mas também o objetivo central do movimento sendo a sua superação. As divergências entre as correntes, a partir deste ponto, seriam em relação à práxis de instrumentalização deste princípio político; a corrente marxista acredita que essa superação se dará pelo fim do capitalismo, por meio do embate das classes, enquanto a corrente liberal argumenta que a independência da mulher virá através de direitos individuais, por exemplo.

Assim era posto um dos debates iniciais do feminismo, a inferiorização das ações das mulheres perante as ações dos homens. Qual era a justificativa desta subordinação tida como natural na história? Por que isso acontecia? Ao analisar a estrutura da democracia27 como conhecemos hoje, remetendo à pólis grega, vemos que a concepção de cidadão, pessoa apta à participar da construção da sociedade no âmbito público, aplicava-se aos homens livres e proprietários de terras. À mulher ficava relegado o âmbito privado, a casa, a família, o suporte interno que estes homens precisavam ter para conseguirem ter foco total às esferas públicas,

26PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São

Paulo, v. 24, n. 1, p.77-87, 2005.

27LOLATTO, Simone. Mulheres na política: trajetórias das vereadoras titulares em Florianópolis/SC (Brasil).

2016. 348 f. Tese (Doutorado) - Curso de Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.

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sob a justificativa biológica de que, por serem capazes da reprodução da espécie, deveriam ser as responsáveis pelo âmbito familiar.

Porém, as mudanças sociais que se seguiram ao longo da história ajudaram a estimular os questionamentos sobre essa estrutura organizativa social. Um destes debates que não era pautado até então foi o seguinte: o que define o papel de cada pessoa na sociedade? A resposta advinda da democracia grega era o sexo biológico de cada um: o particular e restrito grupo de homens acima citado tendiam a participar de um espaço específico da sociedade, enquanto as mulheres participam de outros espaços. Apesar da redação textual dar a entender uma equidade nesta situação, como já foi exposto acima, não é assim que se sucede na prática.

Em tempo, a medida que as mulheres organizavam-se e pautavam sua participação nas esferas públicas, estes questionamentos se clivavam e adquiriam facetas mais complexas. Por que questões biológicas que não interferem na produtividade humana deveriam orientar qual o tipo de atividade que cada pessoa pode desempenhar? Ser capaz ou não de gerar uma criança não deveria determinar qual espaço a mulher é capaz de ocupar ou não. Desta forma, é pautado o debate acerca do gênero: é necessário estudar as relações entre os homens, entre as mulheres e entre ambos os sexos, mas sob a visão crítica de que as funções assumidas como naturais são, na verdade, uma construção advinda de uma disputa política.

Antes de prosseguir, é importante explicarmos o conceito de gênero para os fins acadêmicos desta pesquisa. Assim como a própria teoria feminista, o conceito de gênero possui uma diversa gama de explicações, de acordo com os propósitos a que servem aos pesquisadores. Utilizando os trabalhos de Saffioti28, “cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção do masculino e do feminino.”

Uma das críticas feitas por Saffioti neste mesmo trabalho em relação ao gênero é a forma como o conceito é trabalhado nas pesquisas feministas. Em algumas linhas de pesquisa, o termo segue um viés de suposta neutralidade, não debatendo em aberto as questões patriarcais estruturantes da opressão feminina. Segundo a autora, isso pode ser um problema para as teorias feministas ao desviar o foco dos debates acerca da emancipação das mulheres em relação ao patriarcado; sendo poucos os termos e as falas que atacam diretamente o sistema repressor, trocar estes por temas mais gerais (como “gênero”, por exemplo) pode ser uma perda para o movimento.

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Pensarmos os estudos de forma crítica e à quem eles servem é sempre uma tarefa válida, porém alguns debates acerca de gênero não podem ser desprezados pelas feministas. Um deles é sobre como as relações de gênero definem, na nossa sociedade, o que é considerado feminino e masculino, conforme citamos acima, como quais espaços, tarefas e cargos são atribuídos ou considerados nocivos por serem baseadas em valores naturalistas, morais e ideológicos. Assim, os potenciais das mulheres são restringidos em nome de uma forma de organização social fundamentada na exploração do outro e inferiorizando as diferenças ao invés de exaltá-las para uma construção social mais harmônica e equilibrada.

Com isto exposto, podemos afirmar que outro ponto central na luta do movimento feminista ao longo dos anos é a quebra dos padrões de gênero na sociedade. Os debates das pautas feministas apontavam e comprovavam que a questão biológica não era mais um argumento válido para a segregação que acontecia na sociedade; que “para Joan Scott, gênero é constituído por relações sociais: estas estavam baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e, por sua vez, constituíam-se no interior de relações de poder.” (PEDRO, 2005, p. 86)

Uma das formas de análise da trajetória do movimento feminista é a análise histórica com classificação e divisão dos marcos políticos pelo que se chama de “ondas”. É válido lembrar que essas classificações servem como auxiliares às pesquisas feministas; não há uma unanimidade acerca desse método de estudo, porém é o mais conhecido e utilizado. Ainda assim, destacamos as suas problemáticas para nós, pesquisadoras latino-americanas, pensando a origem de suas análises e também a própria questão de continuidade de eventos históricos para a investigação mais fiel e completa de um movimento social.

Portanto, entendendo o enfoque histórico desta pesquisa enquanto o período da ditadura militar brasileira, que ocorreu dos anos 1964 até 1985, focaremos aqui no que foi convencionado chamar de “segunda onda do feminismo”. Para compreendermos com mais clareza como esses processos se desenrolaram, explicaremos um pouco das lutas feministas internacionais e, paralelamente, as disputas realizadas em território brasileiro.

O período da segunda onda feminista tem como marco inicial a década de 60, nos Estados Unidos. Enquanto o momento da primeira onda focava nas questões legais referentes às mulheres29, a segunda onda ampliava as discussões do movimento feminista para um leque

maior de questões em pauta, indo para um debate sobre a questão privada da vida das mulheres - como as questões de sexualidade, direitos trabalhistas, direitos reprodutivos, questão familiar, entre outros.

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A emergência dessa onda de debates e lutas se deu muito pelos cenários que se configuravam na Europa e nos Estados Unidos durante a primeira metade do século 20. Com as guerras mundiais que ocorreram durante décadas, os homens foram para o fronte de batalha e as mulheres de classe média ficaram em casa. Porém, agora não eram responsáveis apenas pelo espaço doméstico no sentido familiar e tradicionalmente destinado à elas, mas também lhes ficou incumbido o papel de provedoras do lar, na ausência dos homens. Houve, nesse período, uma massificação do trabalho das mulheres, que, junto com outros processos desse período (como os avanços nos métodos contraceptivos, por exemplo), estimularam as mulheres a participarem mais da vida pública em sociedade.

No entanto, ao acabarem as guerras e os homens retornarem aos seus países e seus lares, estes não acompanharam a mudança que aconteceu e exigiam que as mulheres retornassem aos seus cargos de esposas e mães, retornassem à casa. E as mulheres se negaram à isso: passaram anos demonstrando o quão capazes eram de fazer qualquer trabalho que nunca lhes foi permitido antes, não existia motivo real para pararem de fazê-lo.

Desta maneira iniciou-se a segunda onda feminista no âmbito estadunidense e europeu. No Brasil, os acontecimentos históricos mostram um desenrolar diferente das questões. Nos anos 60, décadas após a conquista do voto feminino brasileiro, houve o golpe civil-militar mediante a ideia de um possível regime comunista (como foi explicado nas páginas anteriores). A repressão existente na época não se deu apenas no campo político, mas também no campo cultural, social, acadêmico, entre outros. Muitas pessoas sentiram necessidade de sair do país e o fizeram; foi por meio desse autoexílio que muitas mulheres brasileiras foram para a França na mesma época em que o feminismo de segunda onda começava suas reivindicações.

Ao retornarem para o Brasil, estas mulheres, identificando-se como feministas com mais certeza, trouxeram consigo os escritos que lá fora encontraram. Além disso, já havia circulação de textos e notícias sobre os movimentos que aconteciam fora do Brasil, o que incentivava a organização e a resistência das mulheres que aqui ficaram. Juntando isso à necessidade de lutar contra um regime autoritário como foi o militar, ainda mais pesado para as mulheres devido às opressões que já lhes eram impostas antes desse período, iniciou-se o movimento feminista de segunda onda.

Conforme nosso relato mostra, os atos do movimento feminista não são uniformes em todo o globo; ao fazer as divisões em ondas para explicar as pautas feministas, as autoras e autores cometem um erro muito comum, porém grave, que é o de esquecer-se do referencial geográfico em sua fala. O local originário de suas falas raramente aparece em seus textos, dando a entender que suas explanações são tidas como análises universais, desconsiderando outros

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paradigmas e realidades existentes ao redor do globo. No entanto, por mais que alguns problemas trabalhados pelo feminismo sejam estruturais, as especificidades históricas de uma região não podem ser esquecidas nessas análises. A análise de ondas que permanece como majoritária nos debates feministas é, na verdade, apenas uma das análises que se faz necessária para o movimento. É preciso pensar como o feminismo aconteceu em outras partes do mundo, como na América Latina e do Sul, por exemplo, e construir a narrativa do mesmo, sem tomar as ondas do norte como referência.

Assim, em nossa pesquisa entendemos a importância do destaque do local referencial em que nos encontramos enquanto pesquisadoras. Por isso sentimos a necessidade desta exposição para contextualizar nosso objeto de pesquisa; apresentaremos neste trabalho as pautas do jornal Mulherio junto do trabalho da jornalista Inês Castilho. Este jornal existiu desde o final de 1982 até 1988; ou seja, entre o final da ditadura e o início da transição para a nova democracia brasileiro. Por conta do seu período de atuação, acreditamos que conseguiremos ver com maior clareza as pautas que ganharam espaço no novo cenário nacional.

Além disso, foi necessário expor as questões feministas para entender como se deu o surgimento do jornal (que explicaremos nas próximas partes da pesquisa): entender a forma com que o feminismo brasileiro se organizava e reivindicava suas demandas há época é essencial para a compreensão de suas ações no campo tático e teórico.

Depois desta elucidação sobre o movimento feminista e suas disputas dentro da história brasileira, podemos explicar mais sobre os movimentos de esquerda do Brasil dentro da resistência ao regime ditatorial e também sobre as divergências que surgiram entre alguns grupos. Além disso, estamos agora aptos à discutir o surgimento dos jornais feministas dentro de uma lógica de disputa de narrativa. Também traremos as pautas dos jornais à época por dois motivos: pelos fins da pesquisa em si e para evidenciar o discurso feito no momento de nascimento dos jornais feministas.

2.3 SOBRE OS SUJEITOS HISTÓRICOS

Apresentamos o cenário nacional da época para a contextualização do assunto, agora apresentamos os sujeitos envolvidos no processo pesquisado, de forma a entender de maneira completa como as ações aconteceram e como a cadeia de eventos se constrói da forma com que temos recentemente, acreditando que análises historiográficas são o caminho mais confiável para a compreensão de um assunto.

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Os 21 anos que marcaram a ditadura foram cruéis e complexos para a sociedade brasileira; por um lado, havia uma imagem de tranquilidade e prosperidade econômica na nação, advinda da falsa estabilidade proporcionada pelo chamado “Milagre Econômico” - que depois viríamos a entender como, na verdade, foram atitudes inconsequentes em relação à economia nacional que resultaram num grande endividamento externo num período de recessão global em nome de um suposto desenvolvimento interno nacional que não aconteceu de fato.30

Por outro viés, no entanto, os custos sócio-políticos e culturais para a manutenção do tipo de regime que era administrado à época foram altos; diversas liberdades individuais foram retiradas das pessoas; desde o direito à livre expressão artística, o direito ao pluripartidarismo até ao totalitarismo do âmbito nacional sob as estruturas municipais e estaduais, perseguições políticas e tortura de pessoas suspeitas de se colocarem contra o regime.

Apesar de todas estas complicações, existiram movimentos de resistência à ditadura militar; antes mesmo do golpe ocorrer já existia uma articulação interessante na América Latina acerca de movimentos sociais e políticos em prol de uma construção de modelo societário alternativo à ordem vigente (como exposto nas páginas anteriores, há autores que afirmam que esse foi o motivo central do golpe, inclusive). Então faz sentido que, a partir do momento que se tem instaurado no país uma gestão administrativa de cunho autoritário e com um modelo de sociedade baseado em exploração intensificada, exista a atuação de grupos que discordem desta visão.

Isso não significa que essa movimentação opositora deu-se de forma espontânea ou fácil; organização do povo demanda muita articulação política para qualquer grupo (seja ele de caráter insurgente, como o relatado aqui, ou não), ainda mais sob as condições de censura intensa e repressão constante como foram as décadas de 60 e 70 no Brasil. Ao levarmos em conta a expansão territorial brasileira, a população e os meios de comunicação escassos da época, é compreensível a dificuldade elevada de uma mobilização constante a nível nacional contra um estado nacional dirigido por militares.

Somando a essa dificuldade a forma com que geralmente “as esquerdas confiavam na legalidade e no espírito democrático das Forças Armadas”31, o que de fato se sucedeu no Brasil

no momento pós golpe em relação aos movimentos de esquerda e resistência às ameaças golpistas foi um espanto coletivo quanto ao ato do golpe ter se concretizado de fato, depois de

30CRUZ, Paulo Roberto Davidoff Chagas. Endividamento externo e transferência de recursos reais ao exterior:

os setores públicos e privados em crise nos anos oitenta. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p.121-144, ago. 1995. Disponível em: <http://revistas.face.ufmg.br/index.php/novaeconomia/article/view/2287/1232>. Acesso em: 13 out. 2017.

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cerca de 03 anos de articulação em torno disso. Os grupos e movimentos sociais de oposição não estavam organizados como se esperava neste primeiro momento e, inicialmente, a resistência não ocorreu.

No entanto, isso não se prolongou. A crise global que batia à porta das nações inspirava o sentimento de revolta; na França de 1968, surgia o lema “é proibido proibir”, a juventude norte-americana colocava-se contra o governo em sua guerra ao Vietnã no cenário internacional e contra as políticas racistas que fundaram o país no cenário interno, com o Partido Panteras Negras para a Autodefesa, por exemplo. Jornadas estudantis de esquerda eram noticiadas no Japão e na Alemanha. No Brasil, o primeiro movimento a colocar-se contrário ao regime civil-militar foi o movimento estudantil. Segundo Joffily32:

“O movimento estudantil, desde 1965, reorganizou a União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e várias entidades estaduais. O 28º congresso da UNE realizou-se em julho de 1966 no porão de uma igreja em Belo Horizonte, driblando forte aparato policial (os 300 delegados entravam e saíam na hora da missa, misturados aos fiéis). Mesmo sem sede nem subvenções oficiais, a entidade liderava mais de 50 mil estudantes, que participaram da Setembrada, contra o ensino pago e a repressão.” (p. 82-83)

Dois dos maiores episódios de resistência ao primeiro governo da ditadura aconteceram a partir de iniciativas estudantis, a “Sexta-feira Sangrenta” e a “Passeata dos 100 mil”. O primeiro evento começou com uma passeata, em 1968, exigindo as verbas universitárias que as instituições precisavam para manter seu funcionamento. Ao passarem pela embaixada dos EUA, na qual atiraram pedras, foram recebidos com tiros de dentro do próprio prédio. Ao longo do dia, o centro transformou-se num campo de batalha, que resultou em cerca de 28 mortos33,

porém o governo divulgou oficialmente apenas duas mortes.

Em resposta à essa violenta repressão do Estado, aconteceu a Passeata dos 100 mil. De acordo com a tese de Joffily aqui já citada, “estudantes, intelectuais e padres promoveram, sem um só incidente, a maior manifestação desde 1964.” Porém o general Costa e Silva não aceitou nenhuma das reivindicações do movimento e também proibiu, após essa data, qualquer manifestação no país em espaços e vias públicos.

A medida que o tempo passava, os movimentos se articulavam mais, como a resistência da União Estadual dos Estudantes de São Paulo para a organização do 30º congresso da UNE e

32JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança equilibrista: resistência feminina à ditadura militar no Brasil

(1964-1985). 2005. 170 f. Tese (Doutorado) - Curso de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: <https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/3337/1/OliviaJoffily.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2017.

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